ASPECTOS SINTÁTICOS E SEMÂNTICOS DA CONSTRUÇÃO LOCATIVA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONAL por Diogo Oliveira Ramires Pinheiro Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ, como requisito à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt. Rio de Janeiro, segundo semestre de 2007 DEFESA DE DISSERTAÇÃO PINHEIRO, DIOGO OLIVEIRA RAMIRES. Aspectos sintáticos e semânticos da construção locativa do português brasileiro: uma abordagem construcional. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa apresentada ao curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________________ Dra. Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt (Orientadora) – Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Dra. Lilian Vieira Ferrari - Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Dra. Sandra Pereira Bernardo - Universidade do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Dra. Márcia dos Santos Machado Vieira - Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________________________________ Dra. Adrete Terezinha Matias Grenfell - Universidade Federal do Espírito Santo Defendida em 31/08/2007. AGRADECIMENTOS Esta dissertação começou a ser gestada em 2002, no terceiro período da graduação em Letras, sob forma de uma pesquisa de Iniciação Científica. Desde então, tive a oportunidade de participar de um ambiente intelectual altamente estimulante, gerado pelo convívio com professores e alunos de pós-graduação interessados, como eu, em fenômenos da linguagem em geral e/ou em lingüística cognitiva em particular. A esse convívio, eu devo boa parte – a parte boa – deste trabalho. Dentre todas essas pessoas, agradeço em primeiro lugar a quem me convidou a participar desse universo. À Professora Doutora Ana Flavia Lopes Magela Gerhardt, minha orientadora, meu “muitíssimo obrigado” pelo convite, pela orientação, pelas parcerias, pela amizade. À Professora Doutora Maria Lúcia Leitão de Almeida, agradeço pelas lições de lingüística cognitiva, pelos conselhos, pela confiança e também pela amizade. Às Professoras Doutoras Lilian Vieira Ferrari e Sandra Pereira Bernardo, agradeço pelas lições oferecidas em diversos momentos desde que nos conhecemos. E, claro, pela gentileza de aceitarem integrar a banca de exame desta dissertação. Aos Professores Augusto Soares, da Faculdade de Filosofia de Braga, e Hanna Batoréo, da Universidade Aberta de Lisboa, fica meu agradecimento pelas valiosíssimas sugestões feitas em diferentes etapas do desenvolvimento desta pesquisa. Este trabalho não existiria – ou seria muito diferente – se em algum momento eu não tivesse conhecido alguns amigos e colegas de pesquisa científica. Entre eles, está o pessoal da lingüística cognitiva: Mauro, amigo queridíssimo e advogado-do-diabo predileto, sempre munido de contra-exemplos brilhantes; Patrícia, amiga não menos querida, cuidadosa e atenciosa; Marina, um pouco mais bissexta, mas nem por isso menos amiga. Aos três, obrigado pelos almoços muitos e longos, pelas parcerias, pelas abobrinhas, pelo companheirismo. Entre eles há também a turma dos “não-alinhados”. Karen, valeu pelas conversas valiosas sobre tantos assuntos e, às vezes, até sobre lingüística. Ju, obrigado pela amizade, por estar à disposição sempre e por ajudar a pensar tantos pontos intrincados desta dissertação. Liana, sua companhia única tornou muitos momentos bem mais agradáveis, divertidos e inteligentes. Luciano, valeu por todos os galhos quebrados, pelas dicas e pelo apoio incondicional – provavelmente você nem tem idéia da diferença que fez e com certeza vai continuar fazendo. Mas, muito mais crucialmente, esta pesquisa não existiria se meus pais não fossem as pessoas que são. A eles, Maria Amélia e Carlos, eu devo, antes e acima de tudo, a existência deste trabalho – e, de resto, tudo aquilo que entre uma pós-graduação e outra a gente costuma a chamar de “vida”. Por tanto amor, por tanta emoção, para quem me fez, para o bem e para o mal, assim: muito obrigado. Um último agradecimento afetivo fica reservado à Tati. Reparando bem, todo mundo tem medo de cair (e sala sem mobília). Obrigado por ter reparado bem. Por toda a ajuda, toda a paciência, todo o companheirismo, toda a amizade e carinho. Valeu mesmo. Por fim, agradeço ao CNPq pelos dois anos de auxílio financeiro. SINOPSE Reconhecimento e descrição da construção locativa do português brasileiro contemporâneo à luz dos paradigmas cognitivista e construcional. Identificação de sua gestalt conceptual, propriedades sintático-semânticas básicas e rede polissêmica. Análise semântica de alguns predicadores ligados à construção. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 09 1.1 Apresentação e objetivos do trabalho 1.1.1 Primeiro objetivo: identificar e descrever a construção locativa 1.1.2 Segundo objetivo: descrever a configuração semântica de alguns verbos 1.2 Hipóteses 1.3 Estrutura do trabalho 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 Lingüística Cognitiva e Realismo Experiencial 2.2 Gramática das Construções 2.2.1 A Construction Grammar de Goldgerg (1995 e 2006) 2.2.1.1 A interação verbo-construção 2.2.1.2 A questão da polissemia construcional 09 09 11 12 13 16 16 21 28 30 34 3. O CONCEITO DE LOCATIVIDADE 3.1 Os conceitos de Existência e Locatividade 3.2 A qual cena básica remete a construção locativa? 3.3 O conceito de locatividade: breve comparação 3.3.1 A questão da assimetria 3.4 Resumindo 38 38 46 50 55 56 4. SINTAXE E SEMÂNTICA DA CONSTRUÇÃO LOCATIVA 4.1 Reconhecendo a construção locativa 4.2 Nota sobre o papel temático do SN 4.3 Nota sobre a relação gramatical do SN 4.4 Isolando a construção locativa 4.5 A polissemia da construção locativa 4.5.1 A subconstrução central 4.5.2 A subconstrução de negação 4.5.3 A subconstrução modal 4.5.4 A subconstrução permansiva 4.5.5 A subconstrução inceptiva 4.6 Resumindo 58 58 62 65 68 74 73 82 83 86 87 95 5. A RELAÇÃO VERBO-CONSTRUÇÃO 5.1 Os verbos ter e existir 5.2 Os verbos chegar, aparecer e surgir 5.3 Resumindo 96 98 100 109 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 114 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Tabela 1 – Construções – tamanho e grau de complexidade interna 24 Quadro 1 - Construção gramatical benefactiva 30 Quadro 2 – Fusão de papéis na construção benefactiva 32 Figura 1 – Esquema conceptual das construções possessivas 41 Figura 2 - Esquema conceptual da locatividade 42 Figura 3 – Distinção entre locatividade e da existência 43 Figura 4 – As conceptualizações de posse e existência a partir do esquema imagético dentro-fora 47 Quadro 3 – Construção gramatical locativa 59 Figura 5 – Rede polissêmica da locatividade 76 Quadro 4 – Subconstrução de negação 82 Quadro 5 - Subconstrução modal 83 Quadro 6 - Subconstrução permansiva 86 Quadro 7 - Subconstrução inceptiva 87 Figura 6 – Esquemas conceptuais para existir e ter 99 Tabela 2 – Comparação entre os verbos chegar, aparecer e surgir 105 Figura 7 – Representação esquemática dos usos locativos de chegar, aparecer e surgir 105 Figura 8 –Representação conceptual dos usos locativos de chegar, aparecer e surgir 107 A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas Age como um deus doente, mas como um deus. Porque embora afirme que existe o que não existe Sabe como é que as coisas existem, que é existindo, Sabe que existir existe e não se explica, Sabe que não há razão nenhuma para nada existir, Sabe que ser é estar em um ponto Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer. Alberto Caeiro If (at a given moment) two things of the same type occupy exactly the same location, they are (in our naive conception) the same instance. If they are different instances, they occupy different locations. Ronald Langacker 1. INTRODUÇÃO 1.1 Apresentação e objetivos do trabalho Esta dissertação gira em torno da construção locativa (CL) do português brasileiro (PB) contemporâneo. Para investigá-la, recorremos ao arcabouço teórico da lingüística cognitiva (Lakoff, 1987; Lakoff & Johnson, 1980 e 1999; Johnson, 1987; Langacker 1987 e 1991; Talmy, 2000) e, mais especificamente, à Gramática das Construções (sobretudo em sua versão goldbergiana, sintetizada em Goldberg 1995 e 2006). Feita essa apresentação sumária, é preciso dizer que este trabalho se divide claramente em duas partes, que atendem a objetivos distintos, ainda que relacionados. A primeira parte, correspondente aos capítulos 3 e 4, pretende identificar e descrever a construção locativa, entendida, com base no modelo goldbergiano (Goldberg, 1995 e 2006), como um padrão sintático-semântico presente na gramática do PB contemporâneo. A segunda, desenvolvida no capítulo 5, busca investigar – preliminarmente, é bom que se diga desde já – a configuração semântica de alguns dos verbos ligados à CL, observando a interação entre a semântica desses verbos e a semântica da própria construção gramatical. 1.1.1 Primeiro objetivo: identificar e descrever a construção locativa Para que se tenha uma noção, ainda que provisoriamente pré-teórica, do tipo de estrutura que temos em mente ao falarmos em construção locativa, observem-se as sentenças (1) a (5) abaixo – todas, a nosso ver, manifestações de um mesmo padrão construcional locativo1. (1) O gato está na minha varanda. (2) A Torre Eiffel fica em Paris. (3) Esse casaco não cabe na mala. (4) Seu gato apareceu na minha varanda. (5) Meus pais finalmente chegaram na festa. 1 Não estamos sugerindo que todas essas sentenças sejam semanticamente idênticas, mesmo descontando a contribuição individual dos verbos. Ao longo do trabalho, procuraremos mostrar que o padrão locativo é polissêmico (Goldberg, 1995), exibindo cinco sentidos distintos, ainda que relacionados. Os exemplos oferecidos aqui abrangem três desses cinco sentidos. 9 Segundo a Gramática das Construções (GC) – em cujos pressupostos nos deteremos com mais vagar no próximo capítulo –, a gramática de uma língua consiste em um inventário articulado e motivado de construções gramaticais – as quais, por sua vez, podem ser definidas como pareamentos convencionais de informações formais e semântico-pragmáticas. Essa hipótese impõe ao pesquisador uma agenda de pesquisas: investigar cada uma das construções que compõem a gramática das línguas naturais, bem como as relações entre elas. A GC prevê também que o inventário de construções de uma língua inclui desde padrões fixos, como palavras ou expressões proverbiais, até padrões inteiramente abertos (por exemplo, SN1 V SN2 SP, ilustrado por sentenças do tipo “João deu uma flor para Maria), passando por padrões semi-preenchidos, do tipo “Jogar X pela janela”. Nessa perspectiva, o tipo de construção estudado aqui é um padrão inteiramente aberto, sem especificação lexical. Para Goldberg (1995), construções desse tipo apresentam pelo menos três propriedades definidoras: sustentam-se sobre uma base conceptual prélingüística, apresentam informações semânticas (papéis argumentais, aproximadamente equivalentes aos papéis temáticos) pareadas a informações formais (relações gramaticais) e são tipicamente polissêmicas, de uma maneira tal que seu inventário de sentidos pode ser apreendido sob a forma de uma rede de significados conectados a um sentido central prototípico2. Isso significa que, na prática, o objetivo de identificar e descrever a construção locativa se desmembra em três: • Apontar o substrato conceptual da construção; • Verificar suas propriedades sintático-semânticas básicas (papéis argumentais e relações gramaticais associadas); • Divisar a rede de significados associados à CL. Os três objetivos acima refletem, como dissemos, premissas do modelo apresentado em Goldberg (1995). Para dar conta do primeiro deles, mais propriamente conceptual do que lingüístico, recorremos ao realismo experiencial de George Lakoff e Mark Johnson 2 Os pressupostos da GC serão apresentados mais pormenorizadamente no próximo capítulo. 10 (Johnson, 1987; Lakoff, 1987; Lakoff & Johnson, 1999). Os dois últimos, mais especificamente gramaticais, são tratados a partir do instrumental teórico oferecido em Goldberg (1995). 1.1.2 Segundo objetivo: descrever a configuração semântica de alguns verbos Durante o desenvolvimento deste trabalho, interessamo-nos por observar a configuração semântica dos verbos que instanciam a CL, nos termos de uma semântica de frames (a qual, em diferentes graus e guardadas as particularidades de cada autor, pode ser associada a trabalhos como Fillmore, 1968; Langacker, 1987 e 1991; Goldberg, 1995; Iwata, 2005). Como não seria possível investigar todos os verbos que instanciam a CL, selecionamos apenas dois grupos de predicadores: ter e existir, de um lado, e chegar, aparecer e surgir, de outro. Esse objetivo ecoa uma guinada teórica reivindicada na segunda parte da coletânea Grammatical Constructions: back to the roots (Fried & Boas, 2005), que reúne trabalhos apresentados durante a 1ª Conferência Internacional em Gramática das Construções, realizada em abril de 2001. Essa segunda parte, composta de três artigos independentes, se propõe a investigar, com nível de aprofundamento maior do que aquele verificado normalmente no trabalho de Goldberg (2002 e 2005 são as referências citadas), o frame associado a alguns verbos específicos. Os dois primeiros trabalhos dessa segunda parte (Iwata, 2005 e Nemoto, 2005) compartilham a crença de que a GC goldbergiana tem subestimado a importância de investigar seriamente a semântica dos verbos, tratando-a sumariamente e optando por descrevê-la “simplesmente como uma lista de participantes” (Iwata, 2005, p. 102). Ocorre que alguns verbos que parecem sinônimos na CL comportam-se diferentemente quanto à possibilidade de inserção em outros padrões. Comparem-se, a esse respeito, os predicadores ter e existir. Embora pareçam idênticos em (6), o exemplo (7) mostra que só o primeiro pode instanciar uma construção possessiva, ao passo que, de acordo com (8), só o segundo se funde a um padrão intransitivo existencial com o significado de ser real: 11 (6) a. Tem água em Marte. b. Existe água em Marte. (7) a. Eles têm pouco dinheiro. b. * Eles existem pouco dinheiro. (8) a. Papai Noel existe. b. * Papai Noel tem. Assim é que, a nosso ver, o ponto mais produtivo da crítica de Iwata é o seguinte: na visão do autor, apenas investigando seriamente o frame semântico dos verbos que participam das construções estudadas é possível explicar a distribuição desses predicadores pelas diferentes construções nas quais eles se inserem. Por exemplo: se em alguns casos ter e existir parecem mesmo sinônimos, por que há empregos em que só ter é licenciado e outros em que apenas existir é possível? Segundo Iwata, somente um estudo dos frames acionados por esses verbos poderia dar a resposta. É precisamente esta, então, a resposta que buscamos ao enfrentar nosso segundo objetivo. Exatamente por isso foram selecionados os predicadores mencionados acima: porque eles, a um só tempo, exibem significados muitos próximos em determinados usos e apresentam claras diferenças distribucionais entre si. Para cumprir esse segundo objetivo, não deixaremos de nos socorrer do instrumental fornecido pela GC goldbergiana (Goldberg, 1995). No entanto, seguindo a sugestão de Iwata (2005) de observar mais pormenorizadamente os frames verbais, iremos lançar mão também de conceitos presentes na Gramática Cognitiva de Langacker (1987 e 1991), como perfilamento, base e escopo da predicação. 1.2 Hipóteses Como mostramos, nosso primeiro objetivo se desdobra em três, para os quais apresentamos as seguintes hipóteses: 12 • O substrato conceptual da CL é o esquema imagético dentro-fora (cf. Johnson, 1987). • A CL é um padrão com dois participantes: um objeto locado (um tipo específico de tema) associado à relação gramatical de sujeito, e um locativo associado à relação gramatical de oblíquo. • A CL, como era de se esperar (Goldberg, 1995), é polissêmica. Em nossa pesquisa, identificamos uma rede polissêmica da locatividade, que conta com um núcleo prototípico e quatro irradiações polissêmicas. Cada significado especificado na rede define uma subconstrução locativa, de maneira que nossa pesquisa nos levará a encontrar cinco subconstruções locativas minimamente distintas entre si e relacionadas por herança de polissemia (Goldberg, 1995). Além disso, nosso segundo objetivo nos levou a buscar uma descrição da semântica dos predicadores ter e existir, de um lado, e chegar, aparecer e surgir, de outro, à luz da Gramática Cognitiva de Langacker e do modelo goldbergiano da GC. Resumidamente, nossas hipóteses são as seguintes: • Ter e existir se distinguem quanto ao número de participantes perfilados (no sentido de Goldberg, 1995, a partir de Langacker, 1987): no primeiro caso, são dois, um contêiner e um conteúdo; no segundo, apenas o conteúdo é perfilado, ficando o contêiner na condição de base. • Chegar se distingue de aparecer e surgir por exibir dois participantes perfilados, ao passo que os dois últimos exibem apenas um. Esses dois últimos, por sua vez, apresentam apenas uma pequena diferença na configuração da base (segundo a terminologia de Langacker, 1987 e 1991), a ser descrita oportunamente. 1.3 Estrutura do trabalho No próximo capítulo, iremos expor a fundamentação teórica deste trabalho: a Lingüística Cognitiva e a Gramática das Construções. Nosso foco recairá sobre a versão goldbergiana (Goldberg 1995 e 2006) da GC. A justificativa: dentre todas as versões da GC, é a linha de Goldberg a que parece mais adequada para o nosso objeto, uma 13 construção gramatical inteiramente aberta (isto é, desprovida de qualquer especificação lexical)3. Os dois capítulos seguintes correspondem ao primeiro dos objetivos que estabelecemos acima. No capítulo 3, discutimos o conceito de locatividade. Trata-se, aqui, de identificar o substrato conceptual que irá, de acordo com os pressupostos cognitivistas, fundamentar a construção locativa. Essa discussão envolverá duas partes. A primeira, seguindo Langacker (2004), tratará de distinguir os conceitos de existência e locatividade. A segunda se ocupará de confrontar o conceito de locatividade proposto por nós àquele sugerido em Langacker (2004), a fim de defender a plausibilidade da nossa hipótese, frente a uma proposta consideravelmente distinta. No capítulo 4, passamos a enfrentar o problema propriamente gramatical da descrição da CL. É quando procedemos à descrição da sintaxe e semântica da construção e alertamos para sua polissemia – o que parece confirmar a hipótese de Goldberg (1995) de que construções correspondentes aos padrões argumentais básicos das línguas são polissêmicas. Nesse capítulo, postulamos cinco sentidos da CL minimamente distintos entre si. Além disso, organizamos esses sentidos em uma rede polissêmica da locatividade, na qual se reconhece como sentido central o conceito de locatividade identificado no capítulo 3. O capítulo 5, por sua vez, se volta para uma investigação da semântica dos verbos mencionados acima. Conforme comentamos, é nesse momento que recorremos à Cognitive Grammar de Langacker (1987 e 1991). Nesse ponto, também, procuramos observar mais de perto a questão da integração entre a semântica do verbo e da construção, buscando atender à reivindicação de Iwata (2005). O capítulo 6 encerra a dissertação com uma retomada das principais hipóteses a que chegamos e também com um olhar prospectivo, buscando entrever de que maneira esta pesquisa, ao buscar reconhecer e circunscrever um objeto específico – a construção 3 Algumas das diferentes versões da CG serão brevemente contrastadas no capítulo 2, quando deverão ficar claras as especificidades da versão goldbergiana. 14 locativa do PB contemporâneo – poderia dar à luz pesquisas futuras que estejam a par dos desenvolvimentos mais recentes da GC goldbergiana (cf. Goldberg, 2006). 15 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Conforme já anunciamos, esta pesquisa se assenta sobre os pressupostos da Lingüística Cognitiva e lança mão do modelo de descrição gramatical conhecido como Gramática das Construções. O presente capítulo se organiza, então, da seguinte maneira. Começamos por expor as linhas gerais da Lingüística Cognitiva norte-americana, à qual subscrevemos. Em seguida, apresentamos os pressupostos da Gramática das Construções, tecendo um breve comentário sobre suas diferentes versões e focalizando, finalmente, o modelo consagrado por Goldberg (1995). 2.1 Lingüística Cognitiva e Realismo Experiencial A revolução chomskiana na Lingüística, disparada em meados da década de 50 do século passado, criou uma ciência fortemente comprometida com dois projetos: (i) trazer o sujeito cognitivo para o centro das investigações, depois da empreitada estruturalista de inspiração sociologizante, e (ii) centrar os estudos lingüísticos na forma gramatical, apelando exclusivamente para regras estruturais a fim de explicar fenômenos lingüísticos – ponto de encontro entre a doutrina chomskiana e a cartilha do estruturalismo norte-americano, liderado por Leonard Bloomfield. O resultado é a emergência de uma forma de fazer lingüística – o Gerativismo – que aposta em um sujeito programado para gerar sentenças algoritimicamente, a partir de um mecanismo autônomo e especificamente desenhado para esse fim: a faculdade da linguagem. Desde então, e a despeito das sucessivas reformulações por que passou a lingüística gerativa, o Princípio da Autonomia da Sintaxe tem se mantido, provavelmente, como a pedra-de-toque da teoria. É em oposição a esse “sujeito desencarnado” (nos termos de Salomão, 1997), que começa a emergir, em meados da década de 70 do século XX, um conjunto de trabalhos que irão convergir para compor o arcabouço da Lingüística Cognitiva. Em comum a todos eles, a manutenção da ênfase mentalista da gramática gerativa aliada a uma tendência a buscar fora dos limites estritos das estruturas sintáticas a explicação para fenômenos gramaticais. A ênfase se volta, assim, para mecanismos cognitivos gerais (não especificamente lingüísticos), como a categorização (Lakoff, 1987; Rosch, 1973), 16 o enquadramento da atenção (Talmy, 1996), a metáfora (Lakoff & Johnson, 1980; Lakoff & Johnson, 1999, entre outros), a projeção entre espaços mentais e a integração conceptual (Fauconnier, 1984 e 1997; Fauconnier & Turner, 2002). O que une todos os cognitivismos, portanto, é a crença na não-autonomia da linguagem relativamente aos demais sistemas cognitivos. Para usar uma máxima de Goldberg (1995: 5), “conhecimento lingüístico é conhecimento” – afirmação cuja aparente tautologia encerra uma declaração de princípios contra a disposição gerativista em enclausurar os problemas gramaticais dentro dos limites da forma lingüística. Este trabalho, ao investigar uma construção gramatical do PB, segue orientação idêntica. Goldberg (1995) defende que os sentidos de uma construção de estrutura argumental4 se organizam em uma rede contendo um protótipo semântico e irradiações polissêmicas. Conforme já anunciamos, esse pressuposto se atualiza em nosso trabalho com a hipótese de que as CLs exibem o sentido central e as quatro extensões polissêmicas apontados no capítulo anterior. Essa abordagem ecoa a máxima goldbergiana sobre conhecimento lingüístico na medida em que esse tipo de organização prototípica já foi observado na estruturação do conhecimento nãolingüístico (cf. Rosch, 1973). A hipótese da não-autonomia da linguagem – reforçada pelo advento, na década de 1980, de modelos conexionistas de processamento neural (Rumelhart et al, 1986; Deacon 1998) – assume uma forma específica com a hipótese, sem dúvida bastante forte, de que o significado lingüístico reflete o modo como o ser humano conceptualiza o mundo (essa tese é freqüentemente referida como a tese da motivação conceptual da gramática). Endossada sem restrições por autores como George Lakoff, Mark Johnson, Leonard Talmy e Ronald Langacker, dentre muitos outros, tal aposta é formulada de maneira categórica por este último: 4 Como veremos na seção 2.2, trata-se de construções gramaticais inteiramente abertas (sem especificação lexical) que codificam os padrões argumentais da língua. 