Sagrado e profano Frederico de Holanda Duas visões de cidade

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Sagrado e profano
Frederico de Holanda
Duas visões de cidade frequentemente entram em choque quando se discutem questões
urbanísticas em Brasília. Não é diferente com as ciclovias na Esplanada dos Ministérios
e as árvores que a sombrearão. Os defensores arguem a melhoria da mobilidade urbana.
Os detratores dizem que ela danificará a paisagem da Esplanada.
Voltemos um pouquinho no tempo. A Esplanada dos Ministérios tem 300m de largura
de empena a empena dos blocos ministeriais. O gramado central entre as doze faixas de
rolamento para veículos motorizados tem 200m de largura. Alguns não sabem que estas
não eram as dimensões originais do espaço pensado por Lucio Costa. A distância entre
empenas laterais dos ministérios era de 240m (60m a menos) e o gramado central tinha
160m de largura (40m a menos). Portanto, mesmo que as faixas arborizadas
sombreando as ciclovias tomem 20 metros de cada lado (e pela observação do canteiro
de obras não chegará a isso), apenas resultará a dimensão do gramado central como foi
inicialmente pensado.
Então, qual o problema? Lucio Costa concebeu Brasília como civitas e como urbs – a
cidade tem um duplo caráter. Por um lado, ela é a cidade do poder, dos símbolos, das
representações, das cerimônias; por outro, a cidade secular da vida cotidiana dos
habitantes. E ele não concebeu a Esplanada como uma “pura” civitas. Alguns também
não sabem que há no projeto uma clara indicação de um edifício baixo, conectando os
blocos ministeriais entre si, que abrigaria serviços diversos. Nunca foi feito. Noutras
palavras, o arquiteto também trazia serviços da vida cotidiana para o coração da civitas.
O problema é outro. É a reação contra qualquer uso menos “simbólico” ou “nobre” para
o espaço. Reage-se contra tudo que intensifique o uso cotidiano do lugar, de quaisquer
maneiras. Estão sendo mais realistas que o rei. Esquecem que Lucio Costa tinha por
referência afetiva as cidades europeias, continentais ou inglesas. E que nelas, sagrado e
secular, uso cotidiano e excepcional, misturam-se para definir alguns dos espaços
urbanos mais fortes da história. Pensem nos monumentais 8km de comprimento e nos
“meros” 70m de largura dos Champs Élysés, em Paris. Ou pensem na Praça de São
Marcos, em Veneza. Não poderiam ser espaços mais simbólicos e simultaneamente
mais prenhes de intensa e animada vida cotidiana. Na América, pensem no Mall de
Washington, mais próximo da configuração da Esplanada, cujo gramado central tem
80m de largura; somam-se duas alamedas laterais arborizadas, totalizando 240m de
largura entre edifícios – a medida original da Esplanada. No mínimo, é bom considerar
esses fatos.
Decerto o projeto das ciclovias podia ser melhor. Por exemplo, por que não implantá-las
mordendo uma faixa de rolamento para veículos, em cada direção? Restariam cinco
para veículos. Destas, que tal morder mais uma e implantar os bondes modernos em
faixas exclusivas (VLTs) que, por exemplo, valorizam a paisagem de Barcelona, em vez
de danificá-la? Seria revertida uma política perversa que desde as origens de nossa
querida Capital concede todo o privilégio ao carro. As ciclovias, mesmo não sendo o
projeto dos sonhos de alguns de nós, são um avanço. Sinalizam, pelo menos, uma
tímida mudança de foco. Valorizar as ciclovias, colocando-as no espaço mais “nobre”
da cidade tem uma conotação simbólica a mais: indicam a importância conferida a uma
nova forma de mobilidade na qual se investe fortemente mundo afora.
Finalmente, um lugar é tão mais valorizado por seus habitantes quanto mais
intensamente ele incorpora-se à vida cotidiana ou aos eventos excepcionais da cidade.
Cresce a importância simbólica, além da importância prática. As bicicletas e as árvores
que proporcionarão conforto aos pedalantes são uma contribuição. Hoje a Esplanada é
quase exclusivamente o espaço sagrado da acrópole, não o espaço profano da ágora.
Sim, por seus atributos, será sempre um espaço predominantemente simbólico. Mas as
ciclovias e os prédios pensados por Lucio Costa para as laterais do lugar são “temperos
urbanos” que só o engrandecerão.
Referenciar como:
HOLANDA, Frederico de. Sagrado e profano. Correio Braziliense, Brasília, 17
jun. 2013, Caderno 1, p. 11.
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