O desafio das novas antropologias. Entrevista com

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O desafio das novas antropologias.
Entrevista com Wolfhart Pannenberg
Na Alemanha, foi reeditada em segunda edição a obra Antropologia em perspectiva teológica (Göttingen, 1983;
2ª edição, 2011) de Wolfhart Pannenberg (foto). A atual reedição alemã é uma simples reimpressão. A obra de
Pannenberg foi editada naquele tempo na Biblioteca de Teologia Contemporânea (Ed. Queriniana, 1987). A edição
italiana está esgotada. Mas repropomos a entrevista feita com Pannenberg por ocasião da edição em italiano e
publicada na revista Il Regno – Attualità de junho de 1987.
O texto é do teólogo italiano Rosino Gibellini, publicado no sítio Teologi@Internet, 01-06-2012. A tradução é de
Moisés Sbardelotto.
A antropologia de Pannenberg parte da categoria de "abertura ao mundo", introduzida por Scheler e utilizada pela
recente antropologia comportamentalista de Portmann e de Gehlen. O ser humano, diferentemente do animal, não
está ligado ao ambiente (Umwelt), mas é aberto ao mundo (Weltoffenheit). Mas essa abertura ao mundo, sempre
segundo a análise de Scheler e ao contrário de Gehlen, tem "um aspecto de potencialidade religiosa", que
Pannenberg pretende desenvolver justamente.
A abertura ao mundo referência para além do mundo, referência a um infinito espaço aberto, abertura radical,
referência a um absoluto "defronte" (Gegenüber), ao qual se dá o nome de Deus e do qual as religiões são uma
demonstração histórica. A abertura ao mundo (Weltoffenheit) remete à abertura a Deus (Gottoffenheit): "A abertura
ilimitada ao mundo deriva somente do destinação do ser humano para além do mundo". Algumas linhas da
antropologia pannenberghiana, com base em escritos anteriores à grande “Antropologia”, podem ser encontradas em
Teologia e ragione. Itinerario e opera di Wolfhart Pannenberg (GDT 122, Ed. Queriniana 1980, p.136-147).
Eis a entrevista.
Algumas perguntas sobre a sua vasta obra Antropologia em perspectiva teológica (1983), que retoma um
tema recém-mencionado, embora já bem delineado, nas suas primeiras lições, reunidas depois em um rápido
mas incisivo livro, Che cos'è l'uomo? L'antropologia alla luce della teologia (1962), que se propunha a
"aprofundar teologicamente os atuais estudos antropológicos de natureza diversa em relação aos seus
métodos e resultados". Como se desenvolveu nesses 30 anos a sua reflexão teológica sobre o ser humano?
Desde os tempos da minha docência em Wuppertal (1958-1961), eu me ocupei do problema de que a doutrina cristã
do ser humano deve ser posta em relação com os enunciados das ciências empíricas sobre o ser humano e com as
tentativas filosóficas da sua interpretação integral. São interesses que me acompanharam constantemente a partir de
1962, com particular e crescente atenção às discussões em psicologia, sociologia e ciências da cultura. Além disso,
eu assumi o nexo que liga a antropologia do nosso século (M. Scheler, A. Gehlen) com o pensamento de J. G.
Herder, e que foi destacado principalmente por Gehlen, como fundamento da interpretação teológica do conceito de
"abertura ao mundo" do ser humano, desenvolvido por essa filosofia antropológica.
O nexo histórico com Herder justifica a assunção do conceito de "abertura ao mundo" como fórmula secularizada do
conceito herderiano do ser humano imagem de Deus e permite interpretá-lo, por sua vez, teologicamente, através do
conceito de destinação do ser humano para ser imagem de Deus, realizando assim uma reviravolta que se revela
crítica com relação à secularização desse conceito, que ocorreu na antropologia filosófica.
Esse é um exemplo do modo de proceder, que constantemente segui no meu novo livro: aqui é experimentada a
tentativa de submeter a exame os resultados, aparentemente seculares, alcançados pelas ciências humanas nas
suas pesquisas sobre o ser humano e de perguntar se elas, por causa da sua restrição a uma problemática secular,
não deixam de fora metodicamente as asserções, que são relevantes do ponto de vista religioso, dos fenômenos por
elas analisados. Com isso, é preparada uma base de argumentação, que permite recuperar, no quadro da
interpretação teológica desses mesmos fenômenos, a sua dimensão religiosa, metodicamente reprimida pelas
ciências humanas seculares. A interpretação teológica não deveria ser acrescentada de fora aos fenômenos da
realidade do ser humano, que são objeto de estudo por parte das ciências humanas. Caso contrário, ela teria apenas
um significado subjetivo e se tornaria objetivamente irrelevante.
O meu novo livro propõe a reivindicação de que somente uma concepção da realidade humana que inclua também a
dimensão religiosa da vida humana está à altura da humanidade do ser humano. Se o tema religião se torna um
tema conexo à natureza do ser humano, então ele não pode ser reprimido, assim como não se pode reprimir a
sexualidade, sem provocar com isso graves consequências, capazes de ferir e de prejudicar a realidade da vida
humana.
