As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração

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As Misericórdias em Portugal:
exemplos singulares de integração urbana
José Francisco Ferreira Queiroz
Foram de vária ordem, os problemas urbanísticos levantados pela edificação das
misericórdias em Portugal. A questão é tão vasta e interessante que, por si só, poderia
dar origem a várias dissertações académicas. Iremos seguidamente focar alguns
exemplos mais invulgares e interessantes de integração urbana das misericórdias1.
Comecemos pelo caso do Porto. Se foi D. Manuel I quem aqui fundou a Misericórdia, em 1499, esta esteve sediada numa capela do claustro da catedral, durante
muito tempo. Apesar de ter sido comum tal situação provisória, nas mais antigas
misericórdias (e mesmo em outras de fundação tardia), numa cidade como o Porto, era
realmente necessário um edifício condigno para sediar a Irmandade da Misericórdia,
até por emancipação face à tutela episcopal2. As doações de benfeitores, geralmente
por morte, iam aumentando. Em meados do século XVI, a Misericórdia do Porto
tinha já rendimentos suficientes para iniciar a obra da sua igreja. Porém, as obras de
edificação durariam quase vinte anos.
A escolha da Rua Nova de Santa Catarina das Flores, no seu trecho inicial,
poderia ter tido relação com a nobreza daquele eixo viário (loteado no reinado de D.
Manuel I) e com a proximidade ao Largo de S. Domingos, que era um dos centros
administrativos da cidade e o seu centro geométrico, à época. Contudo, o local onde
a igreja se colocou, juntamente com a necessária casa do despacho, foi obtido por
doação da viúva do abastado Fernão Camelo, que tinha tido ali umas casas, as quais
ocupavam sete chãos3. É certo que o local era realmente quase o ideal para localizar
a sede da irmandade: havia espaço para a igreja e casa do despacho e suficiente
frente de rua, num eixo bastante cobiçado. Dizemos “quase” ideal, pois o fundo do
logradouro confinava com o morro granítico da Vitória e um eventual desaterro para
1
O presente trabalho complementa a comunicação de Ana Margarida Portela Domingues, “As Misericórdias em
Portugal: problemas urbanísticos e soluções recorrentes”, publicada neste mesmo volume. Contudo, atendendo à
complexidade do tema, vários dos exemplos mais interessantes de misericórdias portuguesas, do ponto de vista
urbanístico, não são aqui sequer mencionados, perspectivando-se o seu tratamento numa publicação específica.
2 Afonso, 2009: 139.
3 VILA, 1993: 115.
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prolongamento da capela-mor – ficando a igreja perpendicular à rua – resultaria
dispendioso. Por outro lado, era problemática a desejada relação visual com o orgânico
largo de S. Domingos. José Ferrão Afonso sustenta que pode ter sido essa a razão
da planta da igreja se posicionar ligeiramente oblíqua face ao alinhamento da rua,
precisamente no enfiamento do largo4. Essa falta de esquadria do corpo da igreja, face
ao alinhamento da rua, quase não se nota hoje, dada a galilé com frontaria barroca
que foi acrescentada à igreja, a qual subverteu a imagem inicial de uma igreja com
fachada recuada e, provavelmente, mais modesta em cércea e em ornatos.
No Porto, o recuo do alinhamento, com alguns degraus à mistura, serviria para
distinguir a igreja da misericórdia das restantes casas, incluindo a própria casa do
despacho. Esta foi, aliás, uma opção muitas vezes seguida em misericórdias que se
encaixavam em quarteirões onde existiam casas em banda e onde, o facto de estar
contígua a casa do despacho, poderia até ser um obstáculo à emancipação visual da
fachada da igreja.
