Beutler B {{133}} 6 O diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1

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Beutler B 1
{{133}} 6 O diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1-21)
Havia um dentre os fariseus, chamado Nicodemos, um dos chefes dos judeus. 2 À noite,
ele foi se encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vieste como mestre da
parte de Deus, pois ninguém é capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não está
com ele”. 3 Jesus respondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém não nascer de novo,
não poderá ver o Reino de Deus!” 4 Nicodemos disse: “Como pode alguém nascer, se já
é velho? Acaso poderá entrar uma segunda vez no ventre de sua mãe para nascer?”
5 Jesus respondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém não nascer da água e do Espírito,
não poderá entrar no Reino de Deus. 6 O que nasceu da carne é carne; o que nasceu do
Espírito é espírito. 7 Não te admires do que eu te disse: É necessário para vós nascer de
novo. 8 O vento sopra onde quer, e tu ouves sua voz, mas não sabes de onde ele vem,
nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito”. 9 Nicodemos,
então, perguntou: “Como pode isso acontecer?” 10 Jesus respondeu: “Tu és o mestre de
Israel e não conheces estas coisas? 11 Amém, amém, te digo: nós falamos do que
conhecemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso
testemunho. 12 Se não acreditais quando vos falo das coisas da terra, como ireis crer
quando eu vos falar das coisas do céu? 13 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que
desceu do céu: o Filho do homem. 14 Como Moisés enalteceu a serpente no deserto,
assim também deve ser enaltecido o Filho do homem, 15 a fim de que todo o que crer
tenha, nele, vida eterna”. 16 De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna. 17 Pois Deus
enviou o seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja
salvo por ele. 18 Quem crê nele não será julgado, mas quem não crê já está julgado,
porque não creu no nome do Filho unigênito de Deus. 19 Ora, o julgamento consiste
nisto: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque
as suas obras eram más. 20 Pois todo o que pratica o mal odeia a luz e não vai até a luz,
para que suas ações não sejam denunciadas. 21 Mas quem pratica a verdade vai até a
luz, para que seja manifesto que suas obras são praticadas em Deus.
1
O diálogo com Nicodemos se delimita claramente do texto anterior. Há quem proponha
ver o começo em 2,23, porque Nicodemos aparentemente pertence àqueles judeus que
acreditam {{134}} em Jesus por causa de seus sinais118. Mas isso não se encontra
explicitamente no texto. Parece, portanto, seguro deixar começar a perícope em 3,1.
Depois de sua última resposta no v. 9 Nicodemos não é mais mencionado e parece,
portanto, sair de cena como parceiro de diálogo de Jesus. O diálogo se transforma, aos
poucos, num monólogo, que finalmente parece virar um discurso do evangelista. Por
essa razão, muitos autores vêem o fim do diálogo no v. 12, onde, pela última vez, Jesus
responde na segunda pessoa (desta vez, no plural). R. Schnackenburg vai ainda mais
longe e percebe em Jo 3,13-21 e 3,31-36 “fragmentos de discurso não situados”119,
ligados ao diálogo com Nicodemos secundariamente. Com base na análise literária e
teológica, Schnackenburg conclui que Jo 3,31-36, anteriormente, seguia imediatamente
depois do 3,1-12 e tinha continuação em 3,13-21. Segundo R. Bultmann120, Jo 3,31-36
era, originalmente, a continuação de 3,1-21. A pesquisa sobre João não acolheu estas
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propostas, e assim mantemos a ordem tradicional de Jo 3. Com O. Hofius121 podemos
ver em Jo 3,13-21 a continuação da resposta de Jesus à última pergunta de Nicodemos
no v. 9.
Por vezes nega-se a unidade literária e teológica desta perícope. Bultmann atribui à
“redação eclesial”, que ele postula, a expressão que fala do novo nascimento não só do
espírito, mas “da água”, em Jo 3,5122. A escola bultmanniana considerou também os vv.
19-21 parcialmente como secundários, visto que neles as obras humanas aparecem
como condição para a salvação. Segundo J. Becker123, esses versos demonstram
também um dualismo que diverge do evangelista: uma separação horizontal entre
pessoas boas e más, em vez da demarcação vertical, característica do evangelista, que
distingue entre o mundo “em cima”, o mundo da salvação de Deus, e o mundo
“embaixo”, no qual as pessoas, por enquanto, vivem para a salvação. Acrescentam-se
outros problemas: a escatologia presumida e a relação de cristologia e soteriologia. Mas
também aqui mantemos a unidade literária da perícope, pelas razões que mostraremos
na exegese contínua.
A construção da perícope até o v. 12 pode ser determinada com base na análise
narrativa. A introdução, nos vv. 1-2b, fornece a apresentação dos personagens do
diálogo {{135}} e a indicação do tempo (era noite). Os versículos seguintes articulam-se
em três turnos de diálogo entre Nicodemos e Jesus: vv. 2c-3, 4-8 e 9-12 (ou 21); a
resposta de Jesus é cada vez introduzida pelo “amém, amém” (3c, 5b e 10c). Onde
termina exatamente a terceira resposta de Jesus não se deixa dizer com certeza, porque
as palavras de Jesus, neste caso, se transformam progressivamente nas palavras do
evangelista, que fala de Jesus na terceira pessoa. Do v. 12 até o v. 17 constata-se um
encadeamento por palavras-gancho, semelhante ao que percebemos no início do
Prólogo (Jo 1,1-5):
12 “coisas do céu”
13 “céu”
14 “Filho do homem”
16 “vida eterna”
17 “Filho”
18 “julgar”
13 “céu”
13 “Filho do homem”
15 “vida eterna”
16 “Filho”
17 “julgar”
Nos vv. 18-21 não se percebe tal conexão. Ali, o movimento vai do “julgamento” (1819) para as “obras” (19-21), Como o tema do “julgar” já foi introduzido no v. 17, não é
possível atribuir sem problema os vv. 18-21 ou 19-21 a uma outra camada literária que
os vv. 12-17(18).
