Índice. Nota de leitura. Notícia. Recensões.

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Revista Filosófica de Coimbra
Publicação semestral
Vol. 11 • N.° 21 • Março de 2002
Artigos
Miguel Baptista Pereira - Meditação filosófica e medicina .........
3
Edmundo Balsemão Pires - «Um perfume de insolação protege o
que vai eclodir». De Hegel até ao futuro ..................................
81
Helder Gomes - Arte, experimentação e vanguarda no pensamento
de Jean-François Lyotard .............................................................
Alexandre Costa - Como e por que sobrevivem os pré-socráticos
- Os exemplos de Empédocles e Heraclito ...................................
129
163
Estudos
José Reis - O tempo em Bergson ....................................................
179
Nota de leitura .....................................................................................
319
Notícia .................................................................................................
327
Recensões ............................................................................................
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NOTA DE LEITURA
A "MATRIZ METAFÍSICA" DO PENSAMENTO DE ANTERO:
ELEMENTOS PARA UMA LEITURA DE FERNANDO CATROGA
Fernando Catroga, Antero de Quental: História, Socialismo, Política, Ed.
Notícias, Col. Artes e Ideias, Lisboa, 2002, 267 pp..
Com a publicação deste livro de um dos mais persistentes e lúcidos anterianos portugueses, os estudos sobre o pensamento do poeta e filósofo açoriano sofrem uma verdadeira
revolução intelectual, tanto no capítulo estritamente filosófico como nos que dizem respeito
à historiografia social e política propriamente dita. Habituados como estivemos , no passado,
a vitimar a nossa própria filosofia, em contraste com a europeia e ocidental de maneira
geral, seja porque ela, quando existe, seria ocasional e dispersa seja porque , no seu conjunto,
não seria verdadeiramente interessante e original , com o livro de Fernando Catroga, pelo
contrário, somos convidados a descobrir a dignidade própria da lógica filosófica interior
do pensamento do autor das Odes Modernas e das Tendências Gerais da Filosofia na
Segunda Metade do Século XIX, e a elevá-la ou promovê- la ao nível mais refinado do que,
na altura, se fazia fora de Portugal. Como se verá mais adiante, uma das ideias fundamentais
do autor ao longo do seu livro é que certos traços fundamentais do pensamento de Antero,
que são reputados entre nós, por vezes, como características debilitadoras do mesmo, são
constitucionais, filosoficamente falando, da época a que pertence no contexto mais geral
da evolução da filosofia na segunda metade do século XIX, a respeito da qual Catroga,
como historiador, revela um conhecimento ímpar e inusitado. Deste ponto de vista, um dos
desideratos principais do livro em apreço, do ponto de vista da história das ideias, é
compreender Antero, da filosofia à literatura, da política à poesia, no contexto mais amplo
do pensamento europeu do seu tempo, pondo em evidência, como o autor diz amiúde,
aquela matriz propriamente "metafísica" que dá inteligibilidade e coerência a esses
diferentes domínios. Excepcional como é, um tal objectivo não tem , de facto, um autêntico
termo de comparação na imensa bibliografia existente a respeito de Antero. E, cumpre dizêlo desde já, parece não haver qualquer dúvida que, do ponto de vista da historiografia
filosófica pelo menos, Catroga o alcançou plenamente e com todo o mérito.
1. Da história das ideias à filosofia: a originalidade da perspectiva metodológica de
Catroga
Valerá a pena, para o leitor menos avisado , determo-nos alguns momentos sobre a
questão de saber se, metodologicamente falando, existirá ou não uma "matriz metafísica"
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no pensamento de Antero, e em que medida, a existir, ela será mais ou menos relevante para
a compreensão das várias vertentes desse pensamento, nomeadamente das que dizem
respeito à história das ideias em geral e à historiografia social e política em particular.
Falando da existência de uma tal matriz, do que estamos a falar, desde logo, é de uma
ruptura clara com a metodologia tradicional de interpretação do pensamento de Antero, cuja
amplitude e significado podem ser avaliados se a compararmos com a que foi inaugurada
pelos trabalhos de Joaquim de Carvalho sobre Antero. O distinto I'roiessor de Coimbra,
recorde - se, nos seus Estudos sobre n Cultura Pnrnr,lueso do Souto XIX (Volume 1. Anlheriana, Universidade de C:uinrhra, 1955), pretendia reiornndar eomp1etame iie os estuou.
sobre o poeta e filósofo açoriano, na época, elegendo ) partida as questões ntctodolõgica.
de interpretação como absolutamente fundamentais: "o primeiro problema a esclarecer ene
relação a Antero, observava ele, é o problema do método,-ou por outras palavras, da atitude
mental com que devem ser objecto de investigação, de compreensão e, porventura, de
explicação , o seu ser, o seu sentir, o seu pensar, o seu agir e o seu nao-agir.—(1). 4) Do sei]
ponto de vista , em contraste com a aplicação de outros métodos, "quer sejam expressionais,
de matiz histórico-literário, quer vivenciais, de compenetração psicológica-, importava
antes, revolucionariamente , dar lugar a um "método genético" ou "histórico-evolutivo'", que
`jorra luz clara sobre as atitudes espirituais e as concepções doutrinais de Antero, situando-as
na temporalidade em que nasceram e na sucessão em que se oferecem."(p. 5) Com este
último método, acrescentava Carvalho, ao discriminar os períodos por que passaram a
"consciência e a meditação do Pensador", almejaríamos, por fim, alcançar "a filosofia total
de Antero" (pp. 5-6). Esta mostraria como a própria vida de Antero e a obra deste em geral
são expressão , por fim, do seu pensamento metafísico mais profundo, - não, necessariamente,
de algo formal e sistematicamente elaborado, mas de um pensamento existencialmente
incarnado e sofrido, que explica, em última análise, as suas próprias vicissitudes e
contingências no plano teorético. Nesta última tese fundamental reside, pois, a ruptura
metodológica essencial do Professor universitário de filosofia, de Coimbra, em relação à
historiografia anteriana do seu tempo, que esteve longe de dar completamente,-como prova,
pela positiva , o livro do nóvel Professor e autor também de Coimbra-, todos os seus frutos:
do que se tratava era de mostrar, com base no estudo da evolução da vida e da obra de
Antero, como a elevação à filosofia, por parte do historiador das ideias em geral, confere
a ambas a inteligibilidade e coerência próprias da sua óbvia excepcionalidade no panorama
cultural português da última metade do século XIX.