Em Moncorvo, essa opção de recuo é evidente, não só por questões estéticas, mas
também por questões funcionais, como ainda irá ser abordado mais adiante. De facto,
a igreja da misericórdia e casa do despacho foram edificadas junto ao principal eixo
intramuros, embora em zona de ruas estreitas e já algo divorciada do centro cívico
da vila, que era então o rossio a sul do castelo e fora de portas. O tratamento dado
ao complexo da misericórdia, com o uso da cantaria, claramente o diferenciava das
demais construções. Porém, poderia ter sido feito um recuo da igreja e de todos os seus
anexos à face da rua, o que não sucedeu. Curiosamente, também não foi somente a
fachada da igreja a recuar. Esta opção parece evidenciar, não a intenção de destacar
a igreja, mas a de estabelecer um diálogo entre a casa do despacho e a fachada da
igreja, criando também um pequeno largo, como será explicitado mais adiante.
Simultaneamente, atendendo ao posicionamento da igreja face aos seus anexos –
que não estão somente de um dos lados, mas que também não procuram a simetria
com a fachada do templo – parece ter havido intenção em recriar um “fondale”,
passivamente (isto é, não por efeito da abertura de uma rua, mas pelo posicionamento
face ao enfiamento da mesma). Este pano de fundo é acanhado, pois é necessário
penetrar no tecido medieval e olhar por uma travessa, para ter a imagem perspéctica da
igreja, ainda por cima perturbada pela escada e alpendre da casa da roda dos expostos.
No caso de Braga, apesar de ser cidade mais esclarecida, ainda mais imperfeito é
o “fondale”, ao ponto de se poder questionar se foi mesmo propositado ou uma mera
coincidência, face ao local escolhido para implantação da Igreja da Misericórdia,
que não poderia ser muito diferente daquele onde está, dada a intenção em manter
tal instituição debaixo do controlo do arquiepiscopado e o descabimento de demolir
partes da catedral para a encaixar ali. Além do mais, e como bem refere José Ferrão
Afonso5, havia vantagens em colocar a igreja no gaveto, com dois portais de entrada,
de modo a aproximar-se também dos que acediam à catedral através do claustro.
4
5
Afonso, 2009: 137-139.
Veja-se, a propósito, Afonso, 2009: 135-137.
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E para rematar este tópico dos panos de fundo à maneira italiana, mencionemos
o projecto, não concretizado, para usar a fachada feérica da Igreja da Misericórdia
do Porto como “fondale” da nova Rua de S. João, concebido pelo cônsul britânico
John Whitehead, em 1774. De certo modo, a dita igreja permaneceu até hoje com
uma fachada demasiado impressiva para a envolvente que tem. Seguramente que
a opção pela localização da Misericórdia naquele local, já de si condicionada pelo
referido legado, condicionou a imagem urbana da igreja.
Em suma, foi relativamente comum o recuo dos alçados das misericórdias face ao
alinhamento das ruas, nos casos em que estas igrejas – quase sempre por contingências
de legados ou pela necessidade de ocupar um espaço central disponível no centro
do núcleo urbano – edificaram-se a meio de ruas com casas em banda. Como estas
ruas eram geralmente de origem medieval e já estreitas para os padrões da Época
Moderna, o recuo do alçado da igreja era quase imprescindível. Mesmo assim, no
Porto, a Rua das Flores era uma rua nova e larga, para a época.
Ainda mais comum, nas Misericórdias, foi o posicionamento das igrejas em pódio,
com três ou mais degraus em frente da porta principal. No Porto, isso pode ser verificado, até porque o terreno o permitia com facilidade. Porém, em Braga e, sobretudo,
em Guimarães, onde o terreno não se proporcionava a isso6, estas pequenas escadas,
ainda que curtas ou mutiladas no seu desenho – para não prejudicar os percursos
pedonais nos eixos preexistentes onde se implantaram – apresentam características
mais assumidas. Ambas as igrejas da misericórdia encontram-se alinhadas com os
demais edifícios contíguos, mas a soleira posiciona-se a uma cota superior, como
forma de conferir dignidade e aparato à igreja, destacando-a também dos seus anexos,
quando estes se localizavam à face da rua. Claro que esta opção só era admissível e
só resultava bem se houvesse um mínimo de espaço em frente. Aveiro é um outro
exemplo.
