Mc 10,2-16: Indissolubilidade do matrimônio: cf.par. Mt 19,1-9 Papa Bento XVI Encíclica "Deus charitas est", §9-11 "E os dois serão um só" A relação de Deus com Israel é ilustrada através das metáforas do noivado e do matrimónio; consequentemente, a idolatria é adultério e prostituição... O eros de Deus pelo homem — como dissemos — é ao mesmo tempo totalmente agape... O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa… Na Bíblia encontrarmo-nos diante de uma imagem estritamente metafísica de Deus: Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas — o Logos, a razão primordial — é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros é enobrecido ao máximo, mas simultaneamente tão purificado que se funde com a agape. A primeira novidade da fé bíblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narração bíblica da criação fala da solidão do primeiro homem, Adão, querendo Deus pôr a seu lado um auxílio… A ideia de que o homem de algum modo esteja incompleto, constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua totalidade, isto é, a ideia de que, só na comunhão com o outro sexo, possa tornar-se « completo », está sem dúvida presente. E, deste modo, a narração bíblica conclui com uma profecia sobre Adão: « Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne » (Gn 2, 24). Aqui há dois aspectos importantes: primeiro, o eros está de certo modo enraizado na própria natureza do homem; Adão anda à procura e « deixa o pai e a mãe » para encontrar a mulher; só no seu conjunto é que representam a totalidade humana, tornam-se « uma só carne ». Não menos importante é o segundo aspecto: numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimónio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima. À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimónio monogâmico. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, viceversa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Concílio Vaticano II Constituição Dogmática sobre a Igreja no mundo actual "Gaudium et Spes", § 48 "Maridos. amai as vossas esposas como Cristo amou a Igreja: entregou-se por ela" (Ef 5,25) O homem e a mulher, que, pela aliança conjugal «já não são dois, mas uma só carne» (Mt. 19, 6), prestam-se recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e actividades, tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua união. Cristo Senhor abençoou copiosamente este amor de múltiplos aspectos, nascido da fonte divina da caridade e constituído à imagem da sua própria união com a Igreja (Ef 5, 32). E assim como outrora Deus veio ao encontro do seu povo com uma aliança de amor e fidelidade, assim agora o Salvador dos homens e esposo da Igreja vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio. E permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e se entregou por ela (Ef 5, 25), de igual modo os cônjuges, dando-se um ao outro, se amem com perpétua fidelidade. O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino, e dirigido e enriquecido pela força redentora de Cristo e pela acção salvadora da Igreja, para que, assim, os esposos caminhem eficazmente para Deus e sejam ajudados e fortalecidos na sua missão sublime de pai e mãe. Por este motivo, os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial; cumprindo, graças à força deste, a própria missão conjugal e familiar, penetrados do espírito de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos para a glorificação de Deus. Pregador do Papa: é possível fazer que as crises não desgastem o matrimônio, mas que o melhorem Comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap., sobre a liturgia do próximo domingo ROMA, sexta-feira, 6 de outubro de 2006 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap. -- pregador da Casa Pontifícia -- sobre a liturgia do próximo domingo, XXVII do tempo comum. *** E os dois serão uma só carne XVII Domingo do tempo comum (B) Gênesis 2, 18-24; Hebreus 2, 9-11; Marcos 10, 2-16 O tema deste XXVII Domingo é o matrimônio. A primeira leitura começa com as bem conhecidas palavras: «Disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma ajuda adequada». Em nossos dias, o mal do matrimônio é a separação e o divórcio, enquanto que nos tempos de Jesus o era o repúdio. Em certo sentido, este era um mal pior, porque implicava também uma injustiça com relação à mulher, que ainda persiste, lamentavelmente, em certas culturas. O homem, de fato, tinha o direito de repudiar a própria esposa, mas a mulher não tinha o direito de repudiar seu próprio marido. Duas opiniões se contrapunham, com relação ao repúdio, no judaísmo. Segundo uma delas, era lícito repudiar a própria mulher por qualquer motivo, ao arbítrio, portanto, do marido; segundo a outra, ao contrário, se necessitava de motivo grave, contemplado pela Lei. Um dia submeteram esta questão a Jesus, esperando que adotasse uma postura a favor de uma ou outra tese. Mas receberam uma resposta que não esperavam: «Tendo em conta a dureza de vosso coração [Moisés] escreveu para vós este preceito. Mas desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem seu pai e a sua mãe, e os dois serão uma só carne. De maneira que já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, o homem não separe». A lei de Moisés acerca do repúdio é vista por Cristo como uma disposição não querida, mas tolerada por Deus (como a poligamia ou outras desordens) por causa da dureza de coração e da imaturidade humana. Jesus não critica Moisés pela concessão feita; reconhece que nesta matéria o legislador humano não pode deixar de levar em conta a realidade de fato. Mas volta a propor a todos o ideal originário da união indissolúvel entre o homem e a mulher («uma só carne») que, ao menos para seus discípulos, deverá ser já a única forma possível de matrimônio. Contudo, Jesus não se limita a reafirmar a lei; acrescenta-lhe a graça. Isto quer dizer que os esposos cristãos não têm só o dever de manter-se fiéis até a morte; têm também as ajudas necessárias para fazê-lo. Da morte redentora de Cristo vem uma força -- o Espírito Santo -que permeia todo aspecto da vida do crente, inclusive o matrimônio. Este inclusive é elevado à dignidade de sacramento e de imagem viva de sua união esponsalícia com a Igreja na cruz (Ef. 5, 31-32). Dizer que