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Sensibilidade, autonomia, solidariedade: os
desafios do novo ensino médio a partir de
seus princípios filosóficos
Aldir A. Carvalho Filho
Professor do Colégio Pedro II – RJ. Consultor dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – Filosofia.
Doutorando em Filosofia – Universidade do Brasil (UFRJ).
Endereço: Rua Morais e Silva, 51 – Bloco I – 1208, Maracanã. 20.271-030. Rio de Janeiro/RJ Telefones: (21) 2254 5019 /
(21) 9646 1216. E-mail: [email protected]
Resumo
Este artigo propõe análises e reflexões a respeito das dificuldades de uma formação para a
sensibilidade, a autonomia e a solidariedade dos educandos, além de princípios valorativos do
novo ensino médio brasileiro, tendo em vista as contradições e questões não suficientemente
explicitadas desses princípios, de modo a auxiliar os educadores a apropriar-se criticamente
da reforma da educação e observar, de modo atento, e, ao mesmo tempo, rigoroso os
dispositivos legais.
Palavras-chave: Educação. LDB. Ensino Médio. Autonomia. Sensibilidade. Solidariedade.
Sensibility, autonomy, and solidarity: the challenges of the new secondary school
curriculum and its philosophical principles
Abstract
This article offers analyses of and reflections on the difficulties created by the new curriculum
for the sensibility, autonomy, and solidarity of students, besides discussing the values
expressed in that curriculum. It looks at the insufficiently explained contradictions and
questions in the curriculum’s value principles in order to help educators make critical use of
this educational reform and scrupulously observe its legal requirements.
Key words: Education. Secondary teaching. Philosophical principles. Autonomy. Sensibility,
Solidarity.
INTRODUÇÃO
A promulgação da Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) – deflagrou a mais ampla reforma oficial do gênero já realizada no Brasil, abrangendo
todos os níveis educacionais, da educação infantil ao ensino superior e, conseqüentemente,
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todas as modalidades através das quais devem se formar os educadores: o curso normal
superior, as licenciaturas para o ensino médio, a formação de pesquisa para o ensino superior.
O que originou este artigo foi à necessidade de desenvolver a relação que os educadores,
segundo creio, devem ter com a LDB. Para dar um exemplo do que tenho em vista, parto do
pressuposto de que ninguém cogita que um engenheiro civil [responsável, naturalmente] não
conheça pormenorizadamente ou não cumpra fielmente os códigos de obras municipais,
estaduais, federais etc., que dispõem técnico-normativamente sobre seu trabalho.
O mesmo deve ocorrer com os médicos, os pilotos de avião e, de modo geral, com todos
os profissionais registrados, diante da sociedade civil, sob pena de invalidarem sua
qualificação profissional.
Vejo, portanto, a relação que os educadores brasileiros têm de ter com o próprio código
maior que rege seu ofício – e suas normativas complementares, em particular as Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCN) – de modo inteiramente semelhante. Essa “obediência civil
profissional” deve ser desenvolvida basicamente em três níveis: a) conhecimento profundo e
especializado; b) apropriação crítica; c) observância rigorosa.
Com este artigo, desejo contribuir para o desenvolvimento integrado dessa relação
oferecendo algumas reflexões críticas sobre os princípios filosóficos do novo ensino médio
brasileiro. Tais reflexões podem auxiliar em (a) uma análise mais especializada das
dificuldades envolvidas nos pressupostos da reforma, ao mesmo tempo que geram (b)
algumas questões que precisam ser melhor respondidas, teórica e praticamente, de modo a que
os educadores possam dedicar-se (c) à sua observância com rigor fundamentado.
Penso, com isso, estar participando da corrente de desenvolvimento dessa relação que
tem levado muitos educadores a publicar e se pronunciar criticamente sobre a lei. Algumas
dessas críticas, em minha opinião, atingem um alvo equivocado. Isso se explica talvez pela
precocidade com que foram disparadas. De qualquer modo, ainda que se diga, por exemplo,
que “[...] a LDB não passa de uma regulamentação adequada ao ajuste neoconservador.”
(FRIGOTTO, 1997), não é permitido a nenhum educador furtar-se legitimamente ao seu
ordenamento explícito. É o pleno desenvolvimento do educando como ser total, incluída a sua
qualificação para o trabalho [que é apenas um aspecto muito importante e central do exercício
da cidadania], que possui caráter mandatório para os educadores:
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A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho. (LDB, Art. 20).
Desenvolver um discurso mobilizador para a observância da Lei é tarefa que se impõe
com a mesma força como se precisa desconstruir a ilusão de muitos que, ao que parece não
satisfeitos com as normas em vigor, ainda preferem esperar por uma “lei messiânica”, ainda
por vir, que resolveria todos os nossos problemas educacionais e à qual, somente, se poderia
obedecer.
Sou da opinião de que o desafio que nos espera é de outra ordem: é preciso implementar
as mudanças propostas pelo mandamento legal, custe o que custar, urgente e eficazmente.
Nossa frágil democracia não pode esperar que fiquemos esperando. Nem por uma outra lei
messiânica nem, menos ainda, pelo paternalismo de bons governantes. Caso contrário, a
função social, civil, republicana e democrática da escola perde inteiramente sua razão de ser.