Casos houve em que foi necessário adoptar ambas as soluções: degraus (onde o
terreno não o favorecia propriamente) e recuo da fachada. Isso sucedeu em Santarém,
onde, mesmo assim, o resultado urbanístico não foi perfeito, apesar da beleza da igreja,
ou, sobretudo, por causa disso. Mesmo recuando e alteando, optando-se por uma
fachada pouco vertical – como foi habitual nas igrejas das misericórdias anteriores
ao barroco tardio – não se obteve em Santarém o desafogo que valorizasse o lavor
da fachada.
A análise a um qualquer mapa actual do quarteirão onde se implantou a Misericórdia de Santarém, permite evidenciar como a igreja e casa do despacho tiveram
de se encaixar no cadastro preexistente. Certamente que isso condicionou a planta
e, por conseguinte, também o facto de existir um portal lateral voltado para um
pátio, ao qual se acedia a partir de um outro portal, no enfiamento da Travessa das
Frigideiras. Estamos perante mais um “fondale” planeado, ou simplesmente o resultado
da adaptação possível à malha preexistente? Seja como for, a dita travessa era muito
acanhada e, portanto, não conferia suficiente dignidade a esta entrada lateral.
6
Em Braga, existe um ligeiro declive, sim, mas no sentido nascente-poente.
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Em Santarém, tal como em Moncorvo, as dependências anexas à igreja da
misericórdia alinham parcialmente com os demais edifícios da rua, mas, junto à
igreja, recuam e dialogam com a fachada desta, através de uma sacada de canto
(fig. 1). Estas sacadas, típicas da arquitectura renascença, surgem em algumas outras
misericórdias, em posição semelhante, salvaguardando as devidas diferenças de
implantação. Almendra, e Melo, são dois exemplos.
Fig.1
Misericórdia de Santarém
Porém, na perspectiva urbanística, não nos interessa tanto o tipo de sacada – fortemente ligado à época em que a casa do despacho foi erguida e ao gosto estético dos
encomendadores e dos artistas. A questão fulcral é a da função e a do posicionamento.
Assim, a mesma função e o mesmo posicionamento poderiam surgir numa varanda
com arcos, como em Coruche. Insistimos que estas opções arquitectónicas eram
consequência da própria acção das misericórdias, mas não de todas, ou as referidas
opções seriam verdadeiramente recorrentes, e até transversais às várias épocas em
que foram sendo erigidas as igrejas das misericórdias.
Procurando problematizar um pouco mais esta questão, ainda que de forma
provisória, convém referir que as misericórdias frequentemente encarregavam-se
de rituais quaresmais, nomeadamente da procissão dos Passos e das procissões da
Semana Santa, em particular.
A figura de Cristo Morto, por exemplo, era recorrente nas igrejas das misericórdias, posicionando-se geralmente sob o altar principal, com o grupo escultórico da
lamentação, mais ou menos elaborado; posicionando-se em outro qualquer altar da
igreja, numa versão mais simples, acompanhado de Nossa Senhora das Dores; ou
surgindo na versão da “pietá”.
Uma vez que muitas misericórdias albergavam imagens que saíam à rua durante
a procissão dos Passos – para além das inevitáveis e típicas bandeiras pintadas com
temas da Paixão e Morte de Cristo – é comum encontrar o Senhor dos Passos (ou
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dos Aflitos), em igrejas das misericórdias, assim como o Senhor da Cana Verde e
Cristo preso à coluna.