o matrimônio é um sacramento não significa só (como com freqüência se crê) que nele está permitida e é lícita e boa a união dos sexos, que fora daquele seria desordem e pecado; significa -- mais ainda -- dizer que o matrimônio se converte em um modo de unir-se a Cristo através do amor ao outro, um verdadeiro caminho de santificação. Esta visão positiva é a que mostrou tão felizmente o Papa Bento XVI em sua Encíclica «Deus caritas est», sobre amor e caridade. O Papa não contrapõe nela a união indissolúvel no matrimônio a outra forma de amor erótico; mas a apresenta como a forma mais madura e perfeita desde o ponto de vista não só cristão, mas também humano. «O desenvolvimento do amor para com suas altas cotas e sua mais íntima pureza -- diz -- leva a que agora se aspire ao definitivo, e isto em um duplo sentido: enquanto implica exclusividade -- só esta pessoa --, e no sentido do “para sempre”. O amor engloba a existência inteira e em todas as suas dimensões, inclusive também o tempo. Não poderia ser de outra maneira, já que sua promessa aponta para o definitivo: o amor tende à eternidade.» [n. 6] Este ideal de fidelidade conjugal nunca foi fácil (adultério é uma palavra que ressoa sinistramente até na Bíblia); mas hoje a cultura permissiva e hedonista na qual vivemos o tornou imensamente mais difícil. A alarmante crise que a instituição do matrimônio atravessa em nossa sociedade está à vista de todos. Legislações civis, como a do governo espanhol, que permitem (e indiretamente, de tal forma, estimulam!) iniciar os trâmites de divórcio apenas poucos meses depois de vida em comum. Palavras como: «estou farto desta vida», «se é assim, cada um por si!», «vou embora», já se pronunciam entre cônjuges diante da primeira dificuldade (dito seja de passagem: creio que um cônjuge cristão deveria acusar-se em confissão do simples fato de ter pronunciado uma destas palavras, porque o simples fato de dizer é uma ofensa à unidade e constitui um perigoso precedente psicológico). O matrimônio sofre nisso a mentalidade comum do «usar e jogar fora». Se um aparelho ou uma ferramenta sofre algum dano ou uma pequena avaria, não se pensa em repará-lo (desapareceram já aqueles que tinham estes ofícios), pensa-se só em substituir. Aplicada ao matrimônio, esta mentalidade resulta mortífera. O que se pode fazer para conter esta tendência, causa de tanto mal para a sociedade e de tanta tristeza para os filhos? Tenho uma sugestão: redescobrir a arte do remendo! Substituir a mentalidade do «usar e jogar fora» pela do «usar e remendar». Quase ninguém faz remendos mais. Mas se não se fazem já na roupa, deve-se praticar esta arte do remendo no matrimônio. Remendar os desgarrões. E remendá-los rapidamente. São Paulo dava ótimos conselhos ao respeito: «Se vos irais, não pequeis; não se ponha o sol enquanto estejais irados, nem deis ocasião ao Diabo», «suportai-vos uns aos outros e perdoaivos mutuamente se algum tem queixa contra outro», «ajudai-vos mutuamente a levar vossas cargas» (Ef 4, 26-27; Col 3, 13; Ga 6, 2). O importante que se deve entender é que neste processo de desgarrões e recosidos, de crises e superações, o matrimônio não se gasta, mas se afina e melhora. Percebo uma analogia entre o processo que leva a um matrimônio exitoso e o que leva à santidade. Em seu caminho rumo à perfeição, nenhum impulso, tem aridez estão vazios, fazem tudo à força de vontade e com fadiga. Depois desta, chega a «noite escura do espírito», na qual não entra em crise só o sentimento, mas também a inteligência e a vontade. Chega-se a duvidar de que se esteja no caminho adequado, se é que acaso não foi tudo um erro, escuridão completa, tentações sem fim. Segue-se adiante só por fé. Então tudo se acaba? Ao contrário! Tudo isto não era senão purificação. Depois de passar por estas crises, os santos percebem quão mais profundo e mais desinteressado é agora seu amor a Deus, com relação ao do começo. A muitos casais não será custoso reconhecer nisso sua própria experiência. Também terão atravessado freqüentemente, em seu matrimônio, a noite dos sentidos, na qual falta todo êxtase daqueles, e se alguma vez houve, é só uma lembrança do passado. Alguns conhecem também a noite do espírito, o estado em que entra em crise até a opção de fundo e parece que não se tem já nada em comum. Se com boa vontade e a ajuda de alguém se conseguem superar estas crises, percebe-se até que ponto o impulso e o entusiasmo dos primeiros dias era pouca coisa, com relação ao amor estável e a comunhão amadurecidos nos anos. Se primeiro o esposo e a esposa se amavam pela satisfação que isso lhes procurava, hoje talvez se amam um pouco mais com um amor de ternura, livre de egoísmo e capaz de compaixão; amam-se pelas coisas que passaram e sofreram juntos. [Traduzido por Zenit] ZP06100601 Jacques de Saroug (cerca 449-521), monge e bispo sírio Homília sobre o sexto dia “Os dois serão uma só carne” “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, disse Deus (Gn 1,26). Uma simples ordem fez surgir os outros seres da criação: “Que se faça luz!” ou “Haja um firmamento!”. Desta vez, Deus não disse: “Que haja o homem”, mas disse: “Façamos o homem”. Com efeito, ele achava conveniente dar forma com as suas próprias mãos a esta imagem de si próprio, superior a todas as outras criaturas. Esta obra era-lhe particularmente próxima; ele tinha-lhe um grande amor... Adão é a imagem de Deus porque traz a efígie do Filho único... Dum certo modo, Adão foi criado simultaneamente singelo e duplo; Eva encontrava-se escondida nele. Antes mesmo deles existirem, a humanidade estava destinada ao casamento, que os levaria, homem e mulher, a um só corpo, como no início. Nenhuma querela, nenhuma discórdia, se devia levantar entre eles. Teriam um mesmo pensamento, uma mesma vontade... O Senhor formou Adão do pó e da água; quanto a Eva, tirou-a da carne, dos ossos e do sangue de Adão (Gn 2,21). O profundo sono do primeiro homem antecipa os mistérios da crucifixão. A abertura do lado era o golpe de lança suportado pelo Filho único; o sono, a morte na cruz; o sangue e a água, a fecundidade do baptismo (Jo 19,34)... Mas a água e o sangue que correram do lado do Salvador são a origem do mundo do Espírito... Adão não sofreu com a amputação feita na sua carne; o que lhe foi subtraído foi-lhe restituído, transfigurado pela beleza. O sopro do vento, o murmúrio das árvores, o canto dos pássaros chamava os noivos: “Levantai-vos, já dormistes o suficiente! A festa nupcial espera-vos!”