A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS: para além da constitucionalização do direito privado PLÍNIO MELGARÉ* Professor de Direito da PUCRS e da Faculdade São Judas Tadeu, e Pesquisador e Orientador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional Sumário: 1- INTRODUÇÃO; 2- ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL; 3- AS CONDIÇÕES DIREITO E A CONSTITUTIVAS DIGNIDADE DA DO PESSOA HUMANA; 4- A PESSOA HUMANA E A JUSHUMANIZAÇÃO DAS PARTICULARES; 5- RELAÇÕES OS PERSONALIDADE; CARACTERÍSTICAS DIREITOS 6DOS ENTRE DE CERTAS DIREITOS DE PERSONALIDADE; 7- UM EXEMPLO DE JUSHUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES JURISPRUDENCIAIS; 8- NOTAS MODERNOILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO JURÍDICO; 9- CÓDIGOS JUSRACIONALISTAS; 10- CONCLUSÃO. “Restaurar a primazia da pessoa é assim, dever número um de uma teoria do Direito, que se apresente como a teoria do Direito Civil (...)” - ORLANDO DE CARVALHO * Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e Palestrante de Teoria Geral do Direito Civil na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado 1 – INTRODUÇÃO O objeto deste trabalho é refletir acerca das relações entre a ética e o direito. E, ao considerar essa circunstância, repercutir as inexoráveis conseqüências trazidas por essa relação – sobretudo no campo das relações jurídico-privadas, avistando-se o horizonte normativo estabelecido pelo atual Código Civil Brasileiro (CCB) e a Constituição Federal. Poderíamos partir da compreensão de ética apresentada por VICTORIA CAMPS1, a saber: “La defensa de un ideal de humanidad por debajo del cual la vida es indigna y carece de calidad. La reivindicación de la justicia mínima para que la vida merezca el calificativo de «humana».” Na continuação, a mencionada autora propõe: “el reconocimiento, enfin, de unos derechos básicos plasmados en la Declaración Universal de Derechos Humanos o en las Constituciones políticas”. Particularmente, em relação à última parte citada, apresentamos uma pequena divergência – que não radical, mas sim uma distinção a se configurar como um acréscimo, haja vista não nos limitarmos a reconhecer tão-somente os direitos moldados nas Constituições ou Declarações de Direitos Humanos. Ademais, vincular a ética com a mencionada Declaração de Direitos pode acarretar uma visão individualista. Convergimos com o ideal da dignidade humana, tendo por base o recíproco reconhecimento dessa condição entre os homens. E, desde logo, estabelecemos uma idéia a ser desenvolvida no corpo do trabalho: o direito não se reduz às ordens e às palavras escritas. 2 – ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL Inicialmente, ainda que às rápidas, necessário caracterizar alguns conceitos. Referimo-nos aos conceitos de ética e moral. Uma análise etimológica dessas duas expressões nos conduz a um ponto de proximidade. Senão, vejamos: moral decorre do vocábulo latino mos, que significa costume, uso, enquanto ética origina-se do grego ethos, êthê a Ética y democracia: una ética provisional para una democracia imperfecta. Revista del Centro de Estudios Constitucionales, n.º 06, Madri: 1990, p. 25. 1 2 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado significar modo de ser, costume, caráter. Portanto, ambas expressões firmam suas raízes em um modo de comportamento humano. Dessa origem comum é que ocorre o uso das expressões como sinônimos. Todavia, recortamos alguma característica própria de cada expressão. Conforme leciona MIGUEL REALE2, a ética teria por finalidade precisar, ordenar os valores que instituem o comportamento humano, enquanto que a moral refere-se mais à posição do sujeito em face desses valores, ou ainda o modo pelo qual se expressam objetivamente os valores de como regras ou mandamentos. A moral reproduziria a materialização concreta da ética. Em termos de complementares, poderíamos delinear como objeto da ética o estudo acerca das formas de agir do homem consideradas por ele valiosas e, para além disso, incontornáveis. Nos séculos XIX e XX, descortina-se na cultura humana o advento das teorias dos valores – a axiologia, isto é, a ciência da apreciação, da estimação. Nesse quadro, aquilo que é valioso também é assumido como a finalidade da ética. Sem querer adentrar em toda a complexidade que envolve a temática dos valores, podemos pensá-los como qualidades que aderem a um ser, a um objeto ou a uma conduta, alcançadas em função de suas relações com o homem, considerado como um ser social. Outrossim, podemos perceber que o ser humano é permeável aos valores – diferentemente de outros seres que compõem o universo –, sendo a vida humana o campo fértil para a realização daqueles. O termo valor pode ser considerado a pedra de toque das ciências humanas. E indicam, em razão da relevância que os homens e os grupos sociais lhes conferem na orientação das suas relações intersubjetivas, algo que deve ser realizado. Destarte, prestamos livre curso a esta definição: A ética é a parte da filosofia que tem por objeto os valores que presidem o comportamento humano em todas as suas expressões existenciais. Daí a sua preeminência em relação à moral, à 2 Variações sobre ética e moral, disponível no sítio www.miguelreale.com.br/artigo, acessado em 20/11/2003. 3 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado política e ao direito, os quais corresponderiam a momentos ou formas subordinadas de agir.3 Oportuno destacarmos, na marcha da história, uma precedência dos preceitos normativos éticos de convivência em relação ao ordenamento jurídico, o qual surgiu, também, ante a necessidade de tornar imperativas as normas da ética. Nessa linha, podemos dizer que o direito constitui-se como uma exigência social da ética.4 Por via de conseqüência, ética e direito, embora com dimensões e contornos próprios, são realidades que absolutamente não se divorciam, mas, ao contrário, reciprocamente se complementam. E será a ética a matéria-prima a adensar o direito, conferindo-lhe a validade fundante exigida para a concretização da justiça. Ao largo da história, embora possamos até perceber uma certa invariabilidade dos valores, é nítida uma variação da fundamentação da ética, bem como de sua função, de sua validade e de seu sentido social. Grosso modo, encontramos: a) Consoante à mundividência da Antigüidade grega, o homem era compreendido como um pequeno cosmos, onde seriam encontrados os mesmos elementos formais e materiais do cosmos. O mundo em que o homem vivia era visto como um cosmos e boa seria aquela vida que se harmonizasse com a ordem cósmica. A lei cósmica da natureza seria também uma normativa potencial aos costumes. Daí PLATÃO, a reclamar que a harmonia da ordem dos corpos celestes fosse também alcançada pelos homens, ou os estóicos, a proclamar como preceito moral a vida de acordo com a natureza. Encontramos aqui o cosmos como fundamento da ética. b) No período medieval, em que há a figura de um Deus criador do mundo e do homem, a ética assume uma fundamentação religiosa. Será o bem aquilo que estiver em conformidade com a vontade 3 4 Idem, ibidem. Assim em António Arnaut. Ética e direito. Coimbra: Livraria Mateus, 1999, p.11. 4 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado ou a razão de Deus. E seria através de sua palavra revelada que os homens podem conhecer a verdade ética. Estamos diante de um Deus criador, onipotente, e legislador, dotado de vontade e/ou de razão, e que preceitua os mandamentos éticos a serem seguidos pelos homens. A ética aparece como uma esfera dependente da religião. c) Tal fundamentação perdura de modo pleno até os fins do século XVII. A partir desse período, com o racionalismo e a laicização passando a permear as mais diversas esferas da vida humana, há uma fundamentação antropológica da ética. A ética arranca do homem, que pode ser visto por uma perspectiva naturalista ou autônoma. Naquela, parte-se do que o homem é ou demonstra ser para se atingir um certo bem que se aspira, que se pretende; nesta, reserva-se à autonomia humana a exclusividade de determinar o que seja o bem – tal como afirmava KANT. Os princípios da ética são pensados racionais e universais, alheios a qualquer crença religiosa. Afirma-se uma maximização dos deveres, o dever pelo dever, ou melhor dito, o amor pelo dever. Nos passos kantianos, uma ética do dever. A observação da realidade evidencia nossa atual sociedade, consumista e massificada, superando a fase do dever pelo dever. Hoje, estaríamos na situação caracterizada por GILLES LIPOVETSKY como a cultura do após-dever ou a sociedade pós-moralista; é dizer, fomentando mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar individualista, do que o ideal de abnegação5. Cumpre ressaltar que essa cultura atual não implica uma negação absoluta dos valores, ou ainda um período de indiferença moral. Ao contrário, afirma-se um núcleo axiológico consistente que o homem quer projetar em sua vida, v. g. os direitos humanos. Por certo que o campo de abrangência da ética é larguíssimo. Nada obstante, pretendemos apenas referir alguns daqueles princípios A era do após-dever, in A sociedade em busca de valores – para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. org. Edgar Morin e Ilya Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 32-37 passim. 5 5 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado éticos – que o jurídico culturalmente assume e assimila – valiosos para compor o quadro das nossas relações intersubjetivas. 3 – ANOTAÇÕES SOBRE AS CONDIÇÕES CONSTITUTIVAS DO DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Se antes examinamos notas prévias acerca da ética, agora faremos algumas observações básicas sobre o direito. E o fazemos navegando por águas abertas pelo pensamento do Professor ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES6. Nesse norte, repercutiremos aquelas condições que constituem o direito, fazendo-o aflorar na realidade humana com um sentido e uma intencionalidade próprios. E, sinteticamente, seriam: a) CONDIÇÃO MUNDANAL: a ser expressa pelo fato de nós homens sermos muitos a viver em um único mundo, isto é, a multiplicidade de vidas em um único espaço. Com efeito, trazemos à baila uma elementar e incontornável condição: constituímos uma diversidade de vidas vividas em um único mundo. Conforme observou HANNAH ARENDT, estamos diante do fato que não um homem, senão muitos homens vivem sobre a terra7. Tal situação implica, de modo inexorável, uma circunstância de convivência, que nos põe frente a outros homens no usufruir e compartilhar do mesmo mundo, por meio de recíprocas relações. b) CONDIÇÃO ANTROPOLÓGICO-EXISTENCIAL: se (con)vivemos, decerto que o fazemos como homens. E, a despeito de nossa condição de animal político – pois já na expressão de ARISTÓTELES, o homem é um ser político, um zoon politikon –, somos seres dotados de uma insociável sociabilidade. Assim, se somos com e por meio dos outros, com os quais compartilhamos o mesmo mundo, não desconhecemos que nos é difícil viver com os outros. E, talvez adentrando em um terreno Em especial em O direito como alternativa humana, em Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 1º, Coimbra, 1995, p. 287-310 passim. E também Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito – ou as condições da emergência do direito como direito, in Separata dos Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço. Almedina, p. 837-871 passim. 7 Condition de l’homme moderne. trad. Georges Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1994. 6 6 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado íntimo de nossa humana condição, não devamos desconsiderar que estamos diante de criaturas entre cujos dotes instintivos [há] uma poderosa quota de agressividade8. Acaso os dias de hoje, nos quais a violência recrudesce, não seriam a confirmação disso? Seríamos, pois, seres formados por uma disposição à agressão, a dificultar e abalar nossas relações. Tais condições colocam-nos diante de uma situação problemática: como conciliar, em um espaço singular, uma pluralidade de seres dotados de uma insociável sociabilidade? A resposta, por certo, passa pela construção de uma ordem social. Todavia, releva observar que nem todas as ordens sociais são ordens de direito. Poderia ser considerada de direito a ordem do apartheid sul-africano? E a ordem dos Gulags? E a ordem afirmada pelos campos de concentração? A resposta só pode ser negativa. Não pode igualmente ser considerada uma ordem de direito aquela em que o poder considera esse troço de matar (...) uma barbaridade, mas que, ao fim, pensando-se por certo em suas necessidades, conclui: acho que tem que ser9. Então, o direito surge apenas como uma opção, uma resposta possível ao incontornável problema posto pela nossa convivência. E se nos apresenta como a alternativa comprometida com uma condição ética, que reconheça cada homem constituído por uma autônoma eticidade, traduzida superlativamente pela compreensão da dignidade da pessoa humana. Aliás, não é sem sentido que a Constituição Federal do Brasil insculpe, no inciso III do seu artigo 1º, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da nossa República. Do mesmo modo, o Código Civil Brasileiro abre seu Livro I tratando... das pessoas, e proclama no artigo 1º que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Assim, independente das especificidades e pormenores que a leitura de tais artigos proporciona, a pessoa humana emerge como pressuposto essencial, núcleo Cfe. Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 67. 9 Elio Gaspari. A ditadura derrotada. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 319 e seguintes. 8 7 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado e vértice da normatividade jurídica. É o ser humano, o homem-pessoa, que se afirma como fundamento ético substancial indisponível da ordem jurídica, formando a densidade jurídico-axiológica exigida por um efetivo Estado democrático de direito. A condição de pessoa há de ser compreendida e afirmada nas relações concretas que o homem estabelece, tanto com as outras pessoas (pessoa é re-latio), quanto nas relações estabelecidas com os poderes públicos. Outrossim, impõe-se ante qualquer contexto social ou circunstância particular. Nesse sentido, trazemos à baila a posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro, no Processo de Extradição n.º 633, que teve por Relator o Ministro CELSO DE MELLO, em que a República da China requeria a extradição de um cidadão chinês residente no Brasil: EXTRADIÇÃO E RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS. - A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro - e, em particular, o Supremo Tribunal Federal - de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do due process of law. (...). É que o Estado brasileiro (...) assumiu, (...) o gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II). EXTRADIÇÃO E DUE PROCESS OF LAW. O extraditando assume, no processo extradicional, a condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a quem foi dirigido o pedido de extradição.(...). A nossa condição de pessoa ocorre pela justaposição do nosso ser pessoal em comunicação com a nossa dimensão social. Em uma relação dialética, a pessoa forma-se alimentada por essas duas dimensões. É como 8 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado se a pessoa humana fosse constituída por uma fina rede entretecida por duas linhas: a linha singular do próprio ser (o eu pessoal) e a linha da socialidade (o eu social). Se há o enfraquecimento de uma dessas linhas, ou se uma delas se torna mais forte que a outra, a rede se desfaz, decompondo substancialmente a pessoa humana. Há de haver uma simbiose entre o eu pessoal e o eu social, que, em proporções equilibradas, conjugam-se e forjam a essência da pessoa humana. Por via de conseqüência, não se trata de algo abstrato ou ahistórico – como se fosse um fato natural –, decorrente de enunciados apodíticos. Pessoa existe entre pessoas, na mediação do mundo com o(s) outro(s) e pelo reconhecimento do outro. Constituímo-nos como pessoa na medida em que nos relacionamos; fazemo-nos pessoa uns com os outros – o que implica, por certo, o reconhecimento do direito do outro. Ser pessoa não é ofício isolado, tarefa de um ser só: é um ato que se forma pelo reconhecimento do outro – também como pessoa –, igualmente um sujeito de direito, a impedir sua instrumentalização. A condição de pessoa não se paga e nem se apaga, afinal, a pessoa é valor não o tendo.10 A pessoa deve ser distinguida, identificandose diante e graças a indicações peculiares e reais que tornam cada ser, no mundo, único. E isso afasta qualquer tipo de discriminação, ao mesmo tempo em que possibilita a diversidade na unidade. Ademais, discordamos de posicionamentos que inserem a pessoa na contingência de uma massa humana, bem assim de qualquer visão totalitária, que, muitas vezes, sob o pretexto de organizar as massas, obscurece a pessoa11. Seguindo as Lembramos o poeta ANTONIO MACHADO: por mucho que un hombre valga, nunca tendrá valor más alto que el de ser hombre. 11 A propósito, recordamos a condição daquele prisioneiro de um campo de concentração que, ao ter seu nome perguntado, respondeu: Vier und sechzig, neun, ein und zwanzig. Imre Kertész. Sem destino. trad. Paulo Schiller. São Paulo: Planeta, 2003. p. 136. Não por acaso, o regime nazista tinha por princípio a seguinte afirmação: Tu não és nada; tu Povo és tudo. E, por essa via, anulava-se o sentido humano da pessoa, que deixava de ter sentido em si mesmo. Nesse sentido, ver Hans Hattenhauer. Los fundamentos historico-ideologicos del derecho aleman – entre la jerarquia y la democracia. trad. Miguel Macias-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981, p. 323 e seguintes. 10 9 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado distinções propostas por MIGUEL REALE12, situamo-nos nos quadros do chamado personalismo – personalismo ético, se dissermos com KARL LARENZ, a implicar uma relação jurídica fundamental de respeito mútuo.13 Tudo, decerto, vinculado ao sentido da própria compreensão de seres humanos, colorida por nossas experiências históricas. Correlata a essa compreensão de pessoa, que em nenhum momento se compagina a qualquer visão individualista, emergem dois deveres: o de solidariedade – v. g. os direitos humanos de segunda dimensão – e o de responsabilidade – a se traduzir significativamente pelo dever de sermos Responsabilidade, conseqüências responsáveis portanto, diretas dos pelo(s) não nossos será atos, outro(s) e apenas responder senão pelo cuidar mundo. do pelas outro, reconhecendo-o como uma pessoa; enfim, um dever pela existência da humanidade – acaso não é isso o proclamado direito das futuras gerações? Como se as nossas mãos se estendessem, abrissem as portas do futuro para encontrar, do outro lado, um outro homem – a esperar a continuidade do mundo que construímos, afirmado pelo direito que queremos. Pelo que, ser pessoa é ser sujeito de direitos e, também, de deveres. Ao referirmo-nos ao dever de solidariedade, não o pensamos como um dever afirmado pelos fins perseguidos pelo Estado, que acabam por obscurecer totalitariamente a pessoa humana. Tampouco uma solidariedade buscada para atender fins específicos de algum grupo social, que queira se sobrepor aos pleiteados pelo amplo desenvolvimento humano. De fato, nos quadros da normatividade constitucional, compreendemos o dever de solidariedade como correlato ao princípio da igualdade e da equivalente dignidade social.14 Postula-se um dispositivo que conceda a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de ser Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 277-279 passim. Derecho civil – parte general. trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 44 e seguintes. 14 Cfe. Pietro Perlingieri. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991, p. 168. 12 13 10 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado humano, e, além disso, a pretensão de ser posto em condições idôneas a cumprir as próprias inclinações pessoais assumindo a posição a estas correspondentes.15 Anotamos, recolhendo a seiva reflexiva de HANS JONAS, o entendimento segundo o qual a ética – que para nós é uma dimensão a constituir o direito, oferecendo seu real sentido –, há de se preocupar com o homem e com a sua vida concreta, reconhecendo que o primeiro dever de comportamento humano coletivo é o futuro dos homens.16 Com efeito, essa dignidade constituinte da pessoa é reconhecida no diálogo relacional – não esqueçamos: pessoa é relação –, na troca de razões e sentidos experienciados pelos homens no horizonte dinâmico da história. Somos seres comunicáveis e comunicantes, e, por meio do discurso e da ação, comunicamo-nos como pessoas, na presença do outro não como mero objectum, mas desvelando nossa identidade como sujeitos. O diálogo surgenos como um dever, constituído pela disposição de compreensão do outro. Deste modo, subscrevemos a sentença de JULIEN FREUND: Au surplous, il n’y a pas non plus des liberté et de justice sans reconnaissance de l’homme par l’homme.17 Nessa atitude, distinguimo-nos e afirmamos nossa singularidade ante nossa plural coexistência18 – ou, noutras palavras, afirmamos reciprocamente nossa diferença ante nossa igualdade. Ao fim e ao cabo, postulamos como sendo uma ordem de direito aquela que afirmativamente enxerga e compreende o longo mar de rostos que enche a terra de humanidade.19 4 – A PESSOA HUMANA E A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES Idem, ibidem, p. 169. El principio de responsabilidad. trad. Javier Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 227 e seguintes. 17 L’essence du politique. Paris: Sirey, 1965, p. 699. 18 Com Hannah Arendt, diríamos: La parole et l’action révèlent cette unique individualité. C’est par elles que les hommes se distinguent au lieu d’être simplement distincts(...) Sem deixarmos de lembrar, ainda com Arendt, que: C’est par le verbe et l’acte que nous nous insérons dans le monde humain (...). Condition de l’homme moderne. trad. Georges Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1994, p. 232 e seguintes. 19 José Saramago. Os portões que dão para onde?, in A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.72. 15 16 11 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado O situar da pessoa humana como pedra angular do ordenamento jurídico implica compreender o direito a partir de um núcleo normativo ético-axiológico fundamental. Esse núcleo – sobre o qual o direito, em sua integralidade, radica20 – afirma-se como um elevado fator de justificação, a regular vinculativamente os sujeitos no mundo que compartilhamos, independente de qualquer condição singular desses sujeitos. Portanto, há de estremar tanto as relações dos particulares entre si, quanto as relações destes com o Estado. Pensamos ser a inteligibilidade desse núcleo ético-axiológico, desvelado pelo sentido da pessoa humana, que afirma sobremaneira a confluência do direito público e do direito privado21. Tradicionalmente, a divisão do direito em público e privado estabelecia-se: a) em razão da natureza dos sujeitos da relação jurídica – o direito público regularia as atividades do Estado, enquanto que o direito privado disciplinaria as relações entre particulares; b) em razão da natureza do interesse presente na relação jurídica – o direito público visaria a proteger os interesses do Estado, enquanto que o direito privado protegeria os interesses do particular; c) pela forma da relação jurídica – se a relação fosse de subordinação, estaríamos diante do direito público, se a relação fosse de coordenação, em que as partes ocupam um mesmo plano relacional, falaríamos em direito privado. Os critérios acima elencados, ante a percepção da realidade, mostram-se insuficientes. Basicamente, a estrutura e a dinâmica social 20 Benemérito de menção, o estudo sobre a dignidade da pessoa humana e suas implicações no universo jurídico, da Doutora Maria Celina Bodin de Moraes, p105-147, in Constituição, direitos fundamentais e direito privado. org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 21 Sobre a dicotomia público/privado, sublinhamos o relevante estudo de Eugênio Facchini Neto, intitulado Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado, in Constituição, direitos fundamentais e direito privado. org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 12 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado contemporâneas impuseram alterações no quadro da distinção público/privado. Em nossas complexas sociedades, torna-se extremamente difícil distinguir, de modo inequívoco e apriorístico, os interesses particulares e dos públicos. A dicotomia público/privado acentuou-se em um período histórico no qual se afirmavam os postulados do absenteísta Estado liberal22. Com a superação desse tipo de Estado ocorreu, progressivamente, uma inter-relação entre as esferas públicas e privadas. De outra banda, o poder imperial do Estado passou a sofrer limitações23 e, conseqüentemente, as relações travadas com os particulares cada vez mais passaram a se dar de modo isonômico. A essência da relação entre os particulares e o Estado contemporâneo não se caracteriza pela subordinação ilimitada daqueles aos poderes – ou ao arbítrio – deste. Ao contrário, firma-se um pacto, chancelado pela ordem constitucional, em torno da promoção e do pleno desenvolvimento autônomo das pessoas. O Estado assume o papel de tutela dos direitos fundamentais, bem como, através de políticas públicas, a tarefa de promovê-los – o que, inclusive, fundamenta e justifica sua intervenção.24 A onda democratizante, vivenciada pelo mundo ocidental no último século, e que varreu do mapa arcaicas ordens ditatoriais,25 igualmente contribuiu para a aproximação entre o espaço público e o privado. A idéia veiculada pela democracia, desde suas origens, traz consigo uma exigência: que a administração dos assuntos públicos seja de competência pública – ou exercida diretamente pelos cidadãos, ou através de seus representantes. Mas isso não significa que a vida e os assuntos particulares enclausurem o indivíduo em torno de si mesmo, como se o público e o privado constituíssem dois hemisférios incomunicáveis da Ver Francisco Amaral. Direito Civil – introdução. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.. 69. A corroborar o afirmado, observamos o fenômeno da contratualização da lei, ou seja, o fato de, no processo de formação da lei, não mais se constatar um ato de soberania estatal, mas o acordo prévio de grupos organizados da sociedade civil, forjando um tipo de contrato, conforme bem sublinha Ricardo Lorenzetti. Fundamentos do direito privado, trad. Vera Jacob de Fradera, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 58. 24 Sobre esse tema, ver Pietro Perlingieri, op. cit. p. 111 e seguintes. 25 Como exemplo dessa onda, referimos: a Revolução dos Cravos, em Portugal, a queda das ditaduras latinoamericanas e dos regimes que dominavam os países do leste europeu. 22 23 13 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado sociedade. Essa circunstância, por promover demasiadamente os interesses individuais, arriscaria a integridade da nossa tessitura social, possibilitando a abertura de severas fendas na arquitetura sociodemocrática. Muitas vezes, os interesses particulares podem afetar bens coletivos, reclamando a intervenção pública.26 Por conseguinte, as democracias contemporâneas incorporam em seu campo normativo diversos aspectos da vida individual.27 Percebe-se, portanto, um suavizar das fronteiras demarcatórias das áreas do direito, sem suprimir, todavia, a clássica distinção entre o público e o privado. Por via de conseqüência, não há de ser o direito exclusivamente público ou privado, pois há apenas uma fluida linha entre os pólos públicos e privados. Pelo visto e ponderado, importa que tenhamos o direito lastrado por uma perspectiva material, a se constituir como uma ordem de validade – que não é dada apenas pela análise das leis, mas, antes e sobretudo, pelos princípios constituintes da normatividade jurídica. Princípios que se encontram, no mais das vezes, reconhecidos pela ordem constitucional, alcançando a todas as relações intersubjetivas normatizadas pelo direito – inclusive as relações de direito privado. Com efeito, aportaríamos no que se tem denominado por constitucionalização do direito privado, isto é, o recepcionar de certos direitos em normas fundamentais, reconhecendo-os e tornando-os indisponíveis ao legislador ordinário. A perpassar tal compreensão está a superação de um puro liberalismo estatal, bem como a correlata visão constitucional do Estado liberal. Rigorosamente, queremos dizer a 26 É o caso, por exemplo, do direito ambiental, onde, com base em uma mera suspeita de dano ambiental, sujeitase o particular à realização de estudo de impacto ambiental. 27 Observamos outro fato que brota em muitas democracias de hoje: atendendo-se ao postulado da transparência, muitos assuntos de ordem privada irrompem a seara pública. Aliás, não foi esse um dos problemas enfrentados pelo personagem Coleman Silk em seu envolvimento com a faxineira Faunia Farley? (Philip Roth. A marca humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002). Para não ficarmos somente na ficção, lembraríamos o suposto caso do Príncipe com o mordomo e o do Presidente com a estagiária. 14 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado superação de um Estado de direito liberal, a se forjar, acompanhando sinteticamente o escólio de GOMES CANOTILHO, através da:28 a) minimização do Estado; b) não-intervenção estatal nos domínios socioeconômicos; c) submissão das atividades políticas e dos poderes públicos aos desígnios e interesses da economia. Outrossim, implica a superação de um paradigma constitucional perspectivado: a) apenas pela limitação racional do poder político; b) pela pretensão constitucional de tão-somente disciplinar e organizar os órgãos estatais; c) pela afirmação de direitos e liberdades de caráter individual a serem opostos pelos cidadãos perante o Estado.29 Em contrapartida, afirma-se um Estado democrático de direito material, substancialmente comprometido com efetivação da justiça, no qual a Constituição, expressando um pacto entre a deliberação política e o propósito do direito, com suas autonomias e especificidades próprias, afirma-se como um real estatuto jurídico do político,30 consolidando uma efetiva ordem democrática. O ethos dessa tipologia estatal radica no postulado de uma existência em harmonia à dignidade humana, pois, em uma democracia, a sociedade há de ser solidária com os seus integrantes, Direito Constitucional. 5ª ed. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 1992, p. 76. Releva sublinhar que tal modelo de Estado influenciava a compreensão, e, por via de conseqüência, a regulação das relações entre os particulares. Assim, afirmava-se a plena autonomia das partes, não se aceitando a revisão dos contratos, a serem interpretados no sentido da intenção das partes, bem como afirmava soberanamente a responsabilidade civil subjetiva. De fato, pretendia-se uma plena liberdade contratual, cimentada em uma igualdade formal. Contudo, ante a realidade social, tal liberdade contratual do direito converter-se-ia em... escravidão contratual na sociedade. O que, segundo o direito, é liberdade, volve-se, na ordem dos factos sociais, em servidão. (Gustav Radbruch. Filosofia do direito. trad. Luis Cabral de Moncada. 6ª ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 288) 30 Conforme a consagrada expressão do Professor António Castanheira Neves. A revolução e o Direito, em Digesta. v. 1º, Coimbra, 1995, p.234. 28 29 15 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado afirmando-se a exigência che anche il singolo debba garantire ad ogni altro un’esistenza degna31. Ora bem, estávamos a falar do reconhecimento de certos princípios éticos pela ordem constitucional. Sem espaço para dúvidas, conforme percebeu a inteligência penetrante de PONTES DE MIRANDA, a passagem dos direitos e liberdades às Constituições representa uma das maiores aquisições políticas da invenção humana. Invenção da democracia.32 Contudo, ressaltamos que estamos apenas e tão-somente perante um processo de reconhecimento de certos valores por um Poder. Falou-nos PONTES DE MIRANDA de passagem, ou seja, de algo que transita de um lugar para outro – como se os valores passassem de um patamar supra-positivo para o estalão constitucional. Quer isso dizer que não é o Poder a instância criadora de tais princípios e valores superiores. Pensar de tal forma seria, no mínimo, desconhecer – ou desconsiderar – o complexo processo histórico de formação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Impende, isto sim, observar a harmonia entre valores ético-culturais caracterizadores uma época, com a expressão do poder político e a própria positivação do direito. De fato, referimo-nos a certos princípios – princípios normativos – que se referem à essencial intencionalidade do direito, ao essencial núcleo normativo ético-axiológico fundamental que, ao fim e ao cabo, caracteriza e constitui o direito como direito. Em termos de exemplos, lembraríamos o princípio da isonomia, da legalidade, da ampla defesa, da presunção de inocência, da liberdade de expressão, da liberdade religiosa, do devido processo legal e, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tais princípios enriquecem a experiência humana, tendo validade por sua própria força normativa,33 independente de qualquer reconhecimento formal por parte do Poder: são aqueles padrões a serem Cfe. Franz Wieacker, Diritto privato e società industriale. trad. Gianfranco Liberati. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001, p. 58. 32 Democracia, liberdade e igualdade – os três caminhos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 37. 33 Cfe. Paul Ricoeur. O justo ou a essência da justiça. trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 149. 31 16 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado observados em razão de alguma exigência de justiça, eqüidade ou alguma outra dimensão de eticidade. Nesse sentido, quer nos parecer que a expressão constitucionalização do direito privado pode dar margem a uma idéia reducionista da leitura e da concretização exigidas atualmente na seara do direito privado – o nome não corresponde ao que é nominado, pois a efetividade de tais princípios independe da vontade do legislador constituinte em reconhecê-los. Afinal, seriam apenas os valores expressos pelo legislador constituinte que devem informar o sistema como um todo?34 Sustentamos que não. Para tanto, basta pensarmos o seguinte: e se o legislador constitucional brasileiro de 1988 não houvesse constitucionalizado o princípio da isonomia, significaria que tal princípio não valeria no Brasil? E se não estivesse escrito no inciso III, do artigo 1º que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil? E se no inciso II, do artigo 4º não constasse a referência aos direitos humanos? Significa que as nossas relações não estariam fundadas sobre o lastro axiológico da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos? Não estamos a negar a existência de um processo de constitucionalização do direito privado, de um modo geral, e, particularmente, do direito civil. Um ligeiro passar de olhos sobre a Constituição brasileira é suficiente para que isso se evidencie. Senão, vejamos: o inciso X do artigo 5º preceitua a reparação do dano moral, bem como estabelece a inviolabilidade da vida privada, da imagem e da honra das pessoas; o art. 226 estabelece os princípios institucionais da família, e, em seu parágrafo 3º, reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Com efeito, advogamos, para além da constitucionalização, uma efetiva e substancial jus-humanização do Direito Civil, cujo sentido será caracterizado pela densidade material dos princípios 34 Cfe. Maria Celina Bodin de Moraes, op. cit., p. 107. 17 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado normativos, escritos ou não,35 e que oferecem o sentido axiológiconormativo da resposta do direito aos casos concretos que postulam a sua mediação. Na esteira do considerado, alcançamos o ponto concernente à legitimidade constitucional. E, nesse terreno, pensamos em um fundamento de validade material, em que não basta o manto da mera legalidade ou da simples positivação de um poder. Ao contrário, a legitimidade constitucional deve fixar-se sobre a correspondência da Constituição com o estrato axiológico de uma cultura em um certo momento histórico. Noutros termos, propugnamos que o critério de validade de uma Carta Magna caracteriza-se pela sua adequabilidade à respectiva compreensão de justiça de um dado ciclo histórico-cultural. Decerto que isso nos remete a uma instância que ultrapassa o próprio texto. Como noutro espaço sustentamos,36 uma Carta Constitucional não se autofundamenta, mas, antes e sobretudo, envia-nos a um nível axiológico substancial que a transcende. O que nos leva a posicionar,37 agora em um âmbito mais específico, a seguinte questão: o direito civil encontra em uma Constituição o último ou penúltimo critério de sua normatividade?38 De outra parte, não se deve incorrer no equívoco de pensar a Constituição como diretriz ou fundamento exclusivo da juridicidade39 – ou ainda critério jurídico-político exclusivo para a atividade jurisdicional. A história deve sempre nos lembrar – até porque isto não nos é muito distante – que ordens arbitrárias também possuem Constituições; que é Segundo o magistério de Orlando de Carvalho: o Direito não é simplesmente a letra dos dispositivos (...); é também o que está para além dos dispositivos – quer se trate de princípios informadores das disposições existentes, quer de disposições ainda inexistentes ou não postas. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. 2a ed. Coimbra: Centelha, 1981, p 50. 36 Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 139. 37 A questão acima, embora noutro contexto, é feita pelo Professor António Castanheira Neves, Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 2º, Coimbra, 1995p. 408. 38 Lembramos a palavra de Gustavo Zagrebelsky, no discurso proferido em homenagem ao XX aniversário do Tribunal Constitucional Português, em 28/11/2003: As Cartas Constitucionais são de facto uma garantia, mas não a última, apenas a penúltima. E, citando Joseph De Maistre, lembra: Uma constituição escrita é um concurso sempre aberto a quem escrever uma melhor. 39 Tratamos com mais vagar desse tema em Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 134 e seguintes. 