Apesar destas imagens poderem ser também encontradas em capelas do Calvário
propositadamente construídas, estas últimas eram geralmente pequenas e concebidas
como remate da encenação da Via Dolorosa, que se processava no exterior das
mesmas. Por conseguinte, não só foram várias as misericórdias às quais se adossou
um dos passos da Via Sacra (casos de Mértola, Oleiros, Almodôvar, Pederneira – este,
infelizmente tapado há poucos anos – Salvaterra de Magos, Algodres, Proença-a-Velha
ou Alfaiates), como houve muitas misericórdias com altar do Senhor dos Passos e
até mesmo algumas com capela anexa, destacada da nave, inteiramente dedicada a
essa invocação (Santiago do Cacém, ou álvaro, por exemplo).
Em Bragança, esta capela do Senhor dos Passos mereceu mesmo um tratamento
próprio a partir do exterior, sendo um exemplo muito interessante de busca de simetria,
apesar das ligeiras diferenças, que fazem com que seja possível distinguir a igreja, da
capela: menor alteamento do portal e, aquando do azulejamento, colocação de uma
tabela com as armas da Misericórdia, o que retirou um pouco da imagem de simetria
pretendida no século XVIII (fig. 2).
Fig.2
Misericórdia de Bragança
No Fundão, ou em Alvito, podemos também encontrar igrejas da misericórdia
lado a lado com capelas. Porém, estas correspondem a preexistências. No caso de
Alvito, trata-se da Capela de Nossa Senhora das Candeias. Apesar de conter o altar
do Senhor dos Passos, a capela tem fundação anterior e supõe-se que pertenceu a
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José Francisco Ferreira Queiroz
uma antiga albergaria, ao lado da qual se estabeleceu a Misericórdia. No caso do
Fundão, trata-se da Capela de S. Miguel. De qualquer forma, em Alvito, a capela
contígua tem um tratamento de menor aparato, ainda que com similitude estética. Já
no Fundão, essa tentativa de harmonização das fachadas não é óbvia. Mesmo assim,
note-se a existência do púlpito.
Os púlpitos exteriores foram sobretudo usados como complemento às capelas
dos calvários, que eram geralmente muito pequenas. Nesse contexto, a pregação
era dirigida a grandes massas e feita no exterior. Portanto, em certos casos, houve
necessidade de colocar púlpitos em frente às igrejas de algumas misericórdias (assim
como também podemos encontrar púlpitos exteriores em capelas ou igrejas exíguas,
às quais fora acrescentado amplo alpendre, para permitir que todos assistissem aos
ofícios religiosos).
Ora, retomando o exemplo de Moncorvo, verifica-se que também ali existiu púlpito
exterior, o qual posicionava-se logo abaixo do portal de canto da casa do despacho7.
Por conseguinte, é de deduzir que o pequeno largo, formado pelo recuo da igreja da
misericórdia, servisse também para parte da encenação da Via Sacra (além de ponto
de paragem de pessoas, como o denunciam os poiais em frente ao edifício). Embora
ainda não nos tenhamos verdadeiramente dedicado a esta questão, é possível que
alguma misericórdia portuguesa tenha mesmo servido de enquadramento para a
própria encenação do Calvário. Em Torres Novas, por exemplo, vê-se hoje um cruzeiro
de calvário no terreiro da Misericórdia. Lembramos, porém, que várias estruturas
semelhantes foram deslocadas do local original, sobretudo em zonas urbanas. Daí,
também, a necessidade de mais estudos monográficos sólidos.
É sabido que os calvários ficavam normalmente situados fora do núcleo urbano,
em posições elevadas, sobre maciços rochosos. Contudo, a regra não era rígida e, além
disso, em vários núcleos urbanos existiam vias sacras com percursos mais pequenos, por
vezes somente em volta de uma igreja – que poderia ser a da Misericórdia – com as
cruzes de marcação dos passos insculpidas ou aplicadas nas próprias paredes exteriores.