Na introdução a Antropologia, o senhor descreve a relação entre teologia e antropologia, mostrando como o
pensamento moderno, abandonando a postura da dogmática e da metafísica, realizou uma "concentração
antropológica", que se impõe também à reflexão teológica. A concentração antropológica, que se verifica na
filosofia e na cultura moderna, requer uma correspondente concentração antropológica também na teologia.
Qual é o porte dessa "concentração antropológica" na teologia e quais são os seus limites?
A concentração sobre a antropologia, que se tornou a característica da modernidade em todas as discussões sobre a
realidade de Deus e sobre o tema da religião, e portanto, também na fundação da teologia, refere-se apenas à
abordagem metódica. Quando eu falo de uma função teológico-fundamental da antropologia, isso não significa que a
antropologia seja o fundamento último da teologia. Ao contrário, este só Deus pode ser.
Na antropologia, são tomadas apenas decisões prévias, principalmente no debate com o ateísmo. Se tivéssemos
que provar verdadeiramente que o ser humano não precisa, por natureza, da religião, mas que criou apenas
representações religiosas, e precisamente como expressão de uma falsa compreensão de si mesmo (como no
primeiro Feuerbach), ou como expressão de uma desorientação neurótica (como em Freud), então seria muito difícil
justificar como racional o discurso de Deus.
Por outro lado, a prova de que a consciência é ineliminável da natureza do ser humano não representa ainda uma
prova teórica da existência de Deus. A afirmação da realidade de Deus pode ser validada apenas no contexto da
reivindicação da verdade proposta pelas religiões e pela prova que elas são capazes de exibir dela. Mas é certo que
o significado constitutivo do tema da religião para a vida humana é um pressuposto dela.
A sua Antropologia se articula em três partes: "O ser humano na natureza", "O ser humano na sociedade",
"O ser humano na história", e entra em discussão crítica com as novas antropologias (biológicas,
sociológicas e históricas) na tentativa de fazer emergir a dimensão teológica das análises setoriais das
antropologias extrateológicas, que foram se constituindo autonomamente sem nenhuma referência à
teologia. Qual é o desafio das novas antropologias? E qual é a contribuição que a teologia pode dar?
Eu vejo o desafio fundamental das modernas antropologias, da forma como elas se encontram com a teologia na
forma filosófica ou nas ciências humanas, no fato de que, nelas, a dimensão religiosa da vida humana ou é
completamente reprimida ou é tratada apenas de modo marginal. Isso é compreensível, já que as ciências humanas,
no contexto da cultura secular, nasceram da separação entre teologia e metafísica.
No entanto, é possível provar a repressão ocorrida sobre o significado fundamental da religião para o ser humano
nos fenômenos individuais que são objeto de estudo por parte das ciências humanas, e precisamente a essa prova
estão voltadas as pesquisas do meu livro nos diversos âmbitos da antropologia. Através de uma reapropriação crítica
das pesquisas das ciências humanas, que envolva uma restituição da dimensão religiosa reprimida, é novamente
possibilitada uma concretização dos enunciados fundamentais da antropologia teológica para os atuais
conhecimentos sobre o ser humano. Nisso, eu vejo a contribuição positiva tanto das ciências humanas, como
também da antropologia filosófica para a teologia.
Como se caracterizam e como se distinguem, a seu ver, a postura da teologia evangélica e da teologia
católica com relação ao tema da antropologia?
Do ponto de vista histórico, certamente há acentuações especificamente evangélicas na antropologia teológica, em
particular uma ênfase que se situa na linha da tradição do agostinianismo, do pecado original e das suas
consequências no que concerne à limitação da liberdade humana, assim como a identificação entre imagem de Deus
e comunhão atual com Deus, em contraposição à distinção escolástica entre imago, que pertence à natureza
humana, e similitudo sobrenatural. Mas duvido que essas distinções históricas ainda conservem um significado
relevante de atualidade.
Os desafios da cultura secular, da moderna antropologia que ela expressa e do ateísmo que fundamenta uma
compreensão do ser humano puramente secular, são desafios que, em igual medida, concernem às diversas
confissões cristãs e com relação às quais está em jogo uma nova formulação da imagem cristã do ser humano, que
continua sendo comum às diversas confissões, e não, portanto, esta ou aquela perspectiva confessional. As diversas
tradições religiosas confessionais do cristianismo deveriam ser consideradas pela teologia atual como heranças
comuns, e, assim, tanto na antropologia, quanto em todos os outros temas da teologia deveria se desenvolver uma
perspectiva que sirva e corresponda à unidade, a ser reconstituída no futuro, entre todos os cristãos.
É amplamente conhecida a afirmação de Karl Rahner sobre as relações entre antropologia e cristologia: "A
antropologia é cristologia incompleta. A cristologia é antropologia que transcende a si mesma". Também são
conhecidas as desconfianças de um teólogo como von Balthasar sobre a postura antropológicotranscendental da teologia rahneriana. O senhor mesmo dirige à teologia transcendental de Rahner a
acusação de não levar em consideração a história. Como o senhor marca a relação entre antropologia e
cristologia?