II
3,1-3 No início do capítulo, o evangelista introduz o leitor na situação do diálogo (v. 12b) e relata o primeiro turno do diálogo entre Jesus e Nicodemos (v. 2c-3). A maneira
como Nicodemos é introduzido lembra a Septuaginta (cf. 1Sm 1,1). Ele pertence ao
grupo dos fariseus e é chamado “um dos chefes dos judeus”. Esta designação não é bem
exata, mas faz pensar num membro do sinédrio, como se confirmará no cap. 7 (v. 48 e
50). João nunca apresenta a composição do sinédrio de maneira exata (ao contrário de
Mc 11,27), mas fala de modo um tanto anacrônico de “sumos sacerdotes e fariseus” (cf.
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7,45). Um membro desse grupo se dirige, de noite, a Jesus para interrogá-lo. Não é
provável que tenha escolhido esse horário porque os rabinos recomendaram o estudo
noturno da Torá. É mais provável que tenha escolhido esse momento para não ser
observado124. Isso combina perfeitamente com a imagem que o conjunto do evangelho
de João apresenta dele125. Primeiro Nicodemos vem até Jesus de noite, mas depois, no
sinédrio, se posiciona abertamente {{136}} a favor de Jesus (7,50) e, no fim, mostra a
coragem de requerer de Pilatos o corpo de Jesus, que acaba de ser condenado por alta
traição (10,39). Desde o início do diálogo fica claro que Nicodemos representa o povo
judeu e sua religião. Dirige-se a Jesus com o título “rabi”. Sua expressão “(nós)
sabemos” mostra que ele pensa poder integrar Jesus direitinho. Considera Jesus um
profeta, como aparece através de suas palavras: “Sabemos que vieste como mestre da
parte de Deus”. Segundo O. Hofius126, Nicodemos mostra assim, desde as primeiras
palavras, que ele não entendeu a missão de Jesus: Jesus não “veio da parte de Deus”, ele
se originou de Deus (exêlthon ek ... apo ... para tou theóu; Jo 8,42; 13,3; 16,27s). Deus
não apenas está “com ele”, ele é Deus (cf. 1,18; 10,30). Seu valor se compreende não
apenas em virtude dos “sinais” que ele realiza, mas também, e antes de tudo, pela
acolhida de sua palavra. Esperar-se-ia, nesta altura, uma pergunta explícita de
Nicodemos, mas não aparece no relato. Hofius pensa que tal pergunta deveria referir-se
à salvação, como aparece pela resposta de Jesus127. Na sua resposta (v. 2c-3), Jesus
capta a pergunta não expressa de Nicodemos e declara, depois de uma solene fórmula
introdutória, que é preciso nascer de novo para ver o Reino de Deus. A expressão
γεννηθhnai ἄνωθεν é ambígua e pode significar tanto “nascer de novo” como “nascer
do alto”. Pensa-se geralmente que João escolheu conscientemente tal expressão.
Provavelmente significa o novo nascimento, que o discurso leva à tona imediatamente a
seguir. A expressão “ver o Reino de Deus” não é tipicamente joanina, mas tem paralelos
nos evangelhos sinópticos (Mc 9,1 par. Lc 9,27). Nestes textos já se apresenta o
pensamento da necessidade de se tornar como criança para entrar no Reino de Deus (cf.
Mt 18,3; cf. Mc 10,15)128. No evangelho de João a expressão “Reino de Deus” só
aparece no cap. 3 (3,3.5). E só em 18,36s o Jesus joanino fala de “seu” reinado. O
conceito determinante para falar da salvação, em João, é “vida”. Se, neste texto, se diz
que é preciso nascer de novo, tornar-se homem novo, para ver o Reino de Deus,
participar da salvação escatológica, esta visão se distingue da do judaísmo, segundo a
qual a participação da salvação depende essencialmente da ação humana.
3,4-8 A pergunta de Nicodemos no v. 4 recebeu diversas explicações. Segundo alguns,
Nicodemos expressa um grotesco mal-entendido: ele pensa que a pessoa que quer
nascer de novo deve voltar para dentro do seio da mãe. Outros acham que a pergunta de
Nicodemos apenas demonstra que a palavra de Jesus sobre a necessidade do novo
nascimento lhe permanece incompreensível129. Esta interpretação é preferível. Fora da
fé, o acesso à mensagem de Jesus a respeito do novo nascimento lhe permanece
fechado.
A resposta de Jesus recomeça no v.5 com a fórmula de afirmação “amém, amém, te
digo”. Os versículos seguintes são marcados por uma dupla oposição: nascimento x
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novo nascimento, carne x espírito. No início, o tema é o novo nascimento. Segundo a
palavra de Jesus, só pode entrar no Reino de Deus quem é renascido da água e do
espírito. O elemento água não é retomado a seguir; segundo Bultmann, é um acréscimo
da redação eclesial130. Mas o elemento água deixa-se explicar por duas razões. Por um
lado, pertence aos elementos ligados à Nova Aliança segundo Ex 36,25-27. Por outro
lado, muitos comentadores, e não só da Igreja católica, vêem aí uma referência ao
batismo. É verdade que, na retomada do tema no v. 8, a água não mais é mencionada.
No lugar dele está uma imagem que já se encontra no Eclesiastes (Ecl 1,15): ninguém
sabe de onde vem o vento, nem para onde vai. Quando se entende espírito literalmente
como sopro, pode-se dizer coisa semelhante de quem nasceu de novo, de quem nasceu
do Espírito131. Este espírito é contraposto à carne, que nada vale (cf. Jo 6,63). Ambos
estes conceitos marcam mais a antropologia de Paulo que a de João. A “carne” significa,
nesta oposição, o sr humano como criatura ainda não salva.