Ora, tomando o caso de Marialva como exemplo, dado que, já em finais do século
XVIII, não havia moradores na área intramuros, a Igreja da Misericórdia – hoje,
conhecida precisamente como Capela do Senhor dos Passos – poderia ter sido opção
para a encenação do calvário, atendendo também à sua implantação em maciço
rochoso, logo abaixo do castelo, ainda que erguida junto de uma igreja paroquial, com
a qual não possui relação visual evidente (até porque aquela, de origem medieval,
está orientada canonicamente e a Misericórdia volta-se para o principal ponto de
afluência de pessoas).
Mas mesmo quando não havia púlpito na fachada da misericórdia, poderia realizar-se,
em frente a ela, alguma parte da procissão dos Passos. Quando encontramos passos, na
fachada destas igrejas, é de supor isso mesmo. Ora, em alguns casos, existia igualmente
um portal de sacada, rasgado a partir do corpo arquitectónico da casa do despacho,
ou a partir do coro alto da igreja (que tinha também, muitas vezes, ligação directa à
7
Infelizmente, uma intervenção do século XX rasgou de novo o portal de canto, mas retirou o púlpito.
As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana
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casa do despacho), de onde se recriava a cena do Ecce Homo8. Em Algodres, assim
como em outros locais (especialmente na Beira Interior), ficou conhecida como a
“varanda de Pilatos”, posicionando-se logo acima de um dos passos.
Em Alfaiates, onde a misericórdia ocupou uma igreja paroquial medieval, existe
também um passo adossado à fachada principal. Por cima – e evidenciando claramente
como a arquitectura da igreja paroquial preexistente não se adequava à função da
misericórdia do período barroco – foram rasgadas duas sacadas. Atendendo à sua
configuração e ao facto de corresponderem a portas, não se destinavam propriamente
a iluminar melhor a igreja, mas sim a permitir que, do interior, fosse criada interacção
com o exterior. Portanto, é de supor que, também aqui, se recriasse o Ecce Homo,
podendo a existência de duas sacadas, e não apenas uma, ser simplesmente para
criar simetria. Porém, pode-se igualmente admitir que as duas sacadas servissem a
própria irmandade, aquando de eventos que decorressem no espaço público, ainda
para mais, estando a igreja posicionada no centro cívico da vila.
No Sabugal, também na Igreja da Misericórdia (antiga paroquial) foi rasgada uma
abertura, desta feita sem sacada. Demasiado pequena para que alguém se apresentasse de corpo inteiro perante quem estava no adro, seria de supor que tal abertura
destinou-se apenas a melhor iluminar a igreja. Porém, o facto de não estar simétrica
na fachada, assim como a inscrição que ela contém, podem indiciar que, a partir do
coro, a janela servia ainda para algum tipo de interacção entre representantes da
Misericórdia e o povo, aquando de determinados eventos exteriores. E se, no caso
do Sabugal, pode até nem ter sido assim, foi-o certamente em muitos outros casos.
Apesar das janelas generosas, portais (com ou sem sacada) e varandas terem
sido muito comuns nas fachadas das igrejas das misericórdias portuguesas, e nas
do mundo português (caso da Igreja da Misericórdia da Ilha de Moçambique), elas
não constituíram regra. Além do mais, parece que foram mais comuns num barroco
avançado, quer em fachadas de igrejas de misericórdia erguidas de raiz (Viseu, Guarda),
quer em transformações induzidas em igrejas de misericórdia mais antigas. Seja como
for, apesar de poderem surgir em vários outros tipos de igrejas do período barroco
(quando o valor da iluminação foi mais tido em conta do que na época anterior),
parece-nos que são características quase indentitárias do fenómeno das misericórdias,
pois prendem-se com a existência de uma mesa administrativa, composta de leigos, a
qual não só se apresentava nos ofícios religiosos em tribuna própria – quase sempre
em posição altaneira face aos demais fiéis, como também poderia apresentar-se do
mesmo modo quando os eventos decorriam no exterior da igreja. Não será por isso
que, por exemplo, na Misericórdia da Azambuja, estão os dois portais de sacada
posicionados no alçado lateral (a partir do coro e abertos para a estrada) e não no
axial, por onde se entra para a igreja?