35 18 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado formalmente possível a uma Constituição estabelecer o sacrifício de alguma etnia ou alguma ordem discriminatória que viole os direitos de uma minoria. Outrossim, há Constituições de ruptura, a expressar, mesmo com apoio da vontade popular, ordens ideológicas excludentes e totalitárias. Com efeito, o que sustentamos, portanto, é uma axiologia superior e transpositiva do direito, em que o absoluto não [seja] a constituição, [mas] absoluto [seja] o direito.40 5 – OS DIREITOS DE PERSONALIDADE Decorrente da jus-humanização supra-referida, que reconhece a pessoa humana como núcleo axiológico do direito,41 encontramos no Código Civil Brasileiro, de modo inovador, um capítulo destinado aos direitos de personalidade. O reconhecimento desses direitos encontra-se historicamente vinculado à compreensão ética do ser humano como um sujeito de direitos, portador de uma dignidade intrínseca. Nada obstante a possibilidade de encontrarmos remotas raízes jurídicas de proteção ao homem e de sua personalidade, a Segunda Guerra Mundial, a barbárie produzida pelo nacional-socialismo, bem como o advento de outras cruentas ordens totalitárias e ditatoriais, evidenciaram o largo horizonte de possibilidades de desprezo à dignidade humana e à sua personalidade. Demais disso, descortinou-se, no panorama das relações intersubjetivas, que essas possibilidades podem igualmente ser efetivadas não apenas pelo Estado, mas também por parte de sujeitos particulares – e hoje, com o desenvolver da tecnologia, acentua-se essa possibilidade. Assim, impõe-se a plena afirmação dos direitos da personalidade e sua ampla tutela jurídica, a se estender tanto no âmbito das relações do direito público quanto do direito privado.42 Cfe. René Marcic apud Castanheira Neves, op. cit. p. 325. Vale lembrar a alteração do Código Civil de 2002, que em seus dois primeiros artigos substitui a palavra homem, utilizado pelo Código de 1916, pela expressão pessoa. Tal alteração não é apenas de forma, senão que de substância, ante a compreensão da expressão pessoa humana, cuja situação basilar é relacional – se é pessoa entre outra(s) pessoa(s), em lugar do indivíduo isolado em si mesmo e em seus próprios interesses. 42 Assim, por exemplo, dentre tantos, Luis Díez-Picazo e Antonio Gullon. Sistema de Derecho Civil, v. 1, 9ª ed., 2 ª reimpressão, Tecnos: Madri, 2000, p. 324. Como nota de circunstância, vale a lembrança do escólio de Pontes de 40 41 19 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado Decorrentes, pois, da dignidade da pessoa humana, valor-fonte do direito, valendo-nos de uma feliz expressão de MIGUEL REALE,43 podemos entender por direito geral da personalidade um certo número de poderes jurídicos pertencentes a todas as pessoas, por força do seu nascimento.44 Ou ainda, segundo a tradicional lição de ADRIANO DE CUPIS, os direitos de personalidade são direitos essenciais, sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo o valor concreto.45 Importa sublinhar a presença de um superior patamar axiológico composto pela incontornável compreensão da pessoa humana e a substancial realização dos direitos que dela emanam, fundamentante da ordem jurídico-positiva. Os direitos de personalidade apresentam uma plena abertura normativa, dúctil, cuja extensão há de permitir o abranger da complexa pluralidade existencial do ser humano. Por via de conseqüência, não se esgotam nos enunciados aprioristicamente descritos nos textos legais, é dizer, não há de se pretender um inventariar exaustivo dos direitos da personalidade. Inclusive, essa posição – a da não-tipificação exaustiva dos direitos da personalidade – parece-nos ter sido adotada pelo Código Civil Brasileiro (CCB), haja vista ali estarem traçados seus princípios reitores fundamentais.46 A elevação da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme referimos, marca indelevelmente em nossa normatividade jurídica uma cláusula geral da personalidade, segundo a qual la tutela della personalità si può considerare Miranda, que o direito da personalidade como tal, que tem o homem, é ubíquo: não se pode dizer que nasce no direito civil, e daí se exporta aos outros ramos do sistema jurídico, aos outros sistemas jurídicos e ao sistema jurídico supra-estatal; nasce, simultâneamente, em todos. Tratado de Direito Privado. Tomo VII. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi,1971, p. 13. 43 O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 100. 44 Conforme Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil. 3ª ed. Coimbra, 1999, p. 206. 45 Os direitos da personalidade. trad. Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p.17 46 Cfe. Moreira Alves, (...) se abriu um capítulo para os direitos da personalidade, estabelecendo-se não uma disciplina completa, mas os seus princípios fundamentais. A parte geral do projeto de Código Civil. Revista do Centro de Estudos Judiciários – Conselho da Justiça Federal, no. 09, set/dez. 1999, Brasília, p.08. 20 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado unitaria, non definita, senza limiti, elastica, adattabile quanto piú possibile alle situazini concrete ed alle condizioni culturali, ambientali nella quali essa si realizza.47 Da noção geral e aberta do direito de personalidade – cujo objeto é o seu próprio sujeito, é a Pessoa mesmo,48 que visa a preservar os bens essenciais e básicos da pessoa concretamente considerada,49 em sua relação consigo e aquelas estabelecidas com o mundo e a(s) outra(s) pessoa(s), tanto em sua dimensão psico-física quanto moral, amparando o seu autônomo desenvolvimento –, desdobram-se alguns direitos especiais de personalidade, v. g., o direito ao nome (art. 16 do CCB), ao pseudônimo (art. 19 do CCB), à imagem (art. 20 do CCB e inciso X, art. 5º da Constituição Federal), à intimidade (art. 21 do CCB e inciso X, art. 5º da CF).50 Aceita-se, deste modo, um direito geral de personalidade, referente à proteção da dignidade e individualidade humanas, e direitos especiais de personalidade, que possuem um objeto específico.51 De fato, estabelece-se uma relação entre a cláusula geral e os direitos especiais de personalidade, na qual aquela, como a célula mater dos direitos de personalidade, fundamenta e oferece o sentido destes.52 Ante a impossibilidade de se Pietro Perlingieri, op. cit., p. 325. Cfe. Orlando de Carvalho, Para uma teoria da pessoa humana, in O homem e o tempo – liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1999, p. 542. 49 Ao referirmos a pessoa concreta, pensamos na superação de um sentido exclusivamente técnico da pessoa (...) quando o sujeito faz parte das relações jurídicas como um elemento, o que significa chegar à própria negação da existência de direitos subjetivos das pessoas. Luiz Edson Fachin. Teoria crítica do Direito civil- à luz do novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99. Pensar dessa forma impulsiona a uma separação do direito em relação ao mundo vivido – acaso não seria esse um dos pilares da pandectística? –, como que se a pessoa dependesse do reconhecimento do legislador para ser titular de direitos e ver seus direitos fundamentais assegurados. Pessoa concreta é a pessoa de carne e osso, que vive e sente, e, que, em sua vida, é capaz de amar e de sofrer, el que come, y bebe, y juega, y duerme, y piensa, y quiere: el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano. (...). [Enfim], yo, tú, lector mío: aquel outro de más alla, cuantos pisamos sobre la tierra. Miguel de Unamuno. Del Sentimiento Trágico de la Vida. 3a reimpressão, Madri: Alianza, 2001, p. 2122. E esse homem, essa pessoa, assim considerado, há de ser o sujeito e a preocupação máxima de todo o Direito e do Estado democrático, comprometido com uma igualdade material. Afinal, com Orlando de Carvalho, diríamos: É o ser humano, é a Pessoa que se tem de tomar a sério. op. cit., p. 545. 50 Desses exemplos, recortamos duas esferas sobre as quais incidem os direitos de personalidade: uma esfera material e outra imaterial. 51 Na mesma direção, e aprofundando a dimensão histórica dos direitos de personalidade, ver Helmuth Coing. Derecho privado europeo. vol. II. trad. Antonio Pérez Martín. Madri: Fundación Cultural del Notariado, 1996, p. 355 e seguintes. 52 Sobre essa relação, vide a obra de Rabindranath Capelo de Sousa. O direito geral de personalidade. Coimbra, 1995 p. 557 e seguintes. 47 48 21 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado esgotar na letra da lei o âmbito da personalidade merecedora de tutela, a cláusula geral de personalidade oferece aos operadores do direito um elemento seguro e racionalmente justificável para a proteção concreta da pessoa. Se no caso decidendo não houver a violação específica de um direito de personalidade, recorre-se ao direito geral de personalidade para salvaguardar a substancial proteção da pessoa humana.53 À vista do ponderado, a tutela da personalidade exsurge na constituenda normatividade jurídica perspectivada pela dimensão ontoaxiológica do ser humano. Nesse norte, pleiteia o direito de cada pessoa constituir uma vida existencial própria – inclusive o direito de ser diferente,54 de ver reconhecidas as diferenças –, sendo a pessoa o sujeito do direito em um mundo de inter-relações com outros iguais sujeitos. Nesse quadro, compete àquele que é chamado a dizer o direito, ante a problemática suscitada pelo caso concreto, nomeadamente na seara dos direitos da personalidade, orientar sua decisão no sentido de atender as Sobre o tema, ver Karl Larenz. Derecho Civil – parte general. trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Revista de Derecho Privado, 1978, p. 164-165 passim. 54 Conforme destaca Erik Jayme, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, (...), criou o conceito de direito fundamental da pessoa à protecção do seu estilo de vida. Pós-modernismo e direito da família, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVIII, ano 2002, p.210. Esse entendimento decorre da inteligência das disposições normativas que tutelam a vida privada – tal-qualmente estabelece o inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal brasileira. Assim, nasce o dever de reconhecer o estilo de vida decorrente das autônomas opções de cada pessoa – v. g. as opções sexuais –, afirmando-se o direito das minorias, amparando-o juridicamente e apartando das relações sociais quaisquer traços discriminatórios. Ilustrativo, na esteira do considerado, a seguinte decisão: União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, (...), buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade.(...). Agravo de Instrumento 70001388982. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Sétima Câmara Cível. Relator: Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis. Data de julgamento: 14/03/2001. O reconhecimento do direito à diferença independe da aceitação social de uma maioria, pois decorre da própria autonomia pessoal e, em última sede, da dignidade humana. Assim, os comportamentos tidos por diferentes, refletindo as opções das minorias, desde que não ofensivos à ordem pública, devem receber a tutela das instâncias jurídicas, sob pena de o direito se transformar em uma barreira à projeção de novos valores na vida social, circunavegando nas paradas águas da insensibilidade. E, por fim, o direito à diferença não pode resultar em uma ... indiferença. Como bem observou o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, é bom lembrar, pois freqüentemente esquecido, a sociedade, o Estado e o Direito existem em função da pessoa humana, de sua felicidade e realização plenas, cuja efetivação só não pode realizar-se com o sacrifício do outro, individual ou coletivo. Embargos Infringentes 70000080325 – 4º Grupo de Câmaras Cíveis. Tribunal de Justiça do RS. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 200/ junho de 2000. 53 22 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado singulares e reais especificidades existenciais do titular do direito de personalidade ameaçado ou lesado.55 6 – CERTAS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE Os direitos de personalidade, distinguindo-se, pois, de outros direitos subjetivos, apresentam características próprias. Algumas dessas características são nominadas no próprio art. 11 do CCB.56 Isso posto, veremos, em duas ou três palavras, os seguintes elementos distintivos dos direitos de personalidade: a) Intransmissíveis: em razão da própria essência dos direitos de personalidade, segundo a qual os bens jurídicos da personalidade humana física e moral constituem o ser do seu titular,57 nasce uma incontornável vinculação dos próprios direitos com o seu titular – os direitos de personalidade não se separam de seu titular. Dessa forma, há, por princípio, a impossibilidade de se ceder, alienar, onerar, sub-rogar, transmitir ou outorgar um direito de personalidade. Inerente à idéia de transmissão, está a de uma pessoa pôr-se no lugar de outra. Logo, caso fosse possível a transmissão, o direito não seria personalidade,58 porquanto personalidade não se transmite, não havendo alteração de seu titular. b) Irrenunciáveis: do mesmo modo que a intransmissibilidade, a irrenunciabilidade é uma das características dos direitos de personalidade. Dada a sua essencialidade, não se pode renunciar aos direitos de personalidade; é dizer, não se pode desistir, nem eliminar os direitos de personalidade. Os direitos de personalidade não podem ser perdidos durante a existência de seu titular. Todavia, tanto a Nesse diapasão, modelar a jurisprudência portuguesa que assim pronunciou: O julgador, ao aplicar a lei no âmbito do direito de personalidade, não deve atender a um tipo humano médio, ao conceito de cidadão normal e comum, antes deve ter em conta a especial sensibilidade do lesado, como é na realidade. apud Rabindranath Capelo de Sousa, op. cit., p. 117. 