3,9-12 Nicodemos toma a palavra pela terceira vez no v. 9. Por sua pergunta ele
demonstra que não entendeu as palavras de Jesus. Ele continua numa visão meramente
humana e, daí, é incapaz de compreender as palavras de Jesus sobre o novo nascimento.
Não seria suficiente dar-lhe maior explicação, pois só na fé é que se tem acesso à
palavra de revelação de Jesus.
Na sua fala do v. 10, Jesus admira que Nicodemos não entende suas palavras. Afinal,
ele é “mestre de Israel”, mais, “o mestre de Israel”. Podemos ver aqui uma alusão à
designação {{138}} de Jesus como “mestre” no início do diálogo (v. 2). De toda
maneira, para as leitoras e os leitores é claro quem é o “mestre” de verdade. Neste
sentido, o plural “nós falamos do que conhecemos”, no v. 11, bem pode ser um eco do
“sabemos” do v. 2 [em grego, o verbo é o mesmo]. Mais uma vez, a frase é introduzida
pela fórmula de afirmação “amém, amém, te digo”; quanto ao conteúdo, Jesus se refere
a si mesmo pelo verbo no plural132. Pela primeira vez, no evangelho de João, Jesus
aparece aqui como testemunha. Não dá um testemunho a respeito de si mesmo, mas de
coisas do céu. Isso pode mostrar influencia do pensamento apocalíptico133. Assim como,
no Prólogo, a luz não foi acolhida, acontece agora com o testemunho que Jesus dá a
respeito das coisas do céu, que ele viu (junto de Deus). Quando ele fala de coisas da
terra – provavelmente, o discurso sobre a necessidade do novo nascimento – e eles não
acreditam nele, muito menos acreditarão quando falar das coisas do céu. Estas, segundo
Hofius134, seriam as verdades a respeito de Jesus Cristo e que serão desdobradas nos
versículos a seguir. O que está em jogo é, decisivamente, a fé. Quem vai a Jesus sem a
fé, não entenderá nem as coisas da terra, nem as do céu. Somente na fé é que se abre o
mistério da salvação em Cristo.
3,13-17 Nos cinco versículos seguintes, ocorre um deslocamento das fórmulas
querigmáticas da fé em Cristo em direção da soteriologia. No fim do v. 17 aparece, de
fato, a forma verbal sōthênai “ser salvo”. Temos boas razões, segundo Hofius135, para
ver nestes versículos a continuação do diálogo de Jesus com Nicodemos sobre a
salvação, mesmo se esse diálogo não e mais mencionado e as palavras de Jesus
gradativamente se transformam em monólogo. Ao contrário dos vv. 1-12, nos vv. 13-17
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mal se reconhece alguma tradição sinóptica subjacente. Só se fazem notar algumas
tradições veterotestamentárias e protocristãs, às quais dedicaremos nossa atenção in
loco.
No v. 13, Jesus fala pela primeira vez de si mesmo na terceira pessoa. Aplica a si
mesmo a expressão “Filho do homem”. Segundo a tradição apocalíptica do livro de
Daniel (Dn 7,14), este Filho do homem é uma figura do além. Há autores que vêem
nesta tradição veterotestamentária a base para o Filho do homem joanino, que sobe ao
céu136. Medeia entre o Antigo Testamento e João a tradição sinóptica do Filho do
homem. Os sinópticos conhecem três tipos de sentenças sobre o FH: o FH que vem para
julgar, o FH presente sobre a terra e o FH que sofrerá, morrerá {{139}} e ressuscitará.
Este último tipo parece ter exercido maior influência em João. É patente que João liga o
título FH a enunciados que, em Is 42–53, se referem ao Servo de Deus, especialmente
em Is 52,13–53,12, o “quarto cântico do Servo”137. Pense-se, sobretudo, em Is 52,13
LXX, onde lemos que o FH “é enaltecido e glorificado”. Também Jo 3,13 parece supor
esta visão, mesmo se os versículos seguintes aludem a Nm 21,8s, a narrativa da serpente
no deserto. Em Jo 3,13 ainda não se exprime o “enaltecimento” do FH, mas somente
sua subida. No v. 14, porém, o tema aparece. Para a “subida” de Jesus ao Pai veja-se Jo
6,62; 20,17. Em Jo 3,13 o tema da subida é introduzido em vista da revelação. É o início
do discurso sobre as “coisas do céu”. Só tem acesso a elas aquele que desceu, de junto
de Deus, do céu: o FH. É provável que por trás disso se esconde uma polêmica em
relação a outras grandes figuras da história de israel, às quais, nos tempos da literatura
apocalíptica, se atribuíam viagens celestiais para receber revelações divinas: Henoc,
Moisés, Elias, Isaías, Baruc, Esdras...
No v. 14, o discurso passa da “subida” para o “enaltecimento”. Assim o olhar se desloca
da encarnação para a soteriologia. Contudo, o sentido do “enaltecimento” continua
discutível. Uns pensam que João, aqui, fala apenas do enaltecimento na cruz, a ser
seguido da glorificação138. Outros acham que o enaltecimento, aqui, tem um sentido
mais amplo, que incluiria também o enaltecimento de Jesus junto ao Pai e sua
glorificação139. Esta opinião parece mais de acordo com a visão joanina. Em Jo 3,14
trata-se do “enaltecimento” (alteamento) da serpente no deserto como apotropaico para
os osraelitas contra as serpentes venenosa. O ponto de comparação, para João, está no
enaltecimento para a salvação do povo. Aqui há um encontro entre as duas tradições
veterotestamentarias, a do êxodo e a do Servo de Deus (Is 52,13 LXX). A ideia da
salvação se exprime também no dei (“deve”) divino, que aponta para a necessidade
segundo o plano salvífico de Deus.