Seguindo o mesmo raciocínio, podemos também supor que construções religiosas
barrocas, mandadas erigir e/ou administradas por outros tipos de confrarias e irmandades, sobretudo quando posicionadas em frente a espaços públicos privilegiados,
8
NOÉ, 2006: 206.
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José Francisco Ferreira Queiroz
tivessem também, muito frequentemente, portais a partir do coro alto. É o caso da
Capela de Santo António de S. Pedro do Sul (hoje pertencente à Misericórdia)9.
Nesse sentido, e também por outras razões, o posterior entaipamento de vãos,
sobretudo em igrejas de misericórdias, constituiu uma opção manifestamente errada,
ainda que tais vãos possam não corresponder ao projecto inicial da respectiva fachada.
Por vezes – e tendo também em conta vários casos brasileiros do período colonial
– estes vãos das igrejas da misericórdia, destinados sobretudo a ver e a ser visto, eram
mais simples e funcionais. Outras vezes, eram trabalhados e criavam um jogo de simetria
na fachada. Em outros casos, ainda, mantinham a simetria e acentuavam-lhe o eixo.
O caso de Salvador da Baía, com os seus dois registos horizontais de fenestração na
fachada da igreja, já se afasta um pouco do habitual em Portugal, assumindo maiores
semelhanças com outras soluções brasileiras de complexos hospital-igreja. Portanto,
aquela que consideramos ser uma característica típica das igrejas da misericórdia
erguidas ou reformadas no período barroco, parece ter assumido contornos diferentes
do outro lado do Atlântico, onde as fachadas de algumas igrejas das santas casas – se
ignorarmos os campanários e alguns remates mais recortados – não se diferenciam
assim tanto das dos hospitais contíguos.
No caso português, a menor escala, o carácter chão, aliados à inclusão de janelas
de guilhotina e à ausência de campanário, quase sugerem um aspecto civil a algumas
fachadas de igrejas da misericórdia, como a da Batalha, ou a de Porto de Mós. De
facto, uma das características mais marcantes das misericórdias portuguesas, sobretudo
daquelas que foram edificadas antes de Setecentos10, é o pudor na monumentalização
da sineira e/ou a sua colocação em zona escondida do público. As soluções foram
muitas e algumas bastante interessantes:
Em Rio Maior, quase não se vê o campanário, posicionado num alçado lateral. Em
Manteigas, praticamente só existe o sino, passando despercebido no telhado da igreja.
Quase o mesmo sucede em Mirandela, embora se apresentem dois sinos.
Em Freixo de Espada-à-Cinta, embora posicionado no eixo da fachada, também mal
se distingue o campanário da mole granítica.
Em Évora, ou em Ponte de Lima, é necessária igualmente alguma perspicácia para
descobrir o respectivo campanário.
Quando surgem torres, muitas vezes elas estão também posicionadas mais atrás face
à igreja, como em Tavira, ou em Mangualde.
O facto das misericórdias estarem normalmente associadas às casas do despacho,
levou a que vários campanários se desenvolvessem precisamente na interface entre
os dois corpos arquitectónicos, dando origem quase a uma tipologia, que pode ser
verificada em Ponte da Barca, em Ferreira Alentejo, em Azurara, no pequeno complexo
da Misericórdia de Alvorge, em Alcantarilha, entre outros edifícios de misericórdias.
9
Em frente a esta capela, a confraria da mesma invocação organizava uma grande festa anual. Cf. A.N.T.T., Memórias
Paroquiais, 1758, S. Pedro do Sul.