... Adão viu Eva a seu lado, aquela que era a sua carne e os seus ossos, a sua filha, a sua irmã, a sua esposa. Levantaram-se, envoltos numa veste de luz, no dia que lhes sorria. Estavam no Paraíso. São João Crisóstomo (cerca de 345-407), bispo de Antioquia, depois de Constantinopla, doutor da Igreja Homilia 20 sobre a epístola aos Efésios «O homem… unir-se-á à sua mulher e serão um» Que deves tu dizer à tua mulher? Diz-lhe com muito carinho: “Eu escolhi-te, amo-te e prefirote à minha própria vida. A existência presente não é nada; por isso, as minhas orações, as minhas recomendações e todas as minhas acções, realizo-as para que nos seja concedido passarmos esta vida de tal maneira que possamos ficar reunidos na vida futura, sem mais nenhum medo da separação. O tempo que vivemos é curto e frágil. Se nos for concedido que agrademos a Deus durante esta vida, ficaremos eternamente com cristo e um com o outro, numa felicidade sem limites. O teu amor encanta-me mais do que tudo e não conheceria infelicidade mais insuportável do que ser separado de ti. Ainda que tenha de perder tudo e tornar-me mais pobre do que um mendigo, enfrentar os maiores perigos e suportar o que quer que fosse, tudo isso me será suportável enquanto durar o teu afecto por mim. È apenas contando com esse amor que eu desejo ter filhos”. Precisarás também de adequar a tua conduta a estas palavras... Mostra à tua mulher que gostas muito de viver com ela e que, por causa dela, preferes estar em casa do que na praça. Prefere-a em relação a todos os amigos e até aos filhos que ela te deu; e a estes que os ames por causa dela... Fazei as vossas orações em comum.. Que cada um de vós vá à igreja e que, em casa, o marido peça contas à mulher, e a mulher ao marido, daquilo que foi dito ou lido... Aprendei o temor a Deus; tudo o mais correrá como de uma fonte, e a vossa casa encher-se-á de bens inumeráveis. Aspiremos aos bens incorruptíveis e os outros não nos faltarão « Procurai primeiro o Reino de Deus, diz-nos o Evangelho, e tudo o mais vos será dado por acréscimo» ( Mt 6,33) Evangelho segundo S. Marcos 10,13-16. – cf.par. Mt 19,13-15, Lc 18,15-17 Apresentaram-lhe uns pequeninos para que Ele os tocasse; mas os discípulos repreenderam os que os haviam trazido. Vendo isto, Jesus indignou-se e disse-lhes: «Deixai vir a mim os pequeninos e não os afasteis, porque o Reino de Deus pertence aos que são como eles. Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele.» Depois, tomou-os nos braços e abençoou-os, impondo-lhes as mãos. Hermas (sec II) O Pastor, parábola 9, 24.29 «Deixai vir a Mim as criancinhas...pois a elas pertence o reino de Deus» O Pastor mostrou-me uma montanha onde as ervas estavam verdes e viçosas; tudo estava florescente, e os rebanhos e os pássaros encontravam aí o seu alimento. Ele disse-me: «Os crentes de aqui sempre foram simples, inocentes, felizes, sem nenhum ressentimento uns contra os outros, mas pelo contrário sempre alegres servidores de Deus. Revestidos do santo espírito das virgens, cheios de compaixão por todos os homens, proveram, com o suor do seu rosto, às necessidades de todos os seus semelhantes, sem murmúrio nem hesitação. Vendo a sua simplicidade e toda a sua candura infantil, o Senhor fez prosperar todo o trabalho das suas mãos e abençoou todas as suas empresas... Todos que agirem assim, permaneçam desse modo e a vossa prosperidade não desaparecerá jamais»... Depois ele mostrou-me uma bela montanha toda branca: «Aqui os crentes assemelham-se às criancinhas que não têm a mínima ideia do mal; como eles, nunca souberam o que é a maldade, mas guardaram sempre a inocência das suas infâncias. Esses homens irão seguramente habitar no reino de Deus, porque eles não violaram os mandamentos de Deus, mas perseveraram todos os dias das suas vidas na candura e nos sentimentos das suas infâncias. Todos vós que perseverais nesta via sereis «como criancinhas», sem malícia, sereis glorificados mais que todos os outros, porque as criancinhas são gloriosas diante de Deus e os primeiros a seus olhos. Bem aventurados os que afastarem a malícia para se revestirem de inocência; primeiro que todos os outros, vós vivereis para Deus. S. Leão Magno (?-c. 461), Papa e Doutor da Igreja Sermão 7 para a Epifania «Deixai vir a mim as criancinhas» Cristo ama a infância que Ele primeiro assumiu na Sua alma, tal como no Seu corpo... Cristo ama a infância: para ela orienta a conduta dos adultos, para ela encaminha os velhos; Ele forma no seu exemplo aqueles que educa para o Reino eterno. Mas, para nos tornarmos capazes de compreender como é possível chegar a uma tão admirável conversão, e por que transformação precisamos de voltar a uma atitude de crianças, deixemos que S. Paulo nos instrua e nos diga: «Não sejais crianças no que for julgar, mas sede criancinhas no que respeita à malícia» (1Cor 14, 20). Não se trata pois, de voltarmos às brincadeiras da infância, nem às desabilidades do princípio, mas de nos apropriarmos de alguma coisa que convém aos anos da maturidade, quer dizer o rápido apaziguamento das agitações interiores, o pronto regresso à calma, o esquecimento das ofensas, a completa indiferença em relação às honras, a sociabilidade, o sentimento de igualdade natural... É esta forma de humildade que nos ensina o Salvador quando, em menino, foi adorado pelos magos. Santa Teresa do Menino Jesus (1873-97), carmelita, doutora da Igreja Manuscrito autobiográfico "Deixai vir a mim as criancinhas" Sabeis, ó minha Madre, como sempre desejei ser santa; mas, pobre de mim!, notei sempre, quando me comparei aos santos, que há, entre eles e eu, a mesma diferença que existe entre uma montanha cujo cimo se perde nos céus e o grão de areia pisado pelos pés dos transeuntes. Em vez de me desencorajar, disse para mim mesma: Deus não seria capaz de inspirar desejos irrealizáveis: portanto, apesar da minha pequenez, posso aspirar à santidade. Fazer-me crescer é impossível; tenho de me suportar tal como sou, com todas as minhas imperfeições. Mas quero procurar o meio para ir para o céu por