O método genético ou histórico-evolutivo de Joaquim de Carvalho permitiu-lhe fazer
o primeiro grande rastreio das principais influências filosóficas em Antero (se não
considerarmos o desconhecido Leonardo Coimbra), que continua a ser, como se sabe, uma
referência obrigatória para todos os estudiosos: Leibniz, Espinosa, Hegel, Schopenhauer,
Hartmann , Nolen, Michelet e Proudhon, aí são referidos praticamente pela primeira vez
numa perpectiva filosófica. Mas, na realidade, essa contribuição fundamental enferma dos
limites inevitáveis que caracterizam o próprio método genético ou histórico-evolutivo e que
acabam por contrariar, em última análise, o seu objectivo primeiro. A representação que esse
método nos proporciona , do ponto de vista da história das ideias, é a da vida de um Antero
que vai ao encontro passo a passo, mais ou menos episódica ou casuisticamente, deste ou
daquele tema da filosofia do seu tempo , que se exprime pela positiva ou pela negativa, com
maior ou menor impacto , na sua obra , de onde resulta que, por fim, é a própria idiossincrasia
da personalidade do poeta e filósofo açoriano, sempre discutível e mais ou menos passível
desta ou daquela leitura ideológica , que explica fundamentalmente o seu ideário filosófico,
não o inverso . Neste aspecto, o método genético ou histórico-evolutivo acaba por incorrer
nos mesmos defeitos ou limitações do "método literário" e, em especial, numa apologética
da psicologia do autor (Antero) e da associada ideologia. Em particular, o método genético
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condena à partida a necessidade de uma reconstrução do próprio contexto históricofilosófico mais lato onde se insere o pensamento de Antero e que não se confina de modo
algum, pondo de parte, por agora, o exemplo português , a esta ou aquela influência mais
ou menos isolada, cujo conhecimento da parte do autor/comentador seria , independentemente do seu significado, sempre mais ou menos fortuito ou ocasional . Que tal reconstrução histórico-racional é essencial e não estava ao alcance de uma historiografia genética
como a de Joaquim de Carvalho, mostra-o, por exemplo, o problema das relações de Antero
com o positivismo e hegelianismo do seu tempo, porque, em ambos os casos, há, por um
lado, uma crítica expressa da sua parte às origens filosóficas dessas correntes e, por outro,
uma aceitação mais ou menos encoberta de certas teses fundamentais das mesmas. Isso
explica porque é que o retrato filosófico de Antero que nos oferece Joaquim de Carvalho,
a exemplo do retrato que ele tem em mente quando critica o "método literário", continua
a ser essencialmente nacional e/ou português, e (para todos os efeitos ) "menor", no sentido
em que, dele, não existirá um verdadeiro termo de comparação na filosofia da última metade
do século XIX. Mas, essencialmente, a aplicação desse método não consegue finalmente
realizar o seu objectivo primeiro, que é mostrar como é que a própria filosofia confere
coerência e inteligibilidade às várias vertentes do pensamento de Antero ( no caso, não
apenas à poesia, como acontece geralmente com Joaquim de Carvalho, mas também às
próprias ideias sociais e políticas), ficando-se, nessa matéria, pelo plano da simples intuição
ou sugestão historiográficas. O que é que haverá de constitucionalmente comum entre o
socialismo de Antero e a filosofia das Tendências no contexto mais geral da história das
ideias da época? O que é que relacionará , filosoficamente falando, o budismo de Antero
ou o seu misticismo com um tal socialismo ? Ou, ainda, o que é que explicará consistentemente , desse mesmo ponto de vista, o suicídio do poeta e filósofo açoriano ? Para além
de tantas outras, estas são questões que, de facto, a historiografia genética do autor dos
Estudos deixa sem resposta, embora não possamos dizer que, pelo menos indirectamente,
as não tenha levantado. São elas precisamente que determinam a reconstrução históricoracional do pensamento de Antero feita por Catroga. O seu núcleo duro é a existência de
uma estreita conexão entre a vida e a obra do pensador, que compete à historiografia analisar
mas que não foi necessariamente objecto da consciência ou reflexão do mesmo, e a que o
nosso autor chama, significativamente, " matriz metafísica". É a um tal conjunto de questões
que ele procura responder com a profundidade possível, praticamente pela primeira vez no
âmbito dos estudos anterianos, ao longo de mais de duas centenas de páginas incisivas, em
que se alia, de forma notável, o rigor com a clareza de exposição e se manipulam, com
mestria, todas as fontes histórico-filosóficas disponíveis hoje em dia.
2. A "matriz metafísica" do pensamento de Antero e a reconstrução histórico -racional
de Catroga
Uma vez feitas estas considerações , que se nos afiguram ser absolutamente essenciais
para compreender a perspectiva do autor, importa apresentar, de modo muito geral, o desenvolvimento das ideias filosóficas ao longo do seu livro , pondo de parte as que dizem respeito
estritamente aos planos social e político, e mostrando qual é o . ponto de partida da sua
reconstrução histórico-racional do pensamento de Antero. Começa Catroga por pôr em
evidência, a propósito do Programa dos Trabalhos para a Geração Nova, os traços gerais
do contexto filosófico-político que, com o positivismo sobretudo , é o pano de fundo, por
contraste ou oposição, da emergência desse pensamento . Retoma, a este respeito, as suas
próprias investigações anteriores à publicação do livro, que foram efectuadas no âmbito da
historiografia social e política. Como mostra o autor, nesse contexto balizado pelo
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positivismo também se inscreverá o fundo eminentemente religioso da educação e da
personalidade de Antero, a despeito, ou talvez por causa disso mesmo, da ocorréncia,
aquando da vinda para Coimbra do poeta, do vazio deixado pela "morte de Deus". É justamente um tal vazio que explica o impacto do hegelianismo, aurido de várias fontes, cm
Antero : se, por um lado , lhe repugnava o espírito sistémico, o conceptualismo e, especialmente , o paralogismo da filosofia de Hegcl, por outro, esta, em compensação e quando
corrigida pela mediação de Michelet, Proudhon e dos filósolos espiritualistas franceses,
acabou por constituir, no fundo, um substituto dessa morte de Deus. E neste ponto, cm que
exemplarmente se começa por assinalar o modo como a vida e a obra de Antero se
relacionam estreitamente entre si do ponto de vista da filosofia, explica o autor curvo e
justamente esse hegelianismo corrigido que, na perspectiva de um retorno ao dm:unisnw
de Leibniz , vai ser utilizado contra o cientismo naturalista e certas versões nrccanicistos do
mesmo , às quais a influência de Hegel, significativamente, não é completamente estranha.
Em particular, aceita Antero , mormente de Proudhon e dos espiritualistas, a ideia de urna
hierarquia de planos ou séries ontológicas do real, dos quais o homem e a própria sociedade
no seu conjunto são a expressão final ou derradeira do ponto de vista da filosofia, da ética
e da política. Trata-se de uma ideia absolutamente fundamental, em que se reencontram,
de vários pontos de vista, as várias correntes do pensamento filosófico da última metade
do século XIX, que informa a matriz metafísica das várias vertentes do pensamento de
Antero, mas da qual este, na altura da elaboração do Programa, não tinha ainda, como
mostra Catroga , a compreensão que se requeria.
Em sentido ontológico , a ideia de hierarquia pressupõe que o homem é a própria
natureza interiorizada, em-si e para -si, desde um estrato mecânico em que consistem as
determinações mais inferiores do real à plena espontaneidade pela qual se manifesta,
finalmente , a sua consciência reflexiva como ser livre em sociedade. A conexão com o
idealismo absoluto de Hegel e, particularmente, o de Schelling, é evidente, como sugerem,
aliás, as próprias Tendências. Mas, dada essa conexão e uma vez compreendida no seu
contexto histórico mais lato, uma tal ideia, como sugere Catroga em vários passos do seu
livro a respeito do impacto da mesma-no romantismo , por exemplo-, não tem apenas urna
significação filosófica; e não foi ela, por si só, que influenciou a filosofia de Antero. Por
outro lado , numa perspectiva epistemológica, que é historica ou filosoficamente independente da anterior e com a qual Coorte e o positivismo subsequente têm unia clara afinidade,
é suposto que a hierarquia de séries coincide com uma hierarquia das próprias ciências a
que se refere, estrato a estrato, cada uma delas, de tal modo que a filosofia, fechando as
séries e a hierarquia no seu conjunto deste ou daquele modo organizador, integrará
superadoramente os resultados respectivos. Por esta via, que era especialmente atractiva
numa época de desintegração progressiva do espírito sistemático em filosofia próprio do
idealismo absoluto alemão, era possível ainda salvaguardar, fora da ontologia, a autonomia
da investigação epistemológica das ciências , e conceber, contra o fecho hegeliano da história
em geral , a possibilidade essencial de um saber filosófico aberto. Agora, em termos
propriamente onto-epistemológicos , com os quais reencontramos abertamente, apesar de
tudo, aquelas teses fundamentais que são comuns a Hegel e a Schelling, o desenvolvimento
da hierarquia coincidirá com o da natureza e o da história em geral ele mesmo, seja, com
o desenvolvimento do próprio Espírito. Deste último ponto de vista, que em parte se cruza
com o anterior (isto é, o positivista propriamente dito), a concepção da hierarquia retoma
claramente a ilusão sintética, hegeliana , de um fim da história. Dele serão exemplo alguns
filósofos espiritualistas franceses (Vacherot, Tisserand e outros ), e, na sequência destes, o
próprio Antero , em parte pelo menos , com a sua ideia de uma "metafísica indutiva" (como
mostra Catroga no segundo capítulo do seu livro). Mas, ainda como ele sugere frequentemente, podemos encontrar as diferentes versões, a que aludimos, da ideia de unia
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hierarquia de séries nas Tendências , sem que Antero, de facto, tenha a necessária apercepção
filosófica das implicações de cada uma delas. O mesmo, como nos assinala , acontece
noutras vertentes do pensamento filosófico europeu da época. Uma historiografia genética,
como a de Joaquim de Carvalho , não podia obviamente chegar a discernir, em toda a sua
amplitude e significado, a referida ideia. Mas é ela que constitui , metodologicamente
falando, a base da reconstrução histórico-racional do pensamento de Antero feita pelo nosso
autor. Catroga explora tenazmente ao longo do livro, como dissemos antes, as suas múltiplas
conexões histórico-filosóficas, poético-literárias , éticas e socio-políticas.