A quem, por exemplo, os educadores pretenderiam deixar a tarefa de “desenvolver o
educando como ser total”? Se quisermos fortalecer as instituições democráticas, a começar
pela escola, é óbvio que temos de cumprir as regras do jogo que estamos jogando.
O que não exclui [antes, a rigor, pressupõe], é claro, que nos apropriemos criticamente
dos mandamentos legais. Um ponto em especial é a dificuldade que envolve a busca de um
consenso possível sobre valores e atitudes. Se é verdade que nenhum agente social detém a
capacidade para ler sozinho a realidade, estamos diante do desafio de ter que nos entender
para podermos construir a educação e a história que queremos. É basicamente nesse contexto
que retomo a orientação do Parecer CEB/CNE-15/98:
[...] deter-se sobre o plano axiológico e tentar traduzi-lo em uma doutrina
pedagógica coerente não significa ignorar o operativo, a falta de professores
preparados, a precariedade de financiamento. Ao contrário, o esforço
doutrinário se justifica porque a superação desse estado crônico de carências
requer clareza de finalidades, conjugação de esforços e boa vontade para
superar conflitos, que só a comunhão de valores pode propiciar. (BRASIL,
2002, p. 74).
Dentre as razões que não tornam a “coerência da doutrina” uma meta facilmente
alcançável estão os muitos equívocos derivados de uma leitura superficial, apressada ou
míope dos princípios filosóficos orientadores dos valores e atitudes que devem reger nossa
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prática pedagógica renovada no ensino médio. São necessários, enfim, esforços constantes de
clarificação filosófica sobre os próprios princípios, se quisermos encarar de frente os desafios
práticos de formação que eles nos propõem.
No corpo deste artigo, analiso os três princípios ou eixos axiológicos a partir dos quais
se sustenta a proposta de reforma do ensino médio: a Estética da Sensibilidade, a Política da
Igualdade, a Ética da Identidade.
A ESTÉTICA DA SENSIBILIDADE
A palavra “estética” deriva do grego aisthésis, que quer dizer percepção, sensação
(PETERS, 1983), e seu uso como categoria cognitiva foi, entre os filósofos gregos, bastante
controverso. Por ser relativa aos processos fisiológicos envolvidos no conhecimento sensível
de objetos, sua valorização negativa ou positiva variou de acordo com o enquadramento
ontológico atribuído àquilo que confronta nosso sistema perceptual, ou seja, a realidade
sensível e sua eterna mudança. Assim, para Parmênides e Platão, por exemplo, tomar o
caminho da sensação impedia o homem de qualquer acesso genuíno à verdade. Empédocles e
Aristóteles, por seu turno, levaram a sério os sentidos e, embora o acesso à verdade fosse uma
função noética, isto é, algo que ocorre em última análise por meio dos processos de
pensamento, aqueles garantem a certeza fisiológica de que os dados empíricos que chegam ao
pensamento sejam confiáveis. Epicuro, finalmente, concedeu aos sentidos o estatuto supremo
nesse terreno, a saber, que eles são o único critério de verdade. De qualquer maneira, a partir
de Aristóteles, a questão da sensação e dos processos “estésicos” tornou-se um problema
filosófico central para toda discussão sobre o conhecimento.
No período moderno, a Crítica da Razão Pura, de Kant, tornou-se referência
incontornável para o debate, ao formular uma faculdade do conhecer que radica na
sensibilidade o início temporal de qualquer processo de conhecimento, embora não seja sua
única fonte (KANT, 1985, p. 36). Na seção intitulada “Estética Transcendental”, Kant propôsse a examinar as condições subjetivo-perceptuais de todo conhecimento possível.
Contemporaneamente, chegou-se ao extremo, inclusive, de investigar os processos de
conhecimento apelando primariamente para os dados empíricos colhidos nas pesquisas de
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neurofisiologia, considerando a atividade propriamente reflexiva [o pensamento?] como uma
espécie de atividade de segundo plano, quase um epifenômeno.
Esse brevíssimo excurso sobre a discussão filosófica estética serve para dar contexto à
seguinte questão: como se deve entender a proposta de uma “estética da sensibilidade”,
considerada como princípio filosófico educacional, quando, do ponto de vista da tradição
filosófica que consagrou o uso do termo, a formulação em si parece uma absoluta
redundância? Ou, de outro modo, em que consistiria a novidade de uma “estética da
sensibilidade” para guiar os passos de uma prática educacional reconstruída, se o campo
temático da estética, tanto do ponto de vista da investigação quanto, no caso especial da arte,
do ponto de vista da produção, está ligado analiticamente ao campo temático da
sensibilidade?
A saída está em interpretar o princípio de um modo inteiramente diverso. De fato, o que
ele põe em jogo é a necessidade de superarmos uma determinada ideologia estética, uma
cristalização da sensibilidade em padrões e referenciais absolutamente desvitalizados e
desumanizados. O princípio da estética da sensibilidade significa uma referência pela qual se
reafirmam valores que têm que ver, sobretudo com a “delicadeza de sentimentos”.1
Assumir a estética da sensibilidade significa, então, valorizar e optar sempre por uma
decidida abertura afetiva, fortalecê-la, ampliá-la, deixar-se guiar também por ela e não
somente por um “sentido prático”, derivado do cálculo estratégico dos interesses. Sabemos
que a racionalidade instrumental (HABERMAS, 1987) ocupa-se dos meios pelos quais
construímos nossa sobrevivência. Ora, numa civilização em que a própria garantia de vida foi
tornada problemática, a dimensão afetiva, lúdica, criativa, essa mesma que põe os fins para os
quais temos que encontrar meios tem sido sistematicamente colocada em segundo plano, se
não, completamente desvalorizada; nossa capacidade de deixar-se levar pela ternura e pela
compaixão, ridicularizada.