56 Dispõe o citado artigo: Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. 57 Rabindranath Capelo de Sousa, op. cit., p. 402. 58 Cfe. Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo VII, 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p.07. 55 23 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado intransmissibilidade quanto a irrenunciabilidade não obstam uma possível limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade, desde que não se firam os princípios fundantes da ordem pública.59 c) Indisponíveis: Compreendida a natureza essencial dos direitos de personalidade, percebe-se que, por regra, a indisponibilidade os chancela. Assim, ao seu titular não será juridicamente possível estabelecer uma outra meta ou um outro rumo ao seu direito. Não obstante o afirmado, há uma abertura, inclusive de ordem legal, que possibilita o amenizar, o abrandar, dessa característica. Rigorosamente, poderíamos dizer que há uma indisponibilidade temperada, haja vista aquelas situações em que licitamente se possibilita ao sujeito ativo do direito de personalidade dispor sobre o objeto de seu direito, limitando-o. Tal possibilidade, desde que a disposição não seja ilícita ou contrária aos princípios instituintes da ordem jurídico-política, resulta da liberdade de autodeterminação pessoal, de uma razoável flexibilização que o próprio sujeito pode incorporar à sua personalidade. Assim, e. g., pode haver a concessão para uso de imagem, ou, ainda, a própria hipótese prevista no artigo 13 do CCB, dispondo acerca da doação de órgãos ou tecidos para fins de transplante integridade física. que não Ressalte-se, importem diminuição contudo, que permanente isso não elide da a indisponibilidade como elemento caracterizador e constituinte dos direitos da personalidade: a referida abertura não torna a indisponibilidade uma característica absoluta, tão-somente a modera. Ademais, a possibilidade de disposição há de ser sempre voluntária, consciente e livre de qualquer defeito. Conforme acima referimos, há algumas situações em que a própria legislação estabelece a licitude de uma certa disposição sobre os direitos de personalidade. Não há de se pretender que a lei as delimite exaustivamente. Advogamos que a indisponibilidade dos direitos de personalidade deve recair sobre aqueles bens jurídicos efetivamente essenciais e caracterizadores da condição ética da pessoa humana. 59 Nesse diapasão, ver Carlos Alberto da Mota Pinto, op. cit. p. 211 e seguintes. 24 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado Destarte, não se coaduna com a intencionalidade e o sentido do direito um negócio jurídico no qual uma parte se auto-submeta à escravidão, renunciando à sua liberdade, bem assim que tenha por objeto a renúncia à integridade física. Nesses casos, inclusive, mais do que se tratar de uma impossibilidade jurídica do objeto, estaríamos diante da impossibilidade jurídica do próprio negócio jurídico – o que o tornaria inexistente e não inválido.60 Em uma tentativa de sistematização – e sem a pretensão de sermos taxativos –, a princípio, a disposição dos direitos de personalidade pode ser considerada lícita quando: a) o objeto não for um bem jurídico essencial à pessoa humana (ex. exploração de imagem); b) ocorrer em razão de um justificado interesse de seu titular ou de um terceiro (ex. intervenção cirúrgica, doação de sangue); c) decorrente de práticas socialmente aceitas, mesmo pondo em risco a vida ou a integridade física do sujeito (ex. as lutas de vale-tudo). d) Absolutos: Com efeito, os direitos de personalidade atribuem a seu titular uma série de poderes jurídicos. Ora bem, tais poderes, que recaem imediatamente sobre o bem jurídico tutelado, geram em todos os demais integrantes da sociedade o dever de um cabal respeito aos direitos de personalidade, pelo que se diz serem estes oponíveis erga omnes, válidos perante todos. Conforme escólio de SANTOS CIFUENTES,61 os poderes jurídicos irradiados pelos direitos de personalidade conduzem a um directo enfrentamiento com todos los miembros de la comunidad organizada, para impedir la turbación u ofensa en el goce previsto. Nesse norte, como acentua CAPELO DE SOUSA,62 a oponibilidade erga omnes dos direitos de personalidade faz nascer em relação aos sujeitos passivos, habitualmente, uma obrigação universal negativa, um dever jurídico abstencionista de observância a esses direitos. Essa observação é rigorosamente apropriada, e realça um pólo que emerge da oponibilidade erga omnes dos direitos de personalidade. Noutro pólo, afirma-se um dever 60 Estaríamos ante a categoria dos negócios proibidos. Nesse sentido, ver Marcos Bernardes de Mello. Teoria do fato jurídico – plano da existência. 9ª ed. S. Paulo: Saraiva, 1999, p. 73 e Pontes de Miranda, op. cit., p. 26. 61 Los derechos personalisimos. Buenos Aires: Lerner, 1974, 149. 62 op. cit., p. 401. 25 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado jurídico positivo, a fim de tutelar o bem protegido pelo direito de personalidade. Assim, por exemplo, verifica-se na relação entre o Estado e o particular. Ao lado da limitação, imposta ao Estado, de não lesar os direitos de personalidade, constitui-se um dever positivo de proporcionar condições efetivas para o pleno desenvolvimento existencial da personalidade humana, a gerar, inclusive, uma pretensão em favor do titular dos direitos de personalidade. e) Extrapatrimonialidade: Tal característica compagina-se com a essência dos direitos de personalidade, que concernem ao próprio ser do ser humano – e não ao seu ter. Por conseguinte, a extrapatrimonialidade indica a impossibilidade de aos direitos de personalidade corresponder uma estimativa econômica, isto é, não são suscetíveis de uma apreciação econômica. A personalidade não é avaliável economicamente. Importa sublinhar que essa característica não implica que os direitos de personalidade não produzam efeitos, conseqüências patrimoniais. f) Vitalícios e Necessários: A vitaliciedade é também uma das características dos direitos de personalidade. Quer isso dizer que acompanham o ser humano ao largo de sua existência. E são direitos necessários porquanto indispensáveis à plena constituição e afirmação do ser humano em uma comunidade de pessoas. g) Imprescritíveis: Importante característica que dimana do amparo geral que recebem os direitos de personalidade diz respeito à sua imprescritibilidade, isto é, a impossibilidade de extinção pelo não uso. Não se submetem, pois, à prescrição extintiva. Ao lado dessa impossibilidade, há igualmente outra: a de não serem objetos de prescrição aquisitiva. Sublinhe-se, quanto ao instituto da prescrição, a princípio, sua vinculação a pretensões de natureza patrimonial,63 o que, constitutivamente, exclui os extrapatrimoniais direitos de personalidade dos efeitos prescricionais. Já nos comentários de Clovis: Precisamente, os direitos patrimoniaes é que são prescritíveis. Não há prescrição senão de direitos patrimoniais. Os direitos que são emanações directas da personalidade e os de família, puros, 63 26 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado 7 – UM EXEMPLO DE JUS-HUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES JURISPRUDENCIAIS BRASILEIRAS O bem de família, que, grosso modo, trata de destinar a uma parcela de bens as características da inalienabilidade e da impenhorabilidade, em proveito de uma moradia para a família, conhece duas modalidades: a disposta no artigo 1711 do CCB,64 de natureza voluntária, estabelecida mediante escritura pública ou testamento, e aquela outra, de regime estatutário, disciplinada pela Lei 8009/1990.65 Especificamente, no curso de nossas modestas reflexões, ainda que às rápidas, gostaríamos de tratar, à luz de algumas decisões judiciais, de uma situação: a possibilidade de uma pessoa solteira invocar o amparo da Lei 8009/90 para proteger seu imóvel de uma penhora. O ponto central reside em saber qual o alcance e a aplicação dessa legislação. A partir de uma interpretação literal, entende-se amparado pelo diploma legal só e somente o imóvel da entidade familiar. Por via de conseqüência, é penhorável o bem de alguém que seja solteiro ou resida solitariamente. Basicamente, o argumento invocado para sustentar esse entendimento localiza-se na vinculação do intérprete ao texto da lei. A título ilustrativo, encontramos a seguinte ementa: Penhora. Imóvel residencial de pessoa solteira. Incidência da Lei 8009/90 – restando ao abrigo do referido diploma legal tão-somente o imóvel que serve para não prescrevem. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. vol. I, 6ª ed. Rio de Janeiro: Rio, 1975, p.443. No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior: A prescrição é fenômeno típico das ações referentes a direitos patrimoniais. (Comentários ao novo Código Civil, 2ª ed. v. III, t. II, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 170. Santoro-Passarelli, por sua vez, sustenta serem imprescritíveis os direitos de que o sujeito não pode dispor em absoluto. (Teoria geral do direito civil. trad. Manuel de Alarcão. Coimbra: Atlântida, 1967, p. 89.) – como o seriam os direitos de personalidade. Nada obstante, importa referir o asseverado por Pontes de Miranda, no tomo VI, p. 127, 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, de seu Tratado de direito privado: A prescrição, em princípio, atinge a tôdas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional. 64 Reza o caput do artigo: Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse 1/3(um terço) do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. 65 Dispõe o caput do artigo 1º do dispositivo legal: O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. 27 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado residência da família, impende que se mantenha a constrição sobre o bem de propriedade de pessoa solteira.66 As decisões supra-referidas, além de claros contornos normativistas, caracterizando um afivelar do juiz à letra da lei, situam-se nos domínios de uma perspectiva patrimonialista do direito civil, ao privilegiar o direito de crédito em detrimento do fundamental direito à moradia. Decerto que, nos quadros do que estamos a postular – a jushumanização das relações privadas – não há de haver concordância com o teor de tais julgamentos. Ao contrário, há de se buscar uma decisão cujo sentido radique materialmente na proteção da pessoa e na garantia das condições mínimas para uma vida digna. Por essa via, irradia-se sobre a normatividade jurídica a noção de depatrimonializzazione do direito civil.67 Os efeitos dessa irradiação alcançam o próprio manancial substantivo do direito civil, afirmando-se como uma disciplina orientada para o estabelecer e o concretizar dos princípios básicos do livre e amplo desenvolvimento da pessoa. E pessoa não em um sentido abstrato ou nucleada em uma matriz afirmativa de uma vontade individual. Mas, ao 66 Apelação Cível 197282593. 8ª Câmara Cível. Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor José Francisco Pellegrini. Julgado em 06/05/1998. No mesmo sentido: Penhora. Bem de Família. Executado solteiro. O bem que a Lei n. 8009/90 protege é o da família e não do devedor. Por isso, é penhorável o bem do executado solteiro. Agravo de Instrumento 598305761. 9ª Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor Tupinambá Pinto de Azevedo. Julgado em 23/02/1999. Bem de família. Não incidência da tutela legal. imóvel habitado por indivíduo só. Não enquadramento de sua condição na necessária entidade familiar. A circunstância de habitar só no imóvel não o habilita à tutela da legislação protetiva do bem de família, que visa à proteção da entidade familiar. Agravo de Instrumento 197125586. 7ª Câmara Cível. Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor Roberto Expedito da Cunha Madrid. Julgado em 27/08/1997. Executado solteiro que mora sozinho. A Lei 8009/90 destina-se a proteger, não o devedor, mas a sua família. Assim, a impenhorabilidade nela prevista abrange o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, não alcançando o devedor solteiro, que reside solitário. STJ – Acórdão Resp. 169239/SP (199800226621), RE 384712, 12/12/2000, 4ª Turma. Relator: Ministro Barros Monteiro. 