No segundo capítulo do livro, essa investigação é feita do ponto de vista da relação entre
a ciência e a metafísica no pensamento de Antero . O autor mostra como a versão onto-epistemológica da ideia de hierarquia de séries tinha que conduzir necessariamente , mas não
sem algumas ambiguidades fundamentais, a uma desvalorização daquela problemática
gnosiológica do conhecimento que caracteriza a filosofia de Kant . Por um lado, põe em
evidência a complexidade da recepção da filosofia da história de Hegel e de Schelling que
decorre dessa versão e, em particular, explica como a aceitação por parte de Antero e dos
filósofos espiritualistas franceses, por exemplo , da mesma ilusão sintética final do idealismo
absoluto alemão está directamente na origem dos respectivos eclectismos . Por outro, faz
ver como Antero rejeita o intelectualismo do sistema hegeliano e, ao encontro da problemática propriamente epistemológica das ciências ( a que aludimos no parágrafo anterior a
propósito da versão positivista da ideia de uma hierarquia de séries ), concebe nas Tendências
a filosofia como uma metafísica indutiva que, com base nos resultados daquelas, procura
explicitar as ideias fundamentais que os equacionam. Este objectivo era particularmente
importante no que concerne à crítica do cientismo positivista e de certas aplicações
filosóficas , monistas, das teorias da evolução , como a de Haeckel . Mas também aqui, mais
uma vez, através do apelo para a história da filosofia e, em especial , do que nas Tendências,
por vezes, se designa como "materialismo idealista", se manifesta o incontornável eclectismo de Antero, na sequência do da época em geral , que passa pelo retorno à metafísica de
Leibniz e, em particular, à sua concepção monadológica do real.
No terceiro capítulo, mostra Catroga como Antero, mais uma vez a exemplo de outros
filósofos do seu tempo, compreende a ideia de evolução fundamentalmente nos limites da
sua própria concepção de uma hierarquia de séries. E deste ponto de vista que passa ao
estudo da influência de Hartmann no autor das Tendências, pondo em evidência o contexto
e as implicações filosóficas da mesma, em especial, um inevitável espinosismo que, como
Leonardo Coimbra foi o primeiro a assinalar, caracteriza a teoria anteriana da substância.
Mas a hierarquia de séries não possui apenas implicações metafísicas ; tem, para além disso,
implicações do ponto de vista teológico ou religioso , que são, de certo modo, ainda mais
fundamentais. A representação do homem que ela proporciona é a de um ser que é, por
excelência, a expressão final, derradeira, do desenvolvimento da natureza , da história e da
sociedade, com toda a sua nobreza e dignidade próprias do ponto de vista ontológico. Sendo
a consciência filosófica da hierarquia, no vértice ou cume desta , o em-si e para-si da
essência do próprio real, que se foi desvelando, passo a passo , em cada série ou degrau
ascendente, esse ser é também a essência da própria moralidade, isto é, a liberdade ela
mesma.Trata-se aqui de uma liberdade que o homem outorga a si mesmo não como
fundamento de qualquer obrigação formal, como em Kant, mas como actualização , sempre
mais ou menos ideal, do dinamismo implicado na passagem de série para série, ou, como
dirá Antero ao encontro dos filósofos espiritualistas franceses, da "espiritualização progressiva" do Universo no seu conjunto. É neste plano essencialmente filosófico, em
contraste com o que é suposto por vezes ao abrigo da historiografia tradicional , que, como
sugere Catroga, devemos compreender a religiosidade de Antero e o seu misticismo, bem
como a sua filosofia moral no seu conjunto, em especial, as ideias de bem, de justo e de
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santidade. O autor elucida atentamente, deste ponto de vista fundamental, a natureza e
significado do misticismo anteriano, pondo em evidência, pela primeira vez na historiografia
sobre Antero, certos pressupostos históricos do mesmo (sobretudo, a inllucncia do livro
intitulado Teologia Germânica).
No quarto capítulo, analisa Catroga a questão do sentido da morte e da vida para
Antero. Trata -se, mais uma vez, de uma questão que o nosso autor quer tornar inteligível
no terreno filosófico, desembaraçando-a das tentações especulativas a que uma perspectiva
histórico-biográfica, que é geralmente seguida na matéria, tem dado azo. Começa ele por
mostrar a influência do ideal proudhoniano de eutanásia, através da mediação de Seneca,
de Cícero e de certos ensinamentos budistas no pensamento de Antero. Mas lorani essencial
mente a experiência metafísica e existencial da "morte do outro" e a que consistiu, atiaves
da doença , na apercepção da sua própria finitude radical, que nortearam a rellcxáu do poeta
e filósofo açoriano. Ambas, e especialmente esta última, que levaram-no a colocar a ideia
de morte como base da vida moral e da cticidade do humano. Deste ponto de vista, não
poderiaAntero aceitar a desvalorização da morte feita pelas concepções iluministas, a qual
vai ao encontro, em parte pelo menos, das perspectivas sobre o assunto no quadro do
cientismo naturalista e positivista da última metade do século XIX. Em contraste, Catroga
sugere que podemos encontrar em Antero, a respeito da morte, a mesma ideia de alguns
filósofos contemporâneos (como Levinas) segundo a qual só a assumpção da mortalidade
institui o homem como ser real, histórico e ético. Antero chegou a uma tal ideia ao repensar
o problema do sentido da morte e da vida à luz da sua própria concepção monadológica
do real, para a qual os indivíduos são uma espécie de mónadas sujeitas à condicionalidade
espacio -temporal, que "depois de esgotarem o fim específico que é inerente à sua ris,
estacionam inexoravelmente, isto é, deixam de estar capacitadas para concretizar o seu
zelos." Por outras palavras, e como dirá Antero, a morte não é mais do que "a manifestação
física de uma necessidade metafísica." É neste contexto metafísico que devemos compreender a questão do optimismo versus pessimismo de Antero e, em particular, as interpretações que foram feitas dessa questão por António Sérgio e Joaquim de Carvalho.
Catroga põe em evidência as conexões histórico-filosóficas para as quais remete a noção
de "necessidade metafísica" da morte, e que são justamente as mesmas a que temos vindo
a aludir , mostra como Antero não podia aceitar um certo niilismo de Hartmann sobre a
matéria e faz ver como ele procurou uma filosofia da morte que não desaguasse no
pessimismo . Argumenta o nosso autor que essa necessidade metafísica é ainda unia
expressão da mesma necessidade de espiritualização que resulta da posição do homem no
vértice da realidade ou do Universo e que está na base do misticismo activo do poeta e
filósofo açoriano. Por isso, se há pessimismo a respeito da morte, em Antero, esse
pessimismo é "optimista" e implica, da sua parte, uma certa "ironia transcendental" da
existência: a morte, não menos do que a maldade existente no mundo, "é a realização
possível do mundo ideal e, por conseguinte, boa e plenamente aceitável na esfera da
realidade." Isto significa, para Catroga, que, embora a leitura genética ou histórico-evolutiva
de Joaquim de Carvalho a propósito da questão da morte enferme de algumas limitações
essenciais , nomeadamente por se centrar de forma excessiva no plano biográfico ou
existencial , teve o antigo Professor de Coimbra toda a razão quando afirmou que através
da morte "o indivíduo não é ser-em-si nem-para-si", o seu destino cumprindo-se "no ser
total pela cessação do que constitui precisamente a nota da singularidade." Catroga explora
esta intuição fundamental a respeito do ideal de santidade em Antero.
No capítulo quinto, debruça-se o autor sobre a filosofia da história de Antera,
mostrando como este distinguia , na sequência de Vico e de G. Ferrari e sob um fundo
hegeliano , entre uma "história ideal" e uma "história positiva". Joaquim de Carvalho já tinha
apontado para este tipo de conexões do conceito de "história ideal" em Antero, mas é um
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dos méritos do livro de Catroga, mais uma vez , recolocar no seu devido plano históricofilosófico o que se apresentava, antes dele, como mera sugestão historiográfica. De seguida,
mostra o nosso autor a relação entre esses dois conceitos de história com a teoria anteriana
dos três estados ( o naturalista , o transcendente e o imanente ), em que se retoma Vico e
Cocote na perspectiva de Hegel. É ainda uma tal perspectiva , fundamentalmente , que está
na base da posição de Antero perante o fenómeno do cristianismo e da história , de maneira
geral, como a expressão de um "evangelho eterno", isto é, como um livro que é a própria
manifestação do Espírito absoluto e eterno que na humanidade se concretiza e apreende
como saber de si. Neste contexto, analisa Catroga a interpretação que o poeta e filósofo
açoriano faz do lugar da Idade Média na história universal , pondo em relevo , por fim, os
traços principais da sua filosofia da história e da sua concepção da historiografia . Nestes
últimos planos, mostra que apesar de Antero ter aderido, por vezes sem a necessária
consciência filosófica, a um certo hegelianismo , podemos encontrar nos seus escritos uma
crítica aberta ao historicismo de Hegel. Uma tal ambiguidade , depois do que se disse
anteriormente, não é de surpreender.
