O Processo de Ressignificação na Construção do Arranjo Musical Antonio Carlos Alpino Bigonha Universidade de Brasília Resumo Neste artigo, proponho a hipótese de que o arranjo na música popular pressupõe a ressignificação da obra original. Este processo apresenta um indisfarçável viés hermenêutico e demanda processos cognitivos, uma vez que consiste na atribuição de novos significados à ideia do compositor, os quais, por sua vez, devem ser anteriormente percebidos e (re)conhecidos pelo arranjador. Nessa perspectiva, proponho que o arranjo musical deve ser tomando em sua acepção mais genérica, antes de tudo, como uma forma de interpretação musical e será tão mais original quanto o arranjador, na qualidade de intérprete, conseguir distanciar-se da forma primeva elaborada pelo compositor. Afirmo que, no universo da música popular, a elaboração do arranjo de uma canção é atividade eminentemente interpretativa e espera-se que o arranjador expresse uma perspectiva estritamente pessoal da obra musical, por sua natureza, distinta da forma primitiva. Essa proposição será iniciada com a definição de alguns conceitos como significação musical, interpretação e ressignificação. A seguir exemplifica-se a proposta de ressignificação e conclui-se atestando a viabilidade dessa hipótese. Resumen En este artículo, propongo la hipótesis de que el arreglo musical en la música popular requiere la reinterpretación de la obra original. Este proceso presenta un sesgo indisimulada hermenéutica y la demanda de los procesos cognitivos, ya que consiste en la asignación de nuevos significados a la idea del compositor, que, a su vez, debe ser percibido con anterioridad y (re) conocido por arreglista. Desde esta perspectiva, propongo que el arreglo musical debe tomar en su sentido más genérico, en primer lugar, como una forma de interpretación musical y será mucho más único como el arreglista, intérprete en calidad, controlar la forma primigenia preparado por compositor. Yo digo que en el mundo de la música popular, el desarrollo de la disposición de una canción es eminentemente actividad interpretativa y se espera que el arreglista expresar un punto de vista estrictamente personal de la obra musical, por su naturaleza, distinta de la forma primitiva. Esta proposición se iniciará con la definición de conceptos como significado musical, interpretación y reinterpretación. A continuación un ejemplo es la redefinición propuesta y concluir que acredite la viabilidad de esta hipótesis. Abstract In this article, I propose the hypothesis that the arrangement in popular music requires the redefinition of the original work. This process presents an hermeneutic undisguised bias and demands cognitive processes, since it consists in assigning new meanings to the composer's idea, which, in turn, must be previously perceived and (re) known by arranger. From this perspective, I propose that the musical arrangement should be taken in its most generic sense, first of all, as a form of musical performance and will be as unique as the arranger, performer in quality, get hold of the primal form prepared by the composer. I say that in the world of popular music, the development of the arrangement of a song is eminently interpretive activity and it is expected that the arranger express a strictly personal perspective of the musical work , by its nature , distinct from the primitive form .This proposition will begin with the definition of concepts such as musical meaning, interpretation and reframing. The following exemplifies up the proposal for reframing and conclude confirming the feasibility of this hypothesis. Actas de ECCoM. Vol. 2 Nº 1, “La Experiencia Musical: Cuerpo, Tiempo y Sonido en el Escenario de Nuestra Mente. 12º ECCoM”. Isabel C. Martínez, Alejandro Pereira Ghiena, Mónica Valles y Matías Tanco (Editores). Buenos Aires: SACCoM. pp. 65-70 | 2015 | ISSN 2346-8874 www.saccom.org.ar/actas_eccom Introdução A interpretação tem, no campo da arte, um papel importante e central pois a fruição da obra de arte pressupõe sua interpretação. Umberto Eco (1991), a esse respeito, afirma que a história da estética poderia ser redirecionada para uma história das teorias interpretativas, para a investigação dos efeitos que a obra de arte provoca em seu fruidor. Luigi Pareyson (1984), mestre de Umberto Eco em Estética, considera a principal característica da interpretação a sua infinidade e, de fato, toda atividade interpretativa está sujeita a revisão, integração ou aprofundamento diante de um novo contexto. Entendimento similar é encontrado na