17 “A estrutura semântica é a conceptualização adaptada às especificações da convenção lingüística. A análise semântica, portanto, demanda a caracterização explícita da estrutura conceptual”. [grifo nosso] Em poucas palavras: a linguagem traz representada, em seu próprio arranjo sintáticosemântico, a estrutura do pensamento. Para lidar com o significado, portanto, será necessário vasculhar o inventário de conceitos armazenado na mente do sujeito. De maneira que a questão que se coloca é a seguinte: como se constrói esse inventário? Qual a natureza dos conceitos que o compõem? Uma resposta a essas questões será oferecida pelo paradigma filosófico conhecido como Realismo Experiencial (ou Realismo Corporificado), arcabouço epistemológico que tem servido de base para a semântica cognitiva. Tendo como principais mentores e divulgadores George Lakoff e Mark Johnson (cujas obras-síntese são Lakoff & Johnson, 1980; Lakoff, 1987; Johnson, 1987; e Lakoff & Johnson, 1999), esse paradigma assumirá, em linhas gerais, que mente e corpo estão inextricavelmente conectados, de maneira que o nosso sistema conceptual depende do nosso aparato perceptual e se forma a partir da interação dos nossos corpos com o mundo ao redor. Em resumo: a mente humana é inerentemente corporificada. Partindo dessa premissa, Lakoff (1987) postula dois tipos de estruturas conceptuais primárias sobre as quais se fundaria todo o nosso sistema conceptual: as categorias de nível básico e os esquemas imagéticos. Juntos, esses dois conceitos constituem o que Lakoff chama de fundações duais da cognição humana. O “nível básico” corresponde a um nível de interação sujeito-ambiente no qual se estabelecem aquelas distinções mais salientes do ponto de vista perceptual – como a distinção entre girafas e elefantes ou entre mesas e cadeiras, para ficarmos com os exemplos do autor. O que deve ser ressaltado aqui é que essas distinções são de natureza gestaltica: muito embora entes como mesas e elefantes sejam dotados de estrutura interna, acredita-se que eles sejam percebidos e discretizados com base em 18 alguns de seus traços globais de forma, de maneira que o todo, aqui, é mais importante (ou perceptualmente mais saliente) que as partes. Por um lado, está-se afirmando que a distinção entre girafas e elefantes não é um dado pertencente à realidade em si mesma, mas que, ao contrário, é decorrência de determinadas propriedades gerais da cognição humana. Tem a ver, portanto, com a maneira como nosso sistema perceptual discretiza e categoriza as entidades (ou processos, ou atributos) do mundo. Por outro lado, tampouco se defende que essa discretização se faça na ou pela linguagem: ela é, antes de mais nada, perceptual e conceptual, a categorização lingüística sendo um tipo especial desse processo cognitivo. Essa breve explanação deve ter esclarecido a idéia de que nosso sistema conceptual se assenta na “natureza geral do organismo humano” (para usar a expressão de Lakoff, 1987, p. 301). No entanto, outro ponto mencionado acima demanda uma explicação um pouco mais detida. Trata-se de perguntar: o que significa, exatamente, afirmar que o sistema conceptual humano é forjado na interação entre sujeito e ambiente? Em poucas palavras: significa que, para pensar, recorremos ao aparato cognitivo humano, que é moldado, primariamente, a partir da interação dos nossos corpos com o mundo ao redor. Por conta disso, não se pode esperar que tenhamos acesso a qualquer tipo de razão transcendental. Isso não quer dizer, evidentemente, que sejamos incapazes de manipular conceitos abstratos, mas significa que esses conceitos só são entendidos a partir de noções mais básicas, concretas, que podemos experimentar diretamente. Trabalhos como o de Neisser (1976) e Johnson (1987) apontam para a centralidade das experiências sensório-motoras do indivíduo na formação do seu sistema conceptual. Para dar conta desse fato, o arsenal teórico da Lingüística Cognitiva prevê – entre as bases estáveis de conhecimento que, acredita-se, são acionadas pelo sujeito na tarefa de conceber entidades ou eventos, manipular conceitos; raciocinar, enfim – estruturas conhecidas como esquemas imagéticos. Os esquemas imagéticos constituem, portanto, o segundo tipo de estrutura conceptual primária, de acordo com Lakoff (1987). Trata-se de uma base de conhecimento que 19 codifica padrões recorrentes que experienciamos em nossa interação sensório-motora com o mundo. Como exemplos de alguns desses padrões, citem-se: cenários em que nossos corpos ocupam “o centro de um ambiente de experiências com outros semelhantes e objetos” (Gerhardt, 2002, p. 87); situações em que uma pessoa ou objeto é arrastado por uma força maior que a sua; situações em que um obstáculo impede a passagem de uma pessoa ou objeto; etc. Em suma, às questões levantadas acima – como se forma o nosso inventário de conceitos e qual a sua natureza –, o experiencialismo oferece as seguintes respostas: nossos conceitos primários, que são pré-lingüisticos e não-proposicionais, forjam-se a partir das nossas interações sensório-motoras com a realidade física circundante e ancoram-se na “natureza geral do organismo humano” (Lakoff, 1987). Evidentemente, é o status de prioridade conferido ao insight fundamental da corporificação da mente que motiva e justifica toda a intensa investigação sobre as metáforas conceptuais que se seguiu à publicação, em 1980, de Metaphors we live by, uma das obras-marco do experiencialismo de Lakoff e Johnson. A Teoria da Metáfora Conceptual, como ficou conhecida, irá postular que o pensamento abstrato, para ser possível, deve fazer remissão a conceitos mais concretos que o ser humano é capaz de experimentar diretamente (trata-se, claro, das “fundações duais” que já comentamos). Essa remissão corresponde exatamente ao que vem sendo conhecido como projeção metafórica, uma transferência interdominial que nos habilita a conceber elementos de um domínio nos termos de outro domínio mais familiar. A partir dessa premissa, instaura-se um profícuo programa de pesquisas focado em identificar e descrever as projeções metafóricas motivadoras dos conceitos indiretos (não-primitivos, e sim derivados imaginativamente daqueles primitivos) que, presumivelmente, habitam nosso inventário mental de categorias. Para oferecermos apenas um exemplo, escolhido pela relação com a pesquisa a ser apresentada nos próximos capítulos, fiquemos com o que Lakoff & Johnson (1999, p. 179) chamam de “Metáfora da estrutura-de-evento da locação” (The location event-strucutre metaphor). 20 Trata-se de uma metáfora complexa ou sistema que se estrutura sobre outras metáforas mais básicas. Os autores a delineiam assim: METÁFORA DA ESTRUTURA-DE-EVENTO DA LOCAÇÃO Estados São Lugares (interiores de regiões delimitadas no espaço) Mudanças São Movimentos (dentro ou fora das regiões delimitadas no espaço) Causas São Forças Causação é Movimento Provocado (de um lugar para outro) Ações São Movimentos Auto-provocados Metas São Destinos Meios São Caminhos (para os destinos) Dificuldades São Obstáculos à Locomoção Liberdade de Ação É Ausência de Obstáculos à Locomoção Eventos Externos São Objetos Grandes e Móveis (que exercem força) Atividades Intencionais de Longa Duração São Viagens Essa metáfora complexa fica evidenciada em enunciados do tipo “já ultrapassei a meta deste mês” (Metas São Destinos), “se você não passar por cima desse problema, não vai conseguir progredir” (Meios São Destinos, Dificuldades São Obstáculos à Locomoção), “Ela estava/entrou em depressão” (Estados São Lugares), “No início, a separação me derrubou, mas agora já consegui deixar isso pra trás” (Eventos Externos São Objetos Grandes e Móveis, Mudanças São Movimentos) etc. A noção de esquema imagético, por seu turno, é ainda mais fundamental para esta pesquisa. Assumindo, com Goldberg (1995: 5), o pressuposto de que as construções de estrutura argumental evocam uma “cena básica da experiência humana”, propusemo-nos a identificar a cena básica associada à construção locativa – o que equivale, em termos experiencialistas, a descrever o próprio conceito de locatividade. Conforme iremos propor no capítulo 3, essa cena básica, que está codificada em um esquema imagético, corresponde ao sentido central da construção (como já antecipamos na enumeração das nossas hipóteses). 21 2.2 Gramática das Construções Afastando-nos das premissas filosóficas mais gerais da Lingüística Cognitiva, passamos agora a uma apresentação do modelo de descrição gramatical que adotamos aqui: a Gramática das Construções (GC). De saída, é preciso lembrar que o rótulo “Gramática das Construções” recobre um número razoável de modelos teóricos mais ou menos divergentes entre si. O que importa no momento, porém, é afirmar aquilo que irmana todas essas diferentes versões da GC. Essa afinidade pode ser apreendida na seguinte formulação: a perspectiva construcional recusa a noção de língua como um conjunto de regras aplicadas sobre itens lexicais, passando a ver a gramática como uma coleção (estruturada) de construções gramaticais, definidas como pareamentos convencionais de forma e significado. Partamos, pois, da formulação acima para começar a apreciar as linhas gerais da GC. Antes de mais nada: se construções gramaticais são pareamentos convencionais de forma e significado, é possível entender que tanto morfemas quanto palavras ou expressões idiomáticas sejam exemplos de construções – e é de fato o que acontece, na medida em que todas essas unidades apresentam uma configuração formal associada a um valor semântico-pragmático específico. Por outro lado, essa definição não faz plena justiça ao modelo construcional, porque parece sugerir que um inventário de construções gramaticais teria, essencialmente, o formato normalmente atribuído ao léxico: tratar-se-ia, assim, de uma listagem de elementos primitivos que, não podendo ser gerados a partir de regras composicionais, precisam ser memorizados individualmente. A proposta efetivamente feita pelos praticantes da GC, porém, se afasta, em pelo menos dois sentidos importantes, da imagem esboçada acima. Em primeiro lugar, defende-se que as construções não estejam organizadas em forma de lista, mas, antes, que constituam uma rede articulada. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, não são apenas as ocorrências não-explicáveis através de regras composicionais que devem ser 22 consideradas construções5. Na verdade, acredita-se que mesmo sentenças perfeitamente composicionais, do tipo “João deu uma flor para Maria”, sejam concretizações de construções esquemáticas. Nesse caso, trata-se de uma construção benefactiva, que apresenta, como toda construção, uma composição formal específica (dois SNs, um sujeito e um objeto direto, e um sintagma preposicionado em função de objeto indireto) vinculada diretamente a um valor semântico determinado: a noção de transferência de posse, com os papéis temáticos que o frame de transferência prevê. Segundo Goldberg (2006), a intuição sobre a existência desses padrões convencionais constitui “a base dos maiores avanços no estudo da gramática desde os antigos estóicos”. Fillmore, Kay & O’Connor (1988) também ressaltam que a intuição sobre a existência de construções gramaticais se faz presente nos estudos tradicionais, podendo ser entrevista nas gramáticas pedagógicas6. Para ilustrar, fiquemos com um exemplo extraído da descrição tradicional do português: a Gramática Contemporânea da Língua Portuguesa (Cunha & Cintra, 1994) traz uma observação sobre a “inversão predicativo + verbo” (p. 172) em que tal inversão é relacionada, entre outros fatores, à expressão de afetividade. Tal descrição baseia-se, evidentemente, em uma concepção pré-teórica da noção de construção gramatical, mas não deixa de captar a intuição basilar das abordagens construcionais: a vinculação direta de um determinado significado a uma estrutura formal específica. De acordo com Goldberg (1995: 1), a Gramática Gerativa assumiu, nos seus primórdios, a existência de construções, vindo posteriormente a refutar sua realidade psicológica e a destituí-las de qualquer status mais relevante dentro do modelo, sob a alegação de que se trataria de meros epifenômenos, a serem explicados a partir de princípios mais gerais e sistemáticos. O resultado mais imediato dessa posição foi a exclusão dos fatos idiossincráticos da agenda dos estudos lingüísticos: traça-se assim, com um só movimento, uma divisão rígida entre “núcleo” e “periferia” (aquele, composto por 5 Em apresentação panorâmica da GC, Goldberg (2003) cria o neologismo “construct-i-con” para fazer uma analogia entre o léxico e a rede de construções: “a totalidade do nosso conhecimento lingüístico é capturada por uma rede de construções: um ‘constrúxico’ (construct-i-con)”. 6 “The overarching claim is that the proper units of grammar are more similar to the notion of construction in traditional and pedagogical grammars than that of rule in most versions of generative grammar” (Fillmore, Kay & O’Connor, 1988: 501). 23 regularidades, por fatos sistemáticos; esta, por idiossincrasias não explicáveis através de princípios gerais) e entre léxico e gramática. Recentemente, contudo, a Lingüística Cognitiva tem defendido a reincorporação das construções à descrição gramatical. A tese central da GC, portanto, está ligada à proposição de uma arquitetura gramatical específica: a da gramática como rede de construções. Com ela, rejeita-se a distinção dicotômica entre centro e periferia, e entre léxico e gramática. Afinal, se a gramática é uma rede estruturada de construções, não há lugar no modelo para uma distinção – qualitativa, pelo menos – entre gramática e léxico. Palavras, morfemas, fórmulas conversacionais e padrões estruturais deverão compor a gramática de qualquer língua natural. Dentre esses padrões estruturais, acrescente-se, deverá haver aqueles parcialmente preenchidos e outros inteiramente abertos – o que, por sua vez, implica negar a existência de uma distinção quantitativa entre “centro” e “periferia” dos estudos lingüísticos. A tabela abaixo, retirada de Goldberg (2004), ajuda a visualizar os diferentes tipos de construções de acordo com o seu tamanho e grau de complexidade interna: Palavra e.g., Avocado, anaconda, and Palavra composta e.g., Daredevil, shoo-in Idioma (preenchido) e.g., Going great guns Idioma (parcialmente preenchido) Construção Covariacional Condicional Construção Bitransitiva (obj duplo) Passiva e.g., Jog <someone’s> memory The Xer the Yer (e.g., The more you think about it, the less you understand) Suj [V Obj1 Obj2] (e.g., He gave her a Coke; He baked her a muffin.) Suj aux SV (Sprepby) (e.g., The armadillo was hit by a car) Tabela 1: Construções – tamanho e grau de complexidade interna No português, um exemplo de construção inteiramente preenchida é chutar o pau da barraca. Outro exemplo é a fórmula conversacional olha só, descrita por Bernardo (no prelo) como uma construção inteiramente preenchida usada para sinalizar “a abertura de 24 um novo (sub)tópico na conversa que reforça a posição do falante, de forma modalizada”. Por sua vez, o padrão jogar X pela janela (descrito por Pulhiese, 2004 à luz da noção de mesclagem conceptual) é apenas parcialmente preenchido. Esse é também o caso da construção Ser de (se) Vinf, subjacente a usos como “é de se supor” ou “é de se imaginar”: conforme descoberto por Pina (2004), trata-se de um angulador pragmático, usado para preservar a face positiva do falante e a face negativa do ouvinte, exprimindo modalidade epistêmica. O padrão apresenta sempre valor semântico cognitivo, que deverá ser atualizado por todos os verbos que o integram, como em “é de se sublinhar” ou “é de se notar”. É também parcialmente aberta a construção condicional proverbial universal Quem P, Q, que define, segundo Jesus e Miranda (2005), uma rede de construções que inclui idiomas abertos (“Quem é demitido por justa causa, tem direito a 40% do saldo do FGTS”), idiomas semi-abertos (“Quem bate cartão, não vota em patrão”) e idiomas formulaicos (“Quem semeia vento, colhe tempestade”). Quanto aos padrões inteiramente abertos, estudos recentes indicam que tanto o inglês (Goldberg & Jackendoff, 2004) quanto o português brasileiro (Leite, 2006) contam, por exemplo, com uma família de construções resultativas, que incluem os seguintes padrões: as resultativas causativas de propriedade (“cortar o linguado em fatias finíssimas”), as resultativas não-causativas de propriedade (“o vidro quebrou em caquinhos pequenos”), as resultativas causativas de trajetória (“Juninho Pernambucano, em cobrança de falta pela direita, rolou a bola para a entrada da área”) e as resultativas não-causativas de trajetória (“a bola rolou montanha abaixo”). O padrão locativo investigado nesta dissertação, uma estrutura biargumental vinculada à noção de continência de uma entidade em um espaço, constitui igualmente um padrão inteiramente aberto, sem especificação fonológica. Finalmente, é preciso comentar que o quadro ilustrativo de Goldberg (2004) não ilustra construções de nível morfológico (que, no entanto, estão previstas no modelo): todas as 25 palavras apresentadas são tomadas como primitivos, e não como a manifestação de padrões lexicais semi-abertos. O português, no entanto, possui, como se sabe, vogais temáticas, que funcionam como classificadores, dividindo verbos e nomes em categorias mórficas. Investigando especificamente as vogais temáticas nominais do português, Nascimento (2006) propõe uma construção genérica correspondente à classe dos substantivos. Essa construção genérica abrange, para o autor, construções de gênero básicas (com a noção de sexo diretamente vinculada à expressão do gênero) e decorrentes (com relação metafórica entre gênero e sexo). Em suma, parece haver um consenso, entre todos os praticantes de alguma vertente da GC, de que as construções gramaticais constituem a unidade básica da gramática das línguas naturais. Para além dessa convicção, contudo, começam a insinuar-se as divergências entre os diferentes modelos auto-intitulados construcionais. Sem dúvida, um dos fatores responsáveis por definir orientações distintas dentro da GC (mas, claramente, não o único) é o interesse prioritário pelas construções mais preenchidas ou mais esquemáticas. Não caberia aqui propor uma síntese contrastiva desse campo de estudos (o que foi feito por Goldberg, 2006, cap. 10), mas seguiremos brevemente as três vertentes identificadas por Salomão (2003), a fim de prepararmos o terreno para a apresentação do modelo goldbergiano, que nos interessa mais de perto. Salomão (2003) reconhece três abordagens distintas: a primeira, encabeçada principalmente por Charles Fillmore e Paul Kay, preocupa-se fundamentalmente com idiomas sintáticos e fórmulas situacionais; a segunda, emblematizada por Brugman (1981) e Lakoff (1987), consiste no estudo das redes polissêmicas; a terceira é a investigação, mais sistemática, de Goldberg (1995) acerca dos padrões argumentais subjacentes às “frases simples” do inglês. À primeira das três vertentes, Salomão (2003) atribui o mérito pelo resgate teórico do conceito de construção gramatical, movimento motivado por um “interesse renovado pelos aspectos semântico-pragmáticos peculiares a determinados idiomas sintáticos” (Salomão, 2003), uma preocupação que se manifesta, pioneiramente, no artigo clássico de Charles Fillmore intitulado Innocence: a second idealization in linguistics. 26 Analogamente à celebrada idealização chomskyana que reconhece um falante/ouvinte ideal (aquele pertencente a uma comunidade lingüística homogênea e que não é perturbado por problemas no “desempenho”), Fillmore desenvolve, nesse texto, a idéia de que as teorias semânticas vêm operando tacitamente com uma idealização que valeria a pena explicitar: a do falante/ouvinte inocente. Resumidamente, esse falante/ouvinte inocente “conhece os morfemas de suas línguas e seus significados; reconhece as estruturas gramaticais e os processos de que os morfemas participam e conhece o conteúdo semântico de cada um”. O grande problema desse sujeito idealizado, que o tornaria bem pouco fluente, seria sua absoluta incapacidade de compreender sentenças cujo significado tenha algum grau de idiomaticidade ou opacidade; ou, inversamente, a de produzir enunciados que contivessem expressões com significado idiomático (como, por exemplo, implicaturas conversacionais). A partir dessa preocupação, inaugura-se uma linha de pesquisas, liderada sobretudo por Paul Kay e Charles Fillmore, que iria gerar trabalhos hoje clássicos na literatura cognitivista e construcional, como a análise da construção “What’s X doing Y?” (Kay & Fillmore, 1999), ilustrada por enunciados do tipo “What are they doing ressurrecting constructions?”, ou o estudo sobre o operador escalar let alone (Fillmore, Kay & O’Connor, 1988). O primeiro caso evidencia, de maneira especialmente clara, a importância de se assumir um nível de análise que postule um pareamento direto entre valor semântico-pragmático e estrutura sintática. Essa posição se baseia na seguinte constatação: embora o recurso à implicatura griceana possa ser suficiente para captar a especificação pragmática de repreensão presente em sentenças como “O que você está fazendo fumando?”, tal explicação torna-se inviável no caso de enunciados tais como “O que a sua letra está fazendo no meu caderno?”, uma vez que não se admite neste caso qualquer possibilidade de uma leitura literal prévia a ser negada por conta da violação a alguma máxima conversacional. 27 O segundo movimento analítico identificado por Salomão é aquele representado pelo estudo das redes polissêmicas, cujo exemplo clássico é o trabalho de Lakoff (1987) sobre as construções com there. Defendendo a compreensão de gramática como “uma categoria radial de construções gramaticais” (Lakoff, 1987, p. 463), o autor distingue aqui dois grandes grupos de construções com there – as dêiticas e as existenciais –, cada qual internamente organizada de modo radial, quer dizer, contendo uma construção central e outras que se afastam desse núcleo. Além disso, refletindo nitidamente a crença na motivação conceptual da forma gramatical, defende-se que a construção existencial central baseia-se na construção dêitica central, de maneira que a única diferença entre as duas residiria na referência do there: na segunda, uma locação concreta; na primeira, uma locação dentro de um “espaço conceptual” (Lakoff, 1987, p. 541). Por fim, a GC de Goldberg (1995 e 2006, entre outros) investe em um estudo construcional daquilo que tradicionalmente se denomina “estrutura argumental dos verbos”. As construções sobre as quais a autora se debruça constituem padrões sintático-semânticos inteiramente abertos, em certo sentido análogos (guardadas as profundas diferenças epistemológicas, evidentemente) ao que Mira Mateus et al. (2003) chamam de “esquemas relacionais” – é o caso da construção bitransitiva ou da construção de movimento causado, para citar apenas dois exemplos. Como é a vertente goldbergiana que fornece o modelo teórico-descritivo adotado aqui, dedicaremos a ela a próxima seção. 2.2.1 A Construction Grammar de Goldberg (1995 e 2006) O ponto de partida do trabalho de Goldberg é a hipótese de que as “grades temáticoargumentais dos verbos” são na verdade construções gramaticais, quer dizer, configurações formais associadas a um significado que lhes é próprio. Por exemplo, a construção bitransitiva, estudada em Goldberg (1995), apresenta a forma SUJ V OBJ OBJ2 e o significado X FAZER Y RECEBER Z. A Construção de Movimento Causado, por sua vez, tem a forma SUJ V OBJ OBL e o significado X FAZER Y MOVER-SE PARA Z. 28 Essas formulações constituem, na verdade, tentativas de apreender proposicionalmente um tipo de conhecimento, ou significado, que não é em sua essência proposicional – pelo menos, a julgar pelo experiencialismo de George Lakoff e Mark Johnson. Na verdade, fórmulas do tipo X FAZER Y MOVER-SE PARA Z são a expressão lingüística de um conhecimento de natureza conceptual e pré-lingüística, capturada no Realismo Experiencial por meio dos esquemas imagéticos que já comentamos. É nesse espírito que Goldberg (1995, p. 39) formula sua Hipótese da Codificação de Cenas (“Scene Encoding Hypothesis”), segundo a qual construções que correspondem a padrões argumentais básicos de uma língua têm sua semântica associada a gestalts experienciais básicos da experiência humana. Nesta dissertação, como já comentado, iremos propor que o cenário gestaltico associado à construção locativa é aquele codificado no esquema imagético dentro-fora. Ao investigar privilegiadamente os padrões inteiramente abertos, Goldberg se ocupa do que é normalmente considerado o “núcleo” dos estudos gramaticais – as sentenças declarativas composicionais do tipo “João deu uma flor para Maria”, que aparentemente seriam “literais” (no sentido de não acionarem significados implícitos, como implicaturas), excluiriam o “contexto” e exibiriam um conteúdo semântico apreensível segundo o seu valor de verdade. Como se vê, sob uma perspectiva construcional, a própria estrutura sintática desencarnada (sem preenchimento lexical) é emparelhada diretamente a uma especificação semântica. Portanto, o verbo não será o único responsável por determinar o significado final da sentença – esse trabalho passa a ser dividido com a construção sintática. Essa premissa é fundamental no modelo goldbergiano e pode ser sintetizada sob a seguinte formulação: a sintaxe não é projetada do léxico. No lugar desse cenário, emerge um modelo no qual construção sintática e construção lexical interagem sob a regulação de princípios específicos. Essa proposta fica clara, por exemplo, no padrão resultativo ilustrado em A inquilina pintou a parede de verde. Aqui, verbo e construção oferecem contribuições distintas para o significado global da sentença. Captada sob a forma X FAZER Y TORNAR-SE 29 Z, a construção indica um estado resultante (“verde”), ao passo que o verbo especifica o meio através do qual esse estado é alcançado (pintando e cortando, respectivamente). De acordo com Goldberg (1995 e 2006), o pólo semântico das construções de estrutura argumental especifica os papéis argumentais previstos por cada padrão. Esses papéis correspondem, grosso modo, aos papéis temáticos pioneiramente postulados por Fillmore (1977)7, e incluem categorias bastante gerais, como agente, paciente e alvo. Já o pólo formal da construção prevê o seu número de argumentos e a relação gramatical de cada um. A notação consagrada em Goldberg (1995) aparece na figura abaixo, em que se representa a construção benefactiva do português: Semântica FAZER RECEBER PRED Sintaxe V < agente recipiente paciente > < > SUJ. OBJ OBJ2 Quadro 1: Construção gramatical benefactiva 2.2.1.1 A interação verbo-construção Para além do significado da construção de estrutura argumental, o modelo de Goldberg (1995) oferece também uma maneira de apreender o significado dos próprios predicadores. Considera-se que o frame semântico de cada verbo especifica os papéis participantes associados a ele. Mais específicos que os papéis argumentais, os papéis participantes constituem um subtipo dos primeiros. Assim, uma sentença como “Luís encaixotou os livros” combina, no sujeito “Luís”, o papel argumental de agente com o papel participante de “encaixotador”. Analogamente, em “Pedro arremessou a bola para a platéia”, combina-se o mesmo papel argumental de agente, previsto pela semântica da construção, com o papel participante “arremessador”, previsto no frame verbal. 