No sexto capítulo, estuda-se a relação entre os conceitos de evolução e de revolução
em Antero. A ideia de raça constitui o ponto de partida do autor, que elucida a importância
da mesma à luz da projecção social e política ( em especial , no contexto português) dessa
filosofia da história de fundo hegeliano de que se ocupou no capítulo anterior. Nesta
perspectiva, mostra-se como a aceitação dessa ideia tem essencialmente uma raiz metafísica,
a exemplo do que acontece, de maneira geral, no seu pensamento, e explica-se o conceito
anteriano de decadência da nacionalidade . Na sequência das análises anteriormente feitas
sobre o fenómeno do cristianismo e a sua interpretação pelas filosofias da história de
embebência hegeliana, explica Catroga como o ideal revolucionário em Antero segue um
modelo cristológico, para o qual a revolução se identifica com a "revelação " derradeira do
próprio Cristo na história da humanidade , e, em última análise, com o conceito de evolução
ele mesmo, tal como este é configurado por aquela matriz metafísica que está na base da
interpretação das teorias da evolução por parte de Antero.
Na segunda parte do livro, mostra Catroga com mestria como essa mesma matriz está
na base do pensamento social e político de Antero no seu conjunto ; mas, embora as análises
do autor sejam da maior importância , não têm para nós aqui , do ponto de vista estritamente
filosófico e/ou histórico-filosófico, o mesmo relevo que um historiador lhes deve conferir.
Seja como for, alguns aspectos merecem ser referidos. No capítulo VII, a pretexto da
influência em Antero da concepção proudhoniana de uma "dialéctica serial", põe-se em
evidência como a ideia de hierarquia de séries se estende ao que o nosso autor chama
"monadologia social"; explica-se como essa concepção está na base do organicismo
sociológico do filósofo açoriano e estuda-se o enquadramento histórico, social e político
mais geral do mesmo; sugere-se a relação essencial entre a ética e a teoria anteriana da
sociedade; e mostra-se o impacto das teses do proudhonismo e do socialismo catedrático
nessa teoria. No oitavo, caracteriza-se a ideia de "colectividade" e de "força colectiva" em
Antero, remetendo-nos o autor, mais uma vez , para Proudhon; faz-se ver a dimensão
propriamente política do conceito de "monadologia social"; critica-se a "ilusão federalista"
de Antero; e analisa-se atentamente o apoio de Antero ao modelo corporativo de Oliveira
Martins. No capítulo nono, aborda-se o republicanismo de Antero e a relação do mesmo
com a ideia de socialismo no contexto social e político português da época, destrinçandose a sua raiz metafísica. E, finalmente, no último capítulo do livro estuda- se a relação entre
os ideários políticos e sociais de Oliveira Martins e de Antero, concluindo- se, mais uma vez,
com a importância que assumiram, para este, os imperativos de carácter metafísico na defesa
dos mesmos: "Aquela tendência para a acção [diz Catroga a respeito de Martins] não passou
despercebida a Antero, que via no amigo e historiador um dos poucos intelectuais
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portugueses capazes de conciliar a ética com o saber e com a pra.vis, virtude que ele, por
ser um contemplativo, não possuía. E esse empenhamento era tanto mais frustante quanto
estava convencido de que à sociedade portuguesa faltava vontade para se superar a si
mesma . Mas esta desconfiança tinha ainda uma raiz filosófica: a política não passaria de
um modo complementar de efectivação dos imperativos metafísicos. E, se estes eram de
carácter ético , compreende-se que, nele, a ética sobredeterminasse a estética, pois a lorota
suprema de existência estava na prática do bem em si mesmo. ( ...) Como um 'génio que
era um santo' (Eça), em que a filosofia se realizava como vida na vida elo próprio filósofo,
entende - se agora melhor o retrato moral que Martins lhe traçou: 'Este homem Iundamentalmente bom, se tivesse vivido no século VI ou no século XIII, seria um dus
companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de Assis. Nu século XIX é uni excerwicu,
mas dessse feitio de excentricidade que é indispensável, porque a todos os tempos luram
indispensáveis os hereges , a que hoje se chama dissidentes.' Dai que, por temperuncnto e
por opção filosófica, ele tivesse sido um solitário, embora solidária e 1raneiseaname nte
aberto à comunhão com os outros e com o mundo."
NOTA FINAL
A historiografia de Catroga: todo um programa de investigações para o futuro
Do ponto de vista histórico-filosófico, o livro de Fernando Catroga, já o dissemos,
constitui uma excepção no panorama bibliográfico português, inaugurando uma etapa dos
estudos sobre Antero que só é verdadeiramente comparável à que o livro de Joaquim de
Carvalho, também Professor de Coimbra, inaugurou nos anos cinquenta. O mérito
fundamental da historiografia filosófica praticada pelo autor parece-nos consistir, de facto,
em reabilitar e dignificar o pensamento de Antero, tal como Carvalho o fez em contraste
com a metodologia literária do seu tempo, recolocando-o no contexto mais vasto da filosofia
na segunda metade do século XIX. Por isso, ela apresenta-se como um vasto programa de
investigações para os estudiosos em geral e os da filosofia em Portugal em particular. Onde
a historiografia tradicional, timidamente, via apenas intuições ou sugestões mais ou menos
assimiláveis a esse contexto, vê o nosso autor ideias e problemas fundamentais do mesmo,
que merecem toda a nossa atenção e devem ser investigados pacientemente e com o mesmo
entusiasmo com que investigamos as ideias e problemas dos chamados "filósofos maiores".
Onde essa historiografia instaura precipitadamente rupturas ou descontinuidades, como as
que caracterizariam a relação entre a filosofia, a poesia e o pensamento social e político
de Antero, logrou Catroga mostrar a existência de verdadeira continuidade e uma harmonia
possível, sem, contudo, mascarar a complexidade da trama dessa relação em toda a sua
autenticidade. Onde, pois, as interpretações conhecidas, de maneira geral, cindem a vida
da obra do poeta e filósofo açoriano, renunciando a integrá-las filosoficamente ou a lê-Ias
à luz da sua "matriz metafísica" primeira, consegue Catroga mostrar, de forma exemplar
no que ao futuro dos estudos anterianos concerne, a síntese iluminadora, que o próprio
Antero, amiúde, reclama para si.
A ler.
Henrique Ja/es Ribeiro
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Revista Filosófica de Coimbra - n." 21 (2002)
NOTÍCIA
"Todo o livro é passagem do tempo ao TEMPO, do tempo fragmentário ao
tempo absoluto, do tempo real ao tempo ideal, do tempo à verdade. O TEMPO
encontra a sua epifania na arte!" Palavras de Alain Badiou na comunicação
"Littérature et vérité. A propos de Proust", que teve lugar no Colloque international
Littérature & philosophie. O reconhecido professor de filosofia', dramaturgo e
romancista, para o qual a categoria de verdade é a categoria central da filosofia
(categoria que designa, ao mesmo tempo um estado plural - verdades heterogéneas
- e a unidade do pensamento), apresentou A Ia recherche du temps perdu como a
narrativa da paciência, do erro, da incoerência, do sofrimento e da morte - que é o
mesmo que dizer a narrativa da vida - na procura da verdade. Verdade que, além
da realidade dos possíveis, se nos oferece como surpresa absoluta. Em A Ia recherche du temps perdu, o movimento em busca da verdade é a experiência de uma
paixão dolorosa, de uma paciência infernal, na qual o ser humano é confrontado com
a inacessibilidade do conhecimento absoluto do carácter do outro. A trajectória do
livro é uma espécie de fenomenologia do verdadeiro, na qual a verdade é um resultado que se identifica com a sua própria busca. A obra literária surge como lugar da
decepção que constitui a experiência da procura da verdade, surge como lugar de
nomes e de signos que nos remetem para além da negatividade do mundo, e surge,
ainda, como lugar de pensamento do real que faz corpo com a própria experiência
da realidade. Nesta exemplar abordagem de uma obra literária encontramos o modo
como filosofia e literatura se interpenetram, correlacionam e produzem universos de
sentido novos e enriquecedores, assim como reconhecemos o carácter singular da
obra literária e a esterilidade de abordagens imperialistas da literatura como
totalidade. Comunicação que, em si mesma, na forma como no conteúdo, realizou
diferentes finalidades do Colloque international Littérature & philosophie.
