O islã como vilão aos olhos do ocidente Por Bruno Souza, Júnior Farias e Victor Góes Tudo aquilo que é diferente sempre chama atenção, seja em aspectos positivos ou não. O islamismo sempre chamou muito a atenção de espectadores e analistas ocidentais, entretanto, na maioria das vezes, é alvo de críticas, por não seguir adequadamente uma cultura cada vez mais globalizada e que vá ao encontro dos direitos humanos (embora pouco se mencione que esses direitos são produzidos puramente através da ótica do ocidente). É através dessa perspectiva que, elementos como a Sharia, a condição da mulher e a propagação do islamismo pelo mundo precisam ser vistos através de uma nova perspectiva, mas, em tempos de uma possível “Guerra Fria” envolvendo o mundo ocidental e o islâmico, há espaço para desconstruções de pontos de vista do ocidente em relação ao mundo muçulmano? Tendo em vista dois ideais que desejam se sobressair, o que seria mais viável: aceitar uma visão cosmopolita do mundo, mesmo que esse cosmopolitismo seja construído através de preceitos da sociedade ocidental ou perceber que os costumes não podem ser universalizados e que os valores são construídos em localidades e realidades diferentes, aceitando dessa forma, o que é colocado pela visão comunitarista? Além disso, considerando a visão comunitarista, como agir em relação à cultura islâmica que, cada vez mais é disseminada pelo mundo e que possui, como um dos fundamentos, o ideal de se tornar preponderante no globo, gerando, portanto, um novo tipo de cosmopolitismo que não o ocidental? A sharia como modo de julgamento e punição Sharia significa em árabe "O bom e claro caminho para a água", ela é um sistema jurídico de Estado no Irã e na Arábia Saudita, derivada do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e da Sunna (também conhecido como Hadith), uma coleção sobre os feitos e passagens da vida do profeta Maomé (570-632), que mostra qual o caminho correto para se viver e chegar à felicidade. Existem diversas escolas de Sharia, que variam conforme a região do mundo islâmico onde ela é aplicada e o rito. A literatura hadith se desenvolveu em diferentes escolas, xiitas e sunitas seguem escolas diversas, com isso seguem diferentes versões da sharia. Essas escolas obtêm um posicionamento parecido nas questões mais importantes, como as orações e o jejum. As diferenças acontecem em questões de caráter secundário, como exemplo a clonagem, que não existia no tempo do profeta. Existem quatro graus de penas que a Sharia prevê para quem infringe as leis corânicas, conforme a gravidade do crime. Crimes graves como homicídio, adultério e blasfêmia, estão prevista a pena de morte. O alcoolismo é punido com chibatadas. Em casos de roubo o ladrão tem sua mão cortada. O adultério, tanto do homem quanto da mulher, precisa ser testemunhado por quatro pessoas. Se o testemunho for falso, essas pessoas são punidas com 80 chibatadas. O testemunho masculino tem mais valor que o feminino. A pena para a mulher ou homem casado que comete adultério é a morte por apedrejamento, as mulheres são enterradas até os ombros, e os homens, até a cintura. A partir dessa breve explicação sobre uma pequena parte do que se considera Sharia, qualquer cidadão não muçulmano ficaria espantado com as condições jurídicas as quais estão sujeitas as sociedades islâmicas. Porém, o maior problema enfrentado ao se discutir o mundo islâmico, particularmente nas análises ocidentais, é a superficialidade e a generalização que são postas para fazer, do islã, um mundo único e sem variações. Particularidades importantes como o país no qual a sociedade muçulmana está inserida, as diferenças nas Constituições, o contato do povo com uma cultura mais globalizada e individualista, tudo isso, muitas vezes, é ignorado nos jornais provenientes do mundo ocidental quando tentam dialogar com a cultura muçulmana. Além disso, poucas são as fontes ocidentais que comentam sobre a Sharia a partir de uma perspectiva mais profunda, que é a de considerar que, como proveniente de uma mensagem divina, ela pode ser passível de várias interpretações distintas, dependendo do local, do contexto histórico, da aceitação da sociedade e dos tomadores de decisões, como os juízes. A clássica situação da mulher no mundo islâmico Muitas pessoas se lembram dos protestos gerados no Marrocos esse ano após o suicídio de Amina Al Filali, a qual foi obrigada a se casar com o homem responsável por estuprá-la, já que o casamento, em caso de estupro, permite que o acusado deixe a prisão, segundo a lei marroquina. Outro caso extremamente polêmico foi o da mulher iraniana SakinehMohammadiAshtiani, que em 2010 foi acusada de adultério e condenada a morte por apedrejamento, como prevê a lei iraniana, fundamentada na Sharia. Notícias como essa abalaram a sociedade internacional, uma vez que foram de encontro aos direitos humanos tão propagados hoje pela ONU