A humanidade não encontra a salvação automaticamente, ex opere operato, sem
colaboração própria. Esta colaboração, segundo o v. 15, subsiste na fé em Jesus. O en
autōi, “nele”, deve ser ligado, aqui, à recepção da vida e não ao “crer em” Jesus: “a fim
de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”140. {{140}} Os vv. 14-15 constiuem
uma unidade sintática, como mostgra o estudo de R. H. Gundry141, e têm seu ponto
culminante na oração final do v. 15. O enaltecimento da serpente no deserto prepara o
enaltecimento do FH, que conduz à vida eterna de todos os que crêem nele.
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A construção do v. 16 é semelhante à dos vv. 14-15; o v. 16cd corresponde ao v. 15. O
que Jesus significa uma promessa de vida eterna a todos os que crêem no FD (aqui
encontra-se a expressão pistéuein eis, que faltava no v. 15). Este dom deve-se ao amor
de Deus para o mundo. Este pensamente surpreende, porque em João “o mundo”
geralmente é contraposto a Deus e seu Enviado (cf. Jo 1,10!). De Jo 3,16 pode-se
concluir que o amor de Deus à humanidade não conhece limite e que sua vontade
salvífica não exclui ninguém142. E em que consiste esta “dom” do Filho? Poder-se-ia
pensar na entrega do Filho em sua morte na cruz, mas neste caso seria de se esperar o
verbo parédōken. Por isso, parece mais indicado pensar no “dom” do Filho que é seu
envio à humanidade.
E qual a continuidade no v. 17? Segundo Hofius143, os vv. 13-17 apresentam um
quiasmo: no v. 13 observa-se o tema da encarnação, nos vv. 14-16 trata-se do envio do
Filho na sua morte salvífica, e o v.17 retoma o tema da encarnação. Mas esta proposta é
falha, porque entende o édōken do v. 16 no sentido de parédōken, o que não parece
aconselhável. Seja como for, existe uma conexão entre o “envio” do Filho segundo o v.
17 e a descida do FH no v. 13. O sentido deste envio é claro: trata-se da salvação do
mundo enquanto família humana.
3,18-21 O grupo de versículos subsequente não se separa completamente do anterior –
ao contrário da opinião de Bultmann e de sua escola. Mostra isso o fato de, já no v. 17,
aparecer o temo do “julgar”, bem como o acento posto na necessidade da fé, não só no
v. 18, mas já nos vv. 15 e 16. Quando se propõe ver em Jo 3,13-21 a continuação e
desdobramento do diálogo com Nicodemos, os vv. 13-17 podem intitular-se “o novo
nascimento em virtude da fé no Filho enviado pelo Pai”, e os vv. 18-21, “o novo
nascimento em virtude das obras da verdade”.
O v. 18 retoma o versículo anterior e o interpreta, assim como antes o v. 15 completou
o v. 14, e o v. 16cd o enunciado de 16ad. O que há de novo é {{141}} o tema do
julgamento: quem não “crê no nome do Filho unigênito de Deus” já está julgado. Neste
lugar encontramos, pela primeira vez, a escatologia joanina como ela foi, ultimamente,
analisada e apresentada por J. Frey144. É característico, para João, a convicção de que o
julgamento final tem lugar já na hora da fé ou da recusa da fé. Esta visão, porém, é
completada por outra, segunda a qual haverá um julgamento no fim (compare Jo 5,2527 com 5,28-29). Recomenda-se explicar esta tensão antes a partir de tradições diversas
do que a partir de camadas literárias divergentes, como fazem Bultmann e sua escola.
O v. 19 pressupõe o anterior (v. 18) e continua a ideia de que o julgamento acontece no
momento presente, e não em algum último dia145. Indica o fundamento do pecado do
mundo e do julgamento: as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, porque suas
ações eram más. Estes dois enunciados se interpretam mutuamente. As “más ações” não
significam ações condenáveis moralmente, mas a rejeição da luz, que desde o Prólogo é
descrita como sendo dada com o Logos divino.
O mesmo pensamento volta no v. 20. Todo aquele que faz o mal, odeia a luz e não vai
até a luz. Caso contrário, suas más ações são denunciadas. Os comentadores discutem se
se encontram desde o início, aqui na terra, homens maus e homens da luz no sentido do
evangelista. De um lado, acentua-se o significado da predestinação para a salvação, do
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outro, que todos os humanos, como tais, necessitam da graça para o perdão dos pecados
e a salvação. Na exegese de Jo 3,18-21 cabe prudência, porque este texto não apresenta
perspectiva suficiente para solucionar a relação difícil da predestinação divina e da
liberdade humana146. Assim como aquele que comete ações más evita a luz, também os
filhos da luz procuram a luz, para que suas ações, como tais, se tornem manifestas. A
expressão “fazer a verdade” não é grega, é hebraica. Encontra-se também em 1Jo 1,6,
comentada por R. E. Brown147, com alegação de exemplos da literatura hebraica, da
Septuaginta e da literatura intertestamentária. A expressão encontra-se nos trextos de
Qumrã, e.o. (cf. 1Q S 8,1-2). No uso {{142}} lingüístico hebraico, “verdade” (émet) não
significa o acesso à realidade empírica ou teórica, mas antes a realidade como se
manifesta a partir da revelação de Deus. Quem “faz a verdade” é aquele que se abre à
palavra de Deus. Como filho da luz, chega à luz, e seus atos podem manifestar-se como
bons.
III
O pensamento do novo nascimento tem raízes bíblicas, mas não se deixa deduzir delas
completamente. Na parte Jo 1,19-34, o Batista anuncia um batismo vindouro na água e
com o Espírito Santo, a ser administrado por Jesus (Jo 1,33). En Ez 36,25-27
encontramos a purificação escatológica com água e uma renovação pelo Espírito. O
novo nascimento é mais afim com textos sincretistas do fim da Antiguidade. É de se
considerar sobretudo o Tratado XIII “De regeneratione” do Corpus Hermeticum. Em
relação a isso, C. H. Dodd elaborou as correspondências e as diferenças em comparação
com o evangelho de João148. Em ambos os escritos o ser humano chega à vida eterna
mediante uma forma de conhecimento em virtude de um novo nascimento, que faz a
pessoa sair do domínio do corpo ou da carne para o domínio do Nous ou do Espírito.