7 Mas, como veremos no capítulo 4, não são perfeitamente equivalentes a eles. 30 Aqui, é importante sublinhar a distinção entre papéis participantes e papéis participantes perfilados. Os papéis participantes correspondem a todos os elementos presentes no frame evocado pelo verbo; os papéis participantes perfilados correspondem àqueles que devem aparecer lingüisticamente expressos – ou, nos termos de Goldberg (1995, p. 45), “aqueles que são, em geral, obrigatoriamente expressos em orações finitas”. Para aplicar essa distinção ao português, propomos uma ligeira modificação. Como se sabe, o português admite o cancelamento de constituintes que possam ser recuperados textualmente ou cujos referentes estejam presentes no contexto de fala imediato. Nesse sentido, raramente um constituinte em português é “obrigatoriamente expresso”, mas ainda assim pode-se dizer que ele está sempre sintaticamente presente, ainda que nem sempre fonologicamente realizado. Portanto, neste trabalho, consideraremos perfilados os participantes que devem estar lingüisticamente expressos ou que precisam ser recuperados para a interpretação da sentença. A rigor, após apresentar, no segundo capítulo, a questão do perfilamento dos papéis, com base em Langacker (1987), Goldberg (1995) passa a se ocupar, no restante da obra, apenas dos papéis perfilados. Aqui, no entanto, devemos nos deter um pouco mais sobre essa questão, já que ela será altamente relevante no capítulo cinco. Esse ponto é esclarecido pela autora com base em uma comparação entre a semântica dos verbos rob e steal. Ambos exibem três papéis participantes: o ladrão, o alvo e os bens. Contudo, no caso de rob, apenas os dois primeiros são perfilados; no caso de steal, perfilam-se apenas o primeiro e o terceiro. Como dissemos, é a própria realização sintática que permite detectar quais participantes são perfilados. Esse exemplo ilumina bem o fato de que a semântica de um predicador não pode ser apreendida meramente por meio de uma lista de papéis perfilados. No caso de rob e steal, por exemplo, é importante ter em mente que sua configuração semântica aciona um frame no qual os bens também estão presentes, ainda que não sejam perfilados. É neste ponto que se entrevê com maior nitidez a interseção entre o modelo de descrição sintático-semântica advogado por Goldberg e o instrumental langackeriano – motivo 31 pelo qual nos valemos de conceitos da Gramática Cognitiva no capítulo cinco deste trabalho. Nos termos de Langacker (1987 e 1991), diremos que os bens, assim como o ladrão e o alvo, pertencem ao escopo da predicação desses verbos – entendendo escopo da predicação como o conjunto de todos elementos incluídos no cenário evocado em uma dada predicação. Ainda com Langacker, diremos que se, no caso de rob, o ladrão e o alvo são os elementos perfilados, os bens fazem parte da base, quer dizer, da parte não perfilada de uma predicação. Na notação de Goldberg (1995), apenas os papéis perfilados são indicados em negrito: rob <ladrão alvo bens> steal <ladrão alvo bens> O modelo goldbergiano prevê que os papéis participantes dos verbos sejam fundidos aos papéis argumentais da construção. Essa fusão é exemplificada no esquema abaixo. 1 Sem FAZER RECEBER ENTREGAR Sint V < agente recipiente paciente > < entregador destinatário obj. entregue > SUJ OBJ OBJ2 Quadro 2: Fusão de papéis na construção benefactiva Se é verdade que os papéis participantes do verbo devem ser fundidos com os papéis da construção de estrutura argumental, essa fusão não é aleatória e, segundo Goldberg (1995 e 2006), obedece a dois princípios: o Princípio da Coerência Semântica e o Princípio da Correspondência. O primeiro sustenta a necessidade de compatibilidade entre os papéis do verbo e da construção sintática – por exemplo, um “entregador” é um tipo de agente, de maneira que esse dois papéis são compatíveis. Segundo a autora, esse princípio ecoa mecanismos cognitivos gerais de categorização. Para Goldberg (2006), dados empíricos legitimam o princípio: afinal, a GC é compatível com um modelo de aquisição segundo o qual padrões construcionais são aprendidos a partir da 32 generalização sobre a semântica de sentenças efetivamente ouvidas, o que se dá precisamente por meio de processos gerais, não especificamente lingüísticos, de categorização (Tomasello, 2003). O segundo princípio postula que “todo papel participante que for perfilado e expresso deve ser fundido com um papel argumental perfilado da construção” (Goldberg, 2005, p. 50). Assim como os papéis participantes são intrínsecos a cada verbo, fazendo parte de sua configuração semântica e determinando a maneira como cada um irá construir um determinado cenário, também as construções sintáticas exibem papéis argumentais intrinsecamente perfilados, que correspondem especificamente às relações gramaticais nucleares. O insight por trás do Princípio da Correspondência é a de que papéis participantes perfilados, por serem “altamente relevantes para o significado do verbo” (Goldberg, 2006, p. 40), sejam ligados a papéis argumentais perfilados (aqueles associados às relações gramaticais nucleares). A exceção fica por conta dos verbos com três participantes. Nesses casos, a autora admite que um deles poderá ser associado a um papel argumental não-perfilado, como um oblíquo. Para além do Princípio da Correspondência, que regula a instanciação do padrão construcional a fim de satisfazer a demandas da semântica do item lexical, o modelo goldbergiano prevê também a possibilidade de que papéis argumentais perfilados não sejam associados a nenhum papel participante. Essa possibilidade está na base da dificuldade de classificação do sintagma preposicionado em sentenças como “fiz um bolo para você” ou “comprei uma bicicleta para o meu filho”. Devemos considerá-los nucleares, analogamente ao objeto indireto de sentenças como “dei um presente para ela”, com o qual guardam inegáveis semelhanças, ou é preferível tratá-los como adjuntos, já que não são subcategorizados pelo verbo? 33 Em uma perspectiva construcional, esse impasse não existe. A ambivalência exibida pelos SPreps dos dois primeiros exemplos acima é prevista pelo modelo: ocorre que “para você” e “para meu filho” correspondem a papéis argumentais previstos pela construção bitransitiva mas não equivalem a nenhum papel participante previsto pelo verbos fazer e comprar. Ou seja, quando esses verbos instanciam a construção bitransitiva, o papel argumental de recipiente não se funde a nenhum papel participante, já que fazer e comprar prevêem apenas um agente e um paciente. No caso do verbo dar, a ambivalência não é sentida exatamente porque, aqui, verifica-se uma coincidência perfeita entre os três papéis participantes do verbo – o doador, a coisa doada e o destinatário – e os três papéis argumentais da construção – agente, paciente e recipiente. A esse respeito, Goldberg (2006, p. 42) propõe uma síntese fundamental. Como mostra a autora, a fusão entre papéis argumentais e participantes admite quatro possibilidades lógicas. A primeira é que um determinado constituinte corresponda a um papel argumental da construção e, ao mesmo tempo, a um papel participante do verbo. Esse é o caso prototípico, e nessas situações o constituinte será inelutavelmente um argumento (em oposição a ser um adjunto). É o caso, por exemplo, do sujeito e do objeto de sentenças como “eu chutei a bola” e “Pedro matou Paulo”. A segunda possibilidade lógica é que um determinado sintagma não corresponda nem a um papel argumental previsto pelo padrão nem a um papel participante previsto pelo verbo. Aqui, o que se tem é inequivocamente um adjunto; este é o caso dos sintagmas preposicionados de sentenças como “ele estuda matemática nos EUA” e “vou jogar futebol à noite”. As duas outras possibilidades correspondem a casos, por assim dizer, limítrofes. A primeira delas se manifesta nas situações em que um elemento sintático corresponde a um papel argumental da construção mas não a um papel participante do verbo. É exatamente o caso dos SPreps de fazer e comprar nas sentenças comentadas mais acima. Goldberg (2006, p. 42) considera que se trata de um argumento, muito embora seja contribuição apenas da construção, e não do verbo. 34 A última possibilidade lógica seria aquela em que um elemento corresponde a um papel participante do verbo mas não a um papel argumental da construção. Este seria, presumivelmente, o caso de sentenças como “ele pôs o livro na estante”. Para Goldberg, o alvo “na estante” não corresponde a um papel argumental perfilado, o que seria indicado pelo fato de se tratar de um oblíquo (por isso, o alvo não aparece marcado em negrito nas representações da construção de movimento causado). No entanto, corresponde a um papel participante previsto pelo verbo – o “lugar onde se põe”. Assim, “na estante” seria um argumento resultante apenas da contribuição do verbo, e não da construção. 2.2.1.2 A questão da polissemia construcional Segundo Goldberg (1995, p. 31), construções gramaticais “associam-se tipicamente a uma família de sentidos estreitamente relacionados, e não a um único significado fixo e abstrato”. Um dos argumentos da autora para defender essa tese é tão simples quanto poderoso: se é verdade que palavras e morfemas são quase sempre polissêmicos, e se não existem diferenças qualitativas entre palavras e morfemas, de um lado, e padrões sintático-semânticos, de outro, é de se esperar que esses padrões exibam igualmente um comportamento polissêmico. De fato, a idéia de polissemia construcional tem-se revelado altamente instigante, estudo após estudo. Um dos exemplos clássicos aqui é a investigação da construção bitransitiva do inglês empreendida por Goldberg (1995). A autora mostra que a idéia captada na formulação X FAZER Y RECEBER Z corresponde apenas ao sentido nuclear da construção, ou ao que podemos chamar de subconstrução bitransitiva central. Em português, não há uma construção como a bitransitiva do inglês, que exibe dois objetos diretos. No entanto, a estrutura usada tipicamente para traduzi-la – a construção benefactiva, com objeto direto e indireto – pode ser usada a título de exemplificação, já que seu comportamento semântico, ao menos uma observação preliminar, parece idêntico. Também aqui, há um sentido central apreendido pela fórmula X FAZER Y RECEBER Z, e ilustrado por sentenças como “João deu uma flor para Maria” ou “Ele levou água para os convidados”. Além desse sentido central, porém, há outras cinco 35 extensões polissêmicas, exatamente como mostra Goldberg para o inglês. Em suma, as seis subconstruções bitransitivas identificadas são as seguintes: A. Sentido central: agente realiza transferência bem-sucedida de paciente a recipiente Ex: João deu uma flor para Maria. B. Condições de Satisfação implicam que o agente de fato realize uma transferência de paciente para o recipiente Ex: Ela prometeu uma bicicleta para o filho C. Agente faz recipiente não receber paciente Ex: O professor negou a revisão da prova ao aluno. D. Agente faz recipiente receber paciente em algum momento futuro Ex: Ela reservou um quarto para os dois. E. Agente permite que paciente receba recipiente Ex. O juiz permitiu a vitória ao Botafogo F. Agente pretende fazer recipiente receber paciente Ex: João fez uma torta para Maria. No modelo goldbergiano, a polissemia construcional deverá ser captada por meio de uma rede que contará com um significado prototípico nuclear e extensões polissêmicas. Como explica Goldberg (1995, p. 76), cada irradiação polissêmica “constitui uma construção minimamente diferente, motivada pelo sentido central”. Aqui, é importante sublinhar que as construções motivadas (quer dizer, as extensões polissêmicas) herdam a estrutura sintática do sentido central. Desse modo, tem-se uma única forma ligada a um conjunto de sentidos distintos porém relacionados, caracterizando precisamente uma situação de polissemia. Conforme já comentamos, abordagens construcionais entendem que a gramática de uma língua equivale a um inventário articulado e motivado de construções. O modelo goldbergiano reconhece explicitamente esse fato postulando a existência de links de herança entre os padrões construcionais. Esses links captam o fato de que um padrão pode motivar, formal e semanticamente, o surgimento de outro. No caso de construções 36 polissêmicas, considera-se, como já se disse, que cada nó da rede corresponde a uma subconstrução minimamente distinta do nó central e motivada a partir deste. Goldberg (1995) propõe dar conta dessa hipótese postulando a existência, entre o centro da rede e cada uma de suas extensões polissêmicas, de um link de polissemia – IP (Inheritance Polisemy), neste trabalho traduzido como HP (Herança por Polissemia)8. No caso das construções de estrutura argumental, a polissemia decorre do fato de que se trata de padrões abertos, de maneira que podem ser instanciados por uma série de verbos diferentes. Assim, o que se tem verificado é que cada grupo ou grupos de predicadores define uma subconstrução dentro da rede polissêmica. Por exemplo: na construção bitransitiva, verbos de criação (cozinhar, fazer, construir, etc.) definem (ao lado de outros) a extensão polissêmica F, ao passo que verbos de negação (negar, recusar) definem a extensão C. Em suma, a investigação goldbergiana das “frases simples” do inglês tem evidenciado a possibilidade de instanciação de um número razoável de verbos em cada construção, ao mesmo tempo em que tem revelado, estudo após estudo, o fenômeno da polissemia construcional. Essas duas premissas – o fato de que um mesmo padrão argumental pode ser instanciado por diferentes verbos e o princípio da polissemia construcional – não são de modo algum independentes. A relacioná-las, está o fato de que os potenciais instanciadores da construção agrupam-se em subclasses de predicadores. Cada subclasse equivalerá, na rede, a um nó ou subconstrução. Neste ponto, concluímos nossa apresentação das linhas gerais da Lingüística Cognitiva e da Gramática das Construções. Estamos agora em condições de passar, no próximo capítulo, para uma investigação do conceito de locatividade, como primeiro passo para o desenvolvimento desta pesquisa. 8 Os outros links de herança são por subparte, instância e extensão metafórica (Goldberg, 1995, cap. 3). 37 3. O CONCEITO DE LOCATIVIDADE Este capítulo se divide em três partes. Inicialmente, estabelecemos uma distinção entre as noções de existência e locatividade, a fim de reconhecer a existência de dois padrões construcionais: um existencial e outro locativo. Em seguida, tendo focalizado nossa investigação apenas sobre o padrão locativo, apresentamos uma proposta para a descrição do conceito de locatividade. Por fim, encerramos com uma comparação entre a nossa proposta e aquela sugerida em Langacker (1991 e 2004). 3.1 Os conceitos de Existência e Locatividade Na introdução deste trabalho, anunciamos nosso interesse por sentenças como (1), abaixo: (1) Tem um gato em cima do tapete. Tipicamente, sentenças desse tipo têm sido chamadas de existenciais (cf. Lakoff, 1987; Heine, 1997; Davidse, 2000; Clark, 1978; Lyons, 1968; Franchi, Negrão & Viotti, 1998; Viotti, 1992; dentre muitos outros). Talvez por soar tão intuitiva, essa denominação acaba freqüentemente dispensando uma definição prévia da noção de existência, como se se tratasse de um conceito bem estabelecido ou auto-evidente. No uso corrente, porém, é possível reconhecer, pelo menos, dois significados associados a termos como existência ou existir: (2) Deus / Papai Noel / Político honesto existe. (3) Existe água em Marte. Mesmo antes de qualquer análise mais aprofundada, pode-se dizer que apenas em (3) atesta-se a presença de um ente (aqui, uma substância) em um espaço delimitado. Em (2), diferentemente, afirma-se o estatuto de realidade dos referentes dos SNs (em oposição à crença socialmente disponível de que se trataria de categorias fictícias). 38 A despeito da pouca atenção usualmente dada ao problema das “duas existências”, não reivindicamos aqui qualquer ineditismo ao fazê-lo. Há pelo menos dois outros autores que já atentaram para essa questão: Heine (1997) e Langacker (2004). O primeiro detecta essa diferença no contexto de uma investigação diacrônica acerca das fontes trans-lingüísticas das estruturas destinadas à expressão do conceito de posse. O autor parte da noção de esquemas de evento, definidos por Francis (2000), em resenha ao trabalho de Heine, como “padrões proposicionais simples que consistem em um predicador mais os seus argumentos e modificadores”. Nas palavras do próprio Heine (1997: 46), esses esquemas “possuem as propriedades comumente associadas aos esquemas: sintetizam atributos abstraídos de um vasto número de eventos relacionados, e têm a ver com as situações estereotipadas com as quais nos deparamos freqüentemente”. Para Heine, seriam oito os esquemas de evento que normalmente originam as construções de posse: Action, Location, Companion, Genitive, Goal, Source, Topic e Equation. Destes, os esquemas que aqui traduziremos como Genitivo (Genitive), Alvo (Goal) e Tópico (Topic) se agrupam sob a rubrica de um outro mais geral, o Esquema de Existência (Existence Schema). Isso significa que esses três esquemas apresentariam, em sua origem, valor existencial, tendo evoluído posteriormente para expressar um significado possessivo. O que é importante notar, aqui, é que esses três esquemas correspondem a padrões biargumentais; quer dizer, todos eles apresentam, nos termos do autor, “a expressão existencial mais algum participante original, codificado em uma expressão de caso oblíquo” (Heine, 1997: 96). O autor apresenta a seguinte “descrição formulaica” (Heine, 1997: 47) desses esquemas: (i) Genitivo: X’s Y exists (ii) Alvo: Y exists for/to Y (iii) Tópico: As for X, Y exists 39 Por outro lado, o autor reconhece também a existência de um esquema de evento existencial monoargumental, apreendido pela fórmula ‘Y exists’. Para diferenciar os dois padrões – o arqui-esquema biargumental que engloba as três estruturas acima e o esquema monoargumental – Heine chama o primeiro de “existência estendida” (ou apenas “existência”) e o segundo, por contraste, de “existência nuclear”. Diante desse cenário, o autor observa que apenas o Esquema de Existência funciona, diacronicamente, como fonte para geração de padrões possessivos, via gramaticalização. O Esquema de Existência Nuclear, inversamente, seria originado, igualmente, via gramaticalização, a partir das construções de posse. Em suma: a “existência estendida” seria fonte diacrônica de padrões possessivos, ao passo que a “existência nuclear” seria, ao contrário, o resultado da gramaticalização desses padrões. Enfim, em que pese a crítica que apresentamos em outro lugar à proposta de Heine (Gerhardt & Pinheiro, 2004), o fato é que o diferente comportamento verificado pelo autor, em estudo diacrônico e trans-lingüístico, parece corroborar a idéia de que existem dois padrões existenciais distintos: um monoargumental e outro biargumental. Nessa mesma direção, embora dentro de um quadro teórico consideravelmente distinto, move-se a proposta de Langacker (2004). Assim como Heine, é também no contexto mais amplo de uma investigação da construção possessiva que este autor acaba por propor uma distinção entre os dois padrões existenciais. Antes de fazê-lo, porém, Langacker define o conceito de posse em termos do que ele chama de habilidade de ponto-de-referência. Essa definição remonta à proposta delineada já no segundo volume de suas Foundations (Langacker, 1991). Nesta obra, o autor hipotetiza que as construções possessivas evocam um modelo cognitivo idealizado ao qual denomina modelo do ponto-de-referência. Esse modelo representa um mundo (W) povoado de objetos que, por sua saliência perceptual, têm o potencial de servir como pontos-de-referência para a identificação de outras entidades. Cada um desses objetos ancora uma região – seu domínio. O autor explica que “dependendo dos objetivos de cada um, o domínio de um ponto-de-referência pode ser caracterizado de 40 duas maneiras: ou como as regiões a ele adjacentes em W, ou como o conjunto de objetos que ele pode ser usado para localizar”. Assim, se um falante se refere, por exemplo, ao “brinco da Tati”, ele está se valendo da entidade Tati – perceptualmente saliente – para permitir ao interlocutor a localização, ou identificação, da entidade brinco. Seria essa, pois, a propriedade compartilhada por todas as expressões possessivas. Nos termos de Langacker (1991:171), a posse abstrata é simplesmente um tipo de relação em que um sujeito “traça mentalmente um caminho através do ponto-de-referência até o alvo; o ponto-de-referência constitui o possuidor, e o alvo, a entidade possuída”. Em Langacker (2004), a posição é mantida. Em ambos os textos, sobressai a preocupação do autor em buscar uma conceituação da posse abstrata o suficiente para dar conta de toda a multiplicidade de usos ditos possessivos, desde “meu time” até “meu carro”, passando por “meu ônibus”, “minha intuição”, “meu analista”, “o berço do bebê” etc. Para Langacker, a habilidade de ponto-de-referência corresponderia a essa conceituação, já que se trata de uma capacidade cognitiva “suficientemente abstrata e flexível para acomodar todo o conjunto de expressões possessivas”, por ser “independente de qualquer conteúdo conceptual particular” (Langacker, 2004). Assim, para o autor, o esquema abaixo representa convenientemente a contribuição semântica das construções possessivas: P D A C = conceptualizador P = ponto de referência A = alvo D = domínio = percurso mental C Figura 1: Esquema conceptual das construções possessivas É a partir dessa caracterização esquemática da noção de posse que Langacker (2004) parte para uma (breve) explanação dos conceitos de existência e locatividade. Sua tese central é a seguinte: assim como a construção possessiva, o padrão locativo também 41 “identifica a região delimitada onde uma entidade pode ser encontrada por meio da evocação de um objeto referencial”. No caso das locativas, o “objeto referencial” deverá ser, necessariamente, um marco (landmark) espacial, a partir do qual será estabelecido um domínio de busca. O diagrama abaixo, retirado de Langacker (2004), deverá ajudar a esclarecer esse ponto: lm O tr A C = conceptualizador O = objeto referencial A = alvo da busca D = domínio de busca = trajeto da busca D C Figura 2: Esquema conceptual da locatividade Como ilustração, tomemos o exemplo apresentado no mesmo trabalho: (4) An unicorn is in the garden. Neste exemplo, o alvo da busca é o unicórnio, ao passo que o “jardim” funciona como o objeto referencial que irá delimitar o domínio de busca, a ser especificado pela preposição “em”9. O autor distingue claramente esse tipo de sentença daquelas rotuladas de existenciais. Em Langacker (2004), o único exemplo de sentença existencial oferecido é o seguinte: (5) An unicorn exists. Comparando (4) e (5), fica claro que, no primeiro caso, “restringe-se a locação do unicórnio a uma região espacial delimitada, o que implica que, se alguém procurar nessa região, irá encontrá-lo”. No segundo caso, ao contrário, “não se saberá onde procurar”, uma vez que a “predicação existencial implica que o unicórnio pode ser encontrado, 9 Langacker (2003) assinala que a preposição in constitui “o caso especial em que o domínio de busca e o objeto referencial são basicamente coextensivos”. 42 que, se você puder procurar em todos os lugares, irá encontrá-lo em algum lugar, mas não faz nada, ela própria, para restringir o domínio de busca” (Langacker, 2004). É com base nessa distinção que o autor opta por rotular como locativa apenas a construção representada em (4), reservando o rótulo existencial para aquela expressão que contém uma “especificação locativa genérica, maximamente esquemática [...] no que tange à localização do unicórnio dentro do seu domínio de existência”. A distinção é diagramada assim: (a) Locatividade = domínio de existência = entidade sendo situada (b) Existência = região delimitada = relação locativa Figura 3: Distinção entre locatividade e existência Dessa maneira, em uma sentença como “As fotos estão dentro da caixa”, o referente do SN “as fotos” é o alvo da busca. Para encontrá-lo, porém, procuramos, em primeiro lugar, pela “caixa”, que irá constituir assim nosso objeto referencial. A partir desse objeto, estabelece-se um domínio do busca (no caso, o interior da caixa, por conta da locução prepositiva “dentro de”), em cujos limites as fotos deverão ser encontradas. O autor, infelizmente, não se detém longamente sobre esse ponto: assim como no estudo de Heine (1997), as construções existenciais e locativas só comparecem aqui de modo indireto, ao serem contrastadas com os padrões possessivos. Ainda assim, as considerações acima parecem nos autorizar a tirar algumas conclusões. 