Fortaleza 2011 - Miguel Vale de Almeida

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VIII semana de humanidades UFC/UECE e II Encontro de Pesquisa e Pós-Graduação em Humanidades.
Humanidades: entre fixos e fluxos
Fortaleza, 5 maio 2011
“Como foi possível num país católico?”
Cidadania sexual e diversidade cultural.
O caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal
Miguel VALE DE ALMEIDA
ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa e
CRIA – Centro em rede de Investigação em Antropologia
[email protected]
Em 2005 a Espanha juntou-se ao clube exclusivo de países que
passaram a garantir a igualdade no acesso ao casamento civil para
casais de pessoas do mesmo sexo. Depois do meu trabalho de campo
em Espanha nesse ano, durante o qual segui o debate público sobre o
assunto antes da aprovação da lei, colegas, amigos e jornalistas faziamme sempre a mesma pergunta: “Mas como é que isso pode ter
acontecido num país católico como a Espanha? Como explicas isso?”.
Cinco anos depois, o mesmo aconteceu em Portugal, com a aprovação
de avanço legislativo idêntico no dia 8 de Janeiro de 2010. E a mesma
pergunta repetiu-se. Algumas capas de jornais estrangeiros faziam
mesmo disso a principal questão: “Catholic Portugal approves gay
marriage”. Enquanto cidadão da República Portuguesa, originário da
classe média da capital, académico e ativista político, tal descritor –
“Catholic Portugal” – nunca me ocorre como evidente ou prioritário.
Questionar a parangona daquele jornal e aquela pergunta recorrente
implica também questionar a minha percepção, digamos, não
religiosocêntrica, do país onde vivo.
1
As questões que me ocorrem como contra-perguntas são deste tipo: “o
que querem dizer com “católico”?; “que pré-conceitos estão implícitos
na pergunta?”; “em vez de católico poderiam ter dito mediterrânico, da
Europa do sul?”, etc.? A pergunta e o espanto sobre o país revelam um
posicionamento específico: o de membros de países do Norte da
Europa e/ou predominantemente protestantes e/ou no topo das
escalas de desenvolvimento económico. Em suma, de contextos
habituados
a
sistemas
de
classificação
“evolucionistas”
que
tipicamente focam a atenção em certos traços culturais ou
institucionais enquanto metonímias e condensadores de uma
explicação generalizadora da diferença social e cultural – ética
protestante versus catolicismo, pudor europeu versus sensualidade
tropical,
virilidade
ocidental
versus
emasculação
oriental,
racionalidade do norte versus irracionalidade do sul.... Precisamos de
desempacotar esses pré-conceitos, submetê-los a escrutínio e de modo
a fazê-lo devemos microanalisar as permanências e os movimentos das
sociedades como complexos e contraditórios – fixos e fluxos. Não se
trata apenas (mas trata-se também) de verificar factos, como no caso
de nem a Espanha nem Portugal serem “já” países “Católicos”, se com
isso queremos dizer países sem separação entre Estado e Igrejas, com
ensino religioso obrigatório nas escolas, com altas taxas de frequência
dos cultos ou obediência aos éditos das hierarquias religiosas nos
valores e práticas. Ambos os países passaram por processos de
massiva descristianização e viram emergir formas privadas e pessoais
de crença, desconexões entre mandamentos das igrejas, hierarquias,
rituais, textos, frequência dos cultos e auto-identificação. Mais: em
ambos os casos as sociedades têm vivido clivagens políticas e sociais
2
baseadas justamente na oposição entre integrismo católico com o
apoio do Estado, por um lado, e anticlericalismo e laicismo
racionalistas, por outro. Que outra coisa se não isso foi a guerra civil
espanhola? Ou a nacionalização dos bens da igreja no Portugal liberal
do século XIX?