Ambos os escritos falam da necessidade da purificação, a qual, porém, não é o último
passo. Segundo ambos os escritos, o ser humano chega à filiação divina com a ajuda do
Logos. O papel de Hermes como Revelador corresponde, nisso, ao de Cristo, o Filho de
Deus encarnado149. Mas importa observar as diferenças. Os leitores cristãos do Quarto
Evangelho chegam à salvação não somente por um conhecimento outorgado por Deus,
mas pela fé. É exatamente isso que a continuação de Jo 3,1-12 coloca na luz. Na fé, eles
não se confessam simplesmente a favor do Logos, mas do Logos encarnado, que deve
seguir um caminho de sofrimento. Tudo isso é alheio ao pensamento helenístico: precisa
ser pregado, e crido.
7. Jesus na Judeia. Novo testemunho do Batista (3,22-36)
Depois disso, Jesus foi com seus discípulos para a terra da Judéia. Ele ficava lá com
eles e batizava. 23 João também estava batizando, em Enon, perto de Salim, onde havia
muita água. Eles iam lá para serem batizadas. 24 João ainda não tinha sido lançado na
prisão. 25 Surgiu então, da parte dos discípulos de João, uma discussão, com um judeu, a
respeito da purificação. 26 Eles foram até João e disseram-lhe: “Mestre, aquele que
estava contigo do outro lado do Jordão, e de quem tu deste testemunho, está batizando,
e todos vão a ele”. 27 João respondeu: “Ninguém pode receber coisa alguma, se não lhe
for dada do céu. 28 Vós mesmos sois testemunhas daquilo que eu disse: ‘Eu não sou o
Cristo, mas fui enviado à sua frente’. 29 Quem recebe a noiva é o noivo, mas o amigo do
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noivo, que está presente e o escuta, enche-se de alegria por causa da voz do noivo. Esta
é a minha alegria, e ela ficou completa. 30 É preciso que ele cresça, e eu diminua”.
Aquele que vem do alto está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra e fala
coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32 Ele dá testemunho do que
viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. 33 Quem aceita o seu testemunho
marca com selo que Deus é verdadeiro. 34 De fato, aquele que Deus enviou fala as
palavras de Deus, pois ele dá o Espírito sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs tudo em
suas mãos. 36 Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que desobedece
ao Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.
31
I
Jo 3,22-36 apresenta aos exegetas alguns problemas. O início da secção é claramente
demarcado em relação ao diálogo com Nicodemos, por novos indícios de tempo e lugar.
Mais difícil é dizer onde termina a secção que começa em Jo 3,22. No início se
destacam os vv. 22-30 como unidade narrativa em forma de diálogo. Do v. 31 até o v.
36 seguem-se enunciados de caráter geral, que lembram a secção discursiva 3,12-31,
com a qual,, como dissemos, alguns autores os colocam em conexão. Mais raramente se
vê em 3,31-36 a continuação das palavras do Batista dos vv. 27-30. Outros ouvem aqui
a voz de Jesus. A maioria dos comentadores, porém, percebe aqui enunciados do
evangelista, ao qual remontaria este texto evangélico. De toda maneira, estas palavras
mostram continuidade antes com o contexto antecedente do que com o subsequente.
Possuem também ligações com o contexto antecedente quanto ao conteúdo. Por isso,
faz sentido tratá-las junto com este.
Nos vv. 22-30 surpreende a notícia do v. 22, dizendo que Jesus chegou à região de Judá,
depois que sua presença nessa região {{144}} fora informada há muito. E como se
explica que em 3,22 se afirma que Jesus batizou (v. 22), se no v. 4,3 isso é negado? E
quem o “judeu” com o qual os discípulos do Batista, segundo Jo 3,25, se envolvem em
discussão? Será que o texto foi corrompido? E qual a conexão entre o tema do batismo e
o do esposo e do amigo no v. 29? Até que ponto o texto pode ser considerado unitário e
que é que ele apresenta do ponto de vista literário e teológico?
Durante muito tempo, a pesquisa tentou resolver as tensões que aparecem precisamente
nesta primeira secção pela diferenciação entre a tradição e a redação do evangelista.
Vale a pena ler, neste respeito, o artigo de J. W. Pryor 150, segundo o qual os vv. 22-25
na maior parte remontam à tradição pré-joanina. Só que Jo, no v. 25, transformou um
diálogo com Jesus num diálogo com “um judeu”, eliminando assim qualquer
concorrência entre o Batista e seus discípulos, por um lado, e Jesus, por outro. Para a
tradição pré-joanina, uma atividade batismal de Jesus não constituía problema. No v.
26, então, teríamos a transição para o texto do evangelista.
Quanto à imagem do esposo em relação a Jesus, no v. 29, os autores costumam lembrar
Mc 2,18-20 // Mt 9,14s. Além disso, É. Trocmé151 suspeita que já o Batista tenha usado,
para seu anúncio do tempo final, a imagem veterotestamentária de esposo e esposa para
indicar a relação de Deus e seu povo. Marcos teria dado a isso uma interpretação
cristológica. Jogar mais luz sobre esta questão será difícil; mas também não é necessário
para a interpretação do texto joanino em pauta.
150
151
Beutler B 9
Como é construída esta unidade textual e como ela pode ser explicada na imanência do
texto? Ajuda-nos aqui o artigo de T. Nicklas152. Segundo este autor, deve-se fazer uma
distinção entre a crítica literária antiga, que analisava fontes e camadas, e a nova, que
interpreta o texto a partir de seus sinais linguísticos. Exatamente isto se impõe como
primeiro passo: muitas tensões que se costumava tomar como ponto de partida para
hipóteses diacrônicas revelam-se, numa leitura mais atenta do texto, como tendo
perfeito sentido. As tensões podem assim ser concebidas como “brancos” no texto, que
o autor conscientemente criou ou guardou, para convidar o público leitor a acompanhar
o pensamento.