10 As torres, nas Misericórdias, são geralmente do século XVIII ou posteriores. Ver NOÉ, 2006: 202.
As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana
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Solução inversa, com a casa do despacho entre a igreja e sineira, sendo esta já
uma torre de relativa imponência, pode ser observada em Vila Nova de Anços. E
se, neste caso, as aberturas do corpo anexo à igreja não são rasgadas em forma de
portais, a preocupação em estabelecer uma relação de cumplicidade entre o interior e
o exterior é patente, podendo ser mais facilmente deduzida no caso das misericórdias
de Miranda do Douro (com a sineira no coroamento da fachada da igreja), Colares
(com a sineira nas traseiras), Cabeço de Vide, Arouca – já com sacada, e precisamente
na torre (ainda que do outro lado da torre fique um edifício administrativo não
pertencente à misericórdia), ou Chaves – onde o campanário se posiciona numa das
extremidades do complexo da Misericórdia.
É bom lembrar que, por todo o mundo português (caso de Goa), as misericórdias
procuraram instalar-se – e muitas vezes conseguiram-no – nas zonas mais centrais,
também mais cobiçadas, sobretudo atendendo ao factor das esmolas. Ora, as sineiras
teriam de ser discretas, ou posicionadas nas traseiras, evitando os conflitos com os
poderes religiosos instituídos11. Isto claro, sobretudo numa fase inicial. As misericórdias
também foram conquistando o seu espaço. Em Vila Flor, por exemplo, a Misericórdia
recorreu de uma imposição da paróquia de que, em certas alturas, não deveria tanger
o seu sino, tendo ganho o pleito12.
O posicionamento subalterno das misericórdias face a outros poderes religiosos
e o pudor no levantar de grandes torres sineiras, podem ser também observados no
Louriçal, onde o complexo da misericórdia perde, claramente, face ao complexo
do convento, cuja portaria se situa mesmo em frente. A torre sineira quase só se
vislumbra das traseiras. Esta misericórdia possui escadaria exterior de dois lanços,
terminando em alpendre, no acesso à casa do despacho (fig. 3).
Fig.3
Misericórdia do Louriçal
11
12
MOREIRA, 2000: 148.
GODOLFIM,1897: 132.
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José Francisco Ferreira Queiroz
Embora não seja uma solução totalmente invulgar, o facto da escada ter dois lanços,
ainda que sem verdadeiro aparato, é uma solução interessante e aproximada às que já
apresentámos, de sacadas no piso superior do alçado da igreja, no alçado do campanário
ou no da casa do despacho. No Louriçal, assim como na Lousã, a irmandade acedia
directamente da tribuna da igreja a uma varanda exterior, de onde poderia sair, cenograficamente, se assim fosse necessário em algum tipo de cerimónia. Isso não significa,
porém, que tenha sido por tal motivo que os referidos alpendres se colocaram. Só um
estudo concreto poderia, eventualmente, determinar as verdadeiras razões.
São sobejamente conhecidos os casos em que estes vãos, voltados para o espaço
público e prioritariamente destinados aos mesários, configuravam verdadeiras varandas
cenográficas, constituindo quase duplos das tribunas que existiam no interior da maior
parte das igrejas das misericórdias. Mencionemos Mangualde e Santar. O exemplo
de Santar, cumulativamente, é paradigmático de como a questão da localização das
misericórdias não se esgota nas tendências mais recorrentes, mencionadas no estudo
que Ana Margarida Portela elaborou para este volume.
As tribunas da casa do despacho voltadas para a igreja, destinavam-se a que os
mesários assistissem facilmente à celebração religiosa, antes de se reunirem, como
geralmente obrigava o compromisso. Porém, também serviam para assistir a qualquer
ofício religioso, pelo que, a partir do século XVIII, sobretudo em construções de raiz,
opta-se pelos cadeirais dentro da própria igreja13.