Alguns dos objectivos do Colóquio consistiam em reflectir sobre a literatura
como modo de pensar e sobre a reformulação a que a escrita literária pode conduzir
o discurso filosófico. Porque a filosofia é também escrita e, como o passado
1 ParisV111/ENS.
As obras de Alain BADIOU, repartem-se entre o filosófico e o literário, como podemos ver nos
títulos Calm Bloc ici bas (romance); Ahmed le subtil (comédia em três actos); Conditions; L'être et
l'evénement; Saint-Paul. La fondation de l'universalisme; L'éthique. Essai sur Ia consciente du mal;
Petit mmnuel d'inesthétique; Abrégé de métapolitique; Court traité d'ontologie transitoire . ( Estas três
últimas obras foram publicadas em 1998).
Revista Filosófica de Coimbra - n.° 21 (2002)
pp. 327-328
Isabel Gomes
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filosófico atesta , recorre frequentemente à produção poética ou às formas ficcionais
no seu caminho em busca da verdade.
O Colloque international Littérature & philosophie teve lugar na Universidade
de Toulouse le Mirail entre 27 e 28 de Abril. Para além de Alain Badiou, assim como
da participação de conferencistas de diferentes universidades francesas (13ordéus 111,
Lille III, Nice, Paris XII, Picardie), o Colóquio contou ainda com a colaboração de
investigadores da Alemanha , Bélgica, Inglaterra e Suécia. As devasseis comunicações
apresentadas distr'ibuírani - se por três áreas de reflexão: o saber do romance; Epístola,
poesia , filosofia; Literatura e verdade. Sob estas áreas temáticas luram abordadas questões filosóficas com implicações metalilerárias como, por exemplo, o trabalho de f ìlianc
Escoubas2 relativo à língua - espaço comum entre a filosofia e a literatura - e a sua
essencial tradutibilidade - intradutibilidade , a partir de uma reflexão sobre o esyucntatismo da linguagem em Humbolt , assim corno foram objecto de reflexão questões mais
específicas , dirigidas para a análise de um autor ou uma obra concreta. Entre estes últimos, recordamos , a título exemplar, a reflexão de Simon Critchcly3 sobre o poema
"The idea of order at Key West " de Wallace Stevens, na aproximação às questões:
- Como é que a leitura de um poema pode esclarecer a problemática da relação
entre o pensamento e as coisas , entre as palavras e o mundo, entre a imaginação e a realidade , entre o universal e o particular?
A obra de Wallace Stevens é aqui apresentada como um "realismo de rosto
humano" porque para o poeta não há realidade sem poesia . A poesia envia-nos à
realidade , ao ordinário como qualquer coisa de extraordinário que nos chega
através do trabalho da imaginação.
Nesta permanente necessidade de prestar justiça , quer ao questionamento e
escrita literários , quer à interrogação e discurso filosóficos, foram evocados, entre
outros autores , Diderot, Jung-Stilling , Moritz, Hõlderlin , Thomas Mann, Aristóteles , Sófocles, Heidegger , Nietzsche , Mallarmé, Wallace Stevens, Schelling,
Humbolt , Berman , Proust , Sartre, Derrida, Jean Genet , Claudc Simon e Espinosa4.
Ficaram por abordar experiências singulares da literatura, como as obras de
Joyce , Thomas Bernard , Rousseau , o romance americano ..., e questões de pendor
teórico como a problemática da existência e possível distinção entre um estilo
literário e um estilo filosófico. Questões que Fabienne Brugère (organizadora,
juntamente com Danielle Montet, deste profícuo colóquio) apresentou como ponto
de partida para futuras iniciativas.
Isabel Gomes
2 "Université de Paris XII : "Entre littérature et philosophie : pour un schématisme de Ia traduction
(Humbolt , Berman)".
Eliane Escoubas interessa - se pela fenomenologia ( sobretudo no contexto de estudos sobre a arte),
pela filosofia alemã, pelas teorias da linguagem e pela filosofia contemporânea . Tem diversas obras
publicadas , entre as quais : /mago Mundi - Topologie de Part . Paris . Galilée, 1986; L'espace pictural.
Paris, Encre Marine, 1995 ; Art(s ) et fiction . Paris . Presses universitaires de Vincennes , 1997. Colabora
na revista " La Pari de I'cril".
3 Université d'Essex : " Sur Wallace Stevens - La philosophie d'un poème". Outros trabalhos de
do Simon CRITCHLEY: Very Little ... Almost Nothing Death , Philosophy, Literature , 1997; Ethics Politics - Subjectivity : Essays on Derrida , Levinas and Contemporary French Thought, (1999)
° Os autores são apresentados pela ordem em que foram objecto de reflexão no Colóquio.
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RECENSÕES
Enrique M. Urena, Philosophie und gesellschaftliche Praxis. Wirkung der
Philosophie K. C. F. Krauses in Deutschland (1833 - 1881), Stuttgart
- Bad Cannstatt, Frommann - Holzboog, Spekulation und Erfahrung,
Texte und Untersuchungen zum deutschen Idealismus , Abteilung II Untersuchungen, Band 23, 2001.
O Professor Enrique M. Urefia é docente na Universidade Pontifícia Comillas em
Madrid e tem feito as suas investigações no domínio da Filosofia de K. C . F. Krause e do
krausismo . Em 1991 publicava Enrique M. Urefia na prestigiada colecção da editora
Fromman - Holzboog dedicada a estudos sobre o "Idealismo alemão ", no volume 22 da
colecção "Investigações ", uma detalhada biografia de K. C . F. Krause, revelando as facetas
do filósofo, mação e cidadão do mundo.
Na apresentação da sua obra de 2001 o professor Urena revelava ao leitor o sentido
inicial e as modificações sofridas no seu projecto de investigação sobre K. C. F. Krause e
o krausismo.
De acordo com o seu plano inicial, a investigação sobre K. C. F. Krause devia começar
com o estudo da biografia , a que se seguiria uma pesquisa sobre a Filosofia Prática do autor
de O Ideal da Humanidade e uma outra dedicada ao krausismo alemão . O plano modificado
após a publicação da biografia do filósofo, em 1991, consiste no volume, que agora se
apresenta ao leitor português, sobre a influência do ideal de humanidade de K. C. F. Krause
no círculo de alguns discípulos, que tiveram um papel preponderante na propagação das
teorias de K. C. F. Krause em práticas e instituições vocacionadas para o ensino, e em um
outro volume, previsto para mais tarde, dedicado à apresentação da recepção da obra de
K. C. F. Krause numa época caracterizada pelo "póshegelianismo", na Alemanha e em
outros países da Europa. Neste último contexto, Enrique M. Urena considerava importante
uma investigação detalhada sobre a "Institución de Libre Ensenanza " que, em Espanha,
desde a sua fundação em 1876, se fez eco quer das doutrinas krausistas quer das do
pedagogo Fr. Frõbel.
As investigações que estão na base do livro que agora se apresenta foram realizadas
pelo autor em várias bibliotecas e arquivos na Alemanha: Dresden, Bad Blankenburg, Berlin, Gõttingen, Tübingen, Frankfurt / Main, Gotha, Heidelberg e München.
O núcleo da investigação é constituído pela análise do percurso da recepção do
pensamento de K. C. F. Krause num grupo de adeptos influentes no domínio da pedagogia
e instituições pedagógicas, começando logo no capítulo I pela exposição do trajecto de
H. von Leonhardi. Daqui parte o autor para a análise do cruzamento entre os projectos dos
krausistas e de Fr. Frõbel, mostrando como se gerou na Alemanha uma conexão teórica com
efeitos práticos entre krausismo e frõbelianismo, que parte do encontro entre K. C. F. Krause
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e Fr. Frõbel , no ano de 1828, em Gõttingen, e que tem o seu ponto culminante entre 1873
e 1881.