43 Antes de mais nada: o esquema (b) da figura 3, “maximamente esquemático”, parece poder ser associado diretamente às sentenças do nosso exemplo (2), repetido abaixo como (6): (6) Deus / Papai Noel / Político honesto existe. Passemos agora ao diagrama (a), que busca apreender a noção de locatividade. A nosso ver, essa representação é capaz de recobrir não apenas sentenças como (4), conforme o exemplo fornecido pelo autor, mas também os nossos exemplos (1) e (3). Afinal, também nesses casos, “restringe-se a locação” do referente do SN “a uma região espacial delimitada, o que implica que, se você procurar nessa região, irá encontrá-lo”. De acordo com esse raciocínio, apresentamos até aqui, neste capítulo, três exemplos distintos de sentenças locativas, irmanadas pelo fato de fazerem, todas elas, remissão a uma mesma habilidade humana de ponto-de-referência com marco espacial. Os três exemplos são repetidos abaixo por conveniência: (7) Tem um gato em cima do tapete. (8) Existe água em Marte. (9) O unicórnio está no jardim. Todas essas sentenças parecem se conformar à perfeição ao esquema representado na figura 2. Se, em (9), como dissemos, o “unicórnio” é o alvo da busca e o “jardim” corresponde ao objeto referencial, cujo domínio de busca é especificado pela preposição “em”, em (7) e (8) as coisas não se passam de maneira diferente. Em (7), o alvo da busca é um representante genérico da categoria gato, o objeto referencial é o “tapete” e o domínio de busca é especificado pela locução prepositiva “em cima do”. Em (8), o alvo é alguma porção da categoria “água”, o objeto referencial é “Marte” e o domínio de busca é especificado pela preposição “em”. De fato, a caracterização sugerida pelo autor parece bastante intuitiva. Como Langacker mostra, em ambas as construções a existência é relativizada a um determinado domínio, de maneira que a diferença parece efetivamente residir no grau de delimitação desse 44 domínio. Em uma sentença como (6), afirma-se que Deus existe no mundo real, no espaço da realidade. Aqui, portanto, o marco espacial é tão amplo que coincide com o domínio – o que o torna evidentemente inútil para fins de localização. Em (7), o representante referido da categoria “gato” não deixa de estar presente no espaço da realidade – mas, aqui, delimita-se a região dentro desse espaço onde ele pode ser encontrado (“em cima do tapete”), ou seja, delimita-se o domínio de busca. Ao invocar os trabalhos de Heine (1997) e Langacker (2004), nosso objetivo foi deixar reconhecida a existência de duas construções distintas, cada qual evocando a sua própria representação conceptual: uma existencial monoargumental, sem o sintagma locativo, e uma locativa biargumental. Um teste formal simples pode confirmar a opção por postular a existência de duas construções separadas: apenas em (10) o verbo “existir” pode ser substituído por “ter” sem assumir uma leitura possessiva. (10) Deus existe. (11) Existe uma falha na sua argumentação. (12) *Deus tem. (13) Tem uma falha na sua argumentação. Neste momento, podemos finalmente anunciar o recorte reivindicado aqui: nosso foco recai, é claro, apenas sobre aquilo que Langacker (2004) chama de locatividade – vale dizer, a “existência” que “restringe o domínio de busca” do referente do sintagma nominal10. Com base nessas considerações, assumimos a existência, no PB, de uma construção locativa. Dessa maneira, podemos passar para uma investigação desse padrão segundo o referencial teórico que escolhemos: a vertente goldbergiana da Gramática das Construções (Goldberg, 1995 e 2006, dentre outros). Antes de mais nada, com base na Hipótese da Codificação de Cenas postulada em Goldberg (1995), cabe perguntar: a que cena básica remete a construção locativa? É o que buscamos responder na próxima seção. 10 Essa caracterização é apenas preliminar e será problematizada adiante 45 3.2 A qual cena básica remete a construção locativa? Conforme comentamos no capítulo anterior, é precisamente esta questão que une a pesquisa atual a nosso trabalho anterior (Gerhardt & Pinheiro, 2004). O motivo pelo qual optamos por reconvocá-la aqui é simples: sem oferecer uma descrição do conceito de locatividade, não seria possível sequer definir nosso objeto de estudo. No trabalho mencionado, a noção de locatividade foi estudada sob uma ótica específica: a da sua relação com o conceito de posse, evidenciada em pares como (14) e (15) abaixo. (14) Tem muitas praias no Rio de Janeiro. (15) O Rio de Janeiro tem muitas praias. À época, aliás, recorremos a rótulos diferentes: consideramos que a construção presente em (14) seria existencial, em oposição ao padrão possessivo de (15). Nosso objetivo, naquele momento, era buscar uma explicação para a relação, observada em um semnúmero de línguas, entre as sentenças possessivas e existenciais. Sob a ótica experiencialista, é evidente que essa relação só poderia ser, primariamente, conceptual, e não formal. Chegou-se então à hipótese de que as noções de posse e existência estariam, ambas, codificadas no esquema imagético dentro-fora (cf. Johnson, 1987: 52), que apresenta um ente inserido em uma região de fronteiras delimitadas: assim, ter é ser um espaço que contém algo, enquanto existir é ser um elemento contido dentro de um espaço. Essa breve paráfrase, por sua vez, já aponta para outra conclusão relevante: a de que a distinção entre as noções de posse e existência reside nas diferentes focalizações aplicadas sobre o esquema imagético para cada um dos casos. Dito de outra maneira: o conceito de posse implica a visualização do esquema dentro-fora com foco sobre o continente, enquanto a noção de existência, embora remeta ao mesmo cenário objetivo, incorpora, na representação desse cenário, o foco sobre o conteúdo. Convencionamos representar assim essa distinção: 46 POSSE X EXISTÊNCIA X Figura 4: As conceptualizações de posse e existência a partir do esquema imagético dentro-fora Quando falamos em foco, reportamo-nos ao trabalho de Talmy (2000) sobre o conceito que o autor denomina windowing, e que diz respeito às múltiplas possibilidades de enquadramento ou focalização lingüístico-conceptual dentro de um mesmo cenário. Nessa obra, o conceito de windowing é utilizado apenas para explicar usos em que determinado participante do cenário é lingüisticamente cancelado, como em “A tinta está descascando” e “A parede está descascando”, nos quais se subfocaliza, respectivamente, a parede e a tinta. Este não é, evidentemente, o nosso caso, já que não há cancelamento fonológico de constituintes. No entanto, Talmy define a noção de windowing de maneira propositalmente elástica, descrevendo o processo como uma forma de distribuir a atenção sobre os elementos das cenas, em que algumas porções situam-se em posição de figura, ao passo que outras assumem condição de fundo (Talmy, 2000, p.258). Tendo feito isso, o autor explicitamente sinaliza a possibilidade que esse conceito seja usado para outros fenômenos análogos, sem que haja obrigatoriamente o cancelamento fonológico de constituintes. Dada essa definição e essa ressalva, pareceu-nos razoável lançar mão, aqui, dessa noção desenvolvida por Talmy, a fim de captar o elemento focalizado e o subfocalizado em cada caso. Uma outra maneira de dar conta da mesma distinção é recorrendo aos conceitos langackerianos de trajector, ou vetor, e landmark, ou marco. O primeiro pode ser 47 definido como o elemento mais saliente em uma relação de predicação, ou aquele caracterizado como a “figura dentro de um perfil relacional” (Langacker, 1987, p. 217). O marco, por sua vez, é “naturalmente visto (em instâncias prototípicas) como provedor de pontos de referência para localizar o vetor” (Langacker, 1987, p. 217). Dessa maneira, é possível apreender a distinção entre posse e existência sustentando que, no primeiro caso, o contêiner é o marco, e o conteúdo, o vetor, ao passo que, no segundo, essa relação se inverte. Essa proposta, aliás, aparece explicitamente em Langacker (1987, p. 217-218) e Langacker (1991, p. 172). Aqui, cabe dizer que, no capítulo cinco, quando voltarmos à questão da relação posse-existência (esta última já então renomeada como locatividade), adotaremos o instrumental de Langacker apenas por uma questão de coerência: nesse mesmo capítulo, muitos outros conceitos importados da Cognitive Grammar estarão presentes. Tendo feito esses esclarecimentos, podemos voltar ao esquema imagético e suas diferentes focalizações. Acreditamos que seja simples entender de que maneira a nossa proposta para o par posse/existência pode dar conta de sentenças do tipo (14) e (15) acima, nas quais existe de fato um contêiner físico (no caso, o “Rio de Janeiro”). Menos simples, porém, é admitir que esse esquema imagético possa recobrir a miríade de significados usualmente associados à noção de posse (cf. Langacker 1987 e 2004), como relação interpessoal (“tenho um médico ótimo”, “tenho dois bons amigos”), algo que está a serviço ou à disposição de alguém (“só tenho um ônibus pra voltar pra casa”) ou mesmo a noção alegadamente mais prototípica (Langacker, 1987 e 2004) de propriedade (“tenho só dois relógios”). Em Gerhardt & Pinheiro (2004), delineamos uma proposta para dar conta de toda a multiplicidade de usos ditos possessivos. Aqui, iremos apresentá-la sucintamente. Observem-se as sentenças abaixo: (16) Minha biblioteca tem uns 300 livros. (17) Não dá pra ter raiva dela. (18) Essa piada não tem a mínima graça. (19) Minha vida tem umas histórias incríveis. 48 (20) Eu tenho histórias incríveis (para contar). (21) A Tati tem dezenas de bichos de pelúcia. (22) Eu tenho um ótimo médico para te indicar. (23) Eles não têm time. A sentença (16) se conforma à perfeição ao padrão dentro-fora: o sujeito “Minha biblioteca” corresponde ao círculo do esquema, ao passo que o objeto “uns 300 livros” equivale ao “X”. Em (17) e (18), dá-se algo quase idêntico, com a diferença de que o SN sujeito codifica um espaço metafórico – respectivamente, o próprio corpo do sujeito (cf. Lakoff, 1987 com a descrição das projeções metafóricas que compõem nosso entendimento do conceito de raiva) e a palavra (cf. Reddy, 1979, com a metáfora do conduto). Em (19), uma vez mais, “Minha vida”, dentro da qual estão as “histórias incríveis”, é um espaço de natureza metafórica, composto por todos os elementos que comparecem no horizonte perceptual e conceptual do indivíduo – é o mundo que ele “enxerga” (literal e metaforicamente), o universo pelo qual transita. Nas sentenças (20) a (23), sobrepõe-se a essa metáfora uma projeção metonímica. Em todas elas, esse “espaço metafórico” da vida é referido metonimicamente pela sua entidade mais saliente, que irá delimitar, com a sua percepção/concepção, as fronteiras e horizontes do espaço: o próprio sujeito que vive essa vida. Lançando mão dessas projeções figurativas, nossa hipótese é capaz de dar conta não apenas da relação entre locatividade e posse, como também da miríade de significados assumidos pelas sentenças possessivas. Assim, esperamos ter conseguido provar a viabilidade e consistência da representação conceptual que propusemos aqui para as noções de posse e locatividade. Em resumo, deixamos estabelecida nossa hipótese de que a representação conceptual da locatividade corresponde ao esquema imagético dentro-fora. De fato, a sentença (14) acima, que chamamos antes de existencial, é um exemplo inequívoco do conjunto 49 de sentenças que neste momento denominamos locativas. A opção terminológica, como já dissemos, segue Langacker (2004) e tem uma justificativa: julgamos mais adequado reservar o rótulo existencial para o padrão monoargumental utilizado para afirmar ou negar o estatuto de realidade de uma categoria (“Papai Noel existe”, “Político honesto não existe” etc.). Com esta breve retomada, então, esperamos deixar respondida a pergunta (i), apresentada no início deste capítulo: a representação conceptual da noção de locatividade, codificada no esquema imagético dentro-fora, corresponde a um cenário de continência de uma entidade em um contêiner de fronteiras delimitadas espacialmente, com foco sobre o conteúdo. 3.3 O conceito de locatividade: breve comparação A esta altura, deve estar evidente a discrepância entre a nossa conceituação da noção de locatividade, baseada no cenário experiencial dentro-fora, e a conceituação langackereana, segundo a qual uma expressão locativa (assim como uma expressão possessiva) se assentaria na habilidade de ponto-de-referência. Diante desse impasse, pretendemos justificar nesta seção a preferência pela proposta adotada neste trabalho, em detrimento daquela delineada por Langacker (2004). Por sua ligação visceral com o realismo corporificado de Lakoff & Johnson (1980 e 1999), denominaremos nossa própria proposta de abordagem experiencialista. A proposta de Langacker (2004), por seu turno, será chamada de abordagem abstracionista. A abordagem abstracionista entende que a locatividade se relaciona a uma capacidade cognitiva – especificamente, a capacidade que Langacker (2004) irá chamar de “habilidade de ponto-de-referência”. Trata-se, nas palavras do autor, da “nossa capacidade de invocar uma entidade concebida como um meio de estabelecer contato mental com outra, isto é, acessar mentalmente uma entidade por meio de outra” (grifo no original). Como se viu, uma estrutura locativa, bem como uma estrutura possessiva, forneceria um objeto referencial capaz de delimitar um domínio de busca dentro do qual deverá ser encontrada/identificada a entidade-alvo. 50 Se essa é a semelhança entre locatividade e posse, Langacker (2004) também dá conta da diferença: no caso da locatividade, o objeto referencial de busca corresponde a um marco espacial, e o domínio de busca será a região delimitada pela preposição relativamente ao objeto referencial; na posse, o objeto referencial é uma entidade, e o domínio de busca será definido como a “região” constituída pelos elementos mentalmente associados ao objeto referencial no “mapa cognitivo” (a expressão está em Langacker, 2004) do sujeito conceptualizador. No entanto, se o autor evidencia uma diferença entre as representações da locatividade e as da posse – entendidas na verdade como pequenas variações de um mesmo e único arquétipo conceptual ligado à noção de ponto-de-referência –, uma outra distinção entre as duas representações não é em nenhum momento trazida à luz. Se digo “meu pai”, o objeto referencial codificado linguisticamente no possessivo permite que o ouvinte saiba de qual pai estou falando. Se, por outro lado, alguém afirma que “o unicórnio está no jardim”, o objeto referencial “no jardim” não me leva a saber sobre qual unicórnio se está falando (se algum elemento realiza essa função, este é o determinante definido) – ou seja, aqui, o ponto-de-referência não me permite encontrar o unicórnio no meu “mapa cognitivo”, mas no mundo. Em suma: nos dois casos, então, o ponto-de-referência delimita a busca e assegura que eu não precise procurar o referente do SN sujeito entre todos os pais do mundo, nem precise procurar o unicórnio em todos os lugares possíveis. No entanto, trata-se de buscas diferentes: uma, no “mapa cognitivo”; a outra, fora dele. O primeiro caso corresponde ao tipo de localização/identificação promovido pelas estruturas possessivas, como fica claro na seguinte passagem de Langacker (1991, p. 170), que trata especificamente da representação conceptual da posse: “o conceptualizador localiza um objeto no momento em que estabelece contato mental com ele (pinçando-o para fins de identificação individual consciente)”. O segundo caso, por sua vez, diz respeito ao tipo de localização/identificação promovido pelos enunciados locativos. O problema é que essa distinção em nenhum momento é explicitada, de maneira que expressões como “acesso mental” ou “encontrar” acabam por assumir uma certa 51 ambivalência. Ora, trata-se de ancorar discursivamente um referente, o que implica, dentro do espírito da Cognitive Grammar, estabelecer um percurso mental de uma entidade conhecida e conceptualmente saliente para uma entidade desconhecida. Ora, trata-se de indicar a região (física ou abstrata, mas não cognitiva) onde um referente poderá ser achado. O problema é que a existência dessa distinção simplesmente fica escamoteada pelo fato de o léxico empregado ser rigorosamente o mesmo nos dois casos – “acesso mental”, “localizar/localização”, “domínio de busca”, “ponto de referência”, “alvo” etc. Evidentemente, o que permite o emprego dos mesmos itens lexicais para os dois casos é o fato de que a atividade de acesso mental de uma entidade é conceptualizada nos termos de uma busca por um objeto físico. De fato, a própria expressão “mapa cognitivo” é intrinsecamente metafórica. Nesse sentido, nos dois textos que analisamos, são freqüentes afirmações do tipo: “se o observador (“viewer”) sabe que um objeto não-saliente está próximo (“lies near”) de um saliente, poderá encontrá-lo (“find it”) dirigindo sua atenção para este último e procurando em sua vizinhança (“in its vicinity”)” (Langacker, 1991, p. 170). Ocorre que, quando se trata de uma expressão possessiva como “o sobrinho do Andrew” (o exemplo aparece em Langacker, 2004), não há propriamente um “observador”, mas um conceptualizador, e o sobrinho não está “na vizinhança” ou fisicamente “próximo” do Andrew, mas conceptualmente relacionado a ele. O que estamos procurando mostrar, claro, é que a própria formulação da abordagem abstracionista é intrinsecamente figurativa. O ponto aonde gostaríamos de chegar é o seguinte: concordamos com Langacker quando ele afirma que, em enunciados possessivos e locativos, constrói-se uma cena na qual uma entidade é conceptualizada como estando presente no domínio de outra (até aqui, nossa proposta é idêntica). Essa afirmação, porém, quase nunca pode ser tomada literalmente: quando se fala no “sobrinho do Andrew”, o “domínio dentro do qual” o Andrew “se inclui” é, evidentemente, metafórico. Nesse sentido, nossa proposta não é tão discrepante da de Langacker quanto pode parecer à primeira vista. A diferença 52 crucial é que certas formulações que o autor parece tomar literalmente são consideradas por nós como conceptualizações de natureza figurativa. O corolário disso é o seguinte: para que a explicação esteja completa, será necessário dar conta das projeções figurativas envolvidas no processamento dos enunciados possessivos e locativos – uma preocupação que, definitivamente, não comparece na proposta abstracionista. A argumentação de Langacker (1991), ao propor uma caracterização conceptual da posse, parte da constatação de que são múltiplos e ininventariáveis os usos normalmente entendidos como possessivos (vale dizer, aqueles que se manifestam em um SN determinado por pronome possessivo, ou, em inglês, por meio do ’s de genitivo). Diante dessa perplexidade, o autor enfatiza a necessidade de se buscar uma “caracterização esquemática” (Langacker, 1991, p. 170), que não se prenda especificamente a nenhum dos usos da posse e ao mesmo tempo seja capaz de recobrir e abranger todos eles. Em nossa proposta, de maneira diametralmente oposta, elegemos um uso como aquele experiencialmente mais básico e interpretamos todos os demais como extensões figurativas do primeiro. Langacker (1991, p. 169), porém, ao iniciar sua explanação sobre a “posse abstrata”, se mostra cético quanto a essa possibilidade. O autor chega a assumir, sem maiores justificativas, que três das relações de posse sejam mais básicas, ou prototípicas, que as demais – quais sejam, parte/todo (“ele tem uma boca grande”), parentesco (“tenho uma irmã”) e propriedade (“tenho um carro”)11. A partir daí, porém, constata a dificuldade de se motivar “todas as outras [relações] exclusivamente como extensões metafóricas a partir destas”. Essa explanação parece indicar que nossas divergência em relação à proposta de Langacker são duas. A primeiro: o autor assume que os protótipos culturais da posse (dentre os quais sobressai, a nosso ver, a noção de propriedade) como possíveis domínios-base de uma projeção metafórica que permitissem a expansão da categoria. Sob o prisma do realismo experiencial, os conceitos devem remeter, primariamente, para noções espaciais concretas, que o ser humano é capaz de experienciar diretamente. Nesse sentido, não cabe tomar as noções de parte/todo, parentesco e propriedade como 11 Em Langacker (2003), a mesma postura é assumida: aqui, o autor comenta que o status de prototipicidade dessas três relações “parece bastante evidente” (“seems fairly evident”). 53 as mais básicas – embora sejam inequivocamente, a nosso ver, os sentidos mais facilmente reconhecíveis, em uma reflexão consciente do falante, como ligados à noção de posse12. A segunda: Langacker assume que apenas projeções metafóricas poderiam exercer o papel de motivar imaginativamente ou figurativamente a expansão dos conceitos. Em nossa abordagem, como se viu, enxergamos também uma projeção metonímica, que se sobrepõe à metáfora inicial. Dessa maneira, foi possível dar conta de todos os sentidos usualmente associados à noção de posse. Assim, nossa abordagem é capaz de explicar em que sentido, exatamente, é possível dizer que, na expressão “o sobrinho do Andrew”, uma entidade é situada dentro do domínio de outra. Segundo nossa hipótese, como se viu, o domínio de busca estabelecido pelo objeto referencial Andrew é o espaço metafórico de sua existência, composto pelo conjunto de todas as entidades que em alguma medida comparecem no horizonte perceptual/conceptual do indivíduo. Ademais, quando se fala no “sobrinho do Andrew” (e não no “sobrinho do espaço metafórico de existência do Andrew”), está-se produzindo um enunciado metonímico, com a substituição desse “espaço metafórico” pela entidade mais saliente a ocupá-lo (e, mais do que isso, a determinar seus horizontes): o Andrew-em-pessoa. Dessa maneira, damos conta do fato de que a inclusão de um objeto no domínio (metafórico) de outro mais saliente – hipótese de Langacker para descrever o substrato conceptual da posse/locatividade – não pode se dar senão pela remissão a uma cena experiencial em que essa inclusão se verifica concretamente. Estamos falando, evidentemente, da cena codificada pelo esquema imagético dentro-fora, que funcionará então, conforme sustentamos, como o fundamento conceptual a partir do qual será possível proceder a outras “inclusões” figurativas (metafóricas e metonímicas). Em suma, concordamos com Langacker no que diz respeito ao insight de que um mesmo arquétipo conceptual subjaz tanto à noção de posse quanto à de locatividade. No 12 A própria especialização semântica do verbo possuir, mais natural nesses contextos prototípicos, é um argumento que favorece essa tese. 54 entanto, em consonância com a Hipótese da Codificação de Cenas postulada em Goldberg (1995), elegemos um valor da posse/locatividade como o mais básico – não por acaso, aquele diretamente vinculado às nossas experiências sensório-motoras – e procuramos mostrar como todos os outros são motivados a partir deste primeiro. Dessa forma, em suma, não aderimos a uma proposta de caráter abstrato. Ao contrário, procuramos mostrar que os conceitos de posse e locatividade são eminentemente corporificados, em conformidade com os pressupostos do realismo experiencial. 3.3.1 A questão da assimetria Langacker (1991 e 2004) alega que a noção de posse (e, apenas em 2004, também a de locatividade), por ser intrinsecamente assimétrica, não pode ser descrita meramente como uma relação de inclusão de “duas entidades no mesmo domínio cognitivo”. Assim, um menino pode ter uma caneta, mas a caneta não pode ter o menino; analogamente, um anel pode estar dentro da caixa, mas a caixa não pode estar dentro do anel13. É por conta dessa constatação que Langacker se volta para uma proposta baseada no modelo de ponto-de-referência: ao evocar esse modelo, assume-se que uma entidade (o objeto referencial) é mais saliente que outra (o alvo), o que permite explicar, segundo o autor, porque canetas não podem ter meninos – para Langacker, porque a entidade menino, que é mais saliente, pode ser usada para fazer referência à caneta, mas não o contrário. Nossa hipótese, como se sabe, não conta com alvos ou pontos-de-referência, mas satisfaz as duas condições que Langacker impõe para uma descrição adequada da posse (e, presume-se, também da locatividade): é maleável o suficiente para dar conta de abranger toda a miríade de significados possessivos (o jogador ter um time, o torcedor ter um time, o bebê ter um berço, o homem ter um analista, a mulher ter dinheiro etc.) ao mesmo tempo em que é rígida o suficiente para não admitir a inversão da relação. 13 Poder-se-ia alegar que, assim como um anel pode estar embaixo da cama, a cama pode estar em cima do anel. Isso, no entanto, não é verdade sob a ótica que nos importa – a ótica perceptual/conceptual – já que subverteria o alinhamento figura/fundo com o qual operamos cotidianamente. 55 A maleabilidade da nossa hipótese advém do fato de que virtualmente qualquer coisa pode estar dentro de algum lugar – ou, como preferem os gerativistas, um verbo como ter não impõe qualquer tipo de restrição selecional sobre o argumento (animado ou inanimado, humano ou não-humano etc.). Dessa maneira, uma mesma entidade pode ser tanto conteúdo (“aquele hotel tem cinqüenta quartos”) quanto contêiner (“cada quarto tem duas camas”). Por outro lado, a relativa rigidez da hipótese, necessária para dar conta da assimetria notada por Langacker, decorre do fato de que um contêiner deve ser obrigatoriamente mais amplo mais do que o elemento contido nele. Quando se trata de enunciados cuja interpretação não inclui projeções figurativas, como (16), o adjetivo “amplo” deve ser entendido de maneira estritamente física: a biblioteca, no caso, é fisicamente maior do que os livros contidos nela. Nos casos em que as projeções figurativas comparecem, a noção de “amplidão” é metafórica. Quer dizer, em (23), por exemplo, o domínio metonimizado pelo referente do sujeito “Eles” é metaforicamente mais amplo que o referente do objeto “time”. Note-se, por fim, que uma sentença como “a cama está em cima do anel” não é inaceitável na mesma medida, ou pelo mesmo motivo, que “a caixa está dentro do anel”. A primeira, mas não a segunda, poderia até ser enunciada em uma situação muito particular, talvez como brincadeira. Isso acontece porque a primeira fere “apenas” o nosso alinhamento figura/fundo, que em contextos particulares pode ser subvertido (“eu adoro ler jornal e odeio ir ao supermercado, então para mim é o supermercado que fica na frente da banca!”), enquanto a segunda altera, de maneira inverossímil, a própria cena experiencial de continência. 