um caminho pequeno, bem direito, bem curto, um caminhito totalmente novo. Estamos num século de invenções; agora já nem é preciso subir os degraus de uma escada; na casa dos ricos, o elevador substitui-a com vantagem. O que eu queria era encontrar um ascensor que me elevasse até Jesus, porque sou muito pequena para subir a escada íngreme da perfeição. Então procurei nos Livros Sagrados a indicação do elevador, objecto do meu desejo; e li estas palavras saídas da boca da Sabedoria eterna: "Se alguém for muito pequeno, que venha até mim" (Pr 9,4). E eu fui, adivinhando que tinha encontrado o que procurava. Querendo saber, ó meu Deus, o que faríeis vós ao pequenino que respondesse ao vosso apelo, continuei a minha procura e eis o que encontrei: "Tal como uma mãe acaricia o seu filho, assim eu vos consolarei; e pegarvos-ei ao colo e embalar-vos-ei em cima dos meus joelhos" (Is 66,13). Ah! nunca palavras mais ternas, mais melodiosas tinham vindo alegrar a minha alma: o ascensor que me há-de elevar até ao céu, são os vossos braços, oh Jesus! Para isso, não preciso de crescer; pelo contrário, tenho de ficar pequena, de tornar-me cada vez mais pequena. Oh meu Deus, vós ultrapassastes toda a minha expectativa! Eu quero "cantar as vossas misericórdias"! (Sl 88,2 vulg) Evangelho segundo S. Marcos 10,17-27. – cf.par. Mt 19,16-30; c 18,18-30 Quando se punha a caminho, alguém correu para Ele e ajoelhou-se, perguntando: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Jesus disse: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus. Sabes os mandamentos: Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não defraudes, honra teu pai e tua mãe.» Ele respondeu: «Mestre, tenho cumprido tudo isso desde a minha juventude.» Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele e disse: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» Mas, ao ouvir tais palavras, ficou de semblante anuviado e retirou-se pesaroso, pois tinha muitos bens. Olhando em volta, Jesus disse aos discípulos: «Quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que têm riquezas!» Os discípulos ficaram espantados com as suas palavras. Mas Jesus prosseguiu: «Filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus.» Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros: «Quem pode, então, salvar-se?» Fitando neles o olhar, Jesus disse-lhes: «Aos homens é impossível, mas a Deus não; pois a Deus tudo é possível.» S. João Crisóstomo (c. 345-407), bispo de Antioquia depois de Constantinopla, doutor da Igreja Homilia 63 sobre S. Mateus «Que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Não era um interesse medíocre o deste jovem; ele manifesta-se como um apaixonado. Enquanto os outros homens de aproximavam de Cristo para o pôr à prova ou para lhe falar das suas doenças, das dos seus parentes ou ainda de outras pessoas, ele aproxima-se para conversar acerca da vida eterna. O terreno era rico e fértil, mas estava cheio de espinhos prontos a abafar as sementes (Mt 13,7). Vê como ele está realmente disposto a obedecer aos mandamentos: "Que devo fazer para ter como herança a vida eterna?"... Nunca nenhum Fariseu manifestou tais sentimentos; pelo contrário, eles estavam furiosos por serem reduzidos ao silêncio. O nosso jovem, quanto a ele, partiu com os olhos baixos de tristeza, sinal bem claro de que não tinha vindo com más intenções. Somente, ele era demasiado fraco; tinha o desejo da Vida mas retinha-o uma paixão muito difícil de ultrapassar... "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, distribui o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me... Ao ouvir estas palavras, o jovem afastou-se pesaroso". O evangelista explica qual é a causa daquela tristeza: é porque ele "tinha muitos bens". Os que têm pouco e os que estão mergulhados na abundância não possuem os seus bens da mesma maneira. Nestes, a avareza pode ser uma paixão violenta, tirânica. Neles, cada nova aquisição acende uma chama mais viva e os que são atingidos ficam mais pobres do que antes. Têm mais desejos e, contudo, sentem com mais força a sua pretensa indigência. Em todo o caso, vê como aqui a paixão mostrou a sua força... "Como será difícil aos que possuem riquezas entrar no reino dos Céus!" Não que Cristo condene as riquezas mas antes os que são dominados por elas. S. João Crisóstomo (c. 345- 407), bispo de Antioquia depois de Constantinopla, doutor da Igreja Homilia sobre o devedor de dez mil talentos,3; PG 51, 21 «Mas, então, quem pode salvar-se?» Em resposta à pergunta que lhe fazia um homem rico, Jesus tinha revelado como se podia aceder à vida eterna. Mas a ideia de ter de abandonar as suas riquezas deixou este homem muito triste e ele foi-se embora. Então, Jesus declarou: «É mais fácil entrar um camelo pelo furo de uma agulha, do que entrar um rico no Reino de Deus». Por seu turno, Pedro aproximase de Jesus, ele que se despojou de tudo, renunciando à sua profissão e à sua barca, que já não possui nem um anzol, e põe esta pergunta a Jesus: «Mas, então, quem pode salvar-se?» Repara, ao mesmo tempo, na reserva e no zelo deste discípulo. Ele não disse: «Ordenas o impossível, essa ordem é demasiado difícil, essa lei é demasiado exigente». Também não ficou em silêncio. Mas, não faltando ao respeito e mostrando quanto estava atento aos outros, disse: «Mas então, quem pode salvar-se?» É que muito antes de ser pastor, já ele tinha alma; antes de ser investido de autoridade..., já se preocupava com a terra inteira. Um homem rico teria provavelmente perguntado isso por interesse, por medo da sua situação pessoal e sem pensar nos outros. Mas Pedro, que era pobre, não pode ser suspeito de ter feito a sua pergunta por semelhantes motivos. É sinal de que se preocupava com a salvação dos outros, e que queria aprender do Mestre como se chega a ela. Daí a resposta encorajadora de Cristo: «Para os homens isso é impossível, mas não para Deus». Quer Ele dizer: «Não penseis que vos deixo ao abandono. Eu próprio vos assistirei num assunto tão importante, e tornarei fácil o que é difícil». Relato dos três companheiros de S. Francisco de Assis § 7-8 O inicio da conversão de S. Francisco Uma tarde, após o seu regresso a Assis, os companheiros do jovem Francisco elegeram-no como chefe do seu grupo. Como fizera já