As investigações agora publicadas permitem concluir que na base da actividade de
K. C. F. Krause e dos seus discípulos no sentido de divulgar um pensamento da harmonia
e unidade de todas as coisas e o ideal da Humanidade está unia tendéncia comum a certos
discípulos de Hegel como F. W. Carové, A. Ruge, Th. Echtermeyer, L. Fcuerhach e outros
colaboradores dos Hallische Jahrbücher no sentido de "tornar prática" a Filosofia,
colocando -a ao serviço da unificação política da Alemanha, não se podendo dissociar o
pós-hegelianismo , o krausismo e o 1rübelianisnio de uni pensamento patriótico, que busca\ a
legitimar na unidade e harmonia de todas as coisas a necessidade da unidade poliUca dos
alemães.
Enrique M . Ureia dá conta desta semelhança entre os "hegchanos de esquerda' c a
vocação prática do pensamento de K. C. F. Krause a propósito dos projectos de A. Ruge e
de Th. Echtermeyer da criação de uma "Livre Academia das Ciências", de que os IIuIIische
Jahrbücher seriam o orgão científico , em Dresden, no ano decisivo de 1839 / 1840, quando
A. Ruge decidiu trocar Berlin por Dresden, para local de desenvolvimento de urna cultura
filosófica independente , que não agisse de modo subserviente para com autoridades
religiosas ou políticas . Em 1841, num número dos Ja/rr-bücher de A. Ruge, comentava
elogiosamente J. Frauenstãdt a Filosofia de K. C. F. Krause.
O culto da liberdade, autonomia e do espírito de pluralismo doutrinal estiveram na base
da ideia de uma "universidade depois da universidade' (A. Ruge, 1841 ). a que teriam acesso
alunos pósgraduados, e em que a concentração na própria actividade do espírito e nas suas
consequências práticas devia ser o fundamental, propondo-se A. Ruge, muito consequentemente , banir os exames . A Filosofia foi concebida como a disciplina-mãe. quer no seu
desdobramento em Filosofia Teórica quer nos seus preenchimentos em pensamento da
História e em História da Filosofia, e as disciplinas filosóficas deviam coerentemente
percorrer todo o território do saber. O princípio die Philosophie muJi prakiisch oerden
deveria, portanto, fazer sentir as suas primeiras consequências numa reforma geral do
sistema universitário , que deveria aproximar-se, tanto quanto possível, do espírito que viria
a animar esta "Livre Academia das Ciências". O projecto do "jovem hegeliano" A. Ruge
fracassa , pois no ano de 1843 são proibidos os Hallische Jahrbücher na Saxónia.
Em redor do desiderato de um praktischwerden der Philosophie vão unir-se vários
projectos de constituição de sociedades científicas e de reforma dos estudos universitários
na Alemanha , dos anos 1840 em diante.
Com a concordância de K. C. F. Krause e ainda no ano de 1829, em Góttingen, lançava
H. von Leonhardi uma proposta de um organismo para o estímulo da vida académica, que
se apresentava com um alcance suprapartidário relativamente às escolas filosóficas, a que
se seguiu o projecto de outro krausista , H. S. Lindemann, em 1846, no qual se lia o apelo
a uma única "Filosofia alemã", capaz de superar a dispersão das diferentes escolas filosóficas. Este suprapartidarismo em matéria filosófica é pelo autor considerado como uma nota
característica da influência do krausismo nas sociedades de promoção científica na Alemanha coeva.
No mesmo ano do apelo de H. S. Lindemann, no periódico Zeitschrift fiir Philosophie
und speculative Theologie exortava I . H. Fichte, em carta circular, todos os filósofos da Alemanha a que se reunissem em Assembleia. Desta circular e de outos ensaios de H. S. Lindcmann
sobre a mesma temática nascia, então, o projecto de convocação de uma Assembleia Nacional
de filósofos, que veio efectivamente ter lugar, em 1847, em Gotha. Nesta primeira Assembleia
Alemã de Filósofos leu I. H. Fichte uma conferência de abertura com o título significativo
Grundsiitze fiir die Philosophie der Zukunft, continuando o fio condutor das suas anteriores
proclamações da transformação prática da Filosofia e do "nascimento de uma nova época'.
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Revista Filosófica de Coimbra - a." 21 (2002)
Recensões
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A constatação por I. H. Fichte da necessidade de uma unificação dos esforços dos
filósofos de todas as escolas no sentido de uma matriz comum da Filosofia está associada
à forma como este pensador entendeu o contributo de Hegel, nomeadamente naquilo que
se refere à acentuação do carácter histórico do sistema filosófico no seu conjunto . Assim,
pela História da Filosofia se podia assimilar o sentido da formação contínua do sistema
filosófico. Por outro lado, pela discussão do problema do conhecimento podia esperar-se
a fundamentação de um princípio metafísico.
O Professor Urefia apresenta e discute ao longo do capítulo 11 3. da sua obra a proposta
de H. S. Lindemann, de 1847, de sete temas a serem discutidos em conjunto , pelos filósofos,
para preparar a futura "Filosofia alemã" . Alguns destes pontos resultaram de uma influência
directa das ideias krausistas.
No ano seguinte, 1848, a redação do periódico Jahrbücherfür Wissenschaft und Leben
lançava novo apelo no sentido da fundação de uma "Academia alemã das Ciências livres",
fazendo-se continuadora do projecto enunciado no início da década por A. Ruge. Agora, o
suporte territorial do chamamento para a "Ciência livre" não era nem a Prússia nem a Saxónia mas a própria Alemanha unida, cujo parlamento estava reunido em Frankfurt / Main.
A reunião preparatória de um futuro Congresso nacional teve efectivamente lugar, nesse ano,
na cidade de Frankfurt / Main, e dela saiu um uma memória assinada por A. Adler, M. Carriere, L. Feuerbach, K. Grün, K. Nauwerck, L. Noack e A . Ruge, entre outros. Na obra do
Professor Urena pode o leitor encontrar um exame detalhado do Frankfurter Denkschrift
(pp. 96-101 e ss).
Em Agosto de 1848 reuniu - se o Congresso de que resultou a decisão de fundar um
periódico e nomear Presidente um aluno de K. C. F. Krause . K. Grün, relator dos resultados
da reunião, proclamava a necessidade de dar finalmente lugar a uma Academia livre da
Igreja e do Estado, mas igualmente emancipada dos sistemas e escolas filosóficas. Dava
este publicista voz à crítica do "espartilho " sistemático do hegelianismo , que A. Ruge havia
igualmente inaugurado como um dos temas centrais da sua crítica a Hegel ( posterior a
1840). Ainda na mesma linha, considerava K. Grün que a ocasião política era a mais
propícia para consolidar uma Revolução da Educação Nacional que , permitindo uma
reforma séria da Universidade no sentido de um "ensino livre", servisse de suporte a uma
"Ciência da Vida" (cit. in p. 102).
Na continuação das suas análises sobre o contexto da influência dos discípulos de
K. C. F. Krause, a obra de Enrique M. Urefia dá espaço (pp. 112-131) a uma detalhada
investigação sobre a actividade do erudito, viajante e polimato C. H. F. Bialloblotzky, colega
de K. C. F. Krause em Gõttingen, e em particular aos seus esforços para reunir um
Congresso Científico durante os anos 1860-1864, com o apoio da franco- maçonaria e tendo
por base teórica as suas próprias Cartas para a promoção da Humanidade. Nas ideias de
C. H. F. Bialloblotzky sobre a unidade da Humanidade e sobre o conhecimento do obreiro
de todas as coisas encontra o Professor Urenã traços de krausismo (pp. 130-131). E embora
as propostas de realização de um Congresso não tivessem sido transpostas para a realidade
dos factos, em 1865 von Leonhardi retoma a ideia de um Congresso científico itinerante
que se realizará, desta vez com sucesso, em 1868, em Praga , com contornos krausistas bem
definidos.
Ao contrário do que era intenção do autor com os dois capítulos iniciais, só a partir
do capítulo III da obra encontramos as análises que mais directamente focam o escopo, os
temas e as vias da influência dos discípulos de K. C. F. Krause na promoção de Congressos
e Encontros e na formação de instituições de "ensino livre" na Alemanha e na América do
Norte, em associação com a corrente pedagógica do frõbelianismo.
Segundo apurou nas suas investigações o Professor Urena, o discípulo de K. C. F.