De modo geral, diante de um aumento dramático da sensação de perigo, assistimos nos
nossos tempos a um crescente controle [externo e interno] dos sentimentos que não raro expõe
os indivíduos à debilidade e à morte ou, no caso mais comum, à depressão crônica.
Como educadores, temos reproduzido – conscientemente ou não – esse estado de coisas,
na medida mesma em que todo nosso interesse pedagógico tem-se voltado, até agora, para a
formação da “mente lógico-discursiva”. Para tanto, cumpria reproduzirmos na Escola todos os
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mecanismos de submissão e controle que caracterizam uma sociedade altamente
“racionalizada”, competitiva e excludente. Assim, desde o uniforme escolar aos boletins
estudantis, do desenho padronizado das cadeiras à monotonia cromática das salas de aula, dos
horários ritmados, repetidos, aos exercícios infindáveis e às rotinas dos exames, da posição
estática dos alunos à posição elevada do professor, tudo só contribui para uma “estética da
repetição e da padronização”, uma estética da dureza, da frieza e, logo, da morte. Numa
estética desse tipo, somente os mais duros, os mais capazes de auto-violência é que logram ser
bem sucedidos.
No opúsculo final da Dialética do Esclarecimento, um dos mais belos textos da
literatura filosófica de todos os tempos, intitulado Sobre a gênese da burrice, Adorno e
Horkheimer (1985, p. 239) nos convidam a ver nisso uma compulsão neurótica, derivada, na
verdade, de um “processo de emburrecimento”: “Em seus começos, a vida intelectual é
infinitamente delicada. Um corpo vivo é paralisado pelo ferimento físico; o espírito é
paralisado pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis.” Assim, os animais mais
evoluídos são aqueles que, por terem-se endurecido, lograram não sucumbir ao medo tão logo
sua sensibilidade tenha sido afetada.
No entanto, a escala etológica nos revela que a repressão das possibilidades de “criação”
e “inventividade animal” é a verdadeira responsável pela configuração hierárquica das
inúmeras espécies de seres animados e por sua imobilização num patamar determinado:
“Tendo sido definitivamente afugentado da direção que queria tomar, o animal torna-se
tímido e burro.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 239). E, mais adiante: “A burrice é,
assim, uma cicatriz, isto é, ela designa um lugar onde o jogo dos músculos foi, em vez de
favorecido, inibido no momento do despertar.” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 240).
Logo, no lugar onde o desejo é atingido, fica uma cicatriz, um enrijecimento onde a superfície
fica insensível.
Vivendo numa civilização marcada pela brutalidade do próprio modo de produção e
reprodução sociais, pela imensa desconsideração do valor da vida humana, a necessidade que
se tem de uma estética da sensibilidade é, no mínimo, da ordem da sobrevivência da espécie
num patamar superior. Se não formos capazes de ultrapassar o estágio determinado em que
estamos, teremos nos detido num “nível” que não é, de nenhum modo, razoável como um
todo, ainda que possa contar com partes hiper-racionais:
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Como as espécies da série animal, assim também as etapas intelectuais no
interior do gênero humano e até mesmo os pontos cegos no interior de um
indivíduo designam as etapas em que a esperança se imobilizou [...].
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 240).
É sintomático que se tenha lido o slogan do novo ensino médio – “Educação agora é
para a vida!” – como um convite ao aligeiramento dos tradicionais “conteúdos cognitivos” das
“disciplinas” importantes. É outro dos equívocos que se pode cometer na interpretação dos
fundamentos. Ele parte da premissa de que a reforma propõe que se ensine ao aluno “como
ele deve adaptar-se à vida atual”, tal como a encontramos.
Nada mais falso. Deve-se entender isso de modo inteiramente diverso. Precisamos, sim,
educar a nós mesmos e a nossos alunos para a vida, e não para a morte, para a rigidez. E só
poderemos fazer isso se desenvolvermos uma outra estética, uma nova percepção, qual seja, a
sensibilidade de que uma exagerada preocupação com os meios pode não ser sinônimo de
inteligência, mas, sim, de burrice.
Tal preocupação exagerada pode bem ser o sinal de uma teimosia que, como se tem
visto inúmeras vezes na história, acaba por se converter num fanatismo – seja difuso, seja
concentrado – e que, de fato, nada faz além de alimentar o câncer social da violência, da
exclusão e da falta de amor, alegria e sentido, que grande parte de nós sofre em nosso
cotidiano capitalista globalizado.
Em parte, obedecendo a uma compulsão desesperada, nossos mecanismos de defesa
neuróticos muitas vezes podem lembrar o movimento enraivecido, embrutecido e impotente,
de uma fera que não pára de ir e vir dentro de sua jaula. Não observamos aí nenhum ponto de
contato com a obsessão escolar com “grades curriculares” e horários rígidos e obrigatórios,
isto é, compulsórios? Não conseguimos ir além do que, para retomar Weber, a “jaula de ferro”
burocrática nos permite?