e por ONGs ao redor do mundo. A situação da mulher no mundo islâmico sempre foi vista através de uma única explicação no mundo ocidental: a condição de inferioridade e submissão em relação ao homem, principalmente no que tange às vestimentas e aos comportamentos no meio social. A burca talvez seja um dos exemplos mais notáveis do que se considera como inferioridade feminina no islamismo. O fato de uma mulher ter que vestir, da cabeça aos pés, um traje que a impede de mostrar seu corpo é, no mínimo, algo aterrorizante para a sociedade liberal proveniente do Ocidente. Entretanto, tanto nas questões de afronta aos direitos humanos que são comentadas nos dois casos citados anteriormente, como a condição da vestimenta da burca, há problemas de ponto de vista. Até que ponto, mortes por apedrejamento e mulheres obrigadas a se casar com seus respectivos estupradores não estão se tornando fatos mais isolados do que comuns na cultura islâmica e, consequentemente, contestados pelos próprios cidadãos islâmicos? E até que ponto a burca não representa uma condição de escolha das próprias mulheres que a usam para satisfazer suas próprias crenças? Pode-se responder a essas questões com algumas das poucas partes das análises que as fontes ocidentais realizam em relação ao mundo muçulmano e conseguem destacar que fatos como o de Ashtiani são, de fato, isolados. Uma delas é o jornal “O Estado de São Paulo”, o qual comenta, quando fala sobre a Sharia nos países islâmicos que “Nesses países, a pena (por apedrejamento) é raramente aplicada pelo Estado, o que não significa que pessoas não sejam apedrejadas até a morte(...). “No entanto, não há consenso na comunidade islâmica sobre a validade da prática do apedrejamento. Em 2002, o então chefe do Judiciário iraniano, o aiatolá MahmoudHashemi-Shahroudi, ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Contudo, juízes locais ainda podem ordenar apedrejamentos, enquanto as leis não forem integradas.”1 Em relação ao fato de estupradores poderem se casar com suas vítimas, com foco mais atual no Marrocos, uma notícia da BBC comenta que “O Marrocos atualizou seu código legal oito anos atrás, em uma tentativa de melhorar a situação das mulheres. No entanto, segundo ativistas, ainda resta muito a fazer.”2 Já no caso da vestimenta tradicional feminina no mundo islâmico, pode-se argumentar que existem tanto mulheres as quais são contra como mulheres as quais são favoráveis ao uso da burca ou do niqab. Novamente, uma notícia da BBC sugere tal fato, ao mencionar a polêmica lei francesa que, há alguns anos, proibiu o uso dessas vestimentas muçulmanas tradicionais em lugares públicos do território francês. Após a lei ser estabelecida, houve protestos no país por parte das próprias mulheres as quais utilizam os respectivos trajes: “Duas mulheres usando o niqab foram detidas em Paris nesta segunda, quando entrou em vigor a lei que proíbe o uso de véus islâmicos que cubram parcialmente ou totalmente o rosto de mulheres em locais públicos do país. As duas participavam de um protesto contra a nova lei em frente à catedral Notre-Dame. Segundo a polícia, elas foram detidas porque participavam de uma manifestação quenão havia sido informada previamente às autoridades, e que, portanto, não havia sido autorizada.”3 Tanto a notícia do jornal brasileiro como a da corporação britânica sugerem que parte da legislação que diz respeito à mulher e/ou às punições no mundo muçulmano podem ser passíveis de discordância entre os indivíduos da própria sociedade que segue essa cultura. Além disso, pode-se perceber que, conforme citado na segunda notícia da BBC, para muitas mulheres, o fato de usar certas vestimentas não sugere uma opressão, como afirma o mundo ocidental, mas um direito de poder adequar seus trajes aos seus princípios religiosos. Talvez falte, principalmente para os europeus e norte-americanos, uma desconstrução da visão atual sobre o islamismo, desconstrução esta que precisa dar lugar a uma perspectiva mais aberta aos fatores que podem ser considerados como opressão ou como simplesmente uma vontade de seguir os mandamentos da religião muçulmana. Provavelmente, não será possível uma desconstrução em curto prazo, haja vista que o Ocidente tem se sentido ameaçado pela disseminação do islamismo no mundo, disseminação esta que se confunde com grupos extremistas muito específicos e que promovem atrocidades em nome da religião, porém que fazem parte de uma parcela ínfima quando comparada a quantidade de muçulmanos presentes no mundo hoje. Sobre a violência no Islamismo. Toda religião pode ser vista como um lugar de memória e identidade, que ao congregar as pessoas, “lhes oferece um terreno e um referente comum no qual a identidade do grupo pode se exprimir.4” Neste sentido, a religião islâmica nasce em um contexto histórico em que o povo do Oriente Árabe enfrentava a invasão de novos paradigmas que ameaçavam a