Krause, H. von Leonhardi, esboçara já no ano de 1855 um plano para um Congresso de
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filósofos, que viria a ter expressão escrita mais amadurecida um ano depois, num texto que
se propunha retomar os projectos de C. H. F. Bialloblotzky. No Congresso de Praga de 1868
propusera-se von Leonhardi apresentar um conjunto de 39 proposições destinadas a elucidar
questões nas áreas temáticas de uma "Doutrina do Homem" e de uma "Doutrina da Ciênciae fortemente impregnadas de doutrina krausista. Algumas dessas teses pretendiam clarifica[
a relação entre krausismo e cristianismo e entre pensamento maçónico e crença em Deus.
Para além das teses relativas a temas religiosos ainda se encontram proposições mais
voltadas para questões de ordem pedagógica, em particular para o problema de saber que
situação atribuir ao "Seminário filosófico" na formação pedagógica.
Os Congressos filosóficos inspirados pelos krausistas prosseguiram e cm 18w1 temi
lugar uma reunião científica em Frankfurt / Main em que os principais problemas enfrentados vão ser o da harmonia das confissões religiosas e o da educação. Partindo do primeiro
problema é fácil compreender por que razão na base das actividades dos congressistas esteve
um texto escrito por von Leonhardi com o título bem sugestivo der philo.cophenz r,n,^re.cs
ais Versõhnungsratlt.
O estreitamento das relações entre os adeptos de K. C. F. Krause e a corrente pedagógica frõbeliana deve-se ao facto de a pedagogia e as questões relacionadas com a "educação
livre" se terem tornado temas recorrentes das reuniões krausistas. O capítulo IV da presente
obra de Enrique M. Urefia faz uma análise minuciosa do estreitamento de relações entre
estas duas famílias doutrinais desde a sua génese em escritos de Fr. Fróbel e de K. C. F.
Krause de 1822 e 1823, respectivamente, e no encontro entre este e Fr. Fróbel em 1828.
O motivo filosófico que uniu os dois personagens principais deste movimento de ideias
foi o pensamento da unidade de todas as coisas: a vocação para a unidade da natureza e para
a unidade com Deus (p. 216). Inicialmente, K. C. F. Krause criticou em Fr. Fróbel a tendência para conceber no seu conceito de educação a universalidade da condição humana como
algo de semelhante à condição de alemão (Allgemeinmenschlic/, /Allgemeindeusich), mas a
apreciação de conjunto dos princípios pedagógicos de Fr. Frõbel acabou por ser positiva (p.
217-218). Em consequência disso, na carta que Fr. Frõbel escreveu a K. C. F. Krause (1823)
podia ler-se: EM Geist treibe uns, ein Geist vereine uns: - Gostes Geist. Ein Ziel leite uns:
- Darsteliung der reinsten Menschheit: - Gottheit in der Mensclzheit (cit. In p. 218).
Os diferentes problemas analisados nos últimos capítulos da obra como a questão
feminina, os requisitos da formação de professores do ensino infantil, as regras pedagógicas
nos Kindergarten, o uso do conceito de Spieltrieb para fins pedagógicos e a emigração são
investigados sob o prisma desta associação entre a fundamentação filosófica de feição
krausista e a aplicação a questões pedagógicas de índole mais prática, de orientação
frõbeliana. A troca de correspondência entre Fr. Fróbel, H. von Leonhardi e A. Frankenber"
atesta o carácter inseparável dos dois aspectos. Também se reflectiu do ponto de vista
institucional a dualidade em causa e a harmonia dos seus dois membros, com a criação do
"Congresso Filosófico" e do "Comité Pedagógico".
Numa síntese final pode concluir-se da leitura desta obra a intenção do seu autor de
fornecer um guia para a compreensão de alguns aspectos da mundividência pós-hegeliana,
em torno do tópico do praktischwerden der Philosophie. Sem dúvida que desde os projectos
publicísticos e universitários de A. Ruge até ao "Congresso Filosófico" de H. von Leonhardi
se pode encontrar o mesmo fio condutor da efectivação da Filosofia. Desde a crítica de
A. Ruge ao carácter "contemplativo" da dialéctica hegeliana é possível aperceber de que
forma Hegel é mantido a uma certa distância e como outras orientações filosóficas se
tornaram privilegiadas , entre as quais muitas daquelas que promoviam o Homem e a
Humanidade a centro da reflexão filosófica.
Das minudentes análises da obra de Enrique M. Urefla ficam vários problemas filosóficos por resolver. Entre todos, aquele que eu colocaria em primeiro lugar é o de saber como
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interpretar o recurso à semântica do "pensamento da unidade " - o mesmo que baseou a
infância do Idealismo Alemão na poética filosófica de Hõlderlin e do primeiro Hegel - no
enquadramento das novas necessidades "práticas", que a Filosofia na época da sua
transformação, pós-Hegel, enfrenta. Esta é uma daquelas questões que, uma vez enfrentada
com rigor, nos mostra como os ensaios para largar Hegel e os seus avatares é, possivelmente, uma aventura condenada ao retorno do mesmo . Por isso , seria importante que ao
aspecto da exploração histórica e textual dos episódios da história da recepção da obra de
K. C. F. Krause se juntasse uma investigação da semântica mais profunda , que marca o
vigamento conceptual e a forma mental de toda uma época e daquilo que nela se dá a pensar.
Edmundo Balsemão Pires
José Enes, Noeticidade e Ontologia, Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
sem local, sem data. 212 pp. [Lisboa, 1999]
Os oito estudos reunidos neste volume , datados entre 1984 e 1995, apresentam uma
unidade de pensamento e um parentesco temático que fazem de Noeticidade e Ontologia
muito mais do que uma recolha de publicações e inéditos de José Enes nas últimas duas
décadas. Desta recolha de estudos resulta uma obra autónoma, dotada duma clara unidade
que lhe é conferida pela personalidade filosófica do autor. Sob o tema da Noeticidade e
Ontologia, o filósofo visita alguns momentos decisivos da história da filosofia, e conduz
também, nesse mesmo movimento , uma meditação sistemática fundamental acerca do
objecto temático da ontologia.
A vertente histórico-filosófica dos temas abordados aparece sempre em função duma
meditação autónoma e principial . E assim, sobre as noções de "noeticidade " ou de "intuito",
em interpretações e diálogo com a experiência histórico-filosófica, linguística em geral, e
científica ou poética, em particular, Enes centra o seu estudo sobre as noções da causalidade,
da identidade, da metáfora, dos fundamentos do conhecimento , e de métodos e posições
filosóficas como a metafísica, o método cartesiano , o transcendentalismo ou a hermenêutica.
Historicamente, são privilegiados neste percurso o pensamento e a obra de Parménides,
Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Suarez, Kant, Heidegger e Pessoa, lidos
jamais de modo estereotipado ou esquemático, mas invariavelmente ao nível do genuíno
comentário, i.e., da reconstrução viva de definições , estruturas e experiências fundamentais,
que se consubstanciam numa concepção original da ontologia . Este livro requer por isso,
antes de qualquer resumo ou resenha, uma caracterização breve dos seus principais
conceitos.
Já desde o título escolhido para o volume é da maior importância para o pensamento
nele expresso a noção de "noeticidade". Este termo parece designar em geral, e de maneira
abstracta, um modo fundamental como a significação se configura numa estrutura dotada
dum princípio de unidade específico, e de relações que se articulam de modo coerente numa
ordem discursiva inteligível. Esta unidade estrutural da significação do discurso pode
assumir diferentes formas, que a história da filosofia iluminou e explorou por diversas vias.
Terminologicamente, o conceito de noeticidade deriva do grego "noeo[, ] cujo sentido
encontra uma ressonância experimental em pensar" (34). A noeticidade não é para entender,
então, directamente como a experiência do pensar, mas como a sua elaboração abstracta e,
além disso, conforme apercebida, configurada e exibida do modo o mais perfeito e
consumado no discurso filosófico e poético. Nestes termos, a "noeticidade expressa a
excelência eficaz do exercício, a resultante completude de acabamento e o mais alto grau
de plenitude cognoscitiva do intelecto" (I1). A noeticidade pode surgir em compostos
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terminológicos como, por exemplo, "noeticidade causal" (67, 93); "nocticidade transcendental" (18, 28) ou "noeticidade do discurso transcendental" (34), sinónimo de "noeticidade
kantiana " (36) e de "noeticidade a priori" (43); "nocticidade hermenêutico", onde se insere
em particular a "noeticidade do discurso heideggcriano" (ib.); "nocticidade parmenidiana,
para a qual só o ente existe e o não ente pura e simplesmente Lio existe" (78). Nas
encontramos também a "noeticidade do estado de vigília" (9), cujo modelo foi teorizado
por São Tomás e cujo "núcleo [...] é o juízo de percepção externa e interna" (i[).), ou a
"noeticidade perguntativa" (17), cujo significado está impresso na ei unlogia da própria
palavra "perguntar", ou seja, na sua origens, o sondar dos fundos da navegação (15- 1 b ).