muitas vezes, ele preparou um sumptuoso banquete. Uma vez saciados, saíram todos de casa e percorriam a cidade cantando. Os seus companheiros, em grupo, precediam Francisco; ele, tendo na mão o bastão de chefe, fechava o cortejo, um pouco atrás, sem cantar mas mergulhado nos seus pensamentos. E eis que, subitamente, o Senhor o visita e lhe enche o coração de uma tal doçura que ele não pode mais nem falar, nem mover-se... Quando os seus companheiros se viram e o vêem assim longe deles, voltam-se para ele, espantados, e acham-no como que já mudado num outro homem. Interrogam:” Em que pensavas tu para te esqueceres de nos seguires? Estarás tu por acaso a pensar em casares-te? — Tendes razão! Planeio tomar uma esposa, mais nobre, mais rica e mais bela que qualquer uma que tenhais visto alguma vez”. Eles troçaram dele... Desde esse momento, ele trabalhava para colocar Jesus Cristo no centro da sua alma e a pérola que ele desejava comprar depois de ter vendido tudo (Mt 13,46). Escondendo-se dos olhos dos que troçavam dele, muitas vezes – quase todos os dias – ia orar em silêncio. Estava de algum modo possuído pelo gosto antecipado dessa doçura que o visitava tantas vezes e o arrastava, da praça ou dos lugares públicos, para a oração. Desde há algum tempo que ele se tornara o benfeitor dos pobres, mas ele prometia a si mesmo, mais fortemente do que nunca, de jamais recusar a esmola a um pobre pedinte, mas dar-lhe mais generosamente e mais abundantemente. Assim, sempre, fosse qual fosse o pobre que lhe pedisse esmola fora de casa, se podia dava-lhe dinheiro. Se faltava o dinheiro, davalhe o seu barrete ou o seu cinto para não os deixar ir embora de mãos vazias. Mas se mesmo isso lhe faltava, retirava-se para um local escondido, despia a sua camisa e enviava-a em segredo ao pobre pedindo-lhe que a aceitasse por causa de Deus. Cardeal John Henry Newman (1801-1890), presbítero, fundador de comunidade religiosa, teólogo PPS III, n° 9 "Fitando nele o olhar, Jesus sentiu afeição por ele" Deus olha para ti, sejas tu quem fores. E "chama-te pelo teu nome" (Jo 10,3). Vê-te e compreende-te, Ele que te criou. Tudo o que há em ti, Ele o conhece: todos os teus sentimentos, os teus pensamentos, as tuas inclinações, os teus gostos, a tua força e a tua fraqueza... Não é só porque fazes parte da sua criação, d'Ele que se preocupa mesmo com os pássaros (Mt 10,29); tu és um ser humano, resgatado e santificado, seu filho adoptivo, gozando em parte dessa glória e dessa bênção que d'Ele se derramam eternamente sobre o Filho único. Foste escolhido para seres seu... És um daqueles por quem Cristo ofereceu ao Pai a sua última oração e selou com o seu sangue precioso. Que pensamento este, pensamento quase demasiado grande para ser abarcado pela nossa fé! Quando nisso reflectimos, como não reagir como Sara que se riu maravilhada e confusa (Gn 18,12)?! "Que é o homem", que somos nós, que sou eu, para que o Filho de Deus "tenha por mim tão grande cuidado" (Sl 8,5)? Que sou eu... para que Ele me tenha recriado... e tenha feito do meu coração a sua morada? Leão XIII, Papa de 1878 a 1903 Encíclica Rerum Novarum,20 "Segue-me!" Que os deserdados da sorte aprendam da Igreja que, segundo o julgamento do próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio e que não é preciso corar por se ter de ganhar o pão pelo trabalho. É o que Jesus Cristo Nosso Senhor confirmou pelo Seu exemplo, ele que «sendo tão rico, se fez pobre» para salvação de todos os homens (2 Cor 8,9). Ele, o Filho de Deus e ele próprio Deus, quis passar aos olhos do mundo pelo filho de um operário; foi ao ponto de consumir uma grande parte da sua vida num trabalho remunerado. «Não é este o carpinteiro, o filho de Maria? (Mc 6,3) Quem tenha sob o olhar o modelo divino compreenderá que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência residem nos seus costumes, quer dizer na sua virtude; a virtude é o património comum dos mortais, ao alcance de todos, pequenos e grandes, pobres e ricos; só a virtudes e os méritos, onde quer que se encontrem, obterão a recompensa da beatitude eterna. Mais, é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece inc linar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados (Lc 6, 20); Ele convida com amor todos aqueles que sofrem e que choram a virem a Ele, para os consolar (Mt 11, 28); Ele beija com uma caridade mais terna os pequenos e os oprimidos. Estas doutrinas são certamente bem feitas para humilhar a alma altiva do rico e o tornar mais compassivo, para elevar a coragem dos que sofrem e lhes inspirar confiança. Evangelho segundo S. Marcos 10,28-31. Pedro começou a dizer-lhe: «Aqui estamos nós que deixámos tudo e te seguimos.» Jesus respondeu: «Em verdade vos digo: quem deixar casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, no tempo presente, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos, juntamente com perseguições, e, no tempo futuro, a vida eterna. Muitos dos que são primeiros serão últimos, e muitos dos que são últimos serão primeiros.» S. Bernardo (1091-1153), monge cisterciense e doutor da Igreja Sermão 37 sobre o Cântico dos Cânticos «Neste tempo, já, o cêntuplo» «Semeai na justiça, diz o Senhor, e recolhei a esperança da vida». Ele não vos remete para o último dia onde tudo vos será dado realmente e já não em esperança; Ele fala do presente. Claro que será grande a nossa alegria, o nosso júbilo infinito, quando começar a verdadeira vida. Mas, para já, a esperança duma tão grande alegria não pode ser sem alegria. «Alegraivos na esperança», diz o apóstolo Paulo (Rom 12, 12). E David não diz que estará na alegria, mas que ficou nela no dia em que esperou entrar na casa do Senhor (Sl 121, 1). Ele ainda não possuía a vida, mas já tinha colhido a esperança de vida. E experimentava a verdade da Escritura que diz que, não só a recompensa, mas «a esperança dos justos é plena de alegria» (Pr 10, 28). Essa alegria é produzida na alma daquele que semeou para a justiça, pela convicção que tem de que os seus pecados estão perdoados... Qualquer um de vós que, após o início doloroso da conversão, tem a felicidade de se ver consolado pela esperança dos bens por que espera... colheu, desde agora, o fruto das suas lágrimas, viu Deus e ouviu-o dizer: «Dêem-lhe o fruto