hermenêutica de Gadamer (1960), para quem a atualidade da obra de arte consiste precisamente no fato de ela se achar sempre aberta a novas interpretações. O traço característico da linguagem da arte seria o excesso de sentido sobre o qual repousaria sua natureza inesgotável. No campo da música podemos situar muito claramente esta questão quando se trata da interpretação do repertório erudito de origem europeia (doravante denominado simplesmente música erudita). Desde o início do Século XX, a principal diretriz da interpretação erudita tem sido respeitar a intenção do compositor e o contexto histórico em que a obra foi concebida, a fim de revelar ao público, com a maior fidelidade possível, a expressão mais fiel da composição musical em sua origem. Dart (1967) e Harnoncourt (1982), dois destacados teóricos dessa corrente, cujas obras são largamente adotadas nos cursos de graduação em pós-graduação em música no Brasil, defendem com veemência a busca de uma performance autêntica pelos intérpretes de música erudita, sobretudo os que se debruçam sobre o repertório da música antiga. Essa busca teria, para os autores, o mérito de confrontar o mínimo possível a intervenção do intérprete e a intenção do autor: “a única pessoa que sabe como a sua música deve ser interpretada é o compositor, seja ele do Século XV ou da nossa época” (Dart, 1960; p.8). Harnoncourt, por sua vez, afirma que “a vontade do compositor é para nós a autoridade suprema” (Harnoncourt, 1984; p. 18). Os limites à interpretação musical nos círculos eruditos são estritos e considera-se que os exageros do executante, além de não guardarem fidelidade à vontade do compositor, Bigonha traduzem o esforço inútil de procurar melhorar a obra musical. É preciso ter claro que, neste caso, a obra de arte objeto da interpretação, via de regra, a partitura musical, é considerada produto de gênio. Seu autor, detentor dessa genialidade, por um imperativo lógico, é o mais legitimado a compreendê-la integralmente. Pois a perspectiva hermenêutica do gênio, como diz Gadamer, revela a genialidade da compreensão. É a genialidade do autor, a um só tempo, fonte de legitimação da obra de arte e fonte de sua correta interpretação. Embora já possa ser considerado um debate antigo e ultrapassado a questão da precariedade da partitura como expressão positiva e exaustiva da obra musical, percebe-se que ainda persiste na comunidade acadêmica a convicção de que a sobrevivência dessa tradição está estritamente atrelada ao ânimo de colocar-se o músico em um plano secundário no momento da performance, de modo a revelar ao público uma sonoridade fiel ao contexto histórico no qual a música foi composta, bem como investigar o que o seu autor pretendeu, através dela, expressar, isto é, o significado musical. É nesse sentido que Kermann (1982) discorre sobre a imagem pejorativa que se construiu na academia a respeito do músico que não se submete a tais limites, visto como o intérprete intelectualmente desacreditado, aquele que explora a música como veículo para expressar apenas de sua própria personalidade. O Arranjo na Música Popular No campo da música popular, a questão da originalidade da interpretação revela-se de maneira muito diferente da tradição erudita. O que é para o músico erudito um ato de fidelidade e reverência ao autor ou à partitura, no caso da música popular afigura-se inviável porque, na maioria das vezes, a notação musical, no contexto da tradição oral, inexiste. Quando existe, esses registros são muito precários. É comum que, no caso da música popular gravada, se busque no fonograma ou em outro suporte de registro mecânico dados sobre a interpretação emprestada pelo próprio autor popular a uma obra sua. Tais informações, entretanto, representarão, no máximo, um ponto de partida para o intérprete, não um fim a ser alcançado. p. 66 | 2015 | ISSN 2346-8874 Essa distinção é importante para a conceituação do arranjo musical neste trabalho. É que, adotando-se essa distinção entre a interpretação na música erudita e na música popular, observa-se que a intervenção do arranjador em uma peça erudita será considerada, em regra, um gesto de indevido distanciamento em relação à originalidade da obra, pois representará a introdução de alterações na concepção primeira e genial do compositor. Uma intervénção que, como vimos, além de não ser esperada é, em regra, evitada pois coloca em xeque a própria genialidade do autor. Pode-se legitimamente objetar, por exemplo, a razão por que um arranjador tencionaria melhorar a concepção de Beethoven em qualquer de suas