Então, compreender e assumir a estética da sensibilidade como guia pessoal e
pedagógico é nada mais, nada menos, que buscar o delicado equilíbrio e a fina harmonia que
caracterizam um ser humano livre: livre para descobrir suas verdadeiras necessidades, aceder
a seus pontos cegos e a todas as suas “burrices parciais” e refletir sobre isso, acolher
respeitosamente todos os outros seres humanos em suas peculiaridades e, na medida do
possível, acolher amorosamente todos os que puderem.
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Nossa sensibilidade no educar deve ser traduzida, sobretudo, no estímulo à fluência da
expressão subjetiva, a qual deve materializar-se expressivamente, num fazer criativo e lúdico,
experimentando direções novas, colocando outras combinações de músculos e de tecidos
“espirituais” em jogo, aprendendo e ensinando a sentir e fazer de maneira cada vez mais rica e
satisfatória. Somente assim podemos continuar a inventar nossa vida, a qual se caracterizou
desde sempre por ser projeto, algo inacabado que plasticamente vai-se construindo...
É certo que inúmeras outras leituras podem ser feitas acerca desse princípio. De
qualquer modo, considero que a perspectiva mais justa é esta: recuperar a capacidade de
sentir, vivificar o que está enrijecido e sensibilizar o que se embruteceu. E ainda que não
tivesse nenhum outro mérito, a atual reforma educacional permite que se pergunte clara e
abertamente a todos os educadores, em todas as escolas e em todos os sistemas: por que a
Escola, até agora, não tem sido capaz de incorporar a educação emocional, nem de lidar com a
afetividade de seus alunos a sério? Por que ela tem admitido tranqüila e burramente a divisão
de papéis que se estabeleceu no interior de um sistema produtivo esquizofrênico e se
cristalizou, neuroticamente, no plano do senso comum, a saber, os pais devem cuidar dos
aspectos afetivos e os professores do aspecto intelectual? Por que nós, educadores, temos nos
dirigido apenas à mente dos nossos alunos, e não também ao seu coração? Por que, em vez de
estimulá-los intelectual e emocionalmente, não temos conseguido nada além de afugentá-los
das múltiplas direções cognitivas e expressivas que eles poderiam tomar, tornando-os, assim,
“tímidos e burros?”
A POLÍTICA DA IGUALDADE
O sentido do princípio filosófico da “Política da Igualdade” para a prática educacional
remonta à dimensão da pólis em sua formulação grega clássica. Em As Origens do
Pensamento Grego, Vernant (1981) nos remete ao ideal da comunidade política grega:
Os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem,
sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira ‘semelhantes’
(homói) uns aos outros. Esta semelhança cria a unidade da pólis [...] e o
vínculo do homem com o homem vai tomar assim a forma de uma relação
recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e de
domínio. [...] Apesar de tudo o que os opõe no concreto da vida social, os
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cidadãos se concebem, no plano político, como unidades permutáveis no
interior de um sistema cuja [...] norma é a igualdade. (VERNANT, 1981, p. 42).
Por outro lado, no interior das conquistas da Era Moderna se inscreve, por certo, toda
uma tradição de pensamento igualitarista, representada, entre outros, por Rousseau.
Encontramos no livro Do Contrato Social a seguinte passagem: “[...] o pacto fundamental
substitui [...] por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia ter colocado
de desigualdade física entre os homens.” (ROUSSEAU, [1973, p. 367). O próprio marco
histórico da Revolução Francesa foi efetivado e é por nós reconhecido sob a consigna da
igualdade.
No entanto, é igualmente reconhecida a frustração histórica derivada de uma conquista
da igualdade apenas no plano abstrato dos direitos políticos. Como sabemos, na
contemporaneidade coexistem, de um lado, um enorme avanço do conhecimento científico e
tecnológico, cujos resultados mais evidentes são os inúmeros benefícios no incremento da
produtividade econômica e na melhoria das condições técnicas da vida humana e, de outro
lado, uma incompreensível injustiça e desumanidade na distribuição desses benefícios, cuja
face mais evidente é a crescente exclusão social e a anomia ética, caracterizada pela falta de
solidariedade, pelo individualismo e pela perda de confiança da cultura em si mesma.
Se as coisas se passam assim, que valores e atitudes podem adequadamente orientar a
prática educacional a partir do princípio da política da igualdade?
Foi apontada uma crítica ao princípio da estética da sensibilidade na base de uma
“redundância de formulação”. No caso da política da igualdade, a crítica se refere à possível
inocuidade do princípio, em seu caráter abstrato. Ela poderia ser posta mais ou menos do
seguinte modo: nós já vivemos num Estado de Direito que está fundado constitucionalmente
sob a igualdade civil e política de todos os cidadãos. No entanto, como se sabe muito bem,
essa igualdade é meramente formal (BOBBIO, 1987, p. 157-158). Reafirmar um princípio
abstrato no âmbito das práticas educacionais não significaria apenas reforçar o caráter formal
dessa igualdade, jogando para longe toda possibilidade de redução real das desigualdades
sociais? Não seria uma espécie de jogo perverso, falar veementemente de alguma coisa que
não se pode de fato atingir?