das suas obras» (Pr 31, 31). Como é que aquele que «saboreou e viu como o Senhor é bom» (Sl 33, 9) não havia de ver Deus? O Senhor Jesus parece muito doce àquele que recebe dEle, não só a remissão dos pecados, mas também o dom da santidade e, melhor ainda, a promessa da vida eterna. Feliz daquele que já fez uma tão bela colheita... O profeta fala verdade: « Aqueles que semeiam nas lágrimas colhem na alegria» (125,5)... Nenhum proveito nem honra terrestre nos parecerá acima da nossa esperança e desta alegria de esperar, doravante profundamente enraízada nos nossos corações: «A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rom 5,5). Cardeal John Henry Newman (1801-1890), presbítero, fondador de comunidade religiosa, teólogo "Os divinos chamamentos", PPS, vol 8, nº2 "Deixámos tudo para te seguir" Nós não somos chamados uma só vez mas muitas vezes; Cristo chama-nos ao longo de toda a nossa vida. Chamou-nos primeiro pelo baptismo, mas mais tarde também; quer lhe obedeçamos, quer não, Ele chama-nos ainda na sua misericórdia. Se faltarmos às promessas baptismais, Ele chama-nos ao arrependimento. Se nos esforçarmos por responder à nossa vocação, Ele chama-nos sempre mais além, de graça em graça, de santidade em santidade, enquanto a vida nos for sendo concedida para isso. Abraão foi chamado a deixar a sua casa e o seu país (Gn 12,1), Pedro as suas redes (Mt 4,18), Mateus o seu emprego (Mt 9,9), Eliseu a sua quinta (1R 19,19), Natanael o seu recolhimento (Jo 1,47). Sem cessar, todos somos chamados, de uma coisa a outra, sempre mais longe, sem lugar de repouso mas subindo para o nosso repouso eterno e obedecendo a um apelo interior apenas para estarmos prontos para ouvir um outro. Cristo chama-nos sem cessar, para nos justificar sem cessar; sem cessar, cada vez mais, Ele quer santificar-nos e glorificar-nos. Devemos compreendê-lo, mas somos lentos a dar-nos conta dessa grande verdade - que Cristo caminha de alguma forma no meio de nós e que, com a sua mão, os seus olhos, a sua voz, nos faz sinal para que o sigamos. Não percebemos que o seu apelo é qualquer coisa que tem lugar neste mesmo momento. Pensamos que teve lugar no tempo dos apóstolos; mas não acreditamos nele, não o ouvimos verdadeiramente para nós próprios. Leão XIII, Papa de 1878 a 1903 Encíclica Rerum Novarum, 21 «Neste tempo já, o cêntuplo; e no mundo que há-de vir, a vida eterna» Estas doutrinas [sociais da Igreja] poderiam diminuir a distância que o orgulho se compraz em manter entre ricos e pobres, mas a simples amizade é ainda demasiado pouco: se se obedece aos preceitos do cristianismo é no amor fraterno que se operará a união. Em qualquer dos casos, saber-se-á e compreender-se-á que os homens absolutamente todos têm origem em Deus, seu Pai comum; que Deus é o seu fim único e comum, e que só Ele é capaz de comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta. Todos eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos por Ele na sua dignidade de Filhos de Deus, e assim um verdadeiro laço de fraternidade os une, quer entre eles, quer a Cristo, seu Senhor que é «O primogénito de muitos irmãos» ( Rom 8, 29). Saberão enfim que todos os bens da natureza, todos os tesouros da graça, pertencem em comum e indistintamente a todo o género humano, e só os indignos são deserdados dos bens celestes «Se sois filhos, soi s também herdeiros: herdeiros de Deus, co-herdeiros de Jesus Cristo» (Rm 8,17). Evangelho segundo S. Marcos 10,32-45. – cf.par. Mt 20,17-28; Lc 18,31-33 Iam a caminho, subindo para Jerusalém, e Jesus seguia à frente deles. Estavam espantados, e os que seguiam estavam cheios de medo. Tomando de novo os Doze consigo, começou a dizer-lhes o que lhe ia acontecer: «Eis que subimos a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei, e eles vão condená-lo à morte e entregálo aos gentios. E hão-de escarnecê-lo, cuspir sobre Ele, açoitá-lo e matá-lo. Mas, três dias depois, ressuscitará.» Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se dele e disseram: «Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos.» Disse-lhes: «Que quereis que vos faça?» Eles disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.» Jesus respondeu: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo e receber o baptismo com que Eu sou baptizado?» Eles disseram: «Podemos, sim.» Jesus disselhes: «Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado; mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedêlo: é daqueles para quem está reservado.» Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos.» Beato Guerric d'Igny (c. 1080-1157), abade cisterciense Primeiro sermão para o Domingo de Ramos «O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir» O homem tinha sido criado para servir o seu criador. Haverá coisa mais justa, que servir Aquele que nos pôs no mundo, sem o qual não teríamos existência? E haverá coisa mais feliz que servi-Lo, pois que servi-Lo, é reinar? Mas o homem disse ao seu Criador: «Não servirei» (Jr 2,20). «Então servir-te-ei Eu», disse o Criador ao homem. «Senta-te, servir-te-ei, lavar-teei os pés» [...]. Sim, Cristo, «servo bom e fiel» (Mt 25,21), tu foste verdadeiramente servo, servo em fé e verdade, em paciência e constância. Sem tibieza, lançaste-Te, qual gigante que corre, na via da obediência (Sl 18,6); sem fingimento, deste-nos sobretudo, depois de tantos cansaços, a tua própria vida; maltratado, inocente, humilhaste-Te e não abriste a boca (Is 53,7). Está escrito e é verdade: «O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor, não se preparou e não agiu conforme os seus desejos, será castigado com muitos açoites» (Lc 12,47). Mas, pergunto-vos, que acções dignas deixou por cumprir este servo? Que omitiu Ele do que devia ter feito? «Fez tudo bem feito», dizem aqueles que observavam a sua conduta; «fez ouvir os surdos e falar os mudos» (Mc 7,37). Pois se cumpriu todas as acções que são dignas de recompensa, como sofreu então tanta indignidade? Ofereceu as costas ao chicote, recebeu uma quantidade inimaginável de chicotadas atrozes, por todo o lado o seu sangue correu. Foi interrogado no meio de opróbrios e de tormentos, como escravo ou malfeitor que é submetido a interrogatórios para que lhe seja arrancada a confissão de um crime. Ó detestável orgulho