sinfonias, introduzindo novos elementos não vislumbrados pelo genial compositor: será factível o intento de melhorar uma obra-prima? No campo da música popular, a intervenção do arranjador, além de não ser repelida, é regra e não, exceção. A partir do mesmo gesto de distanciamento em relação à concepção autoral, o arranjo original atribuirá novos significados à obra musical, afastando-se legitimamente do autor e do momento da criação artística. O trabalho será tão mais original quanto maior for a intervenção proposta pelo arranjador. Estabelece-se, assim, um paradoxo entre duas acepções de ser ‘original’: ali, na música erudita, a originalidade é alcançada pela fidelidade do intérprete ao autor; aqui, na música popular, é obtida a partir da criatividade interpretativa do arranjador. Aragão, ao discorrer sobre a gênese do arranjo musical no Brasil, é sensível a essa discrepância semântica e propõe-se a resolvêla lançando mão do conceito de instância de representação do original. Para ele tal instância registraria a maneira pela qual o compositor apresenta suas intenções criativas. Na música erudita, onde compositor e arranjador são a mesma pessoa, essa instância coincidiria com a notação musical exaurida na partitura; na música popular, a representação do original seria mais fluida, virtual, “que existe como faculdade, porém sem efeito atual” (Aragão, 2010; p. 18). Em conclusão, essa fluidez legitimaria e encorajaria a maior intervenção do intérprete, pois toda obra popular demandaria, mesmo na sua mais precária execução, a elaboração de um arranjo, ainda que diminuto; em suas palavras, um microp. 67 | 2015 | ISSN 2346-8874 arranjo, onde intérprete e arranjador se confundiriam. Adota-se aqui, portanto, a convicção de que, no universo da música popular, a elaboração do arranjo de uma canção é atividade eminentemente interpretativa, no qual o arranjador expressa uma perspectiva estritamente pessoal da obra musical e, por sua natureza, distinta da forma primitiva. A construção do arranjo musical, nesse sentido, pressupõe o processo de ressignificação musical abordado neste trabalho, através do qual são atribuídos significados musicais e extramusicais à canção popular que, por vezes, vão muito além da vontade do compositor. Significado e ressignificação musical Pode-se afirmar que existe hoje uma sólida literatura sobre a questão do significado musical, tema que tem merecido atenção da comunidade acadêmica sobre múltiplos aspectos. No trabalho Music, Language, and Cognition: And Other Essays in the Aesthetics of Music, por exemplo, Peter Kivy (2007) aborda-o sob a perspectiva estética; Stephen Davis (1994), em seu conceituado “Musical Meaning and Expression”, debate a questão a partir da filosofia; Candence Brower (2000), em seu artigo A Cognitive Theory of Musical Meaning, enfrenta o tema sob o viés da psicologia cognitiva. Leonard Meyer, a partir das teorias da informação e da Gestalt, afirma que “o significado musical surge quando uma situação antecedente, que requer a estimativa de prováveis modos de padrões de continuação, produz incerteza sobre a natureza temporal e tonal do consequente esperado” (Meyer, 1994; p. 11). É que, para Meyer, a significação em música envolve um jogo permanente de redundância e surpresa, criação e inibição de expectativas, o que faz com que a mente do ouvinte atue de forma probabilística, na busca por prever o desfecho do discurso musical. Quando a relação entre o antecedente e o consequente é a esperada, o grau de informação é baixo e há pouca significação. Se o desfecho ocorre da forma não esperada, há surpresa e alta significação. Corrêa (2014; p. 346) alerta, entretanto, que deve haver um mínimo de redundância, pois o www.saccom.org.ar/actas_eccom simples fato de haver baixo grau de previsibilidade não garante, por si só, altos níveis de informação. Isto se dá, segundo o autor, porque para haver informação deve haver expectativa, o que não se afigura viável quando qualquer antecedente pode conduzir a qualquer consequente, ou seja, tudo pode acontecer. É que, como salienta Meyer, neste caso, dos denominados sistemas equiprováveis, a mente não consegue atuar probabilisticamente e, embora haja uma abundância de surpresas, o resultado é a diminuição da carga informativa e, consequentemente, da significação musical. No que se refere ao significado musical é também preciso estabelecer uma clara distinção entre os universos da música erudita e música popular, sobre a qual se debruça este trabalho. Na música erudita a questão do significado musical coloca-se de maneira muito