Devemos também inquirir sobre os significados que são explicitados
pelas práticas das pessoas: ser católico será uma coisa para alguém que
se coloca questões como as referidas, e outra bem diferente para
outros espanhóis ou portugueses “comuns”, complicando-se o quadro
se considerarmos variáveis como a classe, o género, a região, a idade, a
sexualidade, ou vários tipos de capital simbólico. O género e a
sexualidade estão no centro e na frente da mudança social e das
reações contra ela. As mudanças, desafios, inovações, ou preocupações
sobre o género e a sexualidade retiram a sua incrível força do facto de
serem uma dobradiça entre, por um lado, o self incorporado e
senciente e, por outro, a regulação e a governança social e política. A
subjetividade não se constitui apenas nas relações intersubjetivas, em
si mesmas sexualizadas e gendrificadas; ela constitui-se também
através de mecanismos de controlo, regulação e incitamento ativados
pelo conhecimento e pelo poder. Sabemo-lo das já clássicas
contribuições da teoria feminista e de Foucault. Também sabemos,
desde uma perspetiva mais antropológica e sociológica, que o género e
a sexualidade são os elementos nucleares da constituição de
instituições sociais e culturais centrais, como o parentesco e a família.
A aura do género e da sexualidade deriva da construção da sua suposta
naturalidade, naturalidade essa que foi ou sacralizada (como no
3
“Direito Natural”) ou “epistemizada” – como em “as leis da natureza”.
Quando, na realidade, grande parte do que dizemos sobre a natureza e,
especialmente, grande parte do que dizemos sobre o que a natureza
nos ensina sobre como devemos viver, é largamente o produto ou a
projeção dos nossos modos histórica e culturalmente específicos de
criar pessoas gendrificadas e sexualizadas, instituições gendrificadas e
sexualizadas, relações gendrificadas e sexualizadas, mapas simbólicos
gendrificados e sexualizados para a “colonização” do Mundo. Um
terceiro ponto: será talvez o casamento entre pessoas do mesmo sexo,
mais ainda do que as leis do divórcio, de igualdade entre os géneros, ou
do aborto, que despoleta agora a questão nas sociedades ocidentais
contemporâneas. Nas atuais condições do Ocidente, a sexualidade, e
especificamente a homossexualidade, desafiam as concepções de uma
visão de senso comum do género, da família e da reprodução, bem
como as concepções de uma tradição feminista mais antiga e já mais
estabelecida sobre a igualdade (e a diferença...) de género. Seguindo o
trabalho, já dos anos 70, da antropóloga feminista e lésbica Gayle
Rubin, eu defende que o género é sempre e logo (always already)
sexualidade e que o controlo, a repressão e o incitamento em torno da
orientação sexual são cruciais para as definições das ordens e regimes
de género, parentesco, família e reprodução. Gostaria de suscitar a
vossa curiosidade e interesse nos desenvolvimentos do sistema de
sexo e género (Rubin) português e suas ordens e regimes (Connell) de
género, usando como perspetiva esse aspeto escondido do discurso
sobre Portugal – a homossexualidade. O casamento entre pessoas do
mesmo sexo é aqui usado como ponto focal, chave, dobradiça, que nos
permite ver as dinâmicas e os obstáculos nessa sociedade e cultura tão
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levianamente definida pelos donos mundiais do saber (e não só) como
“Católica”, “Mediterrânica”, “do Sul”, “machista”, “homofóbica”, da
“honra
e
vergonha”,
“menos
desenvolvida”,
“conservadora”,
“hipócrita”, “atrasada” e – como a recente crise financeira atesta, nas
manifestações de explicações racistas inter-nacionais, “preguiçosa”,
“corrupta”, “irresponsável”, “infantil”. Creio, aliás, que um público
brasileiro sabe bem do que falo, consegue empatizar com isso e
projetá-lo em si. Em suma, eu acredito que um processo similar ao que
ocorreu em Espanha está a acontecer em Portugal e que os desejos e
ansiedade em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo – esse
símbolo de igualdade que mexe drasticamente com as percepções da
diferença e da desigualdade de género – revela as transformações na
paisagem sexual e de género que têm ocorrido nas últimas décadas e
que justamente desafiam o sentido e a pertinência da etiqueta
“católico”. Vou ater-me a uma narrativa de eventos na esfera política,
eventos que tiveram a qualidade de dramas políticos e sociais que
condensam e iluminam os termos do debate coletivo.