Ora, balcões exteriores em alçados laterais da igreja, no alçado da casa do despacho
e/ou do campanário, e até mesmo no do hospital, monumentais e elaborados, em
articulação, mais ou menos directa, com cadeirais (nomeadamente no coro, como em
Caminha), ou tribunas voltadas para o interior das igrejas; são imagem de marca das
misericórdias do Alto Minho, destacando-se a de Viana do Castelo. Aqui, a ornamentação exterior não respeita a hierarquia igreja / casa do despacho, simplesmente
pendendo para a extremidade do alçado que funcionava como “fondale” para quem
cruzava a antiga porta da muralha, entrando no rossio do Campo do Forno. A solução
adoptada articulava-se com o preexistente edifício dos paços do concelho, ajudando
a formar praça regular sobre arcarias, dentro dos cânones estéticos da Renascença
– programa que não viria a ter sequência no restante rossio do Campo do Forno.
Em Viana do Castelo, até no pátio do hospital podemos encontrar uma colunata,
ainda que sem piso superior, simulando um claustro conventual. Aqui, existiu o
cemitério, com originalidades que mereciam ser ressaltadas14.
Tal como em Viana do Castelo, também em Terena a Misericórdia assume protagonismo no enquadramento arquitectónico do centro cívico. Apenas a escala muda.
Daí que a tribuna dos mesários seja acanhada e o vão de ligação com o exterior é uma
mera janela. Em Vila Real, o espaço da tribuna dos mesários é simultaneamente um
espaço aberto para a rua, através de vãos cuja função as conversadeiras esclarecem
bem (fig. 4).
13
14
NOÉ, 2006: 203.
Neste trabalho, não nos debruçamos sobre os cemitérios das misericórdias, questão que já abordámos com algum
detalhe em QUEIROZ, 2002.
As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana
283
Fig.4
Misericórdia de Vila Real,
tribuna dos mesários
Esta igreja de Vila Real, assim como a de álvaro, com a qual partilha várias
semelhanças de implantação, pertence a um grupo de misericórdias cujo prospecto
exterior – cremos – não motivará muito os historiadores de arte à pesquisa, dada a
sua contenção decorativa e a escala relativamente modesta. Contudo, são das mais
interessantes do ponto de vista urbanístico. E vimos já como essa abordagem é crucial
para compreendermos os pontos comuns e os pontos divergentes da arquitectura e
espacialidade das misericórdias do mundo português.
A este grupo seleccionado de misericórdias que constituem verdadeiras lições de
história do urbanismo, podemos acrescentar a de Montemor-o-Novo, e, sobretudo
as de Penela e Leiria. Estes casos são tão interessantes que tencionamos dedicar-nos
a eles numa ulterior publicação.
Fontesebibliografia
AFONSO, José Ferrão, 2009 – "Regressando a Alberti. As igrejas das Misericórdia de EntreDouro-e-Minho, de Vila do Conde a Penafiel: arquitectura e paisagem urbana (1534-1622)",
in As Misericórdias Quinhentistas. Penafiel: Câmara Municipal de Penafiel.
A.N.T.T., Memórias Paroquiais, 1758. S. Pedro do Sul.
GODOLFIM, Costa, 1897 – As Misericordias. Lisboa: Imprensa Nacional.
MOREIRA, Rafael, 2000 – "As Misericórdias: um Património Artístico da Humanidade", in 500
Anos das Misericórdias Portuguesas, Solidariedade de Geração em Geração. Lisboa: Comissão para
as Comemorações dos 500 Anos das Misericórdias.
NOÉ, Paula, 2006 – “As igrejas de Misericórdia do Distrito de Coimbra. Ensaio de classificação
tipológica”. Monumentos, n.º 25.
QUEIROZ, José Francisco Ferreira, 2002 – os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em
Portugal. Consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória (Tese de Doutoramento
em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, policopiado).
VILA, Romero, 1993 – "Santa Catarina, na cidade do Porto e na época dos Descobrimentos", in
Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto, n.º 11.
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