3.4 Resumindo Neste capítulo, discutimos o conceito de locatividade operando dois movimentos: em um primeiro momento, e seguindo Langacker (2004)14, estabelecemos uma distinção entre locatividade e existência; em um segundo momento, apresentamos nosso conceito 14 Assim como Heine (1997). 56 de locatividade, experiencialmente fundamentado, e em seguida procuramos sustentar a nossa proposta, em oposição à abordagem langackereana. Com isso, esperamos ter deixado estabelecido o esquema imagético dentro-fora como o fundamento conceptual último da noção de locatividade. O que quer dizer que, em última instância, todas as sentenças locativas (bem como as possessivas) deverão fazer remissão a esse cenário. Neste ponto, tendo em mãos uma descrição do conceito de locatividade, podemos passar para uma apreciação da construção locativa do PB. 57 4. SINTAXE E SEMÂNTICA DA CONSTRUÇÃO LOCATIVA No capítulo anterior, discutimos uma questão de natureza muito mais conceptual do que propriamente lingüística: a noção de locatividade. Embora alegadamente prélingüístico, trata-se de um conceito importante em nosso estudo por servir de lastro conceptual para a construção. Tendo estabelecido esse conceito, iniciamos agora a investigação gramatical da construção locativa do PB. Em um estudo construcional, a primeira exigência é apresentar a construção e atestar sua existência. Em outras palavras, trata-se de definir sua configuração semântica e formal e comprovar que sua postulação é teoricamente necessária. É por aí que iniciamos o capítulo. Em seguida, lembramos o pressuposto de que as construções de estrutura argumental são tipicamente polissêmicas, exibindo, portanto, uma família de significados relacionados. Diante disso, buscamos delinear a rede polissêmica da locatividade. Nesse momento, identificaremos, além do sentido central, quatro irradiações polissêmicas. É em torno dessa rede que se organiza a maior parte do capítulo, ao longo do qual focalizaremos cada nó ou subconstrução individualmente. 4.1 Reconhecendo a construção locativa Nosso ponto de partida aqui é a hipótese de que a construção locativa liga-se à cena experiencial de continência de uma entidade em um espaço. Esse cenário, como a representação do esquema imagético deixa claro, exibe dois participantes: o “elemento contido” e o “contêiner”. São precisamente essas as duas entidades previstas pela semântica da construção e associadas, nela, a papéis sintáticos. Formalmente, o “elemento contido” irá se manifestar como um Sintagma Nominal e apresentará a relação gramatical de sujeito, ao passo que o “contêiner” aparecerá sob a forma de um Sintagma Preposicionado ou um Sintagma Adverbial em função oblíqua. Do ponto de vista semântico, a construção 58 prevê o papel argumental de objeto locado associado ao sujeito e o papel de locativo associado ao oblíquo15. Por fim, da mesma maneira que as expressões CAUSAR-RECEBER e MOVER-SE PARA são boas paráfrases para apreender a contribuição semântica global das construções bitransitiva e de movimento intransitivo, respectivamente, propomos para o nosso caso a formulação ESTAR CONTIDO EM. Todos esses elementos estão representados a seguir16: Semântica ESTAR CONTIDO EM PRED Sintaxe V < obj. locado locativo > < > SUJEITO OBLÍQUO Quadro 3: Construção gramatical locativa Esse padrão sintático-semântico corresponde, em português, a sentenças como as seguintes: (1) O livro está na estante. (2) O livro fica na estante. (3) Tem um livro dentro da sua mala. (4) Existe político honesto no Brasil? Evidentemente, esses são apenas os casos prototípicos, por dois motivos diferentes. Em primeiro lugar, como veremos, porque se trata do sentido central da construção, que corresponde perfeitamente à paráfrase “estar contido em”, por sua vez fundamentada no esquema dentro-fora. Em segundo lugar, porque todos os verbos acima exibem, assim como a construção, dois papéis, não havendo, portanto, discrepância entre o número de papéis argumentais e participantes. 15 Essas opções serão justificadas nas próximas seções. A linha pontilhada no locativo, mas não no objeto locado, significa que apenas o primeiro pode não se fundir com um papel participante do verbo, sendo então determinado exclusivamente pela construção. 16 59 No entanto, acompanhando a estratégia de Goldberg (1995), recorremos aqui a usos menos prototípicos para argumentar em favor da necessidade de postular uma construção locativa. Tome-se o exemplo abaixo: (5) Sinceramente, eu não entendo o porquê da pergunta. Aí vai só uma questão de opinião. Bastante usual no português brasileiro, esse uso, coletado do corpus do Projeto Nurc de Porto Alegre (na modalidade diálogo entre dois informantes), aparece em trabalho de Franchi, Viotti & Negrão (1998) sobre as orações impessoais com ter e haver. Interessantemente, os próprios autores reconhecem que sentenças como essa “poderiam ser incluídas entre as existenciais” 17 , mas garantem que se trata de “casos excepcionais”. Concordamos que o exemplo (5) exibe uma sentença locativa, parafraseável como “Aí tem só uma questão de opinião”. Um uso análogo é bastante comum no gênero receita: (6) Na minha salada, só não vai palmito. (7) Na feijoada vai pé de porco, carne de sol, paio... Como se sabe, em seu uso típico de verbo de movimento, o verbo ir exprime o trajeto de um ente em direção a um alvo, o que não parece acontecer em (6) e (7). Distribucionalmente, no PB, o “ir de movimento” pode aparecer com as preposições em, a ou para: (8) a. O menino foi no cinema. b. O menino foi ao cinema. c. O menino foi pro cinema. Em (6) e (7), porém, só a primeira opção é possível: (9) a. Na minha salada, só não vai palmito. 17 As construções que os autores chamam de existenciais correspondem à nossa locativa. 60 b. *À minha salada, só não vai palmito. c. *Pra minha salada, só não vai palmito. Diante da correlação entre significado e diferenças distribucionais, uma análise lexicocêntrica recorreria ao expediente de postular duas acepções diferentes para o verbo ir, associando a cada uma delas uma grade temática diferente. Assim, a entrada lexical IR1 apresentaria a acepção usual de “mover-se para algum lugar” e sua grade temática especificaria um agente e um alvo. Por sua vez, a entrada IR2 teria um significado próximo a “ter/haver” (ou talvez algo como “ser colocado”) e sua grade temática especificaria um tema para o SN e um locativo para o Sintagma Preposicionado ou Adverbial, o que deveria dar conta das restrições distribucionais observadas. Essa solução, porém, sofre dos problemas já mencionados na nossa introdução: postula um sentido improvável para o verbo ir, é circular e não é semanticamente parcimoniosa. A GC, por seu turno, defende uma solução radicalmente distinta. Propõe-se que o sentido de locação (lugar onde) seja atribuído diretamente ao padrão sintático esquemático – em uma palavra, à construção – subjacente a (1)-(7). Ou seja, defendemos a existência de um padrão construcional utilizado para designar (no sentido de Langacker 1987 e 1991) uma cena de continência de uma entidade dentro de um espaço. Inserido nesse padrão, qualquer verbo deverá se amoldar ao cenário dentro-fora, o que na prática significa basicamente uma acomodação18 a três propriedades da construção: o referente do SN sujeito deverá ser um objeto locado dentre um espaço, esse mesmo referente não deverá apresentar propriedades agentivas e o espaço considerado deve ser entendido como lugar onde, quer dizer, como locativo, e não como alvo ou lugar para onde. É exatamente isso que se verifica com o verbo ir nos exemplos (5) a (7). Essa alteração no esquema temático-conceptual do verbo ocorre por força de sua instanciação na construção locativa. Que se trata do padrão locativo, por sua vez, fica claro pela impossibilidade de instanciar a preposição para, que perfila um movimento ao longo de 18 O termo accomodation é empregado, exatamente nesse sentido, por Goldberg (1995, p. X) 61 um percurso, e não a noção de continência tipicamente designada por em ou outras preposições ou locuções prepositivas estativas, como dentro de, em cima de, embaixo de, sobre, sob etc. Dessa maneira, ficamos com o seguinte cenário. O verbo ir pode ser instanciado em, pelo menos, duas construções diferentes. A distinção fundamental entre elas reside no caráter agentivo ou não agentivo do sujeito e no perfilamento de um movimento ao longo de um percurso. A construção locativa, por definição, apresenta um sujeito nãoagentivo19, ao passo que as sentenças em (8) manifestam uma outra construção, que podemos rotular, seguindo Goldberg (1995), de construção de movimento intransitivo. Evidentemente, o verbo também tem sua parcela de responsabilidade para a determinação do significado final da sentença. A sugestão contrária, além de pouquíssimo intuitiva e tão pouco parcimoniosa quanto as abordagens lexicocêntricas que criticamos, esbarra de imediato em evidências empíricas. De fato, “Na minha salada só não vai palmito” não é a mesma coisa que “Na minha salada só não tem palmito”. Intuitivamente, o verbo ir parece reter aqui algo do seu sentido “básico” de movimento mesmo quando instanciado na construção locativa. Em suma, esperamos ter sustentado a necessidade teórica de postulação de uma construção locativa – uma solução bem mais parcimoniosa que atribuir todo o trabalho ao verbo e multiplicar suas acepções. 4.2 Nota sobre o papel temático do SN A julgar pela teoria tradicional dos papéis temáticos, o SN da construção locativa exerce o papel de tema, por se tratar de uma entidade movida ou locada (cf. Jackendoff, 2002; Mira Mateus et al., 2003; Saeed, 2005). No entanto, cabe lembrar que, dentro do quadro teórico que adotamos, não existem propriamente “papéis temáticos”, pelo menos não se entendidos como primitivos teóricos universais e independentes de suas propriedades distribucionais. O que existem 19 Na próxima seção, argumentaremos que o papel argumental postulado acima para o sujeito da CL – o de objeto locado – é um subtipo do papel temático tradicionalmente denominado tema. 62 são valores semânticos definidos relativamente à própria construção (papéis argumentais) e ao verbo (papéis participantes). Goldberg (1995, p. 49) afirma explicitamente que “papéis não são primitivos, e sim derivados de estruturas semânticas mais ricas”. É preciso ter em mente aqui que as construções são sustentadas por uma cena básica (ao passo que a maior parte dos verbos aciona frames mais ricos, detalhados). Assim, os papéis argumentais correspondem a rótulos úteis para se captar o papel relativo de cada elemento na cena básica subjacente à construção (o mesmo raciocínio vale para os verbos e os frames relativamente aos quais aqueles são entendidos). Ou, como explica Goldberg (1995, p. 49), referindo-se simultaneamente a papéis argumentais e participantes, “papéis são slots relacionais semanticamente determinados [“constrained”] pela cena dinâmica associada à construção ou ao verbo”. Aceitando integralmente essa formulação, não seria possível considerar idênticos o papel argumental do sujeito de uma construção locativa (como “o gato está em cima do tapete”) e o do objeto de uma construção transitivo-agentiva (como “Maria empurrou a cadeira”). Afinal, trata-se de duas cenas bastante diferentes, assim como são diferentes os papéis assumidos por cada entidade – gato e Maria – no interior da gestalt experiencial evocada. No entanto, ambos os SNs enquadram-se na definição tradicional de tema. Por isso, neste trabalho, preferimos rotular como objeto locado o papel argumental ligado ao SN da construção locativa (conforme a proposta apresentada na dissertação de Moreira, 2000). Nossa intenção, ao optar por esse rótulo, foi apenas deixar evidente, na terminologia empregada, o fato de que o referente do sujeito das locativas deve ser construído, necessariamente, como uma entidade contida em um espaço, propriedade que, como se sabe, não é compartilhada por todos os elementos usualmente classificados como temas. Com isso, afirmamos que esse valor semântico – de elemento contido ou objeto locado – é o que mais fundamentalmente define a construção locativa, devendo, por isso, ser 63 atualizado em todas as suas ocorrências, ainda que o verbo não esteja ligado à idéia de continência em seu uso básico. Por exemplo, o sujeito do verbo ir não corresponde normalmente a um elemento contido ou locado, mas isso ocorre nas sentenças (5) a (7). Alguém poderia alegar que o rótulo “objeto locado” é excessivamente específico, e insinuar talvez que, por isso, acaba por se tornar ad hoc. Sem dúvida é um rótulo mais restrito do que “tema”, mas nem por isso inútil. Na verdade, como ensina Goldberg (2006, p. 39), “os papéis argumentais neste quadro teórico [a GC] são mais específicos e mais numerosos que os papéis temáticos tradicionais”, exatamente porque são “definidos em termos de exigências semânticas de construções particulares”. A analogia aqui é com os papéis participantes dos verbos, que são de fato extremamente específicos: os papéis do verbo vender são o “vendedor” e a “coisa vendida”, quer dizer, são absolutamente peculiares a esse verbo. É possível que os papéis argumentais não sejam tão específicos quanto os papéis participantes, mas, como nota Goldberg na citação acima, algum grau de especificidade maior do que aquele dos papéis-teta tradicionais é requerido pela análise das construções. No nosso caso, a situação se agrava porque a definição de tema é especialmente ampla, servindo, nas palavras de Cançado (1995, p. 113), “para designar papéis temáticos determinados por propriedades semânticas muito distintas” e funcionando, portanto, como uma “espécie de papel-temático default”. Por exemplo: em uma construção transitivo-agentiva prototípica (10a) o tema não é movido nem locado, mas alterado em sua composição; em uma construção transitiva de movimento (10b), o tema é movido, mas não locado; em uma construção de movimento causado (10c), o tema é movido e locado; finalmente (mas sem esgotar as possibilidades), em uma construção locativa (10d), o tema é apenas locado. (10a) Eu quebrei a mesa. (10b) Eu empurrei a mesa. (10c) Eu empurrei a mesa pra fora da sala. (10d) A mesa está na sala. 64 Como se vê, o tema da construção locativa guarda uma especificidade. Ocorre que essa especificidade é exatamente o que individualiza a CL e permite fazer generalizações interessantes. Para ficarmos com o mesmo exemplo do início do capítulo, o referente do sujeito do verbo ir, em uma sentença como “Elas foram para o Chile”, corresponde a uma entidade com propriedades agentivas que se desloca ao longo de um percurso. Quando, porém, o verbo instancia uma construção locativa, o referente do seu sujeito deverá necessariamente ser construído como uma entidade com propriedades nãoagentivas contida em um espaço. Caso tratássemos o referente, nos dois casos, como “tema”, perderíamos essa generalização importante sobre o efeito da semântica da construção para o significado global da sentença. Nada disso significa dizer que o sujeito das CLs não funciona como tema. Sem dúvida, a definição tradicional de tema inclui o que estamos chamando de objeto locado. A tentativa aqui é apenas a de seguir o conselho de Goldberg (2006) e especificar o papel argumental relativamente à construção em que ele se manifesta – ou melhor, à cena evocada por ela. Com essa postura, ocorre o que a autora já previra: os papéis se tornam mais específicos, e seu inventário se torna mais extenso do que aquele usualmente sugerido para os papéis-theta. De todo modo, como explica Goldberg (1995, p. 49), os rótulos empregados para os papéis argumentais e participantes “não possuem relevância teórica”, no sentido de que são definidos relativamente à semântica da própria construção ou do verbo. Ou seja, o que importa é investigar o comportamento gramatical da construção, e não buscar “classificar” os papéis presentes nela. A classificação é conseqüência – e, mais do que isso, rótulo. Não há, portanto, a tentativa de estabelecer um conjunto prévio e universal de papéis, mas apenas a de nomear, para fins de clareza didática, os slots presentes no frame do padrão construcional ou do verbo. 4.3 Nota sobre a relação gramatical do SN A julgar pelas gramáticas tradicionais e pedagógicas do português, existe uma discrepância entre o sujeito de sentenças com haver e ter existencial e sentenças com 65 todos os outros verbos que podem instanciar a CL. No primeiro caso, estaríamos diante de “orações impessoais” com verbo transitivo direto; no segundo, teríamos sujeitos determinados (independente da posição) e verbos intransitivos20. No entanto, dentre os verbos que podem instanciar a construção locativa, há apenas um caso, e ainda assim apenas no português europeu (PE), em que a posição de objeto pode ser preenchida pela forma oblíqua do pronome pessoal: trata-se do verbo haver. Duarte (2003: 546), tratando das construções inacusativas no PE, oferece o seguinte exemplo: (11) Adoro papaias, e há-as cada vez com mais freqüência nos supermercados. Acreditamos, porém, que, no PB, esse uso simplesmente não se verifica. Ademais, o ter existencial e o haver inegavelmente admitem a forma nominativa do pronome pessoal em determinados contextos (ao passo que não há nenhum contexto em que a forma nominativa seja licenciada). Em outras palavras, o SN do ter existencial comporta-se exatamente como o dos demais verbos no que tange à possibilidade de cliticização: (12) a. Só apareceu o João. b. Só apareceu ele. c. *Só o apareceu. (13) a. Até agora tem o João e o Pedro no grupo. b. Até agora tem eles no grupo. c. * Até agora os tem no grupo. (14) a. Naquele momento, só havia o João e o Márcio na ilha. b. Naquele momento, só havia eles na ilha. c. *Naquele momento, só os havia na ilha. 20 São raríssimas as menções ao “ter existencial” nas gramáticas tradicionais e pedagógicas. Em Bechara (2001, p. 39), esse uso é evocado apenas para que se alerte para o fato de que “constitui incorreção”. Embora não se discuta o estatuto sintático do SN, a ausência de concordância nos exemplos sugere que o autor o interpreta como objeto. Faraco e Moura (1989: 316), em seção dedicada aos “verbos impessoais”, afirmam que “é comum o verbo haver ser substituído pelo verbo ter”. 66 Neste ponto, alguém poderia alegar que as formas pronominais retas de 3ª pessoa já estão consagradas, inclusive na fala culta, para a posição de objeto. No entanto, na variante culta pelo menos, por mais que a forma nominativa venha sendo preferida, o pronome oblíquo também é possível – e, mais importante, não é vetado. No caso dos SNs de “verbos locativos”, porém, o oblíquo é categoricamente proibido. Além do mais, o teste acima dá resultados idênticos para outros pronomes: (15) a. Agora só tem a gente aqui. b. – Alguém pode me ajudar – Só nessa sala tem ele e eu. Por tudo isso, assumimos aqui que o SN da construção locativa associa-se à relação gramatical de sujeito. Mas lembramos que, conforme defendido por Croft (2001) e endossado por Goldberg (2006, p. 221-222), as relações gramaticais igualmente constituem meta-generalizações, sendo elas também, portanto, em certa medida, específicas às construções segundo as quais são definidas. No nosso caso, é certo que não se trata, mesmo para verbos diferentes de ter (como, por exemplo, aparecer ou surgir, que também incluímos em nossa pesquisa), de um sujeito prototípico, se este for entendido como a entidade controladora da ação em construções agentivas prototípicas, do tipo “Leo chutou a bola”. A sugestão de uma escala de prototipicidade para o sujeito do PB não é nova, e remonta pelo menos ao trabalho seminal de Pontes (1988), além de ter sido retomada em diferentes momentos, como em Abraçado (2003). Poder-se-ia supor, assim, que estamos diante de sujeitos nãoprototípicos. O importante é que não precisamos, necessariamente, enquadrar o SN da CL em alguma definição prévia de sujeito, senão por outro motivo, porque, segundo Goldberg (2006) e Croft (2001), relações gramaticais devem ser descritas relativamente à construção à qual pertencem, e não o contrário. Aqui, portanto, o termo sujeito será usado simplesmente como um “atalho didático” para rotular o papel sintático do SN das construções locativas, escolhido por conveniência na medida em que, de acordo com o que foi comentado acima, ele parece 67 de fato mais próximo dos sujeitos do que dos objetos tradicionais21. Por outro lado, não descartamos a possibilidade de que haja diferenças entre o sujeito de diferentes verbos que instanciam o padrão locativo. Para detectá-las, porém, será necessário aprofundar o estudo das construções locativas para além dos limites definidos para esta dissertação. 4.4 Isolando a construção locativa Como se viu, o SN da construção locativa nunca é agente, mas tampouco é simplesmente tema: é um tipo específico de tema, que denominamos objeto locado. A propriedade de agentividade é fundamental para diferenciar esse padrão de outro semelhante: a construção de movimento intransitivo. Graças a ela, defendemos que apenas (16), (17) e (18), adiante, manifestam uma construção locativa. Cabe notar que o sentido atualizado nesses casos não é simplesmente o de estar contido, mas o de passar a estar contido. Isso não deve causar surpresa, uma vez que construções de estrutura argumental são tipicamente polissêmicas (Goldberg, 1995 ). Essa polissemia da CL será apresentada na próxima seção. Aqui, porém, o objetivo é justificar por que decidimos não tratar (19) e (20) como manifestações da construção locativa, ao contrário dos demais exemplos. (16) João chegou na festa. (17) João apareceu na festa. (18) A bola caiu no rio. (19) João entrou no quarto. (20) João foi no aniversário da ex-namorada. Como dissemos, o ponto crucial diz respeito à agentividade. O fato de o sujeito de (16), (17) e (18) ser não-agentivo fica evidenciado no teste do “particípio absoluto”. (cf., por exemplo, Mira Mateus et. al., 2003). Normalmente reservado a objetos de construções transitivas, o slot da construção de particípio absoluto não pode ser preenchido por constituintes agentivos, como em “Espirrado o menino...”, mas apenas por temas ou 21 Além do mais, enquadram-se na definição de vetor (“trajector”) de Langacker, que, no caso das relações semânticas designadas por verbos, costuma corresponder ao que se considerada como o sujeito sintático da oração. 68 pacientes, como em “Chutada a bola...”. Como é fácil verificar, cabem nele os sujeitos de aparecer, chegar e cair: (21) a. Chegados os candidatos, o debate começou. b. Aparecido o dinheiro, a reunião prosseguiu. c. Caídas as máscaras, tudo mudou. Note-se que, embora o verbo chegar designe um movimento possivelmente controlado pelo referente do seu sujeito, o momento perfilado por esse predicador é apenas o instante final do percurso22. Nesse momento, nos termos de Cançado & Ciríaco (2004, p. 213), ocorre uma mudança “de um estado A para outro estado B: o de não estar e o de chegar”. O fato de o momento perfilado ser o instante final do percurso impede que o referente do sujeito seja construído como desencadeador e, portanto, como agente23. Isso explica a estranheza causada por enunciados como “Pedro chegou de propósito”. Nesse mesmo sentido, observe-se que uma sentença como (22) não é normalmente entendida como uma deliberação, como a expressão de um desejo individual, mas como a previsão de um fato relativamente ao qual o falante não é construído como controlador: (22) Acho que não vou chegar na festa a tempo. Por sua vez, os sujeitos de (19) e (20) são construídos como controladores da ação representada, de maneira que, como previsto, não são licenciados na construção de particípio absoluto. Essa diferença semântica entre chegar e entrar poderia causar alguma surpresa, na medida em que sentenças como (23) e (24) podem parecer sinônimas: (23) João já chegou na reunião atrasado. (24) João já entrou na reunião atrasado. 22 Os termos “designar” e “perfilar” são usados aqui no sentido que têm na Cognitive Grammar de Langacker (1987 e 1991) 23 Esse ponto também é observado por Cançado & Ciríaco (2004, p. 213). 69 A nosso ver, porém, cenas diferentes são evocadas em cada caso. Crucialmente, a decisão de entrar ou não cabe ao próprio indivíduo que entra, ao contrário da decisão de chegar, como se viu em (22). No segundo caso, o indivíduo apenas decide se vai ou não, ou seja, se desencadeia ou não o processo que culmina na chegada. Nos termos de Langacker, acreditamos que chegar pressupõe um percurso como base, mas o mesmo não acontece com entrar, que não é construído como a culminação de um trajeto, mas como uma ação pontual24 e, portanto, desencadeada por quem o realiza. Uma evidência disso transparece nos exemplos abaixo: (25) a. João entrou no quarto de propósito. b. *João chegou no quarto de propósito. Em suma, o caráter agentivo do sujeito de (19), (20) e (25a) nos leva a não tratar esses casos como manifestações da construção locativa, mas como exemplos da construção de movimento intransitivo 25. Por outro lado, coerentemente, consideramos que em (26) – em que o sujeito é, por assim dizer, “desagentivizado” – estamos diante de uma CL: (26) Não entra mais roupa nenhuma na mala. Em suma, o que se verifica é que tanto ir (nos exemplos oferecidos no início do capítulo) quanto entrar podem participar da CL e da construção de movimento intransitivo. A instanciação desses verbos na CL, contudo, faz com que seus sujeitos assumam o papel de tema (ou, mais especificamente, de objeto locado). Também não deve induzir ao erro o fato que uma construção de movimento intransitivo com o verbo ir pode, no PB, lançar mão da preposição em ou de locuções prepositivas tipicamente estativas, como em “Ele foi no cinema” ou “Elas foram no fundo da 24 Mas não como “ponto” no sentido que essa palavra apresenta nas tipologias aspectuais (cf. Mira Mateus et. al. 2003, Cunha 2007), nas quais um “ponto” é uma atividade que não tem “como uma de suas componentes um estado conseqüente” (Mira Mateus et. al., 2003, p. 193). 