mais complexa e não é minha pretensão neste momento enveredar pelo profícuo debate sobre o conceito de música absoluta que pressupõe inexoravelmente tal reflexão. Oliveira (2010) leciona que o conceito de música absoluta decorre, entre outros aspectos, da adoção da perspectiva positivista no campo erudito, com o objetivo de compreender o fenômeno musical associado à ideia de música como pura forma. Trata-se neste artigo do arranjo elaborado para a canção com letra, isto é, para a obra de arte lítero-musical. Ora, a poética da letra de uma música já configura, por si só, um programa para sua estruturação quanto à melodia, ritmo e harmonia. Mesmo quando ocorre apenas uma execução instrumental de uma peça popular dotada de letra, a metáfora proposta nos versos cantados subsiste, ao que se agregam os elementos poéticos contidos no próprio título atribuído à música. Na música popular a estrutura estritamente musical da obra de arte restringe-se, via de regra, a uma melodia harmonizada, à qual se atribui um título ou nome. Partindo-se de elementos tão fluídos, moldáveis e permissíveis a questão dos significados extramusicais coloca-se de maneira muito mais intensa em relação a uma canção popular do que em relação à uma sonata clássica para piano, por exemplo. No que se refere a esta, pode-se legitimamente advogar a ideia de que a música, enquanto forma pura, fala por si mesma e, para decodifica-la, basta buscar as respostas em sua própria estrutura. Em relação Bigonha à canção popular, ao contrário, sua estrutura musical diz muito pouco em termos formais e vem, na maioria dos casos, atrelada à poética da letra ou do título que lhe foi atribuído pelo autor, o que compõe um todo identitário. Tome-se, por exemplo, o samba Aquarela do Brasil de Ary Barroso para constatar como, ao longo dos anos, múltiplos significados foram atribuídos nas centenas de arranjos originais elaborados para a canção, a partir da célebre interpretação de Radamés Gnattali, para o cantor Francisco Alves, datada de 1939. No arranjo elaborado por Gnattali, há forte apelo à natureza ufanista da letra composta por Ary Barroso, o que é indissociável do contexto histórico do Estado Novo, inserindo-se perfeitamente no conceito de “sambaexaltação”, gênero que passou a ser identificado com os simpatizantes da ditadura imposta por Getúlio Vargas. A interpretação de Dori Caymmi para a mesma canção, no ano de 1993, embora com uma abordagem também nacionalista, atribui significados diametralmente opostos ao conceito de Gnattali, pela adoção de um caráter sombrio e lamentoso, o que sugere uma tela menos exuberante e mais intimista de brasilidade. A versão de Caymmi foi elaborada nos Estados Unidos da América, por encomenda do produtor norte-americano Quincy Jones, no início dos anos 1990, quando o arranjador firmou residência em Los Angeles, Califórnia. O caráter grave do arranjo pode ser contextualizado no escândalo de corrupção ocorrido no Brasil nessa época, envolvendo a renúncia do então presidente da República Fernando Collor, o que causou grande abalo na sociedade brasileira. O contraste entre as duas interpretações, de Gnattali e Caymmi, evidencia-se também na instrumentação adotada. A orquestra sinfônica, que fora utilizada por Gnattali em seu trabalho para dela extrair uma sonoridade exuberante, foi reduzida por Caymmi a apenas um pequeno grupo de câmara, composto por vocalize, violão, piano, contrabaixo e surdo. A letra do samba aqui é praticamente omitida, dando-se relevo apenas ao fragmento de um dos versos Brasil pra mim, o que reforça a ideia de ressignificação da obra musical, em uma perspectiva de menos alegria e exaltação e de mais protesto e intimismo. A abundância de possibilidades de atribuição de novos significados, musicais e extramusicais, no campo da música popular, aqui p. 68 | 2015 | ISSN 2346-8874 afirmada, amolda-se perfeitamente ao conceito de significado musical proposto por Cook (2001). Para ele, o significado musical não é um fenômeno intrinsecamente musical, tampouco pode ser considerado completa-mente independente da forma musical: “é equivocado falar que a música tem significados particulares; ao contrário ela tem o potencial para significados específicos emergirem sob certas circunstâncias” (Cook, 2001; p. 180). O arranjo musical: interpretação ou superinterpretação? Tradicionalmente, o arranjador tem sido vinculado ao ofício do compositor musical. Todavia, sustento que o processo de ressignificação realizado pelo arranjador é um autêntico fenômeno de ressignificação da obra de arte, uma vez que consiste