67 Cfe. a expressão de Pietro Perlingieri, op. cit. p. 55. Impende acentuar, de modo exemplificativo, nessa linha, os estudos promovidos no Brasil por autores como Gustavo Tepedino, Luiz Edson Facchin, Maria Celina Bodin de Moraes. 28 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado revés, pessoa como sujeito de e do direito, incorporada em uma ordem social ética, histórica e econômica.68 Sublinhe-se que a noção de despatrimonialização não implica a desconsideração plena dos aspectos patrimoniais e econômicos da vida civil. O que está em causa é a não subordinação absoluta das relações particulares aos valores patrimoniais, hipertrofiados pela concepção moderno-individualista. Em contrapartida, na órbita do direito civil eleva-se prioritariamente, como uma medida axiológica constante, a tutela de valores e elementos não econômicos. Não se negam os aspectos patrimoniais: apenas se os conjugam aos valores da personalidade humana, outorgando-se uma primazia destes em relação a aqueles. A despatrimonialização implica assumir como prius das relações jurídicas os valores atinentes à pessoa humana e ao pleno desenvolvimento de sua personalidade, sendo o patrimônio uma via para alcançar a destinação final da personalidade. Desde logo, tem-se, em síntese, que permeado pela despatrimonialização el Derecho Civil no actúa por y para el patrimonio, sino a través del patrimonio.69 De modo paradigmático, ilustrando a noção de despatrimonialização, recolhemos o exposto na decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais (Apelação Cível nº 408.550-5, de 01/04/2004) que reconheceu ao filho o direito à indenização por danos morais em virtude de uma situação de abandono por parte de seu pai. Conforme a ementa, a dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. Como pano de fundo, está o reconhecimento de as relações familiares serem pautadas, antes e sobretudo, pelo princípio do afeto e da solidariedade, não se constituindo, pois, a família e as relações que dela derivam apenas como um instrumento para a satisfação Nesse sentido, ver Eugenio Llamas Pombo. Orientaciones sobre el concepto y el método del derecho civil. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, s.d., p. 88 e seguintes. 69 Llamas Pombo. op. cit. p. 110. 68 29 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado material e patrimonial de seus componentes.70 Encontramos nessa linha jurisprudencial – que segue, ao nosso sentir, a tendência de despatrimonialização do direito civil – uma tendência contemporânea caracterizadora do direito de família pós-moderno, salientada por ERIK JAYME: o regresso dos sentimentos, que se transformam em direito e, ao fim e ao cabo, como bem conclui o autor, embora possam parecer caótico, ameaçando a segurança jurídica, correspondem à complexidade da vida de hoje, e reflecte mais precisamente os desejos da sociedade actual.71 Ao fim e ao cabo, retornando à questão do bem de família, advogamos, portanto, que a proteção expressa pela Lei 8009/90 alcance a todas as pessoas, independente de seu estado civil ou modo de vida.72 Em 70 Tudo, decerto, em harmonia com relevantes princípios ético-jurídicos, conforme extraímos da compreensão do próprio acórdão. Senão, vejamos: O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. (...). No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família assegurarlhe com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana. 71 op. cit., p. 220. 72 Conforme manifestação do STJ: A Lei 8009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. (...). RE 262568, 19/08/99. 6ª Turma. Relator: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. No mesmo sentido, Impenhorabilidade de bem familiar solteiro. Devedor solteiro. Situação abarcada pela norma protetora. Impossibilidade da penhora. A impenhorabilidade do bem familiar, resguardada pela legislação pátria, abrange o imóvel de indivíduo solteiro. O que o ordenamento quis proteger foi a idéia de lar residencial, não havendo razão para a interpretação restritiva.(...). Agravo de Instrumento nº 70001885466, Primeira Câmara Cível, Tribunal de justiça do RS. Relator: Desembargador Henrique Osvaldo Poeta Roenick. Julgado em 20/12/2000. Na mesma linha argumentativa, esta outra decisão: RESP 315979/RJ. Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (1088). Data da Decisão 26/03/2003. Órgão Julgador: SEGUNDA SEÇÃO. Ementa: BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL LOCADO. IRRELEVÂNCIA. ÚNICO BEM DOS DEVEDORES. RENDA UTILIZADA PARA A SUBSISTÊNCIA DA FAMÍLIA.INCIDÊNCIA DA LEI 8.009/90. ART. 1º. TELEOLOGIA. CIRCUNSTÂNCIAS DA CAUSA. I - Contendo a Lei n. 8.009/90 comando normativo que restringe princípio geral do direito das obrigações, segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas dívidas, sua interpretação deve ser sempre pautada pela finalidade que a norteia, a levar em linha de consideração as circunstâncias concretas de cada caso. II – Consoante anotado em precedente da Turma, e em interpretação teleológica e valorativa, faz jus aos benefícios da Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da norma é o de garantir a moradia familiar ou a subsistência da família. 30 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado causa está o direito à moradia – iniludivelmente um dos fatores a garantir a dignidade da pessoa humana.73 Sem embargo, não se desconhece o legítimo direito de crédito. De fato, há uma colisão entre o interesse do credor, que busca a satisfação de seu direito, e o executado, que visa a assegurar a sua habitação – garantia mínima para uma condição de vida digna. Diante do referido conflito, sustentamos que o magistrado não deva se afastar da tutela da pessoa humana e de sua dignidade.74 Porque esse é o fundamento, a coordenada axiológica instituinte do direito e que, portanto, deve permear a sua efetiva realização. A figura da impenhorabilidade, à vista disso, plenamente se justifica, revelando-se indispensável na realização das mais primárias exigências que a vida apresenta. Para alcançarmos a jus-humanização ora postulada – expressão que ultrapassa os limites impostos pela Carta Constitucional, ao encontrar o fundamento e a validade do direito em princípios transpositivos –, importa argumentarmos igualmente na superação das linhas metodológicas do normativismo jurídico. Fundamentalmente, por tal modelo de juridicidade associar-se a um contexto histórico não compatível com o sentido material da normatividade jurídica contemporânea.75 Ademais, propõe uma redução do direito à lei,76 concebendo o sistema jurídico como axiomático. Por via de conseqüência, limita a função jurisdicional, amarrando-a as premissas da lógica formal, pretendendo conferir ao direito uma suposta neutralidade. Tudo, decerto, em harmonia Assim manifestou-se o Ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça: A interpretação teleológica do Art. 1º [da Lei 8009/90] revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Embargos de Divergência em RESP 182.223 – SP. Disponível no endereço eletrônico www.stj.gov.br, acessado em 30/01/2004. 74 Digno de lembrança, em conformidade com o que afirmamos, o Acórdão no 62/02, do Tribunal Constitucional de Portugal, da lavra do Relator Paulo Mota Pinto: Será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um mínimo de dignidade. Disponível no endereço eletrônico www.tribunalconstitucional.pt – acessado em 30/01/2004. 75 Sobre esse tema, ver o nosso pequeno trabalho A Ética como dimensão constitutiva do Direito, in Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 10, no 44, São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 18-40. 76 Trazemos à baila o que fora contado em certa história: (...) não creiais que a lei é justa só porque lhe chamais lei. José Saramago. O evangelho segundo Jesus Cristo. 23ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras,1991, p.419. 73 31 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado com o postulado político do Estado liberal moderno, ornamentado pelos ditames de um contratualismo assaz individualista. Em contrapartida, há de se afirmar o ato de concretização do direito pela perspectiva de uma prática histórica e circunstancialmente contextualizada, a se constituir dinamicamente pelo apreciar dos concretos problemas humanos. Outrossim, a racionalidade jurídica não há de se compaginar com uma mera racionalidade formal. De fato, há de se iluminar por uma racionalidade material, rumando para a realização dos valores instituintes da ordem jurídico-social. 8 – NOTAS MODERNO-ILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO JURÍDICO Decerto que o consolidar da perspectiva normativista acima mencionada encontra uma série de concausas historicamente situadas. Muitas das quais encontradas a partir do pensamento moderno iluminista. Como bem destaca o Professor CASTANHEIRA NEVES,77 a nota concludente do paradigma jurídico construído a partir desse período, do qual ainda somos legatários, foi a compreensão do direito como uma ordem expressa do Poder Legislativo. A exigência de uma validade material vê-se substituída por uma validade formal – especificamente uma validade política dada pela legitimidade do poder político e a observância do processo legislativo. Dentre as concausas que levaram a tal situação, anotamos: A cultura humana corta os vínculos com quaisquer fatores transcendentes, passando a ser assumida como de responsabilidade humana. Tal circunstância decorreu do postulado da autonomia humana, que estabelecera uma nova compreensão do homem em relação a si mesmo. O homem moderno volta-se para si, sendo um homem de liberdade. De fato, tem-se um homem emancipado. E o termo emancipação fora empregue, primeiramente, com o sentido da liberdade de um povo em 77 Curso de Introdução ao Direito. Coimbra, 1976. 32 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado se reger. Na Alemanha, em 1792, corresponderia a dizer que o homem possuía em si próprio o sentido de orientação do seu próprio comportamento. Posteriormente, assume um caráter extensivo a toda a humanidade, destinatária de uma acção libertadora, pois não há maior crime do que manter os homens na condição de animais domésticos.78 Sem embargo, o período a que fazemos alusão destaca-se por sua forte base antropológica. Com isso, fazemos menção ao entendimento que o ser humano passa a fazer de si mesmo. Ressaltamos, nesse âmbito, a autonomia do homem, é dizer, o corte efetivado com uma pressuposta e transcendentalmente existente ordem, acentuando a razão79 como elemento fundamentante da ação e do saber do homem. Por esse iter, a liberdade como que reencontra sua raiz primitiva, de ato de desvinculação, de independentizar-se dos vínculos, de negar e refutar toda e qualquer organização social estribada em uma relação de privilégios entre a autoridade e a verdade. De fato, a luta da independência individual pela eliminação dos vínculos de subordinação pessoal, pela autonomização do indivíduo, é ao mesmo tempo a luta contra a afirmação de uma verdade pública única e vinculante para todos.80 Rigorosamente, evidencia-se uma radical no período distinção em que estamos relação a àquela considerar, a postura conformadora do temperamento humano tão próprio da Idade Média. Lá, encontrava-se o homem condicionado, vinculado a leis exteriores. O homem era um ser passivo que ainda não tinha descoberto seu espírito crítico. Em conformidade com KANT, o Iluminismo corresponderia a uma crise de crescimento, a uma vontade de afastar-se da infância e, se, nas Baptista Pereira, Miguel. Modernidade e Tempo: para uma leitura do discurso moderno. Coimbra: Editora Livraria Moderna, 1990, p. 95. 79 Assim pode ser entendida a razão iluminista: É como uma soberana que, tendo alcançado o poder, toma a resolução de ignorar as províncias onde sabe que nunca poderá reinar totalmente. (...). Tal é o papel da razão: em presença do obscuro, do duvidoso, lança-se ao trabalho, julga, compara, utiliza uma medida comum, descobre, pronuncia-se. (...). Da razão depende toda a ciência e toda a filosofia. (...). A razão basta a si própria: quem a possui e exerce sem preconceitos jamais se engana: (...) ela segue infalivelmente o caminho da verdade . Paul Hazard. O Pensamento Jurídico Europeu no Século XVIII. Lisboa: Presença, 1989, 35-37 passim). 80 Conforme Pietro Barcellona, Estado de Derecho, Igualdad Formal y Poder Económico: apuntes sobre formalismo jurídico y orden económico. Anales de la Catedra Francisco Suares, nº 29, ano 1989, p. 46. 