25 O termo “movimento intransitivo” é um pouco enganador, já que, a rigor, o oblíquo aqui é nuclear, quer dizer, funciona como complemento. Na tradição gramatical brasileira, esses verbos são em geral reconhecidos como transitivos (cf. a Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima). O termo “intransitivo”, no trabalho de Goldberg (1995, 2006, entre outros) parece pretender contrastar essa construção com a de “movimento causado”, que tem recebido muito mais atenção nas pesquisas da autora. 70 caverna”. De acordo com Goldberg (1995, p. 159), a possibilidade de instanciação de uma preposição locativo-estativa em uma construção de movimento se explica pelo mecanismo de coerção ou acomodação26. Por meio desse mecanismo, o significado estativo básico da preposição (ou, no nosso caso, também da locução prepositiva) se conforma ao significado do padrão, ou seja, a uma semântica direcional. No entanto, essa conformação não é aleatória: de maneira idêntica ao que observa Goldberg, o lugar onde designado pelo sintagma preposicionado passará a ser entendido como o ponto final de um percurso. É interessante observar que, no PB, não é livre a instanciação de preposições ou locuções prepositivas estativas na construção de movimento, ao contrário do que ocorre com para. (27) a. Elas viajaram para o Chile. b. Elas correram para a escola. c. Ele rastejou para a cozinha. d. Os pássaros voavam para o horizonte. (28) a. *Elas viajaram no Chile. b. *Elas correram na escola. c. *Ele rastejou na cozinha. d. *Os pássaros voavam no horizonte. Todas as sentenças em (28) são agramaticais em uma leitura direcional. Esse fato é compatível com a proposta da acomodação. Para que ela seja possível, é necessário que seja designado um trajeto ao longo do qual se realiza um movimento direcionado a um fim. Os verbos acima, contudo, não são intrinsecamente direcionais: dir-se-ia que exprimem processos (são atélicos) e não processos culminados ou culminações (que são télicos). Por isso, em (27), o sintagma preposicionado não será interpretado como ponto final de um trajeto, mas apenas como o cenário dentro do qual se desenrola a ação 26 No trabalho de Goldberg, o mecanismo denominado de “coercion” ou “accommodation” é convocado para dar conta da construção de movimento causado (ou, segundo Goldberg & Jackendoff 2003, construção resultativa causativa de trajetória), e não, como é o caso aqui, da construção de movimento intransitivo. 71 expressa. Do ponto de vista construcional, o que se tem é um padrão intransitivo, o sintagma preposicionado sendo entendido como um mero adjunto. Por outro lado, se o evento expresso é direcional, preposições ou locuções prepositivas estativas serão licenciadas na construção de movimento intransitivo, desde que devidamente “acomodadas’. Esse será sempre o caso com o verbo ir de movimento. Além disso, interessantemente, verbos de processo como os mencionados acima passam a admitir preposições estativas, no caso de sinalizarem para uma leitura direcional: (29) a. Ninguém foi na despedida dele. b. Ela correu na casa da mãe para avisar do perigo. c. Eu voei no pescoço dele de raiva. Em suma, consideramos que as sentenças (19) e (20) ou aquelas em (29) não manifestam o padrão locativo, mas uma construção de movimento intransitivo. Por fim, falta fazer um comentário acerca do verbo cair. A nosso ver, esse verbo pode instanciar pelo menos três construções diferentes: o padrão intransitivo, a CL e uma construção transitiva não-causativa, ilustrados respectivamente por (30), (31) e (32): (30) Dezenas de pequenos aviões caíram no ano passado nos EUA. (31) O monomotor caiu no mar. (32) A bola caiu no João. Deixando de lado por ora a distinção entre o uso intransitivo e o uso locativo de cair, que será retomada na próxima seção, cuidemos aqui de descartar (32) como uma manifestação da CL. Intuitivamente, o verbo cair manifesta sentidos diferentes em (31) e em (32). No primeiro caso, está em relevo a idéia de mover-se para, ao passo que apenas o segundo pode ser aproximadamente substituído por atingir, acertar. Como dissemos mais acima, a sentença (31), a nosso ver, atualiza o sentido passar a estar contido em, um dos significados possíveis da construção locativa de acordo com a nossa proposta. Assim, está-se afirmando que o monomotor passou a estar no mar. O 72 mesmo não se pode dizer, claro, do padrão em (32). Crucialmente, essa construção não codifica continência, mas contato (prototipicamente físico). A nosso ver, trata-se de um padrão transitivo não-locativo, o mesmo presente nas sentenças abaixo: (33) a. A bola bateu na cabeça do João. b. A bola não tocou na rede. c. O sofá encosta na parede. Em uma abordagem construcional, portanto, não precisamos nos aborrecer com as sutis mudanças de significado verificadas para o verbo cair: essas mudanças podem ser colocadas na conta do padrão construcional. Acreditamos que, em (31), instancia-se um padrão locativo, ao passo que (33) ilustra uma outra construção, a qual não prevê um locativo, mas um tema (“na cabeça do João”, “no chão”, “na parede”). Uma evidência a favor de um tratamento diferente para (32) e (33) pode ser vista abaixo: (34) a. A bola caiu no rio b. A bola caiu lá / *nele (35) a. A bola caiu no João b. A bola caiu *lá / nele Em resumo, postulamos que a construção locativa não apresenta sujeito agente, mas tema (mais precisamente, objeto locado). Por isso, excluímos (19) e (20), reputadas como manifestações da construção de movimento intransitivo, do nosso raio de investigação. Além disso, sustentamos que a CL exibe um locativo e codifica a noção de continência de uma entidade em um espaço, motivo pelo qual descartamos (32), cujo segundo argumento não é locativo, mas tema. Por fim, consideramos que se trata de um padrão biargumental, o que nos leva a não analisar (30) como uma sentença locativa, já que o argumento locativo não está presente nem é recuperável. Esse último ponto, como dissemos, será retomado adiante, na seção 4.5.5. 73 4.5 A polissemia da construção locativa No capítulo 3, associamos a construção locativa à noção de continência de uma entidade em um espaço, fundamentada experiencialmente no esquema imagético dentrofora. A partir dela, definimos para a CL o sentido básico de X ESTAR CONTIDO EM Y. Embora esse seja o sentido básico da construção, não quer dizer que seja o seu único sentido. Como se viu, estudos de diferentes padrões construcionais têm verificado, recorrentemente, o fenômeno da polissemia, o qual se relaciona diretamente, no modelo de Goldberg (1995), aos predicadores que podem instanciar o esquema sintático: como regra geral, construções abertas são polissêmicas porque diferentes classes de predicadores definem e atualizam um sentido específico, embora inegavelmente vinculado ao sentido central. No nosso caso particular, é de se esperar, portanto, que a construção locativa não seja instanciável apenas pelos verbos ter, existir e haver – aqueles que tradicionalmente têm sido associados às “construções existenciais” (Franchi, Negrão & Viotti, 1998; Viotti, 1992) – o que significaria abrir mão do reconhecimento da polissemia. No entanto, mais importante ainda, é o fato de que, se o esquema dentro-fora é evocado como o cenário experiencial que sustenta, do ponto de vista conceptual, a construção locativa, fica difícil não enxergar esse mesmo cenário em sentenças como (36), (37) e (38): (36) Cabem mais duas pessoas no meu carro. (37) Falta um pouco de cor nesse apartamento. (38) Ficou uma mancha na sua blusa. Neste trabalho, propomos que, além do significado central que apreendemos sob a forma X ESTAR CONTIDO EM Y, manifestando-se no PB com verbos como ter, haver, existir, estar e ficar, a construção locativa exibe quatro extensões polissêmicas. Essas extensões constituirão variações mínimas a partir desse sentido básico – e, crucialmente, não deixarão de remeter ao mesmo padrão imagético dentro-fora. Em nossa pesquisa, identificamos as seguintes irradiações polissêmicas: 74 • Negação: X não está contido em um espaço Y Ex: Falta sal na comida. • Aspecto permansivo: X continua contido em um espaço Y Ex: Ficou muita comida no prato. • Aspecto inceptivo: X passa a ocupar/estar contido em um espaço Y Ex: Apareceu um rato no meu apartamento. • Modalidade: X pode estar contido em um espaço Y Ex: Cabem cinco pessoas nesse caro. A rede polissêmica da locatividade se representa de acordo com o esquema abaixo. A sigla HP significa Herança por Polissemia, conforme o exposto na introdução deste trabalho. 75 REDE POLISSÊMICA DA LOCATIVIDADE B. TEMA não está contido em LOCATIVO C. TEMA continua contido em LOCATIVO (negação do estado) (manutenção do estado – aspecto permansivo) Verbo: faltar Verbos: permanecer, continuar, ficar HP: negação HP: aspecto permansivo A. Sentido Central TEMA está contido em LOCATIVO Verbos: ter, existir, ficar, estar, haver, morar HP: aspecto inceptivo HP: modalidade D. TEMA pode estar contido em LOCATIVO E. TEMA passa a estar contido em LOCATIVO (ausência de barreiras para concretização do estado – modalidade) (início do estado – aspecto inceptivo) Verbos: caber, entrar, ir Verbos: aparecer, surgir, cair, chegar, ficar Figura 5: Rede polissêmica da locatividade 76 Essa rede permite tratar de maneira unificada todas as sentenças abaixo: (39) Existem lhamas no Chile. (40) Faltam bons laterais nesse time. (41) Couberam poucos casacos na mala. (42) Ainda ficou muita gente na festa. (43) Apareceu uma lhama no albergue. No primeiro caso, exprime-se a noção de continência codificada no esquema dentro-fora sem o acréscimo de nenhuma nuance semântica. Nos outros casos, a cena básica do núcleo prototípico é acrescida de valores semântico-gramaticais específicos, gerando alterações de sentido regulares relativamente ao centro da rede. Em (40), a cena é negada; em (41), afirma-se apenas que ela é possível, que não há nenhuma barreira que a impeça de ocorrer; em (42), que o cenário designado pelo esquema prolongou-se no tempo; em (43), focaliza-se o momento em que uma entidade passa a estar dentro dos limites do espaço considerado. Neste ponto, cabe um comentário sobre o comportamento do predicador ficar. O fato de que esse verbo comparece em três das cinco subconstruções locativas não deve causar surpresa. Pelo contrário: é sabido que se trata de um verbo polissêmico (Ribeiro, 2004). Assim, o interessante aqui é constatar que essa polissemia traduz a própria organização da rede polissêmica da locatividade. Nas próximas seções, comentaremos cada subconstrução individualmente. Nesse momento, apontaremos a acepção verificada para ficar em cada caso. Antes, porém, de passar a uma apreciação de cada nó da rede, gostaríamos aqui de chamar atenção para um fato importante: alguns dos verbos apontados acima costumam ser tratados, na tradição gramatical brasileira pelo menos, como intransitivos. A rigor, isso acontece em duas subconstruções: na central, com o verbo existir, e na inceptiva, com os verbos aparecer, surgir e cair. Tomem-se exemplos como (44)-(47), abaixo: (44) Existe um hotel seis estrelas na Arábia Saudita. 77 (45) Apareceu um envelope na mesa do Paulo. (46) Surgiu um envelope na mesa do Paulo. (47) Caiu uma bola no meu quintal. Tradicionalmente, afirmar que os verbos acima são intransitivos implica tratar os oblíquos como adjuntos. Para a proposta desenvolvida aqui, essa opção não é viável: se analisássemos os sintagmas preposicionados acima como adjuntos, deveríamos reconhecer que (44)-(47) são manifestações de uma construção intransitiva, de maneira análoga a exemplos como (48). Por outro lado, se eles revelarem um comportamento de argumentos obrigatórios, podemos assumir que se trata da construção locativa. (48) No verão, a procura por hotéis aumenta. Por isso, nas próximas seções, quando comentarmos cada subconstrução individualmente, iremos nos deter em especial sobre os nós central e inceptivo. O motivo: nesses dois casos, será necessário demonstrar que os oblíquos são argumentos, e não meros adjuntos. O tratamento que propomos aqui segue as seguintes linhas. Os verbos existir, aparecer, surgir e cair (dentre outros semelhantes, a serem mencionados à frente) apresentam apenas um papel participante perfilado. Conforme expusemos no segundo capítulo, os papéis participantes perfilados são parte da especificação semântica de cada verbo e correspondem aos argumentos obrigatoriamente presentes. No caso desses verbos, o único participante obrigatório é aquele que corresponde ao sujeito. Assim, nos exemplos acima, dizemos que o papel argumental de locativo, previsto pela CL, não se funde a nenhum papel participante perfilado; em vez disso, é contribuição exclusiva da construção. Em uma abordagem construcional, o fato de um argumento não ser subcategorizado pelo verbo não é problema: o modelo prevê a existência de constituintes previstos apenas pelo padrão construcional, mas não pelo item lexical. Ainda assim, esses constituintes apresentam comportamento de argumento. 78 Esse parêntese deverá justificar o fato de que as subconstruções central e inceptiva receberão uma atenção maior daqui para o fim do capítulo. Tendo dito isso, podemos passar à apresentação da rede polissêmica da locatividade. 4.5.1 A subconstrução central A subconstrução central é aquela que manifesta diretamente o significado codificado no padrão dentro-fora, qual seja, X ESTAR CONTIDO EM Y. No núcleo da rede, a maioria dos verbos exibe dois papéis participantes perfilados, que se fundem sem problemas aos dois papéis argumentais da construção. É o caso de ter, haver, ficar e estar: (49) Tem um gato em cima do tapete. (50) Há uma falha na sua argumentação. (51) O gato está em cima do tapete. (52) A Torre Eiffel fica em Paris. Este só não é o caso de existir, um verbo tipicamente monoargumental. Em termos construcionais, pode-se dizer que existir exibe apenas um papel participante perfilado: quem / o que existe. Quando instanciado na construção existencial intransitiva – aquela que, segundo comentamos no capítulo 3, foi detectada por Heine (1997) e por Langacker (2004) –, o verbo atualiza o sentido de “ser real”, sem que se perfile (mais uma vez, na terminologia de Langacker 1987 e 1991) uma circunscrição espacial. No entanto, ao integrar o padrão locativo, esse mesmo verbo deixa de predicar sobre o estatuto de realidade/irrealidade do referente do seu SN, e passa a localizá-lo em um espaço. (53) Deus / Papai Noel / Político honesto existe. (54) Existem leões na África. Em (54), não se está afirmando, claro, que a categoria “leão” pertence ao “mundo real”, mas que há representantes dessa categoria “na África”. Uma evidência de que se trata de construções distintas foi oferecida no capítulo 3, quando, ao diferenciar existência e 79 locatividade, mostramos que o verbo ter só pode instanciar o segundo padrão, nunca o primeiro. Essa proposta pode soar controversa na medida em que implica considerar o oblíquo “na África” como argumento, o que parece conflitar com o fato de que existir é usualmente reputado como intransitivo. Afinal, caso “na África” se revelasse adjunto, teríamos em (54) um padrão intransitivo, igualando-o a (53). Por outro lado, tratar o oblíquo como argumento não é um problema em uma análise de base construcional, já que, a rigor, estaríamos considerando que se trata de um argumento apenas da construção, e não do verbo, o que permite sustentar a intransitividade de existir (ou, em termos goldbergianos, não contraria o fato de existir apresentar apenas um papel participante perfilado). Enfim, para comprovar que se trata de duas construções diferentes, precisaremos mostrar que o oblíquo de (54) é argumento. Uma evidência a favor da nossa hipótese aparece em (55): (55) a. ?? Existem leões no verão na África. b. No verão, existem leões na África. c. Existem leões na África no verão. Claramente, as sentenças (55b) e (55c) são mais naturais que (55a), revelando que o oblíquo “na África” é, em certo sentido, mais nuclear do que “no verão”27. Por isso, não nos parece razoável igualar os dois constituintes e tratá-los ambos como adjuntos; caso o fizéssemos, não poderíamos dar conta dos resultados do teste acima. Dessa maneira, concluímos que (54) exibe dois argumentos, ao contrário de (53). Tendo assumido que estamos lidando com construções diferentes, é interessante tentar captar a mudança semântica que se verifica: passa-se da noção de “ser real” para a de “estar presente em algum lugar”. Como veremos ao observar a subconstrução inceptiva, essa mudança é regular quando se trata de instanciar predicadores existenciais na CL. 27 A escala de nuclearidade pressuposta no emprego do advérbio mais se deve à idéia de que constituintes podem ser “argumentos plenos” ou “adjuntos plenos” (caso sejam previstos pelo verbo e pela construção, ou caso não sejam previstos por nenhum dos dois, respectivamente), mas também podem corresponder a um argumento apenas do padrão, e não do verbo, como é o caso de “na África” no exemplo em foco. 80 O que se infere daí é que o verbo existir não lexicaliza o significado da CL. Silva (2003) fala em lexicalização do significado da construção para os casos em que o verbo apresenta um sentido altamente esquemático (Goldberg 1995, p. 28, fala em “skeletal meaning”), que coincide precisamente com o esquema acionado pelo próprio padrão construcional – casos típicos são dar para a construção bitransitiva e pôr para a de movimento causado. Verbos desse tipo ocupam tipicamente o núcleo prototípico da construção, mas, ao contrário, nem todos os verbos que participam desse núcleo são esquemáticos (basta pensar nos casos de jogar e chutar, que, de acordo com Goldberg (1995), igualmente comparecem no sentido central das bitransitivas). No nosso caso, o verbo existir não coincide exatamente com a CL, tanto assim que o oblíquo de (54) é contribuição apenas da construção, quer dizer, não se funde com nenhum papel participante do verbo. Em outras palavras, a semântica do verbo não coincide de modo exato com a da construção. Por outro lado, tampouco consideramos que o predicador ficar lexicaliza o significado da construção, na medida em que esse verbo designa uma situação de continência que, na falta de termo melhor, poderíamos chamar de virtual, ou então de habitual. Com isso, queremos dizer que uma sentença como “a TV fica na sala” não implica necessariamente que, naquele momento, o cenário de continência da TV nos limites da sala se verifique: é possível perfeitamente esclarecer que “a TV fica na sala, mas hoje está no quarto”. É claro que, no caso de referentes presumivelmente fixos como a Torre Eiffel de (52), espera-se sempre encontrá-los no lugar referido, mas isso de maneira nenhuma é obrigatório para o verbo ficar em seu sentido central. Em resumo, parece que o verbo ficar não designa necessariamente uma situação de continência efetiva, motivo pelo qual consideramos que ele não lexicaliza o significado da construção, o qual remonta ao esquema dentro-fora. Por isso, sustentamos que são os verbos ter/haver e estar aqueles que lexicalizam o significado da construção locativa28. 28 A diferença entre os dois grupos, por ser aparentemente de natureza discursiva, merece uma investigação à parte e está fora do nosso raio de observação. Comentemos apenas que a escolha por ter/haver ou por estar nos parecer, à primeira vista, de alguma forma relacionada ao grau de identificabilidade e ativação do referente do SN (Lambrecht, 1994). Por exemplo, note-se o contraste entre “tem dois gatos ali”, com referente nãoidentificável, e “os dois gatos estão ali”, com referente identificável. As categorias de discursivo-cognitivas de 81 4.5.2 A subconstrução de negação Essa subconstrução nega a situação de continência codificada no esquema dentro-fora. A relação semântica que exprime pode ser captada de modo formulaico como X NÃO ESTAR CONTIDO EM Y, conforme a seguinte representação: Sem NÃO ESTAR CONTIDO EM PRED Sint V < obj. locado locativo > < > SUJEITO OBLÍQUO Quadro 4: Subsconstrução de negação Aqui, foi observado apenas o predicador faltar, como em: (56) Faltam quadros na minha casa. No esquema acima, a linha cheia entre locativo e oblíquo mostra que, ao contrário do que verificamos para outros nós da rede polissêmica, o locativo aqui está previsto como papel participante do verbo. Apesar do sentido de negação, cabe observar que uma sentença como (56) não é uma paráfrase perfeita de (57), abaixo, na medida em que apenas a primeira pressupõe que deveria haver quadros: (57) Não tem quadros na minha casa. Também aqui, a postulação de uma construção locativa permite dar conta da polissemia do verbo faltar. Esse predicador pode instanciar ainda a construção agentiva de movimento, como em (58). No entanto, ao integrar o padrão locativo, o seu participante identificabilidade e ativação, como ensina Lambrecht (1994), não estão isomorficamente ligadas à propriedade formal da definitude. Assim, mesmo uma sentença como “um gato está ali” parece fazer referência a um gato que, embora inespecífico, integra um conjunto previamente conhecido, não sendo, portanto, segundo Lambrecht na obra citada, plenamente não-identificável. Enxergamos aqui uma questão complexa, que merece uma atenção mais detida. Optamos por mencioná-la apenas para evidenciar que se trata de um problema cuja natureza nos afastaria em muito das preocupações definidas para esta pesquisa. 82 “aquele que falta” irá, como previsto, atualizar o sentido de objeto locado, conforme o esquema dentro-fora. (58) Ele faltou à/na reunião e agora vem reclamar do que a gente decidiu. 4.5.3 A subconstrução modal Postulamos a existência de uma subconstrução locativa modal por verificar que, em alguns casos, a nuance semântica que o verbo acrescenta à construção diz respeito a noções ligadas à categoria de modalidade, como possibilidade ou permissão/autorização. Assim, o significado da construção pode ser formulado como X PODER ESTAR CONTIDO EM Y (em que esse “poder” é propositalmente polissêmico, como ocorre normalmente com os verbos modais). Sem NÃO ESTAR CONTIDO EM PRED Sint < obj. locado locativo > < V > SUJEITO OBLÍQUO Quadro 5: Subconstrução modal Observe-se o exemplo abaixo: (59) Cabem pelo menos mais dez livros nessa caixa. A nosso ver, o que está em jogo aqui é a categoria de modalidade, na medida em que a sentença sugere que não há nenhum impedimento físico para a inclusão de “mais dez livros” no espaço da caixa. Trata-se de afirmar que a continência de X no espaço Y é possível. Nesse exemplo, manifesta-se a modalidade-raiz (Johnson, 1987; Sweetser, 1990), ligada à noção de ausência de barreira física. Ainda no domínio da modalidaderaiz, é possível uma extensão metafórica desse sentido básico: 83 (60) Não cabe esse tipo de comportamento em sala de aula. Aqui, em termos experienciais, a impossibilidade se manifesta sob a forma de uma barreira institucional ou cultural impedindo que determinada atitude, concebida como “conteúdo”, esteja contida no espaço considerado (a “sala de aula”). Nesse exemplo, fica evidente o sentido de permissão (associado, em uma tipologia mais tradicional, à modalidade deôntica). Além disso, o verbo caber pode manifestar ainda a modalidade epistêmica, entendida por Johnson (1987) e Sweetser (1990) como restrita ao domínio da razão, do raciocínio lógico. Assim, o que a sentença (61) afirma é que evidências disponíveis “bloqueiam” uma determinada conclusão. (61) No nosso problema, não cabe essa mesma conclusão. Ainda na subconstrução modal, pode comparecer, como já notamos, o verbo entrar. Intuitivamente, é possível verificar que esse verbo é polissêmico, podendo atualizar ou não a noção de movimento: (62) Os meninos entraram no campo. (63) Essa mesa com certeza entra no porta-mala. Mais uma vez, entendemos a polissemia lexical, seguindo de perto Goldberg (1995), como paralela à instanciação do verbo em diferentes padrões. Apenas no primeiro caso está presente a noção de movimento. No segundo, o participante, “aquele que entra”, conforma-se ao padrão locativo e se adapta ao papel de objeto locado, sem propriedades agentivas. Aqui, o verbo entrar atualiza um sentido bastante próximo ao de caber, manifestando a modalidade-raiz no domínio físico: não há nenhuma uma barreira física que impeça a continência da mesa no espaço do porta-mala. Há, porém, já aqui, uma diferença. No uso modal físico, o verbo caber parece sempre designar uma barreira ligada ao tamanho ou quantidade excessiva de elementos a ocupar 84 um espaço; o verbo entrar, por sua vez, pode não fazer referência ao tamanho ou número de elementos que preenchem o espaço, mas à compatibilidade entre continente e conteúdo: (64) Essa chave não entra na porta dos fundos. Existe, entre caber e entrar, uma distribuição interessante. Embora, como caber, entrar possa ser usado metaforicamente, como em (65), este verbo parece não poder atualizar o sentido deôntico de permissão, conforme a agramaticalidade de (66), nem manifestar modalidade epistêmica, conforme (67). (65) Isso não entra na minha cabeça de jeito nenhum. (66) *Acho que, neste caso, entra uma repreensão mais severa. (67) *A situação agora é outra: não entra o mesmo raciocínio. Por fim, falta considerar determinados usos específicos do verbo ir, afastados do sentido de movimento. Temos em mente usos como os seguintes: (68) No risoto, vai camarão. (69) As compras de cima vão na sacola branca. Também nesses casos, o papel participante do verbo (no caso, “aquele que vai”) fundese ao papel argumental de objeto locado, não sendo, portanto, agentivo. Estamos aqui propondo tratar esses usos também como modais, atualizando um sentido que oscila entre permissão/autorização e obrigação (modalidade-raiz, portanto). Do ponto de vista experiencial, o que se verifica é a existência de uma força metafórica (a indicação da receita, que deve ser obedecida, e o comando de alguém instituído de autoridade específica) que provoca a inclusão de uma entidade (“camarão” e “compras de cima”) em um espaço (“risoto” e “sacola branca”). 