Nesse caso, a crítica não decorre de um mero equívoco de interpretação. Mas isso não
significa que não se possa defender a fundamentação do novo ensino médio à base desse
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princípio. Gostaria de esboçar uma alternativa aos que desejam assumi-lo com o devido
cuidado.
Sirvo-me, uma vez mais, de Vernant (1981). Ele descreve uma importante mudança
introduzida no universo espiritual da pólis, causada pelo aparecimento da figura dos hoplitas,
que são soldados pesadamente armados, combatendo segundo o princípio da falange. Essa
nova estratégia militar vem dar um golpe decisivo na antiga aristocracia e na ética guerreira e,
conseqüentemente, acaba por colocar em cheque todo o sistema de valor e propriedade dos
cidadãos gregos, uma vez que tanto os pequenos comerciantes, que podem pagar a vestimenta
hoplita, quanto os mais ricos, que possuem cavalos, combatem agora lado a lado, não apenas
como homói [semelhantes], mas como isói [iguais].
Também para os gregos da pólis antiga, não servia apenas ser igual no acesso aos
direitos políticos no plano formal. Seria necessário ir além e estabelecer uma igualdade que se
caracteriza, sobretudo, por um ideal de comunidade que é maior do que os privilégios de uns
poucos:
Chega um momento em que a cidade rejeita as atitudes tradicionais da
aristocracia tendentes a exaltar o prestígio, a reforçar o poder dos indivíduos
[...], a elevá-los acima do comum. São assim condenados como hýbris
(desmesura, descomedimento) do mesmo modo que o furor guerreiro e a
busca no combate de uma glória puramente particular — a ostentação da
riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais etc. [...] Todas
essas práticas são doravante rejeitadas porque, acusando as desigualdades
sociais e o sentimento de distância entre os indivíduos, suscitam a inveja,
criam as dissonâncias no grupo, põem em perigo seu equilíbrio, sua unidade,
dividem a cidade contra si mesma. (VERNANT, 1981, p. 45).
Não consigo imaginar outra fonte mais rica a partir de onde encaminhar uma
ressignificação contemporânea, brasileira, laica, para o princípio político da Igualdade. Sem
que se queira por em risco as liberdades humanas, duramente alcançadas pelas lutas
revolucionárias de todas as épocas, é necessário, ao mesmo tempo, construir uma nova
sociabilidade, capaz de superar o isolamento individual e a fragmentação da realidade.
Não é apenas uma democracia formal o que o princípio deseja garantir, reproduzindose apenas no discurso da igualdade. Tendo em vista a necessidade de superação urgente da
extrema desigualdade social e da injustiça que lhe acompanha, o princípio da política da
igualdade, de fato o eixo fundante de toda a reforma tem a intenção de se converter no grande
suscitador das mudanças educacionais no âmbito do novo ensino médio. Se corretamente
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compreendido e assumido sem ilusões, pode ser um verdadeiro plano de combate aos enormes
obstáculos ao desenvolvimento humano e à falta de equanimidade no acesso aos bens
econômicos, sociais e culturais.
Nesse sentido, como princípio filosófico-político ele é, ao mesmo tempo, e antes de
tudo, “pedagógico”, isto é, através da transformação na estrutura da instituição escolar
podemos legitimamente pretender mudanças na estrutura social. As duas coisas se articulam
de maneira implicativa: na maior parte dos casos, a escola atual não apenas não é capaz de ser
o instrumento das transformações desejadas, como, ao contrário, ela ainda é o meio que
reproduz a opressão social, por seu esforço de construção da classe dirigente. Se nossa escola
não tem chegado a formar nem sequer homói, muito menos poderia formar isói. Ela, por
enquanto, só tem gerado aristei.
O princípio da política da igualdade atualiza ideais de muitos educadores brasileiros
como Paulo Freire e Anísio Teixeira. Para este último, por exemplo, apesar da escola ter
surgido com e para a aristocracia [e permanecer ainda hoje mais apta a formar aristocratas],
“[...] todos os homens são suficientemente educáveis para conduzir a vida em sociedade, de
forma a cada um e todos dela partilharem como iguais, a despeito de suas diferenças
propriamente individuais.” (TEIXEIRA, 1977, p. 205).
Independente da interpretação que se dê ao princípio em discussão, não se pode negar
que ele permite – àqueles interessados em aproveitá-lo – compor um movimento de
resistência democrática, ainda que a principal garantia seja uma ainda débil moldura jurídica
[formal]. Pode ser o espaço de desenvolvimento das ferramentas e condições que efetivem a
construção de uma cidadania de fato, e não, apenas abstrata, jurídica.
Dentre as competências de “consciência de igualdade” que os educandos devem
desenvolver ao longo do processo de sua aprendizagem no novo ensino médio, destaco, por
exemplo, as que se encontram explicitadas nos PCNEM, Área de Ciências Humanas e suas
Tecnologias:
[...] (o) reconhecimento dos direitos humanos, (a) prática da igualdade de
acesso aos bens naturais e culturais, atitude tolerante e protagonismo na luta
pela sociedade democrática. Sem a consciência de direitos e deveres
individuais e coletivos, sem a sede de uma justiça que distribua de modo
equânime o que foi produzido socialmente, sem a tolerância a respeito de
opiniões e estilos de vida “não convencionais” e, sobretudo, sem o
engajamento concreto na busca por uma sociedade democrática, não é
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possível de nenhum modo que se imagine o exercício pleno da cidadania.