identidade própria daquele povo. Maomé, ao “pregar” a fé em um Deus único e misericordioso, aparece como uma possibilidade de resistência, aglutinando o que antes se encontrava disperso. Porém, o anúncio de um Deus único não seria facilmente aceito, nem pelos governantes locais, nem pelos povos, que estavam acostumados com as antigas práticas religiosas. Deste modo, para comunicar tal fé,o Alcorão faz uso de inúmeras citações que demonstram o uso da força e da violência por parte de Alá. Tal violência é aplicável somente àqueles que não creem Nele, não havendo no Alcorão a defesa da violência pela violência. Diante de sistemas opressores, a guerra santa é alternativa ao Islamismo nascente, na busca deanunciarem a verdade revelada por Maomé e instaurarem uma ordem justa. O Alcorão foi “redigido” em um determinado contexto histórico e trouxe respostas a muitos problemas que a sociedade árabe enfrentava.Portanto, não se pode “deduzir a partir de versículos do Alcorão, isolados de seu contexto histórico, uma constituição ou um código jurídico, pois é daí que saem as maiores aberrações contra os direitos humanos” 5. Porém, é exatamente isto que alguns grupos dissidentes do Islamismo original fazem. Tais grupos se utilizam da violência gratuita com o objetivo de manter o status quo de dominação e exploração. Grupos fanáticos, extremistas, provocam atos terroristas em nome de Alá e demonstram um ódio muito grande em relação ao Ocidente “idólatra”. Os terroristas surgem de dentro de grupos “tradicionalistas”, ou, para Ali Kamel, fundamentalistas. Os fundamentalistas islâmicos, diante da globalização, consideram que o materialismo de mercado é “uma tentação demoníaca a ser evitada.” Prova disso, dizem , é a crise da família na sociedade “ocidental”. A fluidez do consumismo, que se manifesta em filmes, artefatos, canções, é um perigo pra o crente6. “Aceitá-loseria minar a legitimidade do saber religioso, abriruma brecha no monopólio de interpretação canonizadonos moldes tradicionais e modernamentereinterpretado pelo fundamentalismo” 7. Sem dúvida, o Islamismo apresenta várias particularidades. A amplitude do Islamismo, assim como das demais religiões, é mundial. As religiões “são “regimes de verdade” que planetariamente buscam afirmar sua validade. Seus universais historicizados coexistem, se complementam, e certamente competem entre si. O mundo é o cenário de sua materialização”8. Diante de uma globalização desigual e diferenciada, torna-se difícil a ideia de alguns filósofos e teólogos de equacionar em termos mundiais a ética e a moral, através da criação de uma “ética global”. Através dessa visão, é incerto o que pode acontecer, visto que o mundo ocidental sempre coloca o islamismo sob pressão, seja através da repercussão de alguns casos isolados de desrespeito aos direitos humanos em países como Irã, através do apedrejamento, ou por causa de mulheres forçadas a se casar com homens que foram responsáveis por abusá-las sexualmente no passado, como ocorrido recentemente no Marrocos. Em contrapartida, muçulmanos questionam a visão de liberdade proveniente do ocidente, na medida em que países europeus promovem leis para fazer com que os islâmicos se adequem ao modo de vida do país em que se encontram, limitando a forma de expressão de liberdade através dos moldes ocidentalizados. Os resultados desses embates culturais, a longo prazo, são incertos, porém é nítido que uma cultura do medo em relação ao outro se estabelece cada vez mais em meio às discordâncias sobre o que vem a ser um mundo com mais liberdade, pois a ideia de cosmopolitismo ocidental não é aceita com bons olhos no islamismo, da mesma forma que o crescimento da cultura muçulmana com o objetivo de se tornar uma nova forma de cosmopolitismo não agrada àqueles que veem essa expansão como ameaça. Notas: 1 Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,as-origens-da-sharia-o-sistemajuridico-do-isla,594698,0.htm?reload=y> . Acesso em: 30 de abril de 2012. 2 Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/ultimas_noticias/2012/03/120317_marrocos_estupro_protesto_rn.shtm >. Acesso em 30 de abril de 2012. 3 Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/04/110411_lei_veu_franca_bg.shtml> . Acesso em 30 de abril de 2012. 4 ORTIZ, Renato, p.63. 5 BINGEMER, Maria Clara Luchetti (org.), p.193. 6 Aqueles que acreditam em Alá são denominados “crentes”. 7 ORTIZ, Renato, p.70. 8 ORTIZ, Renato, p. 72 Referencia bibliográfica: KAMEL, Ali. Sobre o Islã: a afinidade entre mulçumanos, judeus e cristãos e as origens do terrorismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti (org.); Edson Damasceno... [et al.]. Violência e religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo: três religiões em confronto e diálogo. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2001. ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol 16, nº47. Outubro/2001.