A revolução de 1974 e a constituição democrática de 1976
preocuparam-se sobretudo com a superação das estruturas e hábitos
totalitários de uma ditadura de 48 anos. A principal preocupação era
com as liberdades cívicas, mas a luta ideológica entre várias
denominações marxistas (lutando entre si), por um lado, e os setores
conservadores (que haviam beneficiado da ditadura e do colonialismo
tardio), por outro, tomou a dianteira nas paixões políticas. Pouco
espaço foi deixado para o que hoje chamaríamos a política da vida
(Giddens) ou a política sexual (Weeks) ou a cidadania sexual
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(Plummer). Todavia, a total igualdade em termos de género foi
alcançada, nomeadamente na legalização do divórcio e na abolição de
leis patriarcais, mas a homossexualidade não foi descriminalizada
antes de 1982, quase 10 anos após a revolução. As paixões políticas
centravam-se esmagadoramente na política de classe. Talvez esteja
também aqui a explicação para o atraso no surgimento de outros tipos
de movimentos sociais, como o feminista ou o ecologista, para não falar
dos antiracistas (que de qualquer modo tiveram de esperar pelo
surgimento das migrações para Portugal nos anos 90) e do LGBT, que
só ganhou expressão real a partir de meados da década de 90. A
natureza efervescente do período revolucionário daria lugar à
“normalização”, ao acesso à União Europeia nos finais da década de 80,
à mobilidade social ascendente, ao desenvolvimento, à cultura do
consumo, etc., completando o ciclo de desruralização, urbanização e
emergência da classe média como grupo social predominante que
vinha paulatinamente acontecendo desde os finais dos anos 60. Podese mesmo especular que se tenha dado uma transição súbita de
estruturas de ancien régime para o capitalismo globalizado pósmoderno, sem a transição típica da Europa do Norte no período pósSegunda Guerra Mundial. A instituição política reorganizou-se em
torno de diferenças subtis entre dois blocos de governação: o PSD e o
PS, ambos todavia elidindo aspectos de política sexual até
recentemente. A ditadura havia estabelecido uma forma específica de
autoritarismo: em vez de um fascismo de vanguarda, com
modernização industrial, promovera valores assentes numa visão
ruralista, de catolicismo mariânico, de família patriarcal, e um tipo de
nacionalismo assente no culto do passado e no colonialismo. Embora
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as leis do período pós-ditatorial tenham garantido a igualdade de
género, dois assuntos constituíram fontes de “ansiedade democrática”:
o aborto e a orientação sexual. O direito de escolha no aborto foi uma
fonte de conflito social e político que dividiu o país nas últimas
décadas.
As propostas no sentido da descriminalização do aborto foram
sistematicamente recusadas pelo arco do poder. Mesmo quando o PS
decidiu finalmente avançar com a alteração legal, o seu dirigente e
primeiro-ministro à época, António Guterres, cedeu a pressões da
direita e do seu próprio catolicismo e o voto favorável no Parlamento
não teve efeito, tendo sido convocado um referendo em 1998, ganho
pelo setor antiescolha, apesar do caráter não vinculativo dos
resultados, por fraca afluência às urnas. Finalmente, um segundo
referendo foi realizado em 2007, também promovido pelo PS mas
agora sob a liderança de José Sócrates; foi válido e a descriminalização
ganhou com uma confortável maioria, sendo hoje possível realizar a
IVG em hospital público e gratuitamente. Esta mudança teve uma
grande importância simbólica: deu conta de mudanças no tecido social
e cultural e abriu claramente o caminho para debates sobre política
sexual.