A nocticidade é também, em geral, a "noeticidade do discursivo'' (32, LI. th. 100), ou seja,
o princípio estruturante da significação nos diferentes universos discursivos rxpressos pelas
diferentes filosofias e métodos filosóficos. E encontramos ;cinda coiupostos como a
"noeticidade metafórica" (47, 54) que, conforme Enes mostra, atravessa a totalidade do
discurso e da linguagem; ou, no contexto da leitura de uns poema de Alvaro de Campos,
aquela "noeticidade [que] fecundou a intencionalidade de ver além do ser" (157). U conceito
de noeticidade, conforme concebido por Enes, apreende de modo teoreticamente elaborado.
um complexo organizado de noções, designando o "dinamismo" (188) inerente a uns
"discurso e universo de sentido" (189) específico, que lhe confere "inteligibilidade" (173)
e dota de sentido.
Na verdade, a noeticidade deve ser entendida como trazendo à expressão a potência
ou causalidade intrínsecas da significação e, com ela, do conhecer. Ela exprime a
causalidade estrutural, ou "intrínseca" (cf. 79) do próprio significado e do conhecer e, por
isso, "a noeticidade [...] é [...] aquilo que faz com que o conhecer conheça" (34). Esta
causalidade intrínseca do discurso é a potencialidade, ou a possibilidade do pensamento,
que só "pensa discorrendo" (26). Implícita no livro está a tese de que a correcta análise e
restituição da noeticidade causal ao seu verdadeiro alcance e significado, que se foram
perdendo nalguns dos desenvolvimentos histórico-filosóficos da metafísica, permitirá articular um sentido mais profundo e esclarecedor da noeticidade do que aquele que é
apresentado no discurso metafísico e também científico. Há, em todo o discurso
significativo, um princípio, ou causa comum, que é co-experienciado em todo o discorrer,
em todo o tomar consciência e em todo o significar. Este princípio ficou obscurecido pela
redução da noção aristotélico-tomista da potência à causalidade eficiente e estruturalmatemática, iniciada ainda antes de Descartes, e por este fixada como condição do método.
Enes denomina esse princípio um "pré-saber acerca do ser" (189) presente em todo o saber.
Este pré-saber, que coincide com a potencialidade significativa do discurso, revela-se
não já como uma noeticidade, mas como uma experiência concreta, que o filósofo defende
ser apreensível pelo que denomina o acto noético do "intuito" (ef. 11). Esta é unia outra
noção fundamental para a compreensão do pensamento de Enes. A sua teorização é feita
remontar ao De anima de Aristóteles, onde o intelecto, "como possibilidade prévia das
operações gnósicas , tem de entrar em contacto com o inteligível tocando-o - 0syyávcuv",
verbo que se "traduz [...] cabalmente pelo verbo atingir que é um composto de fatigo, toco"
(157). O intuito possui também um momento privilegiado em São Tomás, como o intuitus
que designa "a estrutura noética do intelligere, enquanto núcleo accionai do operar
cognoscitivo do intelecto humano" (87). Então, ele "é um ver que está no mais íntimo de
toda a operação intelectual e perscruta em todas as direcções" (88), a saber, tanto "para a
exterioridade objectiva" quanto "para a intimidade emanente do eu" e para os conteúdos
inteligíveis (ib.). Além das "estruturas conceituais" está, na sua forma pura, "o momento
aperceptivo do intuito pré-conceitual e ante-predicativo" (57) que, como "uma experiência
intuitiva, [...] se impõe à inteligência e à sensibilidade do Poeta" (161) ou, mais
simplesmente , orienta a inteligência e a criatividade intelectual do filósofo (cf. 16, 28).
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O intuito teorizado por Enes distingue-se duma simples intuição , uma vez que o acesso
imediato que o intuito fornece a qualquer conteúdo vem já discursivamente orientado desde
a sua origem . O intuito parece constituir, na verdade, a causa inerente , ou o ser potencial
da noeticidade de todo o discursivo . Não, porém , como intuição fundadora distinta da
discursividade , mas como célula germinal desta ( cf. 56 ). Aquilo que reúne numa só
substância de inteligibilidade , como uma causalidade estrutural e imanente do discurso, o
ver noético accionado pelo intuito, por um lado, com a discursividade escorada na
noeticidade , por outro lado , é o denominado "nuto elocutório do intuito" ( 13, 15), ou seja,
aquilo que, na sua natureza específica , o distingue da noção corrente da intuição. A este
"nuto" ou sinal primitivo requerido pela significação e comunicação corresponde o
fenómeno humano da fala (cf. 49, 123, 187), que só é pensável como acompanhado, no
falante, pela " interpretação da sua própria fala" (14).
Para além da influência assumida de São Tomás, o privilégio concedido à "noeticidade
hermenêutica" documenta neste ponto fundamental , e apesar de alguns momentos críticos
(cf. e.g. 151-153) a dívida a Heidegger. Mas um contributo original de Enes é mostrar que
a noeticidade hermenêutica , englobando a referida concepção de um pré-saber sempre já
de índole linguística a ser revelado de modo mais adequado pela potencialidade
interpretativa da fala e do discurso , tem de integrar em si uma noeticidade causal
plenamente desenvolvida e não reduzida somente à causalidade eficiente ou matemática (cf.
19, 93, 154) - conforme demonstram também a investigação sobre Suarez (77-81) e as
conclusões sobre Descartes ( 106). E, dentro da análise da noeticidade hermenêutica, na
esteira de Ricoeur e outros, registe - se as importantes considerações acerca da teoria da
origem metafórica da significação , na fala em geral (47-53), na poesia ( 54-57), ou na
linguagem científica (57-65 ). No desenvolvimento da significação da linguagem , que ocorre
por via da metáfora , actua de modo constante o intuito como potência criadora, uma vez
que, como demonstra Enes, " [ n]o seio da formulação conceitual , própria dos termos da
enunciação metafórica, [... 1 actuam - se conhecimentos que não são conceituais mas sim
lances de intelecção, próprios do intuito" ( 65). A origem da significação, assim entendida,
justifica então o apelo à etimologia como recurso filosófico sempre revelador do modo
como a linguagem fala , não só por via do falante, como também por si própria.
Para além da vertente sistemática exposta, e com base nela , o livro desenvolve um
rigoroso trabalho de exegese histórico-filosófica , centrada com frequência nas noções de
potência ou possibilidade e da "experiência ontológica" (cf. 16, 147, 161) atingida pelo
intuito. A estas investigações parece subjazer a tese geral de que entre as diferentes
noeticidades, articuladas em diferentes momentos da história da filosofia existe não
continuidade , mas um "salto" ( cf. 31). Embora estes diferentes momentos históricos, com
as suas correspondentes noeticidades, não tenham sabido articular todos eles com igual
felicidade a experiência ontológica que está na base do saber humano, a relação entre eles
parece ser mais de complementaridade do que de sucessivo obscurecimento da experiência
ontológica, conforme era proposto por Heidegger. Neste contexto , riqueza e significado das
diferentes investigações empreendidas por Enes são indicadas pelos temas tratados nos
diversos capítulos do livro: "Noeticidade hermenêutica"; "Noeticidade do discurso transcendental"; "Noeticidade metafórica da linguagem científica"; "A noeticidade causal do
discurso cartesiano"; "Pressupostos linguísticos do conhecimento ontológico da identidade
em São Tomás"; " Experiência ontológica e verbos impessoais em Parménides e em
Fernando Pessoa"; "Dois universos ontológicos "; e "A leitura integral do texto filosófico
como método de ensino".
Sustentado por uma profunda erudição que não é, contudo , jamais alardeada, por
procedimentos filológicos rigorosos, por um vasto conhecimento da história da filosofia,
por uma subtileza analítica e interpretativa que não se revela jamais estéril, pela
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originalidade das teses e , por fim, pela capacidade do pensar autónomo que é a marca do
filósofo, Noeticídade e Ontologia é sem dúvida uma obra do maior significado dentro da
ontologia de cariz fenomenológico e hermenêutico publicada nos últimos anos.
Diogo Ferrer
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Revista Filosófica de Coimbra - n.° 21 (2002)
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