do homem que desdenha servir, a quem tão só humilha o máximo exemplo da servidão do seu próprio Deus! Sim, meu Senhor, pois muito sofreste Tu a servir-me; seria justo e equitativo que de ora em diante tivesses repouso, e que o teu servo, por seu turno, te servisse agora; chegou a sua vez [...] Venceste, Senhor, este servo rebelde; estendo as mãos para que a Ti mas ligues, curvo a cabeça para receber o teu jugo. Permite que Te sirva. Recebe-me como teu servo para sempre, ainda que servo inútil se não tiver em mim a tua graça; envia-a pois do teu santo céu, para que me assista nos meus trabalhos (Sb 9,10). Santo Afonso-Maria de Liguori (1696-1787), bispo e doutor da Igreja Obras "Dar a vida em resgate pela multidão" Um Deus que serve, que varre a casa, que se entrega a trabalhos penosos - como deveria bastar um só destes pensamentos para nos cumular de amor! Quando o Salvador começou a pregar o seu Evangelho, fez-se "servo de todos", declarando ele mesmo "que não viera para ser servido mas para servir". É como se tivesse dito que queria ser o servo de todos os homens. E, no fim da vida, não se contentou, diz S. Bernardo, "em tomar a condição de servo para se pôr ao serviço dos homens; quis tomar o aspecto de um servo indigno para ser castigado e suportar a pena que nos era devida em razão dos nossos pecados". Eis que o Senhor, servo obediente a todos, se submete à sentença de Pilatos, por muito injusta que seja, e se entrega aos carrascos... Desta forma, aquele Deus amou-nos tanto que, por amor de nós, quis obedecer como um escravo até morrer e morrer de uma morte dolorosa e infame, o suplício da cruz (Fil 2,8). Ora, em tudo isso, Ele obedecioa não como Deus mas como homem, como escravo cuja condição tinha assumido. Sabemos de um santo que se entregou como escravo para resgatar um pobre e assim atraíu a admiração do mundo por esse acto heróico de caridade. Mas que é essa caridade comparada à do Redentor? Sendo Deus, querendo resgatar-nos da escravidão do diabo e da morte que nos era devida, faz-se ele mesmo escravo, deixa-se amarrar e pregar na cruz. "Para que o servo se torne senhor, diz Santo Agostinho, Deus quis fazer-se servo". São Tomás de Aquino (1225-1274), teólogo dominicano, doutor da Igreja Conferência sobre o Credo, 6 “Aquele que quiser ser o maior de todos será o servo de todos” Que necessidade havia de o Filho de Deus sofrer por nós? Uma grande necessidade, que se pode resumir em dois pontos: necessidade de remédio para os nossos pecados, necessidade de exemplo para a nossa conduta. […] Porque a Paixão de Cristo dá-nos um exemplo válido para toda a nossa vida. […] Se procuras um exemplo de caridade: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). […] Se procuras a paciência, é na cruz que ela se encontra maximamente. […] Cristo sofreu grandes males na cruz, e com paciência, já que, “quando O insultavam […], não ameaçou” (1 Ped 2, 23), “não abriu a boca, como cordeiro levado ao matadouro” (Is 53, 7). […] “Devemos correr com perseverança a carreira que nos é proposta, com os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé, o Qual, pela alegria que lhe fora proposta, suportou a cruz, desprezando a ignomínia” (Heb 12, 1-2). Se procuras um exemplo de humildade, olha para o crucificado. Porque Deus quis ser julgado por Pô ncio Pilatos e morrer. […] Se procuras um exemplo de obediência, basta-te seguir Aquele que se fez obediente ao Pai “até à morte” (Fil 2, 8). “Porque, como pela desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornaram justos” (Rom 5, 19). Se procuras um exemplo de desprezo pelos bens terrenos, basta-te seguir Aquele que é Rei dos Reis e Senhor dos Senhores “no Qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col 2, 3) – que, na cruz, está despido, objecto de desprezo, coberto de escárnio e de ferimentos, coroado de espinhos e, finalmente, dessedentado em fel e vinagre. Missal Romano Prefácio da Festa de Todos os Santos "Eis que subimos a Jerusalém" Senhor, Pai Santo, Deus eterno e omnipotente, é verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação dar-Vos graças, sempre e em toda a parte. Hoje nos dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém celeste, onde a assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorificam eternamente o Vosso Nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres filhos da Igreja, que nos destes como exemplo e auxílio para a nossa fragilidade. Por isso, com todos os Anjos e Santos, proclamamos a Vossa glória, cantando numa só voz: "Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do Universo!" Evangelho segundo S. Marcos 10,46-52. – cf.par. Mt 20,29-34; Lc 18,35-43 Chegaram a Jericó. Quando ia a sair de Jericó com os seus discípulos e uma grande multidão, um mendigo cego, Bartimeu, o filho de Timeu, estava sentado à beira do caminho. E ouvindo dizer que se tratava de Jesus de Nazaré, começou a gritar e a dizer: «Jesus, filho de David, tem misericórdia de mim!» Muitos repreendiam-no para o fazer calar, mas ele gritava cada vez mais: «Filho de David, tem misericórdia de mim!» Jesus parou e disse: «Chamai-o.» Chamaram o cego, dizendo-lhe: «Coragem, levanta-te que Ele chama-te.» E ele, atirando fora a capa, deu um salto e veio ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe: «Que queres que te faça?» «Mestre, que eu veja!» respondeu o cego. Jesus disse-lhe: «Vai, a tua fé te salvou!» E logo ele recuperou a vista e seguiu Jesus pelo caminho. Guilherme de S. Thierry (c.1085-1148), monge beneditino e posteriormente cistercienseA A Contemplação de Deus, 1-2 «Que queres que te faça?» «Vinde! Subamos à montanha do Senhor, subamos à casa do Deus de Jacob, e ele nos ensinará os seus caminhos» (Is 2,3). Vós, intenções, desejos intensos, vontade e pensamentos, afectos e energias do coração, vinde, escalemos a montanha, ganhemos o lugar onde o Senhor vê e se dá a ver. Mas vós, preocupações e inquietações, trabalhos e servidões, esperai-nos aqui [...], até que, apressando-nos para este lugar, estejamos de regresso para junto de vós após termos adorado (cf. Gn 22,5). Porque teremos de regressar, e muito depressa, mesmo. Senhor, Deus da minha força, faz que nos voltemos para Ti, «mostra-nos o teu rosto e seremos salvos» (Sl 79,20). Mas, Senhor, como é