Em Portugal, a agenda LGBT só havia penetrado segmentos políticos
marginais ao Parlamento ou da extrema-esquerda. No entanto, e a
partir dos finais dos anos 90 e sobretudo no início do século XXI, o
movimento LGBT viu emergir uma dinâmica preocupada com a ação
estratégica, o convencimento social e a articulação com o arco da
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governação. Paulatinamente, não só a extrema-esquerda mas também
o PS passaram a ficar mais atentos ao assunto. Em 2001, e após muito
debate sobre a inclusão ou não dos casais do mesmo sexo, foi aprovada
uma Lei de Uniões de Facto. Embora impedisse os gays e as lésbicas de
adoptarem crianças enquanto casal, foi um pontapé de saída
importante para outras causas, pois estabeleceu a plausibilidade da
igualdade e introduziu a política LGBT na política partidária
mainstream. Os primeiros anos do século foram também anos de
dramatização social de questões de género e sexualidade. Um drama
social significativo foi o chamado caso Casa Pia, um caso de abuso
sexual de menores envolvendo uma instituição estatal de acolhimento
e formas de acusação de figuras públicas e políticas que teve como
consequência a decapitação da liderança do PS da época – além de ter
incentivado, na opinião pública, justaposições entre homossexualidade
e pedofilia. (O caso Casa Pia condicionaria a questão da adoção por
casais do mesmo sexo, talvez um dos assuntos mais fantasmáticos na
discussão sobre o casamento – e certamente em parte por causa do
estatuto cultural menorizado que a própria noção de adoção tem).
Também a violência doméstica começou a ser discutida de forma
visível, graças à ação do movimento das mulheres e ao facto de o
estado ter começado a investir num “feminismo oficial”, com a criação
de agências específicas para a igualdade, em articulação próxima com o
movimento social (e incluindo progressivamente a agenda LGBT nas
suas prerrogativas).
O período terminaria com outro drama social, o assassinato de uma
mulher transexual brasileira no Porto, Gisberta Salce Júnior, por
8
adolescentes de uma outra instituição de acolhimento de menores,
gerida pela igreja e apoiada pelo Estado. Concepções de criança, abuso,
lícito e ilícito sexual – bem como o que é um homem, uma mulher,
um/a homossexual, um/a transexual, etc, e as características de homo
sacer da vítima (toxicodependente, sem-abrigo, prostituta) – tornaramse assuntos de disputa, de discussão popular a política, desafiando um
“contrato social” de silêncio e domesticação e privatização dos
comportamentos e identidades. Este pano de fundo de violência e
mediatização, foi paralelo a fortes mudanças nas estruturas
demográfica, conjugal, familiar e de género. Estagnação populacional,
crescimento das famílias monoparentais e reconstituídas, quebra nos
casamentos religiosos e aumento nos civis, crianças nascidas fora do
casamento, etc, a par e passo com uma das maiores taxas de trabalho
feminino na Europa e maioria feminina nas universidades e em cargos
técnicos e de direcção da administração pública (apesar das
contradições inerentes – duplo trabalho feminino ou desigualdade
salarial– as conexões entre trabalho, poder e cathexis (Connell)
próprias da ordem de género foram desafiadas. Difícil, pois, falar com
rigor de estruturas de género e família conservadoras, patriarcais e de
formatação católica – embora essa pareça ser a percepção de políticos
e observadores estrangeiros, sofredores de um fosso entre percepção e
realidade.