85 4.5.4 A subconstrução permansiva A extensão permansiva indica a continência prolongada ou permanência do referente do SN no espaço em questão. Sem CONTINUAR CONTIDO EM PRED Sint V < obj. locado locativo > < > SUJEITO OBLÍQUO Quadro 6: Subconstrução permansiva Alguns exemplos são dados abaixo: (70) Os amigos ficaram na festa. (71) Os amigos continuaram na festa. (72) Os amigos permaneceram na festa. Todos esses verbos apresentam dois participantes, que se fundem aos papéis argumentais da construção. Dos três verbos acima, ficar se destaca por sua polissemia. Interessantemente, pudemos verificar que essa polissemia se reflete na própria rede polissêmica da construção locativa: além de comparecer nos nós central e permansivo, como se está vendo, ele instancia também a subconstrução inceptiva, a próxima e última a ser apresentada. Durante a pesquisa, uma questão que nos despertou o interesse foi a diferença semântica entre os verbos que instanciam a subconstrução permansiva. Conforme comentamos na 7introdução, esse interesse coincidiu com a descoberta dos trabalhos de Iwata (2005) e Namoto (2005), ambos reivindicando, de alguma maneira, uma maior atenção à semântica específica dos verbos por parte das abordagens construcionais. Por conta disso, o próximo capítulo reservará uma seção para uma comparação entre a contribuição semântica de ficar e continuar na subconstrução locativa permansiva. 86 4.5.5 A subconstrução inceptiva A terceira extensão polissêmica, relacionada ao aspecto inceptivo, é representada assim: Sem PASSAR A ESTAR CONTIDO EM < obj. locado locativo > PRED Sint < > Quadro 7: Subconstrução inceptiva As sentenças abaixo ilustram esse nó da rede: (73) Apareceu o João lá em casa. (74) Surgiu o João lá em casa. (75) Caiu uma bola no meu quintal. (76) Chegou o João lá em casa. (77) Como os ingressos terminaram rápido, muita gente ficou na rua. Em todos os casos, a leitura inceptiva é atualizada: quem aparece em um lugar passa nesse momento a ocupá-lo, assim como quem surge, chega ou cai em algum lugar (o caso de ficar será comentado logo abaixo). A postulação dessa subconstrução não é tranqüila. Dos verbos apontados acima a título de ilustração, apenas os dois últimos são tratados normalmente como biargumentais (e, ainda assim, chegar é com certa freqüência referido como intransitivo, conforme comentamos abaixo). No que tange a aparecer, surgir e cair, então, o problema é o mesmo que enfrentamos com existir na subconstrução central: provar que o oblíquo funciona como argumento, e não como adjunto – uma condição necessária se quisermos sustentar que esses verbos participam desta subconstrução. Será, portanto, o que faremos ao longo desta seção, após dois breves comentários sobre os verbos ficar e chegar. 87 O verbo ficar exibe dois participantes. Quanto a seu significado, não é novidade, como dissemos, que se trata de um predicador polissêmico (Ribeiro, 2004). Em (77), sustentamos que ele atualiza o significado correspondente à subconstrução inceptiva, na medida em que designa um novo estado-de-coisas gerado por uma causa anterior. Ribeiro (2004) rotula como resultativa essa acepção de ficar. A divergência terminológica não revela uma discordância fundamental: o termo escolhido pela autora enfatiza que a situação designada é resultado de um evento anterior; o termo escolhido aqui sublinha o fato de que se trata do início de um novo estado-de-coisas. A nosso ver, o termo “resultativo” não poderia abarcar os demais predicadores que instanciam a subconstrução locativa em questão. Quer dizer, a designação de um evento causal parece consistir em uma peculiaridade semântica de ficar, ao passo que o perfilamento do início de um novo estado parece comum a todos os verbos do nó inceptivo – e, portanto, à própria subconstrução inceptiva. Assim como ficar, chegar exibe necessariamente dois papéis participantes. É relativamente comum que esse verbo seja tratado como intransitivo, o que a nosso ver não se justifica. É provável que isso decorra da alta freqüência de sentenças como “O João ainda não chegou”, “O presente já chegou?” ou “Chegou um envelope pardo”. No entanto, essas sentenças só podem ser interpretadas caso o “ponto de chegada” seja contextual ou co-textualmente recuperável. O que acontece, segundo nos parece, é que esse “ponto de chegada” é, com muita freqüência, um espaço pertencente ao ground (no sentido de Langacker, 1987 e 1991), o que permite seu cancelamento. Passemos agora aos verbos aparecer e surgir. Ambos exibem apenas um papel participante: quem aparece e quem surge. São, portanto, verbos que se compatibilizam com a construção intransitiva, podendo atualizar o sentido de tornar-se real, passar a existir no espaço da realidade. (78) a. As melhores idéias aparecem / surgem quando você menos espera. b. A Internet apareceu / surgiu em meados da década de 90. 88 Cabe observar alteração de significado que se verifica quando aparecer e surgir instanciam o padrão locativo. Com a presença obrigatória, neste padrão, de um sintagma locativo, esses dois verbos passam a indicar a continência de um ente em um espaço delimitado, conforme os exemplos (73) e (74). O interessante aqui é notar que a variação de significado é análoga àquela observada para o verbo existir. No caso desse verbo, passa-se da noção de ser real, existir no espaço da realidade para a idéia de estar presente/existir em algum lugar, conforme o contraste entre (53) e (54). Aqui, a mesma alteração se verifica, com a diferença esperada de que um valor inceptivo passa a comparecer. Assim, da idéia de tornar-se real, passar a existir no espaço da realidade, atualizada no padrão intransitivo existencial conforme (78), muda-se para a noção de passar a estar contido em algum lugar. Continuando a analogia com existir, também aqui a proposta pode soar controversa, na medida em que nossa descrição implica considerar o oblíquo “na minha sala” como argumento, o que parece contrariar a classificação usual dos verbos aparecer e surgir como intransitivos. Para comprovar que, na CL, o oblíquo que acompanha aparecer e surgir é argumento, realizemos dois testes. O primeiro pode ser visto abaixo: (79) a. Lá em casa, assim que o João apareceu, foi um alvoroço. b. *Lá em casa, assim que o João apareceu, a gente correu pro cinema. (80) a. Lá em casa, assim que o João surgiu, foi um alvoroço. b. *Lá em casa, assim que o João surgiu, a gente correu pro cinema. Em artigo recente sobre a distinção entre argumentos e adjuntos, Kay (2005) diferencia “setting adjuncts” de “path arguments”: enquanto o primeiro apenas apresenta o cenário dentro do qual uma ação se desenrola, o segundo participa dessa ação, codificando o lugar para onde um determinado tema se move. Paralelamente a essa diferença semântica, verifica-se um comportamento formal distinto: os adjuntos são mais resistentes à antecipação, como se vê em (81): 89 (81) a. ? Na minha casa, ele apareceu. b. Na minha casa, acontecem coisas estranhas. A sentença (81a) é bem menos natural que (81b), e parece demandar uma leitura contrastiva. Assim, o oblíquo em (81a) apresenta comportamento de argumento. Diante disso, propomos entender da seguinte maneira os fatos entrevistos em (73) e (74). Por estar antecipado, o oblíquo “lá em casa” não pode ser interpretado como argumento de aparecer e surgir. Assim, resta a leitura como “setting adjunct”. A oração matriz “foi um alvoroço” é compatível com essa leitura (“foi um alvoroço lá em casa”), ao contrário da oração “a gente correu pro cinema” (“*a gente correu pro cinema lá em casa”). Ou seja, as sentenças a são gramaticais porque o próprio conteúdo das cláusulasmatriz se coaduna com a única leitura possível do oblíquo – como “setting adjunct”. Ao contrário, as sentenças b são agramaticais porque, além de a interpretação do oblíquo como argumento ser inviável, tampouco é possível interpretá-lo como adjunto do evento designado na oração matriz. Além disso, analogamente ao que acontece com existir, a interposição de um oblíquo entre o verbo e o “local de aparecimento/surgimento” torna a sentença menos natural: (82) a. ? Aparecem oportunidades de estágio no verão na minha empresa. b. Aparecem oportunidades de estágio na minha empresa no verão. Em suma, propomos tratar como argumentos (embora apenas da construção, não do verbo) os oblíquos de (73) e (74). Ao fazê-lo, reconhecemos que essas sentenças não manifestam uma construção intransitiva, monoargumental, mas um padrão locativo, logo biargumental. Com isso, é simples explicar a mudança semântica verificada em relação às sentenças intransitivas (78), em que se atualiza o sentido de tornar-se real. Interessantemente, porém, o verbo aparecer pode atualizar, no padrão intransitivo, outros sentidos além de tornar-se real, o que não é possível com surgir. (83) a. A etiqueta da sua blusa está aparecendo. 90 b. *A etiqueta da sua blusa está surgindo. (84) a. Meu carro finalmente apareceu. b. ?? Meu carro finalmente surgiu. O sentido atualizado em (83) pode ser parafraseado como tornar-se visível e, em (84), como reaparecer. Conforme comentado na introdução, intrigou-nos o fato de que o verbo surgir não pode atualizar esses significados ao ser instanciado no padrão intransitivo, levando-nos a procurar uma explicação. Seguindo Iwata (2005) e Namoto (2005), buscamos essa explicação em um estudo da semântica dos verbos, a ser apresentado no próximo capítulo. Um outro verbo tipicamente intransitivo que comparece na subconstrução inceptiva é cair. Uma vez mais, sustentamos que o oblíquo “no meu quintal”, em (47), é argumento da construção, como os testes abaixo revelam: (85) a. ? Sobre a casa, o avião quase caiu ontem à noite. b. ? O avião quase caiu ontem à noite sobre a casa. c. O avião quase caiu sobre a casa ontem à noite. (86) a. Nos EUA, caem dezenas de pequenos aviões todos os anos. b. Caem dezenas de pequenos aviões todos os anos nos EUA. c. Caem dezenas de pequenos aviões nos EUA todos os anos. Em (85), o oblíquo “sobre a casa” é argumento da construção locativa, ao passo que em (86) “Nos EUA” é um “setting adjunct”. A diferença semântica é patente: no primeiro caso, “sobre a casa” é o lugar onde o avião foi parar, o ponto onde ele passou a estar após a queda; no segundo, os EUA são apenas o cenário onde se desenrola o evento de queda, e não o ponto final de um percurso. Com base nessas diferenças semânticas e formais, esperamos ter mostrado que o verbo cair pode instanciar tanto um padrão intransitivo, como em (85), quanto um padrão 91 locativo, como em (86). A postulação de duas construções diferentes resolve, a um só tempo, dois problemas: dá conta do comportamento discrepante do oblíquo nos dois casos (se em (84) há um CL, então esse oblíquo é argumento da construção, o que explica suas propriedades formais) e explica a diferença de significado verificada entre o oblíquo que atua como “setting” e aquele que codifica um ponto de chegada. Aqui, cabem duas observações. Em primeiro lugar, é claro que o verbo cair não atualiza, na construção intransitiva, apenas o sentido de “deslocar-se acidentalmente para baixo”. A partir dessa cena experiencial básica, forjam-se também significados metafóricos: deslocamento para baixo em uma escala, como em (87), e perda de poder político, como em (88). (87) O preço do feijão caiu. (88) O Império Romano caiu no século V. Além disso, o que dissemos para cair vale também para toda uma classe de predicadores não-agentivos de movimento, como ruir, desabar ou despencar. (89) O prédio ruiu /desabou / despencou sobre a rodovia. A discussão desenvolvida até aqui teve o objetivo principal de comprovar a existência da subconstrução locativa inceptiva. Isso é importante na medida em que verbos como aparecer, surgir e cair são usualmente reputados como intransitivos, o que poderia causar dúvidas quanto à postulação, central à nossa proposta, de que eles podem aparecer em construções com dois argumentos obrigatórios. É importante sublinhar que isso não afeta a alegada intransitividade desses verbos: do ponto de vista da GC, trata-se de fato de predicadores cuja semântica prevê um argumento apenas, sendo o argumento oblíquo contribuição exclusiva da construção. Para além dos verbos comentados, porém, verificamos que uma série de outros predicadores podem instanciar o nó inceptivo da rede da locatividade. Observem-se os exemplos abaixo: 92 (90) De repente brotou uma idéia na minha cabeça! (91) Nasceu uma espinha na minha testa. (92) O Marcos pintou lá em casa a tempo de ajudar a arrumar tudo. (93) Saiu uma foto sua na revista. Cabe notar que, em todos esses casos, atualiza-se um sentido próximo ao de aparecer/surgir. No entanto, a proposta de um tratamento unificado para (90)-(93) pode soar controversa, sobretudo porque os verbos, tomados isoladamente, parecem bastante distintos. Vamos comentá-los rapidamente, notando de início que todos eles podem aparecer na construção intransitiva: (94) A flor ainda não brotou. (95) O filho dela vai nascer mês que vem. (96) Está pintando o campeão do Brasileirão. (97) A edição deste mês ainda não saiu. Os dois primeiros verbos são predicadores de um participante que, de maneira análoga a aparecer e surgir, podem comparecer tanto na construção intransitiva, conforme (94) e (95), quanto na construção locativa, conforme (90) e (91), atualizando nessa última o sentido de passar a existir/estar em algum lugar. Uma evidência de que (90) e (91) não são exemplos da construção intransitiva aparece abaixo: (90’) ? De repente na minha cabeça brotou uma idéia! (91’) ? Na minha testa nasceu uma espinha. Para o verbo pintar, por sua vez, parece-nos necessário postular dois frames, ou seja, é preciso associar parte da variação semântica observada ao próprio verbo. Parece-nos que o melhor tratamento é reconhecer a polissemia desse predicador, o qual, como verbo de criação, exibe dois participantes e, como verbo existencial, apenas um (um exemplo do uso existencial aparece em (96))29. 29 A opção por atribuir parte da variação semântica de pintar ao próprio predicador é uma solução provisória. Da leitura do artigo de Nemoto (2005), depreende-se que um ponto ainda incipente na GC é a delimitação das fronteiras entre o significado dos verbos e das construções. Quando é necessário reconhecer que um verbo é 93 Por outro lado, não é preciso postular uma terceira acepção ligada à noção de locatividade. Aqui, o comportamento é idêntico ao de aparecer e surgir, predicadores existenciais que podem instanciar o padrão locativo. Em outras palavras, dada a extensão semântica do próprio predicador, a polissemia existência/locatividade segue o padrão já verificado para outros verbos, e pode ser debitada na conta da relação verboconstrução. Para mostrar que essa mudança semântica, de existência para locatividade, decorre da instanciação do verbo em diferentes padrões, é preciso uma vez mais mostrar que o oblíquo de (92) não é adjunto: (92’) O Marcos pintou lá em casa a tempo de ajudar a arrumar tudo. Finalmente, também para o predicador sair propomos reconhecer dois frames. Um deles corresponde a um cenário de movimento, como em “Ele vai sair cedo amanhã”. O outro equivale, de maneira bem próxima a aparecer, a um cenário em que algo se torna acessível ou visível para alguém (“os resultados ainda não saíram”, “já saiu o novo calendário”, “a revista não vai sair este mês”, etc.). Dada essa segunda acepção, ligada a um frame específico, o verbo pode tanto inserir-se em um padrão intransitivo, como (97), quanto num padrão locativo, como (93), atualizando nesse último a idéia de passar a estar contido em algum lugar. Que (93) e (97) exemplificam construções distintas, fica claro por meio dos testes abaixo: (93’) a. ? Na revista, saiu uma foto sua. b. ? Sai foto sua a cada dois meses na revista. c. A cada dos meses, sai foto sua na revista. Em resumo, esperamos ter mostrado que as sentenças (73)-(77) e (90)-(93) são manifestações da subconstrução locativa inceptiva. Fundamentais para isso são os testes polissêmico, e quando a variação de sentido pode ser atribuída à construção? O autor faz uma proposta: deve-se postular uma polissemia lexical apenas quando um verbo puder assumir mais de um sentido diferente dentro de uma mesma construção. Esse não parece ser o caso aqui. No entanto, esse verbo parece atualizar sempre, quando instanciado na construção existencial ou locativa, um sentido metaforicamente baseado no significado básico de “desenhar com tinta”, ligado à construção transitiva (essa metáfora seguiria, grosso modo, as seguintes linhas gerais: aquilo que é pintado passa a existir). Ocorre que não há nada na própria CL ou na construção intransitiva que exija essa acepção metafórica, motivo pela qual propomos, pelo menos inicialmente, associá-la diretamente ao verbo. 94 formais que evidenciam que os oblíquos dessas sentenças não apresentam comportamento típico de adjunto. Quanto aos predicadores com um participante, mostramos que eles podem instanciar tanto o padrão intransitivo quanto o padrão locativo; no primeiro caso, o sentido atualizado alterna entre ser real ou ser visível/acessível; no segundo, manifesta-se a idéia de continência de uma entidade em um espaço. 4.6 Resumindo Neste capítulo, apresentamos uma descrição básica da sintaxe e semântica da construção locativa. Depois de termos nos debruçado, no capítulo 3, sobre o fundamento conceptual da noção de locatividade, passamos aqui a um estudo descritivo da CL. Em suma, chegamos à seguinte proposta: a CL exibe dois papéis argumentais – objeto locado e locativo –, que correspondem aos elementos do esquema dentro-fora e se associam, respectivamente, às relações gramaticais de sujeito e oblíquo. Semanticamente, apresenta um significado central – X ESTAR CONTIDO EM Y – e quatro irradiações polissêmicas, ligados aos sentidos de negação, permanência, modalidade e início de estado. 95 5. A RELAÇÃO VERBO-CONSTRUÇÃO Neste capítulo, voltamo-nos para um estudo mais sistemático do significado de cinco verbos que instanciam a CL, divididos em dois grupos: ter e existir, de um lado, e chegar, aparecer e surgir, de outro. Apesar de investigarmos a semântica dos verbos, o ponto de partida será sempre o seu emprego na construção locativa, e a investigação estará sempre em conexão estreita com o significado das próprias construções. Quer dizer, a intenção aqui é observar mais de perto a interação entre o significado dos verbos e das construções. Conforme comentamos na introdução, a motivação para esse estudo encontra-se na crítica de Iwata (2005) ao modelo de Goldberg (1995). Para o autor, Goldberg peca ao apreender o significado dos verbos sumariamente, descrevendo-os “simplesmente como uma lista de papéis participantes” (Iwata, 2005, p. 102), e não por meio de uma análise efetivamente fundada em uma semântica de frames. O autor reconhece explicitamente que, para Goldberg, o significado dos verbos é relativizado às cenas que eles ativam, mas parece criticar o fato de que a autora não parece dar a importância devida a essa premissa nos momentos em que se lança propriamente a descrever as construções do inglês. O problema, segundo Iwata, é que, sem proceder a essa investigação, o modelo de Goldberg (2005) simplesmente não oferece meios de entender como se dá a compatibilização entre o significado do verbo e o do padrão construcional. É o que ocorre no caso do fenômeno escolhido por Iwata, a clássica “alternância locativa”, como em “load bricks onto the wagon” e “load the wagon with bricks”. Segundo o autor, Goldberg descreve a semântica de load por meio da enumeração dos papéis participantes loader, container e loaded-theme, mas “essa lista sozinha não nos informa por que load, e não pour ou fill, pode se fundir com duas construções distintas”. Vejamos como a crítica de Iwata se aplica à nossa questão. No caso de aparecer, por exemplo, temos um papel participante perfilado que pode ser glosado como quem aparece. No entanto, analogamente ao problema de Iwata, isso não explica por que apenas aparecer, e não surgir, pode atualizar o sentido de tornar-se visível em uma 96 construção intransitiva, conforme (1), ao passo que ambos participam da CL, conforme (2). Por um lado, não se considera que aparecer e surgir tenham papel participante idêntico: o primeiro seria glosado como quem aparece e o segundo, como quem surge. Por outro lado, contudo, se não formos além disso teremos uma explicação tautológica: surgir não pode significar tornar-se visível porque o papel quem surge não se compatibiliza com esse significado – o que, evidentemente, não explica rigorosamente nada. (1) a. O forro não pode aparecer. b. * O forro não pode surgir. (2) a. Apareceu uma mancha no meu nariz. b. Surgiu uma mancha no meu nariz. O mesmo problema se verifica nos exemplos abaixo. A despeito do fato de serem, aparentemente, comutáveis na CL, conforme (3), os verbos ter e existir comportam-se diferentemente quanto à possibilidade de inserção nas construções possessiva e intransitiva existencial: (3) a. Tem leões na África. b. Existem leões na África. (4) a. Deus existe. b. *Deus tem. (5) a. Ninguém teve coragem de dizer a verdade. b. *Ninguém existiu coragem de dizer a verdade. Em suma, para explicar o que licencia um determinado verbo neste ou naquele padrão construcional, acreditamos ser necessário investigar de que maneira se processa a interação entre a semântica do verbo e da construção. Por isso, optamos por seguir a exortação de Iwata (2005) e investigar os frames dos verbos acima. 97 Ao longo do capítulo, recorremos a muitos dos conceitos da Gramática Cognitiva de Langacker, que serão elucidados ao longo da exposição, como escopo da predicação, perfil e base. Ao mesmo tempo, optamos por não reproduzir a notação característica da Cognitive Grammar, atendo-nos a uma representação mais icônica, mais próxima daquela empregada por Iwata (2005). 5.1 Os verbos ter e existir Dialogando com a GC goldbergiana (Goldberg, 1995), Nemoto (2005) defende que um verbo só deva ser considerado polissêmico caso possa assumir dois sentidos diferentes em um mesmo padrão construcional. Não parece ser esse o caso aqui. Os sentidos locativo e possessivo são atualizados pelo verbo ter em padrões diferentes; o mesmo vale para as acepções locativa e existencial de existir. Por isso, trabalhamos com a hipótese de que não será necessário postular duas entradas para nenhum dos dois predicadores. Seguindo Goldberg (1995), diremos que o verbo ter apresenta dois participantes lexicalmente perfilados, ao passo que existir apresenta apenas um. Essa posição decorre do fato de que o verbo ter exibe necessariamente dois argumentos – seja na acepção possessiva, seja na locativa – ao passo que existir, quando associado à idéia de existência conforme definida no capítulo 3, dispensa o constituinte locativo. Ademais, nos termos de Langacker (1987 e 1991), entendemos que ambos os verbos incluem os mesmos elementos no escopo da predicação – que optamos por chamar de contêiner e conteúdo – mas apenas no caso de ter o contêiner é perfilado; em existir, ele pertence à base. Esse fato pode ser representado assim: 98 EXISTIR EXISTIR TER TER Figura 6: Esquemas conceptuais para existir e ter Recorrendo à notação de Goldberg (1995), temos o seguinte: ter <contêiner conteúdo> existir <contêiner conteúdo> Como o escopo de predicação de existir inclui um único elemento perfilado, o conteúdo, esse elemento será necessariamente trajector (ou vetor). Essa imposição da semântica do verbo impede que ele se compatibilize com a construção possessiva, a qual, como vimos, especifica que o contêiner é o elemento que deve corresponder ao vetor. Por outro lado, esse verbo se compatibiliza com a construção locativa, que especifica o conteúdo como vetor, conforme já comentamos no terceiro capítulo (Langacker, 1987, p. 217-218 e 1991, p. 172). O frame do verbo ter, por sua vez, exibe dois elementos perfilados. Assim, ambos são candidatos possíveis a vetores. Portanto, no que tange a esse verbo, a decisão sobre qual elemento atuará como trajector e qual equivalerá ao landmark fica por conta da construção instanciada: a construção possessiva impõe o contêiner como vetor e o conteúdo como marco; a locativa inverte essa relação. Por outro lado, o fato de contar com dois participantes perfilados impede que o verbo ter se compatibilize com a construção intransitiva existencial, já que esse padrão exibe um único papel argumental e, ligado a isso, apenas uma relação gramatical. Dessa 99 maneira, a instanciação de ter nesse padrão faria com que o papel participante de contêiner não pudesse ser expresso por nenhum papel argumental perfilado, o que contraria o Princípio da Correspondência. O resultado da violação ao princípio é a agramaticalidade de (5b), em contraste com (5a). 