(BRASIL, 2002, p. 332).
Se não por outras razões, a necessidade de aprofundar uma educação para a igualdade
decorre da já insuportavelmente longa duração histórica da desigualdade. Ou será que ainda
não nos apercebemos de que não é por acaso que as escolas em geral fazem sua propaganda
destacando os “eleitos” no vestibular, desconsiderando sistematicamente todos os outros
alunos que constroem a vida em comum das situações de aprendizagem e excluindo-os, de
fato, de sua cidadania de direito? Quantos de nós, quantas vezes desqualificamos nossos
alunos sob a alegação de que “não resistiram às nossas avaliações?” Como poderíamos
pretender justiça social, se em nossa prática de sala de aula freqüentemente invocamos todo o
nosso poder, conhecimento e autoridade, para produzir auto-imagens pífias? Como nos
contentar em apenas estimular a força dos mais fortes, a fim de conduzi-los à “vida superior”
dos universitários e dos melhores postos de trabalho e confirmar a fraqueza dos que nós
mesmos produzimos “tímidos e burros”, a fim de conduzi-los ao seu “inexorável destino”, em
geral pré-determinado por sua posição de classe, a saber, a cada vez mais dura luta por um
lugar cada vez mais raro no mercado de subserviços?
A ÉTICA DA IDENTIDADE
É muito corriqueiro que se faça uma identificação imediata de “ética” com “moral”. A
expressão latina mores [costumes] designa as condutas que a maioria costuma adotar para
resolver seus problemas na convivência, ou ainda, condutas que dizem respeito a como
resolver problemas práticos e que são adotadas pela maioria. Esta expressão se conecta a
outra, moralis, que é por sua vez a tradução do termo grego éthos. Em grego, éthos pode
significar, por um lado, costume, modo habitual de comportar-se, no sentido que originou o
termo latino e, por outro lado, designa a propriedade do caráter, um modo habitual de ser,
num sentido que o termo latino moralis não preservou (TUGENDHAT, 1997, p. 35-36).
É precisamente a partir daqui que se contextualiza a Ética da Identidade. A proposta
pedagógica que está subsumida em todos os conceitos do novo ensino médio aponta para o
aprender a ser. O que significa isto propriamente? É necessário um outro breve excurso.
A espécie humana constitui-se histórica e socialmente através de dois media
específicos: a linguagem e o trabalho. A linguagem é aqui entendida como a capacidade de
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simbolização própria do modo de ser humano. Aristóteles já definia o homem como “[...] o
ser vivo na dimensão do logos [...]”, ou seja, aquele que está no âmbito do pensamento e da
linguagem, o que foi introduzido na possibilidade particular de comunicação e de convivência
social como um ser político [zoón politikón]. O trabalho é compreendido como esforço que o
homem tem em se fazer, em construir-se. O homem é o ser que nasce por fazer. Essa
construção possui um caráter aberto, isto é, inovador, criativo e, salvo melhor juízo, infinito.
Como ser de cultura, isto é, que inova e cria, o homem busca sua realização existencial
e, nesse sentido, tem necessidade de um processo sistemático e contínuo de aprendizagem. O
resultado dessa aprendizagem, entendido como patrimônio cultural, necessita ser estendido
socialmente, a fim de garantir a continuidade da existência social humana. O processo que
torna possível essa extensão é, precisamente, a educação.
Educação é produção, reprodução e transformação de um patrimônio cultural. Ela é, em
primeiro lugar, um processo de transmissão cultural. Tratando-se de uma espécie que
necessita de vínculos normativos para estabelecer sua sociabilidade, o primeiro e fundamental
aspecto que tem o processo educativo é, então, o da integração social, isto é, a transmissão
dos elementos que permitam ao indivíduo, por um lado, adentrar o universo simbólicocultural do seu grupo – socializar-se – e, por outro lado, estruturar suas próprias
características – individuar-se. Na medida em que processos de aprendizagem são
desencadeados por indivíduos, a educação é, em segundo lugar, auto-educação, isto é, o
conjunto dos processos pelos quais um indivíduo logra apropriar-se, por conta própria, dos
elementos culturais.
Hoje, por todas as razões históricas conhecidas e também por uma opção cultural pela
democracia, o lugar da educação tem de ser, sobretudo, a escola. Isto significa que a escola,
hoje, é que tem a responsabilidade social e histórica de fomentar a aprendizagem do ser.
No entanto, diante do panorama atual, dominado pela ideologia do mercado, que
valoriza fundamentalmente o “self made man”, que se caracteriza pela ênfase na competição
e não na cooperação [a lei da livre concorrência é sempre a lei do mais forte] e que reduz toda
a pluralidade dos valores ao denominador comum do valor-moeda, é perfeitamente pertinente
que se erga uma terceira crítica, do mesmo modo como se fez com a Estética da Sensibilidade
e a Política da Igualdade.
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De uma parte, contudo, não se pode acusar esta terceira formulação de ser redundante,
pois, como já vimos, há uma duplicidade de sentido na palavra e, logo, tratar-se-ia apenas de
reafirmar um dos sentidos em detrimento do outro. De outra parte, também, não se poderia
levantar sobre ela a suspeita de formalismo ou de abstratismo, uma vez que as identidades
humanas são construções simbólicas necessárias ao funcionamento social. São condições de
possibilidade [plano lógico] da própria cultura e, de certo modo, ao mesmo tempo, acessíveis
[no plano empírico] no contexto da interação humana.