Tenho uma grande simpatia pela estreita relação instituída por Karl Rahner entre antropologia e cristologia. Com
essa operação, é retomado o ponto de vista do apóstolo Paulo, que falou de Jesus Cristo como segundo Adão. É a
perspectiva que já havia encontrado seu desenvolvimento em Santo Irineu: a encarnação deve ser compreendida
em geral como o cumprimento da criação do ser humano. No entanto, eu compartilho as reservas de von Balthasar
com relação a uma concepção da antropologia como condição "transcendental" da cristologia e da teologia em geral.
Com essa doutrina, Rahner teve o grande mérito de tornar familiar à teologia católica a concentração antropológica,
que havia sido desenvolvida pela teologia evangélica do século XIX. Mas a interpretação "kantianizante" da
antropologia como condição "transcendental" dos enunciados teológicos se presta para obscurecer precisamente o
fato de que, na relação entre antropologia e cristologia, está em jogo justamente a história do ser humano. A
natureza humana não é una, atemporal, universal e idêntica, condição daquilo que, de diversos e mutáveis modos,
chega a aparecer na história, mas ela própria tem uma história que está a caminho do primeiro ao segundo Adão.
Ainda no ensaio A questão sobre Deus (1965) e nos artigos reunidos no livro Ideia de Deus e liberdade
humana (1972), o senhor destacava que, se o topos onde, no atual horizonte cultural, se coloca a questão
sobre Deus é certamente o questão do ser humano, porém, o topos onde surge a questão não pode
condicionar a implantação de toda a teologia, que, caso contrário, acabaria sendo weltlos, sem-mundo, e,
definitivamente, unwirklich, desrealizada, sem realidade. É uma temática que o senhor abordou em diálogo
com homens de ciência, especialmente nas Considerações sobre uma teologia da natureza (1970). O tema da
natureza se impõe, hoje, com mais urgência e com modalidades novas por causa da afirmação do discurso
ecológico, ao qual o senhor dedica algumas páginas na primeira parte de Antropologia. Como o senhor vê a
relação entre a reflexão sobre o ser humano e a reflexão sobre a natureza?
Quem fala de um só Deus fala explícita e implicitamente da realidade que determina tudo, e não apenas do ser
humano. Mesmo para o próprio ser humano, Deus não poderia ser a realidade que tudo determina, se não fosse
também o senhor da natureza. Além disso, mesmo na época tecnológica, a vida do próprio ser humano ainda
depende, em grande medida, das condições naturais. Mesmo que, na modernidade, a antropologia tenha se tornado
o ponto de partida das questões sobre Deus, Deus pode ser pensado como Deus apenas sob a condição de que
Deus, isto é, a realidade que tudo determina, seja pensado como aquele que cria e dá cumprimento ao mundo da
natureza com a inclusão do ser humano.
Certamente, a problemática ecológica, especialmente sob o perfil ético, é urgente, mas, para uma doutrina teológica
da criação, são fundamentais, em primeiro lugar, a física, a cosmologia física, a biologia teórica e a doutrina da
evolução. Embora as condições de diálogo com as ciências da natureza sejam melhores hoje para a teologia do que
há 100 anos atrás, ainda estamos bem longe de termos descrito, mesmo que apenas de modo adequado, as tarefas
que aqui incumbem.
Uma crítica inclusão da imagem do mundo, própria das ciências da natureza, na teologia da criação é impossível
sem a ajuda da filosofia, mas, mesmo na filosofia, a filosofia da natureza pertence aos âmbitos menos elaborados.
Isso poderia ser uma consequência da decadência da metafísica. A teologia deve ter um interesse pela renovação da
metafísica, mesmo que apenas no interesse de uma nova plausibilidade da doutrina cristã do mundo como criação.
A crise atual da ideia cristã de Deus depende, não por último, do fato de que hoje não temos nenhuma imagem clara
da relação entre Deus e mundo. A doutrina cristã de Deus como criador torna-se, então, muito facilmente, uma
fórmula vazia, que certamente tem o selo da tradição, mas que não é mais claramente atribuível à compreensão da
realidade do mundo, que a ciência moderna nos mediou e nos tornou óbvia. Trata-se de tarefas que vão além do
âmbito da antropologia.
Para os problemas éticos, ao contrário, no campo da ecologia, dispomos de uma fundamentação antropológica na
doutrina cristã, segundo a qual o ser humano como imagem de Deus é destinado a ser o representante da
autoridade e do senhorio do Criador do mundo. A vocação ao domínio não significa que o ser humano pode exercêla à vontade. Isso é simplesmente a perversão da tarefa atribuída por Deus ao ser humano, que foi operado pelo
secularismo da cultura moderna. Desse modo, o ser humano moderno fracassou no seu encargo para o senhorio
sobre o mundo como representante da vontade criadora de Deus, justamente por não ter sabido conservar a criação,
assim como corresponde à vontade do seu Criador. A uma compreensão cristã do encargo, confiado ao homem, de
domínio sobre o mundo da natureza, pertence também a responsabilidade pela manutenção e pelo cuidado da
criação.
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