T. Nicklas inclui em sua análise também Jo 4,1-3 e percebe uma construção
concêntrica: 3,22-24 e 4,1-3 constituem a “moldura” na qual é incluído o “diálogo”
entre o Batista e seus discípulos, 3,25-30.31-36. Parece, contudo, melhor conceber Jo
4,1-3 como unidade textual autônoma, como introdução num novo contexto geográfico;
fundamentaremos isso mais adiante.
II
3,22-24 Com um “depois disso” (meta tauta, cf. 5,1; 6,1. 7,1) característico inicia-se
uma nova secção narrativa. Como nos relatos joaninos de milagres segue-se a uma parte
narrativa (aqui vv. 22-24) um diálogo (aqui vv. 25-30). No v. 22, depois da indicação do
tempo, introduzem-se os personagens: Jesus e seus discípulos. Os verbos “foi” e
“batizava”, no singular, referem-se em primeiro lugar a Jesus; os discípulos parecem
acrescentados posteriormente. Provavelmente servem para constituir um grupo
correspondente ao dos discípulos do Batista, que aparecem no v. 25. O texto menciona,
sem reticências, que Jesus batizava, embora isso contradiga a correção introduzida no
4,2. Com T. Nicklas pode-se ver aqui uma provocação da curiosidade do público leitor.
Pode ser também que diversas camadas literárias aqui se chocam. Teologicamente
temos aqui, mais uma vez, a oposição entre o batismo com água e o com o Espírito
Santo.
A informação de que Jesus foi para “a Judeia” suscitou muitas perguntas. De fato, em
2,13 mencionou-se, já, a subida a Jerusalém, capital da Judeia. Leiamos, pois, o texto
com atenção. Embora Jerusalém seja a capital, a região como tal não foi mencionada em
2,13–3,21. Parece que o evangelista vê Jesus num movimento que sai de Jerusalém
(2,13), passa pela “Judeia” (3,22) e pela “Samaria” (4,4) e desemboca na “Galileia”
(4,43). Destarte, sua revelação como Palavra de Deus e Filho de Deus traça círculos
sempre maiores, afastando-se sempre mais do centro da fé judaica em direção da
periferia. Os habitantes de Sicar vêem nele, com toda a razão, o “salvador do mundo”
(4,42). Este movimento corresponderia, assim, à missão que Jesus confia a seus
apóstolos em At 1,8, para que sejam suas testemunhas “em Jerusalém e {{145}} em toda
a Judeia e em Samaria, e até os confins da terra”. João poria então a “Galileia” no lugar
desses “confins da terra”.
No v. 22, o evangelista pensa numa estada mais demorada de Jesus na “terra da Judeia”:
a escolha do imperfeito indica isso. A atividade batismal de Jesus deve ser pensada com
a mesma extensão temporal. No v. 23 fala-se do mesmo modo a respeito da atividade
batismal de João. Quanto à indicação do lugar, até hoje não se conseguiu verificá-la;
mais importante que o lugar geográfico preciso é a menção à água abundante no lugar
onde João batiza, como acentua, linguisticamente, o nome de “Enon” (= “fonte”).
152
Beutler B 10
Assim o batismo de João é duplamente evocado como batismo com água, de acordo
com o que o próprio Batista declarou como sendo característico para ele (cf. Jo 1,26.33).
Os leitores do WE lembrarão que já em 1,33 foi anunciado aquele que batizaria com
Espírito Santo. O “branco” completa-se, assim, pela memória do público leitor. O v. 23
menciona explicitamente que “eles”, certamente em grupos, iam até lá para serem
batizado pelo Batista. Isso leva então à subsequente interpelação dos discípulos.
Mas, antes que esta seja relatada, o evangelista introduz, no v. 24, uma informação que
antecipa o que acontecerá com o Batista mais tarde. Leitores familiarizados com a
tradição sinóptica (cf. Mc 1,14 par.) evidentemente sabem de que se trata. O
evangelista, em 5,35, dará a prisão do batista por pressuposto. A antecipação aqui em
3,24 serve, ao que parece, para dar peso ao testemunho do Batista a seguir: é palavra de
um homem que garante seu testemunho com sua própria vida.
3,25-30 O diálogo seguinte, entre o Batista e os seus discípulos, articula-se em duas
secções menores. Nos vv. 25-26 temos a interpelação feita pelos discípulos de João,
nols vv. 27-30, a resposta deste – levemente conectada com os vv. 31-36. Os discípulos
de João aparentemente vêem no batismo ministrado por Jesus e acolhido com grande
sucesso, uma concorrência com o batismo que o mestre deles ministra. Não é claro com
quem eles discutem. Segundo o texto, trata-se de “um judeu” – mas que vem fazer um
judeu lá onde caberia discurso e resposta de Jesus? Muitos manuscritos apresentam a
lição ioudáiōn (“judeus” no plural) em vez de ioudáiou (“judeu”, no singular), mas as
mais importantes dentre as testemunhas textuais antigas não sustentam esta lição.
Aceite-se, pois, a lição mais difícil, ioudáiou, no v. 25. Se damos ao vocábulo o sentido
geográfico, como no caso da ioudáia gê (lit. “a terra judia”), no v. 22, podemos entender
que se trata de uma discussão entre os discípulos do Batista e um habitante da Judeia,
que podemos imaginar como sendo seguidor de Jesus153.
Surpreende também o objeto da discussão: a purificação. Já em Jo 2,6 falou-se em
“purificação segundo o costume dos judeus”. O leitor pode-se perguntar se, aqui, em
3,25, o batismo está sendo incluído nesta categoria.