De fato, a terceira crítica tem de ser feita com referência a um pecado ainda mais grave
do que os anteriores – o do individualismo – e poderia ser formulada mais ou menos do
seguinte modo: ao enfatizarmos a identidade individual como princípio ético-pedagógico, não
estaríamos correndo o risco de atear lenha na fogueira, isto é, de favorecer precisamente
aquilo que como educadores desejaríamos deixar para trás? Ou, de outro modo, ao
defendermos uma ética da identidade não estaríamos assumindo um valor que, dadas as
condições ideológicas e sociais francamente favoráveis ao fortalecimento e à expansão da
mentalidade individualista, poderia, em vez de combatê-la, entronizá-la como o supra-sumo
do novo “humanismo”?
Tentarei esclarecer o sentido em que, creio, é francamente possível e, mesmo, desejável,
que a escola média brasileira possa revestir-se desse princípio e, para tanto, cabe reproduzir
uma passagem lapidar do já referido Parecer n0.º 15/98, onde se aponta para a saída deste
aparente paradoxo: “Educar sob inspiração da ética [da identidade] [...] é [...] criar as
condições para que as identidades se constituam pelo desenvolvimento da sensibilidade e pelo
reconhecimento do direito à igualdade.” (BRASIL, 2002, p. 78).
Vemos, assim, que o terceiro princípio está intrinsecamente ligado aos dois anteriores
e que, de fato, só fazem sentido se forem tomados em conjunto, na medida em que “[...]
projetam um éthos que, embora se refira à totalidade do ser humano, deixa-se clarificar em
três dimensões distintas: estética, política e ética.” (BRASIL, 2002, p. 332). E é fundamental
que a escola favoreça a formação de identidades a partir de uma nova sensibilidade e de uma
consciência de igualdade e solidariedade.
Já esses dois últimos ideais [igualdade e solidariedade] parecem ter sido, nos tempos
modernos, antagônicos (TOCQUEVILLE, 2000). Seria possível, de algum modo, pretender
conciliá-los, senão praticamente, ao menos filosoficamente?
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Do ponto de vista da igualdade, é preciso relembrar em favor da diferença que nós não
somos um rebanho de carneiros, nem seria digno de nossa humanidade que nos clonássemos
uns aos outros. Inautenticidade é o resultado de uma padronização em nossos estilos de vida.
Clonagem cultural, inautenticidade, padronização são, antes de tudo, contra a Estética da
Sensibilidade.
Por outro lado, em favor da identidade, é preciso que se diga que não é absolutamente
suficiente vestir uma roupa diferente, cortar os cabelos de modo “excêntrico” etc., buscando
diferenciar-nos uns dos outros mediante características meramente exteriores. Só a autonomia,
isto é, a capacidade de guiar a si próprio de maneira livre, consciente e responsável é que
constitui uma identidade de Eu, isto é, a qualidade original, peculiar e irrepetível que as
verdadeiras identidades possuem. Identidades autônomas são as que julgam mediante
princípios universalistas e não as que se constroem à base unicamente de papéis sociais dados.
Portanto, ter uma identidade de “indivíduo de massa” é o que há de mais oposto à Política da
Igualdade.
A maior dificuldade de todas, porém, é a que concerne a uma compreensão justa de
“solidariedade” e como educar para uma “identidade solidária”.
Um ser humano cuja identidade está baseada esteticamente, na sensibilidade para
consigo e com os outros, e politicamente, na solidariedade com os demais seres humanos,
deve ser, antes de tudo, um participante político, um protagonista da cena pública que
reconheça e lute pelos seus direitos e pelos de sua comunidade, e não apenas um agente social
isolado que distribua assistência aos menos favorecidos. A solidariedade, em nosso contexto
atual brasileiro, deve ser traduzida, antes de qualquer outra coisa, em luta por políticas de
Estado, no sentido da justa distribuição da renda nacional [é nesse sentido que se diz que as
identidades que “têm mais” são “mais identidades” que os outros], e não no mero incentivo à
compaixão dos afortunados do sistema por seus irmãos excluídos.
Contudo, também não é possível ser solidário de verdade se não se vivenciou a
compaixão pelo próximo mais próximo. Solidariedade “ideal” ou “amor pela humanidade”
[uma ilusão vaga e abstrata] podem esconder uma absoluta falta de identificação concreta com
as pessoas de referência. Podem revelar uma incapacidade sistemática de compartilhar as
dificuldades reais que as pessoas mais próximas enfrentam eventualmente. Nossos educandos,
por exemplo.
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Talvez, seja exatamente a rarefação da solidariedade e da compaixão o que explica por
que não temos nos ocupado com a formação de identidade de nossos alunos além da óbvia
“preocupação” concernente à carreira que pretendem seguir, depois que concluírem o curso.
Isso explica, ainda de outro modo, o fato de que não temos compartilhado, como educadores,
os processos de escolha dos educandos sob nossa guia, embora as escolhas tenham de ser
feitas por cada um, pessoalmente. Por que será que desvalorizamos, tantas vezes, as escolhas
que eles, em geral adolescentes inseguros, buscando afirmação e exemplo, fazem em suas
vidas? Como esperamos, agindo dessa forma, fortalecer suas identidades e sua auto-estima?