78 33 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado épocas precedentes, o homem se mantivera sob tutela, fora por culpa própria: não tivera a coragem de se servir da razão; tivera sempre necessidade de um mandamento exterior.81 É certo, contudo, que o período medievo não teve seu ciclo terminado gratuitamente, por obra do acaso. Com efeito, salientamos causas e fatos objetivos determinantes do fim desse período. Elencados, sem a pretensão de sermos taxativos, os seguintes fatos: a invenção da imprensa que proporcionou o espraiar das novas idéias; os descobrimentos, que colocaram o homem em contato com outros povos; e o natural desenvolvimento comercial, bem como a teoria de Copérnico, a demonstrar o movimento da Terra em torno do Sol, o qual aquilatamos sua importância e seus efeitos trazendo à baila as palavras de BRECHT, em seu texto intitulado Circo de Massas: A descoberta (...) que aproxima o homem do animal ao afastá-lo dos astros, que manda o homem girar com o seu globo à volta do Sol, o arranca do centro e o atira para o monte dos figurantes (...).82 Destarte, sobretudo a partir do período setecentista, forja-se uma penetrante oposição, contraste com o período histórico antecedente. Para ilustrarmos tal assertiva, trazemos à baila as expressões de P. HAZARD: a hierarquia, a disciplina, a ordem, que a autoridade se encarregara de assegurar, e os dogmas que regulam firmemente a vida, tais são os valores amados pelos homens do século XVII. Constrangimento, autoridade, dogmas, tais são, em contrapartida, os valores rejeitados pelos homens do século XVIII, seus sucessores imediatos. Os primeiros são cristãos, os outros anticristãos; os primeiros vivem à vontade numa sociedade dividida em classes desiguais, os segundos sonham apenas com a igualdade; os primeiros crêem no direito divino, os segundos no direito natural.83 Sem embargo, duas características marcantes identificaram o Apud Paul Hazard, op. Cit. p. 40. Brecht – Selecção de Poesias, Textos e Teatro, 2ª ed. Lisboa: Edições Dinossauro, 1998, p. 57. 83 apud Antonio Manuel Hespanha. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime – colectânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 253. Parece-nos que o citado autor refere-se, em sua última 81 82 34 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado período medievo: o domínio da consciência humana por uma revelação divina e a percepção cristão-ocidental de constituir, sobretudo, uma unidade religiosa, que também política, mas que tinha por seu fundamento a religião.84 Igualmente, há o fenômeno, no sentido de algo manifestado à consciência, da secularização. Aquando da sua primeira utilização, significava expropriação de bens e domínios eclesiásticos.85 Na verdade, estávamos frente ao surgimento do poder civil, entendido pela sua autonomia de ação e, igualmente, a um homem compreendido autonomamente. Um homem achando-se autor da história, responsável por ele mesmo, pensando por si próprio, almejando uma razão humana de caráter universal. Sem embargo, através do processo da secularização, o mundo passa a integrar a esfera da compreensão racional do ser humano. A religião e também a Igreja deixam, como fundamento, de ser elementos que projetam a sociedade.86 O mundo pertence a uma esfera de projeção racional da compreensão humana. Temos, agora, um homem responsável por si próprio, pelo seu destino, reconhecendo e descobrindo sua autonomia, e sendo sujeito da sua própria existência. Um ser humano com espírito crítico e emancipado. Os valores componentes do mundo humano deixam de ser vistos como projeção de uma expressão de vontade suprema, oriunda de uma divindade, e passam a ser de responsabilidade do próprio homem. Por distinção, quando fala em «direito natural», ao direito natural moderno, ou seja, àquele que tem como fundamento último a razão, ao jusracionalismo. 84 Nesse sentido, ver Guido Fassò. Storia della Filosofia del Diritto – l´età moderna. 2º volume. Roma: Laterza, 2001, p. 05. 85 Cfe. Baptista Pereira, op. cit., p. 39. 86 Até então, lembramos, a verdade era que a ordem, o poder fundava-se na religião, enquanto que, na cultura secularizada, como fundamento, a antropologia substitui a Religião. Outrossim, a secularização vincula-se ao conceito de soberania e razão-de-Estado e à reforma protestante, que levaram à separação entre Direito e Teologia, segundo o magistério de Celso Lafer. A Reconstrução dos Direitos Humanos. 3a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 1999, p. 38) 35 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado certo, o homem distanciou-se de Deus – pois se Deus é transcendente ao homem, a história é, postuladamente, da responsabilidade deste último.87 O poder e sua vontade constituem uma prerrogativa individual. A até então organização hierárquica estabelecida na sociedade feudal como algo natural é abandonada pelo homem, que promove e implementa uma nova ordem em nome do indivíduo. De fato, a concepção da emancipação do homem amplia e estende suas conseqüências até momentos posteriores. Nessa linha, registramos: o pensamento e a acção dos séculos XIX e XX são governados pela ideia de emancipação da humanidade. (...). O progresso das ciências, das técnicas, das artes e das liberdades políticas emancipará a humanidade inteira da ignorância, da pobreza, da incultura, do despotismo, e não fará apenas homens felizes, mas, nomeadamente graças à Escola, cidadãos esclarecidos, senhores do seu próprio destino.88 Pois tal é o momento do jusracionalismo, em que o jurídico, assim como o político e também a moral, apresentam uma redução ao método das ciências demonstrativas. Houve a preconização de um direito eterno e imutável, tendo como pilar a razão humana, válido para todos e em todas as épocas. Delineia-se um conhecimento jurídico consoante um novo ideário ético, qual seja o de uma sociedade construída e organizada de acordo com a razão universal e válida para todos e em todos os tempos e lugares. Encontra-se, pontualmente, uma clara distinção com a compreensão que se tinha a respeito do direito na Idade Média, onde o direito assentava e emanava de uma vontade deificada, divina. Por conseguinte, a idéia primeira e nuclear do direito natural repousava na idéia de Deus. Impende acentuar que o direito natural moderno instrumentalizou o Direito Positivo. A lei natural brotava da razão e Segundo Fernando Bronze, Apontamentos Sumários de Introdução ao Direito. Coimbra, 1997, p. 311.Todavia, convém lembrar a observação feita por Hannah Arendt, ao afirmar que a emancipação e a secularização apresenta um desvio, não necessariamente de Deus, senão de um Deus que era o Pai dos homens no céu. La Condición Humana, 3ª reimpressão. Barcelona: Paidós, 1998, p. 14. 88 Jean-François Lyotard, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, 3ª ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999. p. 101. 87 36 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado iluminava as leis emanadas da autoridade civil. De fato, registramos que natural significava racional, e sobretudo não-sobrenatural; e o chamado a natureza era em realidade um chamado à consciência crítica do homem (...), da razão humana, a medida de toda a verdade em todos os campos.89 Uma razão subjetiva e crítica, assim como um racionalismo humanista e antropocêntrico. A concepção racionalista, na esteira dos ensinamentos de NORBERTO BOBBIO, pode ser caracterizada por estas duas asserções fundamentais: • o mundo é um sistema ordenado regido por leis universais e necessárias • o homem é um ser racional, ou seja, dotado de uma faculdade que lhe permite compreender aquelas leis Centrado nessas assertivas, prossegue o mencionado autor: A ciência, em definitivo, consiste no descobrimento e formulação de leis que estão já na natureza e que como tais são imutáveis e necessárias; em conseqüência os resultados obtidos, suas verdades, têm caráter de definitivo.90 Assim, desde logo, temos uma razão referente ao sujeito, crítica, e um racionalismo com raízes humanistas e antropocêntricas. Salientando outra característica geral, surge, nesse período, a concepção individualista e liberal tanto do Estado quanto do direito. O direito natural apresenta como sustentáculo direitos originários do indivíduo, nascidos antes mesmo de qualquer vinculação social ou civil. A idéia que se passa a ter do Estado impõe, como reivindicação, a liberdade do indivíduo. Em conformidade com CABRAL DE MONCADA, arrolamos duas causas dessas transformações: ideológicas e políticas. Como ideológica assinala-se um certo espírito individualista, vicejante desde o Renascimento e o período barroco, animado pelas guerras religiosas desenvolvidas nos séculos XVI e XVII. Como causa política, apresenta a 89 90 Guido Fassò. op. cit. p.. 194. apud Manuel Segura. La Racionalidad Jurídica. Madrid: Tecnos, 1998. p. 35. 37 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado Revolução Inglesa de 1688, bem como o sentimento de liberdade de consciência, reclamada pelos dissidentes calvinistas franceses, e sobretudo ingleses, depois das lutas religiosas dos séculos XVI e XVII.91 Por via de conseqüência, o individualismo consolidou-se como a condição sociopolítica da proclamada liberdade moderna. E esse individualismo distingue, sobremaneira, o homem moderno do homem pré-moderno. Voltando nossas reflexões à razão, tão caracterizadora do momento, releva observar que passou a ser a derradeira instância mobilizada pelo homem, sendo força motora de suas ações. A razão iluminista seria aquela instância que albergaria as verdades eternas, livre da sujeição das verdades postas pela revelação teológica, sendo restringida à experiência. Distingue-se, dentre toda a variável gama de possibilidades dos princípios fundamentais e indiscutíveis das religiões, das crenças morais, um termo não sujeito a mudanças, que, em sua unidade e consistência, afirmam a própria essência da razão. Conforme ERNEST CASSIRER, encontramos que a razão do século XVIII perde a característica de ser uma idéia inata e, por via de conseqüência, anterior a experiência, podendo ser mais bem compreendida se pensada como uma maneira de aquisição – e não propriamente uma posse. Dessarte, torna-se o poder original e primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade.92 Essa razão, genuína e intensamente potencializada no campo das ciências naturais, contudo, foi trazida para o pensamento jurídicopolítico. É, portanto, um racionalismo originário do modelo utilizado pelas ciências naturais. Isso posto, salientamos a construção de sistemas racionais e logicamente coerentes, estruturados em cadeias meramente dedutivas. A raiz dessa origem, baseada na referida ciência natural, trouxe relevantes conseqüências e influências para o pensamento jurídico.93 Com efeito, o Luis Cabral de Moncada. Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra: Coimbra, 1995,p. 202 e 203. A Filosofia do Iluminismo. 3ª ed. trad. Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1997.p. 32. 93 A corroborar nossa afirmação, registramos: Séduits par les premiers succés des sciences physiques et éblouis par la perfection des raisonnements logiques et mathematiques, les hommes (...) poursuivent activement le projet 91 92 38 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado mesmo pensamento demonstrativo utilizado para as ciências naturais foi transposto para o universo jurídico. A ciência jurídica integrou-se ao universo das matérias alheias à experiência, vinculando-se àquelas dependentes de definições. O direito não dependeria dos fatos, mas de provas e demonstrações racionais. Acreditava-se que, permeado por postulados últimos da razão, fosse possível edificar sistemas prontos, acabados, para qualquer campo do saber humano. Nesse aspecto, reside outra significativa distinção posta pelo projeto iluminista com a maneira de pensar anterior. Exsurge um sistema jurídico marcadamente axiomático, racional, pleno. E o modo invocado pelo pensar estrutura-se em um silogismo formal, onde a lei passa a ser a premissa maior, o fato a premissa menor, alcançando-se, dedutivamente, a sentença. É o processo de aplicação subsuntiva da lei a imperar e coordenar o raciocínio jurídico, acarretando um racionalismo divorciado completamente das questões práticas.94 Criava-se, prévia e especulativamente, um sistema para, em um segundo momento, ser aplicado na resolução dos concretos casos que emergiam da vida quotidiana. Sem embargo, o homem moderno-iluminista impunha sua liberdade racional implementando seus interesses. Por certo que haveria interesses divergentes e antagônicos entre si, tornando-se necessário o estabelecer de uma certa ordem. O paradigma vislumbrado para estremar uma sociedade calcada no indivíduo deveria respeitar e afirmar a liberdade e a igualdade dos indivíduos, determinando-se pela vontade dos próprios indivíduos componentes da sociedade. Então, sobressai o modelo contratualista. Importa ressaltar essa nuança do período iluminista para de construire une science naturelle du droit, qui atteindrait à un degré de certitude égal, et peut-être même supérieur, à celui des mathématiques. Benoit Frydman e Guy Haarscher. Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1998, 41. 