Jesus é designado, pelos discípulos do Batista, como aquele “de quem tu deste
testemunho”. Esta expressão remete claramente a Jo 1,19-34. Assim também a
indicação do lugar, “além do Jordão”. Portanto, parece que está sendo retomado e
continuado o esse testemunho do Batista a favor de Jesus, no caso, com respeito à
relação entre o Batista e Jesus. Esta parece ser considerada criticamente pelos discípulos
do Batista. O sucesso de Jesus é considerado prejudicial para o sucesso de João.
A resposta de João, nos vv. 27-30, reata com o testemunho de 1,19-34. Segundo este
testemunho, Jesus é superior a João. Quando o sucesso de Jesus supera o seu, é porque
Deus o quer assim (v. 27; cf. 6,44; 19,11). João Batista não é, pessoalmente, o Messias;
ele apenas foi enviado à frente dele, para lhe preparar o caminho (v. 28; cf. 1,20.23). Ele
é apenas o amigo do esposo, que se alegra quando ouve a voz deste no quarto nupcial
(v. 29). Este deve crescer, ele, porém, diminuir (v. 30). A alternância das imagens
convida os leitores a uma colaboração criativa. Eles se lembrarão das imagens bíblicas
da relação nupcial entre Deus e seu povo, e também da cena das bodas de Caná, em Jo
2,1-12, com seu mundo de simbolismo. A alegria que o amigo do esposo sente é
153
Beutler B 11
experimentada agora pela Batista, no seu último testemunho a favor de Jesus. É uma
alegria completa, da qual também o leitor deve poder participar154.
3,31-36 Como anunciado já na explicação introdutória (I), os vv. 31-36 conectam-se
com o contexto anterior de modo muito leve apenas. Porém, em vez de mudá-los de
lugar, convém explicá-los no lugar onde se encontram, no quadro do contexto maior.
Podem ser lidos como “releitura” de Jo 3,1-30, para usar os termos de Jean Zumstein.
São continuados sobretudo os enunciados sobre o novo nascimento, de Jo 3,1-21. Já em
3,11s ensejaram enunciados a respeito de Jesus como sendo aquele que traz uma
mensagem celestial. Outro tema que se retoma em 3,31-36 é o do dom do Espírito (v.
34), bem como o tema do testemunho (v. 32s). A mudança para a terceira pessoa
gramatical marca a delimitação em relação ao testemunho do Batista jo 3,27-30: a partir
do v. 31, o orador não fala mais de si na primeira pessoa155.
{{148}} Este grupo de versículos mostra correspondências entre os vv. 31-33 por um
lado e 34-36 por outro.
Aquele que vem do alto está acima de
todos. Quem é da terra, pertence à terra e
fala coisas da terra. Aquele que vem do
céu está acima de todos. 32 Ele dá
testemunho do que viu e ouviu, mas
ninguém aceita o seu testemunho. 33 Quem
aceita o seu testemunho atesta que Deus é
verdadeiro.
31
De fato, aquele que Deus enviou fala as
palavras de Deus, pois ele dá o Espírito
sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs
tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no
Filho tem a vida eterna. Aquele, porém,
que se recusa a crer no Filho não verá a
vida, mas a ira de Deus permanece sobre
ele.
34
No início está um enunciado sobre a mensagem que vem de cima, de Deus, como
testemunho ou palavra. A esta palavra ou testemunho segue-se, uma resposta, que pode
ser de dois modos: de aceitação ou de rejeição. No primeiro caso, o crente, que aceita a
mensagem, atesta (lit. afirma com selo) que Deus é verdadeiro e recebe a promessa da
vida eterna (v. 36). Mas àquele que se recusa a crer anuncia-se a ira de Deus no
julgamento (ibid.). Estrutura semelhante já encontramos no Prólogo do Quarto
Evangelho. A frase dizendo que os seus não acolheram a palavra de Deus (Jo 1,5,9.10) é
compensada pela promessa de que todos os que creem neste palavra se tornam filho de
Deus (1,12s).
No início da passagem dos vv. 31-33 aparece a contraposição entre aquele que vem de
cima/do céu e aquele que é da terra. Já conhecemos a expressão “de cima” (ánōthen)
pelo diálogo entre Jesus e Nicodemos em Jo 3,3.7. Ali podia-se interpreta ser nascido
“de cima” ou “de novo”. O primeiro sentido poderia ser sustentado pelo texto que ora
estamos analisando, mas tal correspondência não deve ser sobreestimada. O “vir” de
Jesus já foi mencionado nas palavras do Batista em 1,15.27.30. Este Jesus é aquele que
“vem de cima”. Segundo o v. 34, ele foi “enviado por Deus”. A este, que vem de cima,
opõe-se aquele que é da terra. Alguns poucos autores veem neste personagem João
Batista, o qual, em comparação com Jesus, tinha uma mensagem mais terrena e mais
humana (R. E. Brown). Mas é preferível ver naquele que é da terra qualquer um que traz
uma mensagem meramente humana. Isso não se pode dizer da mensagem profética de
João Batista, o “homem enviado por Deus” (1,6).
154
155
Beutler B 12
Aquele que vem de cima está acima de todos. O agir segue o ser. Visto que está acima
de todos, pode falar de cima, com o pleno poder do Altíssimo156. Este embaixador
celestial não apenas “fala” de coisas celestiais, ele dá testemunho delas. Este enunciado
lembra Jo 3,11, onde {{149}} Jesus diz de si mesmo que ele “dá testemunho daquilo que
viu”. Por isso, o que ele diz é fidedigno. A representação de uma testemunha de coisas
celestiais ambienta-se nos textos apocalípticos. Deve, porém, ser distinguida da
representação, frequente em João, do testemunho a favor de Jesus e de sua missão da
parte do Pai157. O texto não diz de modo unívoco qual seria o conteúdo da mensagem
celestial trazida por Jesus158. Mas o contexto geral do Quarto Evangelho permite
concluir que o conteúdo de seu testemunho é dado com seu envio como revelador da
parte do Pai. O que ele deve anunciar e testemunhar é, exatamente, este envio, e só isso.