Para o movimento LGBT o momento mais forte após a aprovação das
Uniões de Facto foi a introdução, em 2004, da orientação sexual no
artigo 13º da Constituição (“Princípio da Igualdade”) que define as
categorias segundo as quais ninguém pode ser privilegiado ou
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discriminado. Este gesto lançou receios entre os conservadores face à
possibilidade de a igualdade no acesso ao casamento poder vir a ser
reivindicada com base naquele acrescento. Em 2005, o movimento
LGBT recolheu 7000 assinaturas (o mínimo legal sendo 4000) numa
petição para discussão, no Parlamento, do casamento entre pessoas do
mesmo sexo. O assunto entrou na mídia e na política, sendo o assunto
central da ILGA-Portugal, que assim definiu uma estratégia ganhadora:
um assunto, um assunto simbolicamente chave, com uma estratégia de
negociação política, e não maximalista. Na campanha eleitoral para as
eleições de 2005, José Sócrates (primeiro-ministro desde então) não
incluiu nada relacionado com o assunto, mas os seus adversários à
direita iniciaram o rumor de que ele seria gay e, seguindo essa deixa,
questionaram-no sobre o casamento, questão a que não respondeu
com clareza. O assunto tornar-se-ia num caso mediático de interesse
humano quando duas mulheres tomaram a iniciativa, não articulada
com o movimento social, de pedirem licença de casamento numa
Conservatória do Registo Civil, em 2006. Recusado o seu pedido,
imediatamente os partidos à esquerda do PS anunciaram a
apresentação de projetos-lei sobre o assunto. O caso, aliás, seguiria
com queixa das peticionárias para o Tribunal Constitucional.
Em 2007, deu-se a já referida vitória pró-escolha no segundo referendo
sobre o aborto, criando a percepção de que a igreja católica não
detinha já o poder de hegemonia de outrora e tornando claro que o
próximo assunto de disputa na política sexual seria mesmo o
casamento. Em 2008, os projetos dos partidos à esquerda do PS ainda
seriam chumbados no Parlamento com a ajuda daquele partido. Mas
10
em 2009, José Sócrates anunciaria a igualdade no acesso ao casamento
civil no programa para as eleições de 2009, e a inclusão nas listas de
um independente conhecido pelas suas posições na matéria e gay
assumido. Em 2010 a lei seria aprovada, bem como mais tarde no
mesmo ano a Lei da Identidade de Género, considerada a mais
avançada do mundo por estar de acordo com os critérios de
Yogjakarta.
Talvez seja importante resumir também quais foram os termos do
debate social e político sobre o casamento e a sua evolução. Três
questões se colocaram: a natureza da coisa, o nome da coisa, o âmbito
da coisa. A primeira – a ideia de que o casamento é intrinsecamente
heterossexual – constituiu a posição oficial da igreja católica e dos
setores mais à direita. A segunda – a ideia de que gays e lésbicas
tinham direito a um reconhecimento legal das suas uniões, mas com
um nome diferente do casamento, à semelhança do que acontece no
Reino Unido ou com a PACS francesa – atraiu os liberais de direita e
parte da esquerda moderada. A terceira – sobre se a igualdade no
casamento implicaria também a igualdade na parentalidade –
disseminou-se
por
todos
os
setores,
denotando
os
efeitos
fantasmáticos da problemática das crianças nos tempos de hoje. O
movimento LGBT que propugnou a igualdade no acesso ao casamento
navegou no centro destas questões. A primeira foi habilmente dirimida
como baseada quer na homofobia quer numa visão não laica da
sociedade – os crentes teriam todo o direito a prosseguirem as suas
formas de casamento, mas não poderiam impedir os outros de
acederem ao casamento civil (argumentação semelhante à usada no
11
segundo referendo sobre o aborto: se é contra a vossa convicção, não
façam; mas não impeçam as outras de o fazerem e em segurança e com
dignidade). A segunda tornou-se na questão simbólica central, com a
recusa de qualquer forma subalterna de designação, e este argumento
venceu amplamente na opinião política e pública, pelo seu apelo
igualitarista e liberal. A terceira constituiu a principal concessão, por se
ter percebido cedo que era necessário conquistar o apoio do PS para as
causas LGBT, que não podiam ficar reféns da relativa marginalidade da
extrema-esquerda, mas também por se reconhecer a separabilidade
entre conjugalidade e parentalidade. Seja como for, a questão do
casamento triunfou em Portugal porque se conseguiu uma aliança
entre vários atores sociais que se diferenciaram de outros nos seus
segmentos próprios: o PS, e a liderança de José Sócrates, afirmando os
princípios da igualdade como parte da tradição laica e republicana e
como afirmação de modernidade; a ILGA-Portugal apostando no
carácter simbólico do casamento como grande ferramenta antihomofobia por reconhecer e dignificar aquilo que precisamente está na
sua base – o amor entre duas pessoas do mesmo sexo; e, ao mesmo
tempo, aceitando o carácter gradual das mudanças e afastando-se do
maximalismo
dos
setores
mais
radicais;
setores
da
mídia,
nomeadamente fazedores de opinião que normalizaram o assunto, o
defenderam com argumentos liberais e o tornaram em causa e caso
público; e uma espécie de activismo académico em torno de questões
de género, sexualidade e família, em que me orgulho de ter tido um
papel de destaque.