94 Por todo o visto e ponderado, adotamos as seguintes palavras: Le casus n’est plus le point de départ de toute discussion, mais au contraire le point d’arrivée d’une longue chaine de syllogismes Qui conduit successivement de la simple raison au droit naturel, de celui-ci aux lois positives générales, et enfin de ces derniéres à leurs applications particulières, conforme e Benoit Frydman e Guy Haarscher, op. cit. p. 44. 39 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado chegarmos a idéia conformadora da lei da época, e, igualmente, a compreensão acerca do direito. Pois, somente será considerado direito aquele que for determinado pelo contrato social. Conseqüentemente, o direito encarregar-se-ia de harmonizar as liberdades de todos e de cada indivíduo. E às leis caberia o papel definidor das regras de convivência dos elementos integrantes desta nova sociedade. Delineada por esse contorno, a lei visava tão-somente a compatibilização dos mais variados interesses daqueles atores sociais. Eram, portanto, regras formais, abstratas e gerais, não definindo o conteúdo das liberdades individuais, nem fazendo referências materialmente éticas.95 O racionalismo iluminista enxergava no indivíduo um elemento destinado a compor e operacionalizar uma estrutura maior, qual seja a sociedade. E, para efetivar o adequado funcionamento da estrutura social, faz-se necessário o posicionamento correto de cada indivíduo. Assim, encontramos JOSÉ VIRÍSSIMO ALVARES DA SILVA a pronunciar-se: a sociedade he uma máquina complicada, que trabalha com tantas moles quantos são os indivíduos de que se compõem, e, prosseguindo, mais precisa huma razão iluminada que saiba guiar tudo a seus justos fins.96 Nessa direção, surge a legislação como sendo uma obra que sintetiza toda a sabedoria para o ofício de governar. Partindo-se desses enunciados, decerto que duas questões se nos aparecem, a saber: o que é esta razão iluminada a guiar tudo a seus justos fins e qual o elemento volitivo a ordenar a legislação? 95 Para uma melhor e mais precisa definição conceitual do que sejam regras gerais, abstratas e formais, consignamos: a expressão geral relaciona-se ao fato da lei ser igual para todos, uma vez não mais existir a anterior diferenciação social entre nobres e plebeus, mas sim a existência de cidadãos; são abstratas as leis porque só na abstracção é que pode haver dedução. Na verdade, só abstraindo do individual, do singular, do particular, é que pode pretender-se que a lei se aplique do mesmo modo a todos, conforme leciona Fernando Bronze, op. cit. p. 324. Enquanto que a dimensão formal caracteriza-se pela despreocupação do conteúdo material da própria lei, que somente determinava as regras do jogo e estabelecia a esfera de cada indivíduo em relação aos demais. Dentro dessa fronteira de atuação conformada pela lei, o indivíduo, dono de sua liberdade, pode administrar, dirigir seus interesses. 96 apud Nuno Gomes da Silva, História do Direito Português, 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.p. 340. 40 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado Para encontrarmos a resposta, convém ter em nosso horizonte que esta é a época do despotismo esclarecido,97 do déspota iluminado. Nela, o ente estatal é concebido como um corpo invocado e mobilizado para a realização e o espraiar das regras que alcancem a felicidade dos povos. Nesse sentido, anotamos: a ética racionalista (...) concebia a função do soberano como um serviço técnico prestado ao Estado, tendo-se tornado conscientemente num instrumento coadjuvante nesse sentido, instrumento que – com o enorme poder do monarca, embora muitas vezes contra a resistência do povo, dos estados e das igrejas – impôs mesmo aos juristas os seus novos padrões axiológicos.98 Com efeito, a autoridade e a razão convergem para a figura do déspota esclarecido, a atuar diretamente na reforma da sociedade setecentista. E, quanto aos aspectos jurígenos do Iluminismo, identificamos duas posturas: uma referente ao direito natural, e de cunho racionalista; e outra, de caráter voluntarista, referindo-se ao direito positivo. As duas posturas complementam-se e, justapondo-as, forja-se uma síntese do direito: o dimanar, o derivar de uma expressão de vontade, posta em função de uma razão. 9 - CÓDIGOS JUSRACIONALISTAS O fenômeno das codificações constituiu-se numa verdadeira revolução do pensamento jurídico. Suas conseqüências foram sentidas para muito depois de seu início. Inevitável nos parece a referência ao ano de 1804, o ano do Código Civil Napoleônico. Contudo, salientamos que, antes mesmo dessa data, já haviam sido elaborados alguns códigos, como o prussiano, por exemplo. O processo de codificação que ocupou o território europeu refletiu e expressou notadamente o espírito racionalizante da época, representando claramente o produto do que anteriormente mencionamos: 97 Apenas com o intuito ilustrativo, elencamos alguns nomes que se encontram presentes no momento do despotismo esclarecido: LUÍS XIV e LUÍS XV, na França, FREDERICO II da Prússia, JOSÉ II e LEOPOLDO II, representantes da monarquia austríaca, CATARINA II, na Rússia e em Portugal, D .JOSÉ e D. MARIA I. 98 Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno, 2ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.p. 367. 41 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado a simbiose entre o poder e a razão promovido pelo despotismo esclarecido. Buscava-se, por meio das codificações, a construção de um sistema completo, um corpo de leis perfeitas. Baseado em tais postulados, chegase a outro, preocupado tão-só com aspectos formais: a submissão do intérprete à lei, registrando que esse postulado preocupava-se tão-só com aspectos formais. As codificações notabilizaram-se como o espelho de uma cultura superior, evoluída, não só pelo estilo utilizado, mas, igualmente, se pensado pelo prisma do conteúdo. Ademais, representava um projeto de edificação, organização do Estado. Os códigos da época – e descortina-se em nossa visão especialmente o da Prússia – denotam os preceitos caracterizadores do Iluminismo. A cega fé numa razão, instalada no homem, possibilitaria a existência de um direito totalmente justo e, portanto, conduziria o legislador a elaboração de regras que norteariam plenamente a sociedade, disciplinando, todas as situações possíveis. Importa ressaltar um efeito que transparece da crença jusracionalista: uma certa dificuldade imposta a um potencial avanço natural que um código pode ter, e que, muitas vezes, seu próprio autor desconhece.99 Outrossim, no período do direito natural estremado pela razão, a par da independência e da autonomia do legislador, desvela-se uma certa descrença frente à jurisprudência. E valemo-nos da expressão certa descrença não gratuitamente, pois alguns códigos admitiam a sua não-plenitude, com a conseqüente possibilidade de uma integração – precisamente uma heterointegração. O campo, a esfera para a manutenção, mesmo que um tanto mais restrita, da jurisprudência, da atividade judicial, permanecia. Nada obstante a importância dos códigos precedentes, direcionamos o foco de nossas apreciações ao Código Civil Francês de Precisamente esse entendimento encontra-se em Franz Wieacker, História do direito privado moderno...., pág. 379. 99 42 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado 1804. Originariamente, a promulgação desse código encontra suas raízes no umbral do período revolucionário. Destacam-se, de plano, duas idéias nucleares: a de uma nação una e indivisível e a imposição da substituição do particularismo do período feudal por um direito geral do povo francês fundado na razão. Essencialmente, salvo melhor juízo, a codificação francesa distingue-se das demais por não ser fruto daquele ethos racionalista – a prever como sendo função do soberano prestar um ofício técnico ao Estado –, fruto do despotismo esclarecido, mas por ter arrimos claramente iluminados por luzes acendidas pelo farol do movimento revolucionário e pela exponencial importância napoleônica.100 Contudo, o cariz revolucionário em nada afasta a indigitada obra – o Code Civil – da crença jusracionalista na lei escrita. Ao contrário, na esteira dos ensinamentos de MANUEL CALVO GARCÍA, consignamos: en este punto, para ser justos (y también precisos), quizá haya de reconocerse que el exponente máximo de esa fe absoluta en la letra escrita se encuentra en la Revolución francesa y no en la codificación propiamente dicha. (...). La Revolución francesa nace vinculada y proyecta sobre la realidad una auténtica fe en la letra escrita.101 De fato, o que destacamos nesse parágrafo é, estrutural e espiritualmente, um código que se encontra colorido pelas fortes tintas da participação dos cidadãos e da então nova soberania popular conquistada. 100 Outro traço, não menos importante, de distinção entre os códigos não-revolucionários – como os bávaros e o austríaco, por exemplo – e codificação francesa, diz respeito a admissão às lacunas jurídicas, implicando um corte radical com a tradição anterior. Assim: é certo que os códigos de Setecentos, ou moderno-iluministas não revolucionários (...) estavam longe, não obstante seu jusnaturalismo, de uma total ruptura com a tradição histórica, nem deixavam de admitir expressamente a sua incompletude, ao reconhecerem-se com lacunas(...). Outro tanto não acontecia com o Code Civil (...). Que tanto é dizer: um código que recusava a história e que, na sua axiomática racionalidade, se bastaria a si próprio. António Castanheira Neves, Digesta, 2º vol. Coimbra, 1995, p. 182. 101 Para reforçar a idéia, o referido autor assevera que o fato de plasmar por escrito los derechos con el fin de hacerlos reales y efectivos es una de las razones fundamentales del constitucionalismo, de la misma forma que el plasmar por escrito un orden político tiene bastante que ver con la creencia de que ello promueve su consolidación. Los Fundamentos del Método Jurídico: una revisión crítica, Madrid: Tecnos, 1994. p. 69. Aqui, para se evitar um equívoco juscoparatístico, há de se anotar que essa afirmação não traduz qualquer lei universal, pois há países que não apresentam a tradição de uma constituição escrita e, nem por isso, deixam de ter seus direitos fortemente consolidados. 43 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado De outra caracterizadores metodologia do banda, direito jurídica. impende codificado Assim, fruto salientar que influenciaram das os fatores sobremaneira profundas a transformações sociopolíticas da época – nomeadamente as ocorridas no século XVIII –, o mobilizar de uma racionalidade formal, tanto na criação do direito quanto em sua aplicação, vincula-se, então, ao princípio da igualdade, que consagra este novo Estado emergente. Decerto, a isonomia pensada na época restringir-se-ia a um escopo meramente formal, isto é, de uma mera igualdade formal perante a lei. Caracteriza-se o plano formal por dimensionar todos os cidadãos como submetidos aos mesmos procedimentos e órgãos jurisdicionais; as leis são postas para um sujeito em abstrato, não existindo uma particularização no que concerne ao destinatário da norma jurídica. Deste modo, todas as pessoas colocam-se como receptores das mesmas normas, merecendo e devendo, então, receber o mesmo tratamento também na aplicação da lei. Para tal exigência de contingências, igualdade as ser questões implementada, mister pontuais cada que se caso superar as porventura apresentasse, buscando-se um método garantidor de uma certeza e segurança na aplicação da lei. A lei a ser codificada deveria, para tanto, além de escrita, ser clara, de tal maneira a dispensar a interpretação do juiz, objetivando a figura de um juiz autômato. É o postulado da abstração e generalidade tendo seu início. E o Código, com sua pretensa plenitude oriunda de uma razão universal e absoluta, consolida o direito como a ciência do direito escrito, afastando-se de uma dimensão criadora e assumindo como seu objeto único o direito positivo. 10 - CONCLUSÃO Em sede de últimas palavras, acentuamos a compreensão do direito privado tendo por núcleo os aspectos existenciais do ser humano. Assim, percorremos algumas caracterizações acerca da ética e da sua ineludível relação com o direito. Nesse aspecto, cimentamos um entendimento segundo o qual os fundamentos do direito repousam em 44 Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS. A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado princípios de natureza ética – válidos independente do reconhecimento do legislador –, revelando a intencionalidade prática que o direito assimila e quer projetar em nossa vida comunitária. Ao fim e ao cabo, postulamos o descortinar, no horizonte da prática e do pensamento jurídicos, uma ordem normativa que racionalmente se constitua pela opção da pessoa. E que, observando-se as exigências axiológicas do caso concreto, o direito seja o porto seguro a amparar e proteger o ser humano, cumprindo com as exigências apresentadas por um Estado democrático de direito. BIBLIOGRAFIA AMARAL, Francisco. 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