A dupla resposta que se pode dar à mensagem celestial já foi apontada no Prólogo,
como acima dissemos. A contradição entre a asserção genérica de que “ninguém aceita
o seu testemunho” e um grupo humano particular que, contudo, o aceita, se deixa
resolver com a indicação de que, para a acolhida da mensagem divina, é preciso a
predestinação de Deus e sua graça (cf. Jo 6,44). Só a partir de si mesmo, o ser humano
não pode entender nem aceitar a revelação divina.
Àquele que acolhe a mensagem divina não se apresenta nenhuma promessa, mas dele se
diz que “confirma com selo que Deus é verdadeiro”. O contrário seria fazer de Deus um
mentiroso, como se diz em 1Jo 1,10 daqueles que pretendem que não pecam. A
expressão “confirmar com selo” (sphragízein) encontra-se ainda uma vez em João, em
6,27, onde é dito que Deus “confirmou com selo” o seu Filho que enviou ao mundo: ele
o marcou com o selo da fidedignidade. De acordo com isso, os que aceitam o
testemunho do Filho confirmam o envio dele como revelador da parte do Pai e, ao
mesmo tempo, a fidedignidade do Pai que o enviou.
Nos vv. 34-36, inicialmente, o “ser enviado por Deus” corresponde ao “vir de cima”.
Também no restante, as palavras do v. 34 correspondem às de 31s, ainda que com
algumas modificações. A primeira diferença é que se diz de Jesus, o enviado de deus:
“ele dá o Espírito sem medida”. A palavra de revelação do Filho é, assim, ligada ao dom
do Espírito, e assim se encontra conecta a secção 3,31-36 com o diálogo de Jesus e
Nicodemos, em 3,1-12. Na medida em que realça a dimensão pneumática {{150}} da
revelação, o autor acentua a dimensão trinitária da salvação e, destarte, encerra o inteiro
cap. 3.
A outra diferença em comparação com os vv. 31-33 consiste na afirmação de que o Pai
ama o Filho e pôs tudo em suas mãos (v. 35). Do amor do Pai para o Filho falam os
discursos de despedida (Jo 17,23.26). No início dos discursos é confirmado que Deus
pôs tudo nas mãos do Filho (Jo 13,3). Esta dupla correspondência mostra que nosso
texto do cap. 3 se situa na proximidade dos discursos de despedia em sua forma final (Jo
17 provavelmente pertence à última camada desses discursos e também do conjunto do
evangelho de João). Quanto ao conteúdo, pode se ver neste motivo a influência da
teologia da Aliança do Antigo Testamento: Israel ama a Deus e é amado por ele, na
medida em que permanece fiel a seus mandamentos (cf. Dt 7,8s.13).
A promessa de vida eterna feita àqueles que creem no Filho é um motivo central do
Quarto Evangelho (cf. desde Jo 3,16.18 até o versículo final 20,31). A alternativa, a
156
157
158
Beutler B 13
incredulidade, é designada como “desobediência”, no v. 36. Essa desobediência leva à
“ira” de Deus – termo que ocorre em João só aqui e, em outros lugares, é representado
pelo termo “julgamento” (cf. Jo 3,17-21). Na tradição sinóptica, ao contrário, o termo
“ira” encontra-se na tradição da pregação penitencial do Batista (Lc 3,7). Alguns autores
concluem, desse parentesco linguístico, que Jo 3,31-36 faz parte do discurso do Batista
que se inicia em 3,27, mas isso nada mais é do que uma possibilidade.
III
Qual é a mensagem permanente de Jo 3,22-36, válida também para nós? O texto
convida a se envolver com um movimento. O ponto de partida é “a Judeia”, a “terra
judaica”. Apresenta-se João Batista, dando seu testemunho a respeito de Jesus.
Característico é, nestes vv. 22-30, o “antes” é o “depois”. João foi enviado antes do
Messias que ele anuncia; disse isso desde antes. Quem vem depois dele é o esposo da
noiva que é o povo de Deus. Ele mesmo, João, é apenas o amigo do esposo; ele não
entra no quarto nupcial. Jesus deve crescer; ele, João, deve diminuir. Assim, o texto
permanece solidamente ancorado dentro do judaísmo de seu tempo com sua expectativa
da salvação escatológica, messiânica.
Nos vv. 31-36 a perspectiva muda. Percebemos neste texto uma “releitura”, leitura
renovada da secção precedente. No lugar de um dualismo temporal entra um dualismo
espacial. Jesus não vem cronologicamente depois de seu precursor: espacialmente, em
virtude de sua origem, ele está acima de todos os que falam da salvação. Ele apresenta
uma mensagem celestial. Ele é enviado da parte do Pai. Nisso, ele não traz somente a
palavra e a mensagem de Deus, mas também o Espírito de Deus, sem medida. Este
pensamento reata com textos anteriores. Por um lado, o evangelista aqui é marcado por
representações apocalípticas, que conhecem o “testemunho” do vidente do mundo
celestial. Por outro lado, com a mudança da perspectiva temporal para a perspectiva
espacial, abre o texto para leitores helenistas, familiarizados com Platão. O mundo
autêntico de “cima” é contrastado com o mundo inautêntico de “baixo”. Deste mundo
de “cima” vêm a mensagem salvífica e o mensageiro salvador.
A mudança de perspectiva convida a refletir sobre rescritas mais avançadas da
mensagem salvadora. Representações espaciais do “mundo celestial” como o mundo
verdadeiro e como origem da salvação, frequentemente, causam mal-entendidos. Há
muita coisa que sugere que, hoje, é preciso considerar novamente e com mais
intensidade a dimensão temporal. O Concílio Vaticano II apropria-se da “alegria e
esperança” de toda a família humana. Isso abre novamente a mensagem da salvação em
direção ao futuro. E leva de volta para a esperança da salvação de Israel, “Judeia”.
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