12
Entre 2005 (começo da campanha da ILGA-Portugal pelo casamento) e
2010 (aprovação da lei), soubemos focar o debate em torno das noções
de igualdade e liberdade. Creio que isso apelou a valores que se
sobrepuseram à influência da Igreja Católica e entre os próprios
católicos, para quem a crença é vivida crescentemente como devoção
individual, num processo de quase protestantização e privatização do
religioso, onde os valores liberais triunfam quer na esfera pública quer
na esfera privada, e os valores católicos se redefinem em formas de
crença íntima, quando muito de promoção de valores humanistas e de
solidariedade, num afastamento da hierarquia da obediência ou na
escolha de lideranças religiosas selecionadas segundo identificações de
geração, classe, inclinação política, etc.1
As sociedades reestruturam-se de formas complexas. Creio que uma
das formas mais eficazes é o alargamento do campo semântico – a
capacidade de alargar as esferas sociais de inclusão nas instituições já
existentes. Isso aconteceu com o voto para as mulheres, com a
liberdade para os escravos, com o casamento para os gays e lésbicas. É
um fenómeno de alargamento conceptual ou cultural, em que o casal
gay ou o casal lésbico passa a ser visto como um casal como os outros.
É a criação dese efeito de hegemonia que compete quer ao movimento
1
Gostaria ainda de acrescentar que uma explicação comum para estes avanços em Portugal é a
influência Europeia. Há verdade e erro nisto. Por um lado é certo que a UE promove e define posturas
anti-homofóbicas e que o movimento social recorre a recomendações europeias para propugnar as suas
posições. Todavia, o princípio da subsidiariedade define que as questões de Código Civil são da
competência dos estados-membros e verifica-se em vários países situações de homofobia institucional
verdadeiramente “anti-europeias”
13
social quer à academia engajada. E creio que conseguimos fazer isso
em Portugal, mais ainda do que na Espanha onde a questão seguiu a
linha de mais uma disputa da velha clivagem entre a Espanha da igreja
e a Espanha da República….
Para caracterizar a ordem e o regime de género e sexualidade em
Portugal – ou no Brasil – precisamos de ir mais longe do que a mera
repetição de pressupostos culturalistas promovidos pelos estados,
pelas igrejas, pela geoestratégia simbólica internacional, ou pela
ciência social preguiçosa. Além da muito necessária etnografia, que
demonstre a riqueza e complexidade do real, e para além das muito
necessárias representações que quebrem o silenciamento e a
invisibilização criadas pela homofobia, precisamos, creio, de analisar
criticamente (e depois agir em conformidade) a dinâmica política da
esfera pública: partidos políticos, seus apoios sociológicos, linguagens
e estratégias possíveis para fazer avançar uma agenda, compromissos
aceitáveis ou não – tudo isso precisa ser visto em conjunto pelos
movimentos sociais, pelos académicos engajados, pelos criadores de
representações e mediações, e pelos atores políticos que sejam
potenciais aliados. A política não pode ficar de fora do escrutínio dos
analistas e críticos culturais como nós.
Longe de ser apenas ou simplesmente uma sociedade atrasada,
machista, mediterrânica, católica ou, pelo contrário, uma democracia
liberal totalmente estabelecida à maneira do norte da Europa (e existe
tal coisa? Não é tão ridículo pensar a segunda como a primeira?)