em decodificar o significado originário e reestruturá-lo para a performance. As circunstâncias a partir das quais esses novos significados emergem podem decorrer de múltiplas causas. O que se busca aqui é despertar o interesse sobre como este fenômeno ocorre, caso a caso. É preciso responder a indagação sobre em que medida procedimentos de natureza musical e extramusical influenciam o processo interpretativo dos arranjadores, possibilitando que uma mesma canção popular seja arranjada sucessivas vezes de maneiras, por vezes, tão díspares sem afetar sua identidade ou infirmar sua autoria. Nesse sentido, Umberto Eco, em seu cultuado livro Obra Aberta, cuja 1a. Edição data de 1958, afirma que “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante”. Esta pluralidade instaura, para Eco (2013, p. 22) uma relação dialética entre forma e abertura, isto é, de como definir limites dentro dos quais uma obra de arte pode lograr o máximo de ambiguidade sem contudo deixar de ser obra. É que, para Eco, a ambiguidade é inerente à mensagem artística em qualquer obra e em qualquer tempo, inclusive na música. Na década de 1990, Eco faz uma ponderação dessa abertura, isto é, um crítica do papel do intérprete na leitura de textos, da tensão entre direitos dos textos e direitos dos leitores, em função de uma suposta exacerbação da perspectiva do intérprete das décadas precep. 69 | 2015 | ISSN 2346-8874 dentes. A partir dessa revisão de seu pensamento, Eco estabelece uma dicotomia entre os conceitos de interpretação e superinterpretação, para a oposição de parâmetros a uma semiótica ilimitada. Essas balizas existem, nessa nova perspectiva de Eco, porque o fato de a interpretação ser ilimitada não quer dizer que não tenha objeto, que corra por conta própria. Abdo (2000), partindo do autocrítica de Eco, afirma que o arranjo não é uma forma de interpretação e sim de superinterpretação da obra musical, pois nele o intérprete permitiria que suas reações ou pontos de vista sobrepujassem o próprio objeto interpretado. Esta visão, como vimos acima, é compartilhada por boa parte dos teóricos ligados à tradição da música erudita que enxergam no trabalho do arranjador apenas o viés composicional em detrimento do processo interpretativo. Adotando-se este ponto de vista, a ponderação da abertura da obra de arte, lançada pelo próprio Eco, com a introdução do conceito de superinterpretação, amolda-se perfeitamente às práticas interpretativas da música erudita. Essa perspectiva afigura-se inviável quando se trata do arranjo na música popular, dadas suas peculiaridades, como vimos acima, pois a transgressão da forma autoral não é vista como exceção como ocorre na música erudita. Ela é esperada e constitui o elemento surpresa, o âmago da ressignificação musical proposta pelo arranjador. Conclusão O arranjo na música popular pressupõe a ressignificação da obra original. Este processo, de indisfarçável viés hermenêutico, consiste na atribuição de novos significados à ideia do compositor, a partir do acréscimo de elementos musicais e extramusicais. O arranjo musical, nessa perspectiva, deve ser tomando em sua acepção mais genérica, antes de tudo, como uma forma de interpretação musical. Na música popular, especificamente, arranjar uma canção envolve intenso processo de ressignificação musical, oque pode compreender desde a nova harmonização de uma melodia acompanhada, a adaptação dessa melodia para execução de um grande grupo de instrumentos ou a completa alteração da forma da canção. Este processo não se confunde com o conceito de superinterpretação aplicável à música www.saccom.org.ar/actas_eccom erudita, pois o arranjo popular será tão mais original quanto o arranjador, na qualidade de intérprete, distanciar-se da forma primeva elaborada pelo compositor. Um jogo de distanciamento e aproximação simétrico às categorias de surpresa e redundância propostas por Meyer. Referências Abdo, S. N. (2000). Execuc ão e interpretacão musical. Revista Per Musi, 1, 16-24. Aragāo, P.(2011).Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro. Rio de Janeiro: UNIRIO. Caymmi. Dori. “Aquarela do Brasil”. CD “Kicking Cans”, Quest Records, 1993; Cook, N. (2001). Theorizing musical meaning. Music Theory Spectrum, 23(2), 170-195. Corrêa, A. F. (2014). Análise musical como princípio composicional. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Dart, T. (2000). Interpretação da música. São Paulo: Martins Fontes. Eco, U. (2012). Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva. Eco, U. 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