5.2 Os verbos chegar, aparecer e surgir Quando instanciados na construção locativa, esses três verbos podem, em alguns casos, parecer sinônimos; vejamos: (6) a. Meu pai chegou lá em casa de surpresa. b. Meu pai apareceu lá em casa de surpresa. c. Meu pai surgiu lá em casa de surpresa. (7) a. Ela sempre chega nas piores horas. b. Ela sempre aparece nas piores horas. c. Ela sempre surge nas piores horas. Apesar dessa proximidade, gostaríamos de mostrar que, embora as sentenças de cada grupo tenham idêntico valor de verdade, elas constroem diferentes conceptualizações de um mesmo cenário. Antes de mais nada: entendemos que, dos três verbos considerados, o verbo chegar é o único que inclui, em seu escopo de predicação, um percurso ao longo do qual uma entidade se desloca, ao contrário de aparecer e surgir. Isso fica evidenciado no seguinte exemplo: (8) a. Apareceu uma nota de 50 reais no meu bolso! b. Surgiu uma nota de 50 reais no meu bolso! c. *Chegou uma nota de 50 reais no meu bolso! Alegamos que a sentença (8c) provoca estranheza porque o verbo chegar necessariamente franqueia a visualização de um caminho atravessado pelo referente do 100 seu sujeito, com vistas a um fim pré-definido, o que é incompatível com o significado da sentença (mas é perfeitamente compatível, por exemplo, com “chegou carta para você”). No entanto, sustentamos que o percurso presente no frame de chegar comparece apenas como base. Ou seja, estamos sugerindo que apenas o ponto final desse percurso fica perfilado. Evidência disso é o fato de que o referente do sujeito de chegar não é construído como desencadeador da ação, conforme mostramos no capítulo 4 e repetimos abaixo. (9) *Ele chegou no quarto de propósito. Em outras palavras, o verbo chegar designa (no sentido de Langacker, 1987 e 1991) o instante derradeiro de um trajeto, mas esse instante só pode ser compreendido relativamente ao próprio trajeto, que é então conceptualmente pressuposto, e comparece no escopo da predicação na condição de base. A esse respeito, é interessante notar que existe um uso de chegar, a nosso juízo relativamente recente, que parece contrariar o que dissemos acima. Esse uso aparece no exemplo abaixo: (10) Acho que eu nem vou chegar no churrasco hoje; estou muito cansado. Para muitos dos falantes que consultamos, esse exemplo causou estranheza, provavelmente por conta do fato de que, aqui, o referente do sujeito de chegar é construído como desencadeador da ação, ao passo que, no uso canônico, uma afirmação como “eu não vou chegar” não implica uma decisão, e sim uma previsão, conforme já tivemos a oportunidade de observar no capítulo 4. A nosso ver, porém, esse uso não é um contra-exemplo à nossa proposta de apreensão da semântica de chegar. O primeiro fato a ser notado aqui é que se trata de um emprego de caráter metonímico: o enunciador não está apenas dizendo que não vai chegar, ou 101 seja, que não completará o percurso, mas que não irá sequer começá-lo. Esse uso se aproxima bastante, portanto, do sentido de ir. Sendo assim, cabe perguntar qual seria a diferença entre (10) e sua paráfrase com o verbo ir. Intuitivamente, parece-nos que, diferente de ir, o verbo chegar modaliza o enunciado, atuando como estratégia de proteção de face. Assim, tudo se passa como se o falante, ao empregar o verbo chegar, construísse o evento como se o referente do sujeito não fosse o controlador/desencadeador da ação, mas estivesse, ao contrário, sujeito a alguma força maior que ele. Em outras palavras, a sentença (10) equivale aproximadamente a enunciados como “eu não vou poder ir”, “não vai dar pra ir”, “não vai ser possível eu ir” etc. Se estivermos corretos, o surgimento desse novo uso de chegar apenas confirma a proposta que vimos apresentando: como o referente do seu sujeito não é construído como agente, ele adquire uma função de proteção de face, construindo um cenário em que o referente do seu sujeito é eximido da culpa pelo conteúdo da proposição expressa pela sentença. Até aqui, portanto, temos uma situação em que chegar se distingue de aparecer e surgir pelo próprio escopo da predicação. Apenas o frame do primeiro especifica um percurso, muito embora esse percurso não esteja perfilado, mas apenas seu ponto final. Neste ponto, gostaríamos de acrescentar que aparecer e surgir incluem, em seu escopo de predicação, um participante não perfilado que não comparece no frame de chegar: trata-se de um visualizador ou presenciador do evento de aparecimento/surgimento designado. Em outras palavras, o que queremos dizer é que não é possível que alguém ou algo apareça ou surja sem que esse evento esteja sendo presenciado por outrem – sob pena de não haver aparecimento/surgimento algum. Ou, ainda em outros termos, quem aparece/surge obrigatoriamente aparece/surge para alguém, ou diante de alguém. O mesmo não acontece com chegar. Até este ponto, a descrição apresentada não revelou nenhuma diferença entre aparecer e surgir. E, de fato, os dois verbos parecem bastante próximos: 102 (11) a. Ele sempre aparece nas piores horas! b. Ele sempre surge nas piores horas! (12) a. Surgiu um envelope em cima da minha mesa. b. Apareceu um envelope em cima da minha mesa. Outros contextos, porém, mostram que há diferenças: (13) a. Falta aparecer o meu pai e o meu irmão. b. ?? Falta surgir o meu pai e o meu irmão. (14) a. Só meu pai ainda não apareceu. b. ?? Só meu pai ainda não surgiu. Crucialmente, o verbo surgir parece incompatível com a visualização de um cenário externo ao “local de surgimento”, ao passo que aparecer é neutro, ou não-marcado, a esse respeito. Evidentemente, quando falamos em “visualização”, estamos lançando mão da metáfora CONHECER É VER (Lakoff & Johnson, 1999). O que se quer dizer é que o predicador surgir não será licenciado nos casos em que a sentença pressupuser (em sentido amplo) um conhecimento ou expectativa prévia sobre a chegada do referente do SN ao “local de surgimento” – como é o caso de (13) e (14). Ou seja, acreditamos que o verbo surgir não tolera a visualização de um estado de coisas anterior e exterior ao momento/local do surgimento. É o que se vê abaixo: (15) ?? O Zezinho só vai surgir quando a escola estiver fechando. Todos os falantes que consultamos alegaram uma certa estranheza em (15), embora tenham afirmado ser possível construir uma interpretação para a sentença. Esse julgamento é previsto pela nossa proposta e recebe, nela, uma explicação direta. Na interpretação mais imediata de (15), a tendência é assumir que o referente de “Zezinho” ainda estará ativo para o enunciador quando a escola estiver fechando. Nesse caso, o evento de chegada de Zezinho não poderia ser enquadrado pelo enunciador- 103 presenciador como “surgimento”, o que leva à sensação de estranheza causada pela sentença. Essa interpretação, no entanto, não é obrigatória, o que autoriza a leitura segundo a qual, no momento em que a escola estiver fechando, o Zezinho já não mais estará sendo esperado. Essa possibilidade é o que dá conta da aceitabilidade, ainda que restrita, de (15). O fato de que não há qualquer sinalização explícita no sentido dessa possibilidade é o que explica sua estranheza. De fato, havendo uma sinalização desse tipo, a sentença parece bem mais natural: (16) Quando a gente nem estiver mais pensando nele, ele vai surgir. Em (15), esse movimento cognitivo pode ser realizado, mas não existe nenhuma instrução explícita nesse sentido, o que justifica tanto a “estranheza” sentida pelos falantes quanto à relativa variação do julgamento de um falante para o outro. Ao fim e ao cabo, ficamos com uma situação relativamente complexa. O verbo chegar, que perfila o momento final de um percurso e assume o percurso em si como base, não inclui em seu escopo de predicação um visualizador, o que o licencia tanto em (6) e (7) quanto em (10). Os verbos aparecer e surgir, por sua vez, incluem esse participante. Há entre eles, porém, uma diferença: enquanto o primeiro é neutro quanto à possibilidade de “visualização” do objeto locado fora do espaço designado pelo locativo, o segundo incompatível com essa “visualização”, sendo, portanto especializado em eventos inesperados ou surpreendentes. A tabela abaixo resume essa parte: 104 CHEGAR APARECER SURGIR NÃO SIM SIM Permite a visualização do movimento anterior ao aparecimento? SIM SIM NÃO Proíbe a visualização do movimento anterior ao aparecimento? NÃO NÃO SIM Inclui um visualizador no próprio escopo da predicação? Tabela 2: Comparação entre os verbos chegar, aparecer e surgir Essas distinções podem ser representadas esquematicamente assim: (1) CHEGAR (2) APARECER (3) SURGIR Figura 7: representação esquemática dos usos locativos de chegar, aparecer e surgir O ponto preto representa o elemento que chega/surge/aparece, enquanto rosto pontilhado representa o visualizador. O retângulo, por sua vez, corresponde ao “local de chegada/surgimento/aparecimento”. A linha pontilhada, presente apenas em (1), indica a base sobre a qual o evento de chegada é perfilado. A seta cheia, que em (1) é a continuação da seta pontilhada, representa o próprio momento da chegada/surgimento/aparecimento. Por fim, as setas largas vazadas (duas em (2), uma apenas em (3) e nenhuma em (1)) indicam o alcance do horizonte perceptual/conceptual que do visualizador de cada verbo. 105 Nota-se assim que, em (1), conforme se defendeu acima, o trajeto de movimento aparece representado, mas não perfilado. Em outras palavras, não é possível “chegar” se não há deslocamento, de maneira que a chegada é apenas o momento final desse deslocamento (e o momento inicial de um novo estado). Por outro lado, o verbo chegar não perfila o percurso inteiro, mas apenas seu instante derradeiro. Assim, o verbo chegar necessariamente impõe a visualização do movimento anterior à chegada, diferentemente de aparecer, em que essa visualização pode ou não ser franqueada, e diferentemente também de surgir, em que essa visualização é vetada. Seguindo adiante, a presença do rosto cheio nos casos de aparecer e surgir pretende representar o fato que ambos os verbos contam com um visualizador em seu escopo de predicação. Interessante é notar que, nos casos de aparecer e surgir, o local designado pelo argumento oblíquo corresponde ao espaço a partir de onde a cena é observada – quer dizer, o espaço ocupado pelo visualizador. Em outras palavras, os eventos de aparecer e surgir não demandam apenas um espaço de acontecimento, mas também a presença neste espaço de indivíduos que observem o evento. O mesmo não se passa com chegar: quem chega chega a algum lugar apenas, não necessariamente diante de alguém. Note-se, por fim, que apenas três elementos comparecem na representação conceptual de todos os três verbos: o retângulo (espaço da locação), o ponto dentro do retângulo e a seta cheia. Não coincidentemente, os dois primeiros encontram um correspondente no padrão imagético dentro-fora, compartilhado por todas as sentenças locativas: o retângulo, que representa o local de chegada/aparecimento/surgimento, é o círculo do esquema; o rosto pontilhado, que representa o elemento que chega/aparece/surge, equivale ao X do esquema. A seta cheia, por seu turno, é o elemento compartilhado por todos usos locativos inceptivos, nos quais se inserem os verbos chegar, aparecer e surgir. Desta maneira, esperamos ter mostrado que, mesmo nos usos locativos em que esses três verbos são intercambiáveis, o cenário é construído diferentemente em cada caso. Neste momento, gostaríamos de dar um passo adiante. Na representação esquemática 106 acima, o que se apreende é a semântica dos verbos integrada à da construção locativa. Na figura abaixo, descartamos aqueles elementos que constituem contribuição da CL para chegarmos a uma representação apenas do frame dos três verbos em foco: (1) CHEGAR (2) APARECER (3) SURGIR Figura 8: representação dos frames de chegar, aparecer e surgir O que se percebe de imediato é que o frame de chegar é o único a prever dois papéis participantes perfilados, aquele que chega e o lugar aonde se chega. No capítulo anterior, mencionamos o fato de que, a nosso ver, esse predicador não pode ser interpretado caso o locativo não esteja presente nem seja recuperável, o que justifica tratar esse locativo como papel perfilado do predicador. Os verbos aparecer e surgir, por sua vez, têm um único papel perfilado cada um: quem aparece e quem surge, respectivamente. Seguindo Goldberg (1995), não consideramos aqui que o locativo esteja perfilado porque, em construções intransitivas existenciais, o oblíquo não precisa estar expresso sintaticamente: (17) A Internet apareceu / surgiu em meados da década de 90. 107 De qualquer maneira, entendemos que, mesmo nesses casos, sugere-se de alguma forma um local de aparecimento, ainda que se trate de um local “maximamente esquemático” – para usar a expressão com a qual Langacker (2004) se refere a um elemento análogo, o “lugar de existência” em construções existenciais do tipo “O unicórnio existe”. Este é motivo pelo qual consideramos que existe, no frame de aparecer e surgir, um espaço de aparecimento/surgimento, ainda que conceptualmente pressuposto, como base, e não perfilado. De acordo com a notação de Goldberg (1995), ficamos com a seguinte situação: chegar <quem chega onde se chega> aparecer <quem aparece visualizador lugar onde se aparece> surgir <quem surge visualizador lugar onde se surge> Finalmente, estamos agora em condições de entender o que licencia a distribuição desses verbos pelas construções intransitiva e locativa. Vamos nos deter sobre a relação entre aparecer e surgir. O primeiro verbo parece atualizar um gama maior de sentidos. Identificamos pelos menos quatro, parafraseados informalmente da seguinte maneira: (i) tornar-se real, passar a existir, como em (18); (ii) reaparecer, como em (19); (iii) tornar-se visível, como em (20); passar e estar contido, como em (21). (18) A Internet apareceu em meados da década de 90. (19) Meu carro finalmente apareceu. (20) Sua tatuagem está aparecendo. (21) Apareceu uma mancha no meu nariz. A abordagem construcional adotada aqui nos leva a supor que as três primeiras sentenças ilustram uma construção intransitiva, ao passo que a última é locativa, pelos motivos já expostos no capítulo anterior. Das quatro acepções acima, apenas a primeira e a última são compatíveis com o verbo surgir: (22) A Internet surgiu em meados da década de 90. (23) ??? Meu carro finalmente surgiu. 108 (24) *Sua tatuagem está surgindo. (25) Surgiu uma mancha no meu nariz. Agora, deve estar claro o que explica a restrição a surgir em (23) e (24). Conforme esperávamos, uma investigação do frame semântico desse verbo nos fornece a resposta. Nesse frame, temos um visualizador (ou conceptualizador) cujo horizonte perceptual/conceptual se restringe ao local de surgimento. Os exemplos (19) e (20), porém, necessariamente demandam que o tema – meu carro e sua tatuagem – seja conhecido mesmo quando não visualizado. Novamente, estamos falando (também) em termos metafóricos, segundo a metáfora CONHECER É VER. Em (20), de fato, o que se demanda é que o enunciador saiba da existência da tatuagem mesmo quando ela está fora do seu campo perceptual, o que é, como vimos, impossível para surgir. Já o emprego de (19) implica que o enunciador esteja ciente da existência do carro mesmo que não saiba onde ele está – ou seja, mesmo que, no momento da enunciação, o carro não possa ser – metaforicamente – “visualizado”. Com essa análise, finalmente, esperamos ter comprovado a necessidade de nos debruçarmos mais detidamente sobre o frame dos verbos, como reivindica Iwata (2005), a fim de explicar as possibilidades de interação entre significado do verbo e da construção gramatical. 5.3 Resumindo Depois da investigação da construção locativa, levada a cabo nos capítulos 3 e 4, este último capítulo voltou-se para uma questão ligeiramente distinta, ainda que relacionada: a relação entre a semântica da CL e a dos verbos que se inserem nela. Para isso, selecionamos cinco predicadores e observamos a configuração semântica de cada um, socorrendo-nos tanto do trabalho e Goldberg (1995) quanto de Langacker (1987 e 1991). Além da CL, foram comentadas neste capítulo a construção intransitiva e a construção possessiva. De uma maneira geral, procuramos mostrar que o licenciamento ou restrição a um determinado verbo resulta da interação entre e a semântica do verbo e 109 a da construção, o que nos leva à conclusão de que os frames associados aos verbos merecem uma observação atenta e minuciosa. 110 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta dissertação procurou investigar a construção locativa do PB contemporâneo à luz da lingüística cognitiva e, em especial, da Gramática das Construções. Dessa maneira, esperamos, antes de mais nada, que este estudo tenha ajudado a confirmar a viabilidade de uma abordagem construcional da gramática. Em especial, observamos que poucos estudos construcionais do PB têm se debruçado sobre o tipo de construção que escolhemos observar aqui: não apenas uma construção de nível sintático inteiramente aberta, sem qualquer especificação fonológica, como uma construção que equivale a um padrão argumental básico da língua – no nosso caso, um padrão biargumental contendo um SN e um SPrep ou SAdv. A despeito do número crescente de investigações da gramática do PB à luz da GC, talvez apenas o estudo de Leite (2006), dentre aqueles de que temos conhecimento, investigue um padrão exatamente com essas características – no caso, a construção resultativa. O cerne deste trabalho consistiu em um esforço de circunscrição e descrição das propriedades básicas do padrão locativo, o que ficou concentrado nos capítulos 3 e 4. Nesses dois capítulos, esperamos ter deixado demonstrada a existência, no PB, de uma construção biargumental sustentada experiencialmente pelo esquema imagético dentrofora. Mais importante aqui, a nosso ver, é a proposta de que a CL exibe múltiplos significados conectados, não constituindo, pois, um padrão perfeitamente homogêneo, mas, antes, exatamente como prevê o modelo goldbergiano, uma rede formada por uma construção central e quatro subconstruções ligadas a esse núcleo prototípico. Ademais, acreditamos que uma contribuição importante deste trabalho tenha sido a tentativa de seguir, para uma descrição do português, a sugestão de Iwata (2005), que reivindicou uma maior atenção dos estudos construcionais aos frames verbais. Aqui, não resta dúvida, pudemos proceder apenas a uma exploração preliminar desse caminho, observando não mais que cinco predicadores. Ainda assim, essa proposta, a nosso ver, se revelou produtiva, sendo capaz de explicar aqui, tanto quanto no trabalho de Iwata (2005) a possibilidade, ou impossibilidade, de inserção de um mesmo predicador em construções diferentes, bem como os sentidos que podem ser atualizados. 111 Breve discussão teórica e desenvolvimento futuro A questão da polissemia construcional, que ocupou grande espaço neste trabalho, tem se constituído em um foco de tensão no interior da GC (aqui, entendida amplamente como um rótulo que recobre diversas orientações mais ou menos afins, ainda que todas elas, claro, antípodas ao modelo de léxico mais regras formais consagrado pela tradição gerativista). Em especial, duelam sobre essa questão o modelo goldbergiano e o modelo que Goldberg (2006) denomina de Unification Construction Grammar, encabeçado por Charles Fillmore e Paul Kay. Kay (2005), por exemplo, critica o excesso de nós ou subconstruções presentes na rede polissêmica da construção bitransitiva postulada por Goldberg (1995). A crítica do autor fundamenta-se, essencialmente, no argumento de que não há justificativa teórica para a postulação de tantas subconstruções (esses nós foram apresentados na introdução deste trabalho), no sentido de que é possível descrever forma e sentido da construção com um número menor de subpadrões. Sua busca é, portanto, pela economia e elegância descritivas, quer dizer, pela obtenção da máxima generalização – bem como pelo estabelecimento de uma rigorosa disciplina notacional, na trilha da tradição gerativista. Por outro lado, é exatamente essa ênfase exagerada sobre a economia descritiva que se transforma em alvo de críticas de Goldberg (2006, cap. 10). A autora defende, em vez disso, que se enfatize a plausibilidade psicológica das hipóteses propostas e que se busque um modelo baseado no uso. A rigor, essa tem sido a direção mais recente da abordagem goldbergiana – uma guinada que, como se vê, não foi incorporada neste trabalho. Aqui, embora tenhamos recorrido, como fonte de consulta, ao trabalho de Goldberg (2006), suas principais inovações não foram seguidas nesta dissertação. A nosso ver, essas inovações são duas: a ênfase em pesquisa empírica e um esforço por se aproximar da língua-em-uso. Não coincidentemente, trata-se de perseguir as duas características que, conforme comentamos acima, a autora advoga como importantes para um modelo de descrição gramatical. São essas duas diretrizes, parece-nos, que ficam recobertas sob o título Constructions at work. 112 Essa breve recensão sobre os últimos desenvolvimentos do trabalho de Goldberg serve para entrevermos uma possibilidade de desenvolvimento futuro do nosso próprio trabalho. Este é o espaço para reconhecer que um ponto altamente relevante do estudo da CL ficou de fora desta dissertação: a questão da ordenação dos constituintes. Sabemos que se, por um lado, os verbos transitivos do PB dificultam a inversão verbosujeito, muitos dos verbos que investigamos aqui – como aparecer, surgir ou cair – aceitam com facilidade tanto um sujeito pré-verbal quanto pós-verbal. Sem dúvida, uma investigação da CL não estará completa se não der conta desse problema. Por outro lado, ele foi excluído do nosso trabalho por um motivo simples: trata-se de uma investigação muito mais diretamente ligada a questões pragmático-discursivas do que as questões abordadas aqui. Assim, incluir mais este fenômeno significaria abarcar, de maneira insustentável para os limites deste trabalho, todo um novo conjunto de questões teóricas e metodológicas. Por tudo isso, acreditamos que a investigação da ordenação dos constituintes na CL possa se constituir como um desenvolvimento futuro deste trabalho. A nosso ver, tratase de um tópico promissor porque, embora este seja um problema clássico da descrição do português, apenas recentemente, a nosso ver, o modelo goldbergiano vem desenvolvendo um instrumental analítico apropriado para abordá-lo – em boa parte por conta da importação de categorias discursivo-pragmáticas, como tópico e foco, para o interior do modelo. Desse modo, concluímos este trabalho olhando para a frente, e desejando que esta pesquisa possa seguir as novas trilhas abertas pela Gramática das Construções. 113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAÇADO, Jussara. Ordem de palavras: da linguagem infantil ao português coloquial. Niterói, EdUFF: 2003. BECHARA, Evanildo. Lições de português pela análise sintática. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000. BECHARA, E. N. 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Em seguida, partindo de uma distinção entre as noções de posse e locatividade, oferecermos a nossa própria hipótese, de base experiencialista, para este segundo conceito. Completadas essas etapas, parte-se para a descrição em si da construção locativa, delimitando-se antes de tudo os seus limites, relativamente a outras construções que compartilham com ela aspectos comuns. Concluída a tarefa, passa-se à descrição de sua rede polissêmica, com um sentido central e quatro extensões polissêmicas organizadas ao seu redor, observando os aspectos particulares a cada nó construcional. Finalmente, concluímos com uma investigação no espírito da semântica de frames, investigando a configuração semântica dos predicadores ter, existir, chegar, aparecer e surgir, e verificando como suas propriedades semânticas interagem com a semântica das construções que eles instanciam. 119 ABSTRACT In this dissertation we propose to recognize the locative grammatical construction among the grammatical constructions in Portuguese, describing its conceptual basis, its syntactic-semantic properties and its polysemous network. We intend to investigate the semantics of five predicators related to locative construction: ter, existir, chegar, aparecer and surgir. Focusing this purpose, we assume the core points of Cognitive Linguistics as the fundamental theoretic framework for investigations such as this one that we are intending to develop. Likewise, we postulate the model of Construction Grammar. To achieve this aims, we present the theoretical development which led to a cognitive approach for language studies, as well the general lines of Construction Grammar. Afterwards, coping with the distinction between possession and locativity, we offer our own hypothesis, on a experientialist basis, for this second concept. With these stages completed, we go on to the description of the locative construction per se, defining, first of all, its delimitation relatively to other constructions which keep, confronted to it, common features. After concluding this task, we describe the polysemous network, with a central sense and four polysemic extensions around it, examining particular aspects of each node. Finally, we conclude with an investigation in the spirit of frame semantics, observing the semantic configuration of the verbs ter, existir, chegar, aparecer e surgir, and verifying how their semantic properties interact with the semantics of the constructions which they instantiate. 120