Pode alguém sem auto-estima ser solidário politicamente contra a injustiça? Como
conseguimos suportar a discriminação e a falta de solidariedade em nossas salas de aula?
O NOVO ENSINO MÉDIO: DESAFIO PRÁTICO À REFLEXÃO FILOSÓFICA
O novo ensino médio possui uma dupla missão: por um lado, ele tem que propiciar a
formação de competências de indivíduos que têm o direito de aceder ao patrimônio cognitivo
acumulado pela humanidade e, nesse sentido, favorecer a formação técnico-científico-cultural
que lhes permita inscrever-se no conjunto produtivo da vida social; por outro lado, ele deve
formar a mais fundamental competência humana para o agora, que é a consciência de que o
caótico, fragmentado, triste e desolador cenário que vemos no campo da interação social [e
suas conseqüências no plano individual] deve ser superado e transformado. O indivíduo tem
de se converter em cidadão, no sentido mais pleno possível que esse conceito possa
comportar. Esperemos que a sociedade possa atualizar seu potencial de comunidade e cumprir
a antiga promessa de igualdade, liberdade e, sobretudo, de fraternidade.
Aspirar à cooperação e à fraternidade não é um mero devaneio filosófico. Conforme
demonstram as pesquisas da nova ciência, a Ecologia, a vida supõe a necessidade inevitável
de cooperação entre os indivíduos. Ela mostra que uma simples semente, se não estiver
associada a fungos que lhe garantam a germinação, não vingará isoladamente. Sabemos da
inter-relação vegetal-animal para a polinização. Os exemplos são, na verdade, inúmeros. Ou
seja, a Natureza parece reger-se bem mais pela cooperação do que pela competição.
Infelizmente, os filhos das teorias calcadas na competição geraram netos e bisnetos, ao ponto
de ter-se cunhado e cristalizado a expressão “darwinismo social”, e a competição que,
supostamente, seria o segredo do sucesso entre as espécies do mundo vegetal e animal, ter
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sido aduzida para o mundo dos homens. Em sua versão brasileira ela ficou conhecidíssima
como a “Lei de Gerson”: afinal de contas, não é opinião corrente do senso comum, nunca
explicitada mas sempre presente, que, para sermos bem sucedidos, temos que “levar vantagem
em tudo”?
Não se trata de desqualificar inteiramente a competição, na medida em que ela pode
servir para enriquecer o jogo social. Estamos nos referindo, sim à concepção da vida como
“luta – de uns contra outros – pela sobrevivência” e à cristalização e ao acirramento da idéia
de competição, que é a idéia da concorrência. De fato, a concorrência é algo que, sendo uma
prática de alto teor ideológico, mais se assemelha a uma droga causadora de dependência:
quanto mais se usa, mais se precisa. Os resultados já são bastante conhecidos de todos...
Portanto, trata-se de reconduzir a crença na competição como mola-mestra do mundo a seu
espectro real de abrangência: o princípio da competição não explica tudo, não resolve tudo e,
portanto, não pode ser o fundamento de tudo. É isso e apenas isso o que justifica uma
“educação para a obediência da lei”.
Embora não sejam, nem pretendam ser originais, os princípios filosóficos que fundam o
novo ensino médio brasileiro constituem uma nova apropriação, suficientemente universal,
ampla e significativa, do que de mais elevado a humanidade conseguiu erigir como rumo e
lume para si mesma, ao menos visto da perspectiva ocidental.
Impõe-se a nós, agora, o momento de uma tomada de posição com relação a eles: ou os
recusamos, e ficamos com a difícil missão de apresentar outros que os substituam à altura, ou
nos apropriamos deles, sem descuidar de retornar sempre à reflexão de seus pressupostos, a
fim de construir o ajuste fino que a aplicação prática exige da teoria. De resto, foi esse o
sentido de minha tentativa no presente artigo.
Caso possamos entendê-los com clareza e assumi-los numa perspectiva própria, cabe
então usá-los com firmeza para construir já não apenas a nova escola média, mas toda a
educação brasileira, desde os fundamentos do projeto político-pedagógico escolar até os
detalhes de uma vivência determinada das nossas práticas quotidianas das situações de
aprendizagem.
É no cotidiano da sala de aula, junto com nossos alunos, que faremos ou não a diferença
na vida política, espiritual e social de nossa sociedade e nosso tempo. É aí que fará diferença
se observamos ou não a legislação e como o fazemos.
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NOTA
1
Esta é, por exemplo, a entrada 3 do verbete sensibilidade na edição de bolso do Aurélio (as
duas primeiras, evidentemente, referem-se ao sentido em que vínhamos discutindo, isto é,
relativas à própria capacidade de sentir). Na entrada 2 do mesmo verbete no Houaiss
Eletrônico, encontramos que sensibilidade se refere à capacidade de sentir simpatia pela
humanidade; piedade, empatia, ternura.
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110
TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética. Petrópolis: Vozes, 1997.
VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. 3.. ed. São Paulo: Difel, 1981.
Artigo recebido em 21/02/2003 e aceito para publicação em 29/03/2003.
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