prematuro, audaz, presunçoso, contrário à regra dada pela palavra da tua verdade e sabedoria, pretender ver a Deus de coração impuro! Ó bondade soberana, bem supremo, vida dos corações, luz dos nossos olhos interiores, na tua bondade, Senhor, tem piedade. Ei-la, a minha purificação, a minha confiança e justiça: a contemplação da tua bondade, meu bom Senhor! Tu, meu Deus, dizes à minha alma, como só Tu sabes fazer: «Eu sou a tua salvação» (Sl 34,3). Rabbouni, mestre soberano e professor, Tu, que és o único doutor capaz de me fazer ver o que eu desejo ver, diz a este teu mendigo cego: «Que queres que te faça?» E sabes bem, Tu, que me dás essa graça [...], com quanta força o meu coração Te grita: «Procurei-Te, Senhor; os meus olhos te procuram; é a tua face que eu procuro» (Sl 26,8). É MELHOR SER CEGO DE NASCENÇA Pe. José Antônio Pires de Almeida Era uma vez um homem chamado Bartimeu, que era cego de nascença e tinha uma vida que seguia certa rotina há muito estabelecida. Toda manhã, com a ajuda de amigos, sentava-se em determinado lugar onde circulava muita gente e ficava mendigando. Naquele tempo, tal como hoje, muitas pessoas piedosas acham melhor dar esmolas do que repartir, e portanto ele tinha seu ganha pão garantido. Um dia ele ouviu falar que um profeta poderoso chamado Jesus ia passar justamente em frente ao seu ponto. Preparou-se e quando o famoso pregador chegou armou o maior barraco. Gritou, implorou, suplicou e esperneou. Alguns sentiram-se incomodados e repreenderam-no para que se comportasse. Mas o escarcéu só aumentou e ele conseguiu seu objetivo: chamar a atenção de Jesus. Este não se aproximou; pediu que trouxessem o cego até ele. Como todo mundo sente-se um anjo ajudando cegos, não faltou quem viabilizasse o encontro. Jesus, olhando para o cego, pergunta: “Que queres que eu te faça?”. Os presentes devem ter pensado: “Mas que pergunta idiota, o que pode querer um cego senão ver?”. Quando este confirma que é isso mesmo o que deseja Jesus lhe devolve a visão e a vida continua. Mas voltemos à pergunta aparentemente supérflua de Jesus: “O que queres que eu te faça?”. Com esse questionamento Jesus desencadeia a seguinte reflexão: Você tem certeza que quer mesmo enxergar? Pense bem; você tem seu ganha-pão garantido, há pedintes ganhando bem mais que salário mínimo. Você, sendo deficiente, desperta atenção e misericórdia nas pessoas. Sua família sente-se na obrigação de te acolher e dar guarida. Assim, sentado na beira do caminho, você não tem compromisso nenhum. O desemprego em Israel está alto e o custo de vida pior ainda. Você não tem nenhuma qualificação profissional e o único serviço que vai lhe restar é pegar pesado no batente. Qual sua condição física para isso? Afinal de contas, VOCÊ QUER MESMO ENXERGAR!? É muito difícil ser uma pessoa normal (sem entrar nos meandros psicanalíticos do que significa normalidade). Ser normal é lutar para garantir o ganha pão, ter de pagar as contas, prover as necessidades da família, cuidar de si mesmo, cultivar relações sociais e familiares, cultivar vida espiritual, intelectual e cultural. Ufa!! dá um puta trabalho! Talvez aparentemente seja mais fácil renunciar à vida, ao pensamento e às responsabilidades, sendo cego, paralítico, alcoólatra, drogado e louco do que entrar na roda viva desse mundo tão conturbado. A anestesia do álcool, das drogas, dos antidepressivos e ansiolíticos, dos êxtases de um misticismo de supermercado e de manias bizarras afastam-nos de muitas das exigências de uma vida normal. Imagine que você, numa noite meio fria, com aquele pijama gostoso, uma pipoca e um café quentinho; justamente na noite em que na novela a Thaís vai ser assassinada, escuta o toque da campainha. É aquele casal de amigos que há tempos você não vê e os quais preza muito. Pode-se ter as seguintes opções: 1. Ser mal educado, recebê-los na sala e, nos intervalos da novela, puxar uma conversinha inócua. 2. Dar uma de esquisitão e sistemático, ir ver a novela no quarto e a mulher que se vire com as visitas (ou vice-versa). 3. Inventar uma mentira pra despachar os importunos. 4. Ou ser normal. Isso significa desligar a televisão, por uma roupa mais apresentável que um pijama, convidar as visitas prá cozinha, fazer um café, rebentar mais pipoca ou por algo na mesa, e levar um papo atencioso sobre as coisas e interesses comuns. Reparem que, de todas as opções, essa é a que dá mais trabalho. Porém, dependendo de suas opções de vida, é a mais enriquecedora. No final da história de Bartimeu, Jesus atende seu desejo e o cura. Mas, não deixa de destacar: “Vai, a TUA FÉ te salvou”, e não “EU te salvei”, ou seja, “Eu fiz do jeito que você queria, agora se vire, você está enxergando”. Se em terra de cego quem tem um olho é rei, em terra de vistas embaraçadas ter os dois olhos significa muita responsabilidade. Jean Tauler (c. 1300-1361), dominicano de Estrasburgo Sermão 10 “Imediatamente o homem começou a ver, e seguia Jesus pelo caminho” “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). Ele é a luz que dá brilho a todas as luzes da terra: às luzes materiais como o sol, a lua, as estrelas e os sentidos físicos do homem; e também à luz espiritual, à inteligência do homem, graças à qual todas as criaturas devem refluir para a sua origem. Sem este refluxo, estas luzes criadas são, em si mesmas, verdadeiras trevas, comparadas com a luz autêntica por essência, que é luz para o mundo inteiro. Nosso Senhor disse-nos: “Renuncia à tua luz, que é trevas em comparação com a minha luz, e que me é contrária, porque Eu sou a verdadeira luz e quero dar-te, em troca das tuas trevas, a minha luz eterna, a fim de que ela te pertença como a Mim mesmo, e de que tu tenhas, como Eu mesmo, o Meu ser, a Minha vida, a Minha felicidade e a Minha alegria.” Qual é, então, o caminho mais curto, que conduz a verdadeira luz? Eis tal caminho: renunciar verdadeiramente a si mesmo, amar e não ter em vista senão só Deus […], não querer em coisa alguma o próprio interesse, mas desejar e procurar somente a honra e a glória de Deus, esperar tudo imediatamente de Deus e, sem desvio nem intermediário, a Ele remeter todas as coisas, venham de onde vierem, a fim de que haja entre Deus e nós um fluxo e um refluxo imediatos. Eis o verdadeiro caminho, o caminho recto.