Portugal é, como o será o Brasil, um espaço mais complexo e dinâmico
14
do que o retrato dado pelos estereótipos (quer os denegridores quer os
auto-elogiosos). É, no mínimo, uma sociedade dual, onde parte
significativa da sua oligarquia legal e política “lê” o país como
conservador e tradicionalista, contra um crescente setor social
urbanizado e ansioso pelas mudanças materiais e simbólicas da sua
percepção de modernidade. Não é por acaso que os primeiros negaram
o debate dizendo que era preciso... haver mais debate, de modo a
criarem uma self-fullfiling prophecy, quando este estava plenamente
estabelecido e amadurecido, como aliás se veio a provar. (Sabem que
consequências teve a aprovação na igualdade no acesso ao casamento
civil? Nenhumas. Entre aspas, claro, pois muitas pessoas acederam a
mais direitos, a mais dignidade e a mais felicidade. Digo “nenhumas”
porque o assunto se normalizou praticamente no dia seguinte).
Talvez o meu argumento tente sublinhar algo que hoje se torna ainda
mais evidente, lá na Europa, com a crise financeira que criou uma crise
política, de representação e crença e que poderá levar ao descalabro da
própria União, do Euro, do Estado Social e da democracia tal como a
conhecemos – a saber, um fosso entre uma sociedade diversa e
dinâmica, por um lado, e uma elite política distanciada e penetrada por
interesses, por outro. É que este fosso é também um fosso de
percepção e representação. O poder interpreta a sociedade como
homofóbica do mesmo modo que os conhecimentos autorizados da
cultura a interpretam como “católica” (querendo com isso dizer o que
vocês imaginam – e o facto de não precisar de o explicitar é em si
mesmo assustador). (Note-se a semelhança entre isto e as acusações
15
racistas de preguiça e desleixo feitas a Portugal na sequência da actual
intervenção do FMI e do Banco Central Europeu.)
O espectro da homofobia incita ao silêncio e à invisibilidade (ou à
remissão da visibilidade para funções festivas). O poder tenta conduzir
a discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo para a
questão do nome da coisa, para formas substitutivas, às vezes até para
uma espécie de subscrição do radicalismo (“como é que os gays, tão
revolucionários, querem uma coisa tão conservadora como o
casamento?”). Note-se: têm medo da política do símbolo. E têm,
curiosamente, “razão” em tê-lo: sabem que para manter o sistema de
sexo e género é preciso incitar e incentivar configurações específicas
do desejo. Para tal, para garantir a regra “positiva” é preciso haver um
tabu – e esse tabu é a homossexualidade. Já não conseguem, todavia,
promovê-lo como antigamente, como pecado, crime ou doença. Por
isso esta é uma luta ganha, uma luta que é sentida pelos próprios
opositores como algo que acontecerá mais tarde ao mais cedo. Não é
por acaso que muita da atenção política se vira para questões como a
quebra demográfica, a necessidade de sustentação dos esquemas de
segurança social e, no plano da sexualidade, os anteriormente malditos
são agora vistos como aliados simbólicos – os “homossexuais antes de
haver gays” que pontuam a história da literatura, por exemplo, com os
seus exemplos de hiper-sexualidade, de dicotomia de género bem
marcada, de recusa da conjugalidade ou da própria ideia de amor, para
não falar de família e parentalidade.
16
Tentei dizer-vos, em suma, que Portugal já não é o que era,
provavelmente porque nunca foi o que foi. Como qualquer outra
sociedade. Tentei também dizer-vos qual a “conjugação astral” que
permitiu este avanço na política e na cidadania sexuais no meu país.
Espero que pelo simples exercício da explicação de um caso e através
do comparativismo que tal necessariamente despoleta, possamos
pensar de modo análogo sobre esta minha outra terra, o Brasil.
Também aqui será, como disse, inevitável, e acontecerá mais cedo do
que tarde. Mas que tal acelerarmos um pouco a História, neste país que
tem progredido tão espantosamente na última década?
17
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