UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE ANDREA ALVAREZ NIETO CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA O PROJETO DE HUMANIZAÇÃO NA ENFERMARIA DE CIRURGIA VASCULAR E ENDOVASCULAR DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PEDRO ERNESTO – HUPE/UERJ Rio de Janeiro 2013 ANDREA ALVAREZ NIETO CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA O PROJETO DE HUMANIZAÇÃO NA ENFERMARIA DE CIRURGIA VASCULAR E ENDOVASCULAR DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PEDRO ERNESTO – HUPE/UERJ Dissertação apresentada ao Programa de Pós - graduação – Strictu Sensu Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração – Psicanálise e Saúde. Orientadora: Profª. Drª. Maria da Glória Schwab Sadala Rio de Janeiro 2013 DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FICHA CATALOGRÁFICA N677c FICHA CATALOGRÁFICA Nieto, Andrea Alvarez. Contribuições da psicanálise para o projeto de humanização na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular do hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ / Andrea Alvarez Nieto, 2013. 92f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2013. a a Orientação: Prof . Dr Maria da Glória Schwab Sadala. 1. Psicanálise. 2. Humanização. 3. Transferência. I. Sadala, Maria da Glória Schwab. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título. . CDD – 616.8917 Decs Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho FOLHA DE APROVAÇÃO ANDREA ALVAREZ NIETO CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE PARA O PROJETO DE HUMANIZAÇÃO NA ENFERMARIA DE CIRURGIA VASCULAR E ENDOVASCULAR DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PEDRO ERNESTO – HUPE/UERJ Dissertação apresentada ao Programa de Pós graduação – Strictu Sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração – Psicanálise e Saúde. Aprovada em 23 de outubro de 2013. Banca Examinadora __________________________________________ Profª Drª. Maria da Glória Schwab Sadala Universidade Veiga de Almeida __________________________________________ Profª Drª. Sônia Borges Universidade Veiga de Almeida __________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Virgini Magalhães Universidade do Estado do Rio de Janeiro AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente ao Grande Pai pelo dom da vida e da sabedoria. A minha mãe Maria Dolores Alvarez Nieto, por ser acima de tudo um exemplo de mãe, amiga e ser humano, por me ensinar que nunca se deve desistir de seus sonhos e objetivos. A Drª Maria da Glória Schwab Sadala, pela sua dedicação, paciência dispensada, disponibilidade incondicionais e principalmente por acreditar neste trabalho. A Drª Sônia Borges pelo carinho e ensinamentos desde o primeiro dia de aula neste mestrado. Ao Dr. Carlos Eduardo Virgini Magalhães, por seus ensinamentos, por me permitir fazer parte de sua equipe, pelo reconhecimento do trabalho realizado e por seu apoio. As minhas amigas Maysa Guimarães e Michelle Freire, por estarem sempre ao meu lado em todos os momentos da minha vida e nunca me deixarem desistir. As minhas colegas e amigas de mestrado Margareth Pitrowsky, Lilian Faertes, Marilene Barroso pela parceria e cumplicidade em todos os momentos deste curso. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho ao meu pai, irmão e avó, que independente de onde estejam, tenho a certeza que sempre estarão ao meu lado torcendo pelo meu crescimento, em minhas lembranças e no meu coração. “Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis e, por mais que a gente pense numa forma de empregá-las, elas parecem não servir. Então a gente não diz apenas sente”. Sigmund Freud RESUMO Propomos nesta pesquisa contribuir para uma nova leitura da Política Nacional de Humanização, considerando a transferência – conceito fundamental da psicanálise – como estratégia importante nesta prática. Apresentaremos um breve histórico das Políticas Públicas no Brasil, indicando o Sistema Único de Saúde e a implantação da Política Nacional de Humanização. O fenômeno da transferência atravessa todas as relações humanas e, por esta razão, entende-se que ela esteja também operando nas relações que se estabelecem durante a internação, podendo influir diretamente na condução e na adesão ao tratamento. As formulações fundamentais sobre o conceito de transferência realizadas no campo da psicanálise são apresentadas, considerando-se especialmente as concepções teóricas de Sigmund Freud e Jacques Lacan. O contexto, a partir do qual desenvolveu-se essa pesquisa foi a enfermaria de cirurgia vascular e endovascular do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ. Palavras-chave: humanização, transferência, psicanálise. ABSTRACT This research proposes a new reading of the National Policy Humanization considering the transference - fundamental concept of psychoanalysis - as an important strategy in this practice. It will be presented a brief history of Public Policies in Brazil, indicating the Unified Health System and the implementation of the National Policy of Humanization. The phenomenon of transference go through all human relationships and, for this reason, it is understood that it also works on relationships established during hospitalization and can directly influence the conduct and adherence to the treatment. The main formulations about the concept of transference performed in the field of psychoanalysis are presented, especially considering the theoretical conceptions of Sigmund Freud and Jacques Lacan. The context where this research was developed was in the vascular and endovascular surgery infirmary at Pedro Ernesto University Hospital - HUPE / UERJ. Keywords: humanization, transference, psychoanalysis. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida CAP – Comunidade Ampliada de Pesquisa CAPS – Caixa de Aposentadorias e Pensões CDS – Conselho de Desenvolvimento Social CIPES – Centro de Investigação de Políticas de Ensino Superior CNS – Conferência Nacional de Saúde CTH – Câmaras Técnicas de Humanização CUCC – Centro Universitário de Controle do Câncer DENERU – Departamento Nacional de Endemias Rurais DGSP – Diretoria Geral de Saúde Pública DNSP – Diretoria Nacional de Saúde Pública ERAM – Equipes de Referência e de Apoio Matricial FADS – Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social GTH – Grupo de Trabalho de Humanização HIV - Vírus da Imunodeficiência Humana HUPE – Hospital Universitário Pedro Ernesto IAPS – Institutos de Aposentadorias e Pensões INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INPS – instituto Nacional da Previdência Social MEC – Ministério da Educação e Cultura MESP – Ministério da Educação e Saúde Pública MPAS – Ministério da Previdência e Assistência Social MT – Ministério do Trabalho MTIC – Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio NESA – Núcleo de Estudo da Saúde do Adolescente SUMÁRIO 1 Introdução 12 2 Histórico do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ 16 2.1 Quem foi Pedro Ernesto? 16 2.2 Breve Histórico do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ 18 2.3 Breve Histórico da Enfermaria de Cirurgia Vascular e Endovascular do Hospital Universitário Pedro Ernesto - HUPE/UERJ 21 2.4 O que vem a ser Cirurgia Vascular e Endovascular? 23 3 A trajetória da Saúde Pública no Brasil, a Humanização e a Clínica de Cirurgia Vascular e Endovascular no Hospital Universitário Pedro 26 Ernesto - HUPE/UERJ 3.1 O início das Políticas Públicas no Brasil 26 3.2 A Construção do Sistema Único de Saúde – SUS 31 3.3 A Política Nacional de Humanização – PNH 35 3.4 A Humanização 42 3.5 A Prática da Humanização na Enfermaria de Cirurgia Vascular e 45 Endovascular no HUPE/UERJ 4 A Transferência como estratégia na Política Nacional de Humanização – PNH 55 4.1 O termo Transferência 55 4.2 Um pouco de história 58 4.3 Os avanços com Lacan 65 4.4 A Transferência e a Prática Hospitalar 69 4.4.1 Um caso clínico 72 5 Conclusão 80 6 Referências Bibliográficas 82 7 Apêndice 89 NOAS – Norma Operacional da Assistência a Saúde PCGA – Projetos Co-Geridos de Ambiência PFST – Programa de Formação em Saúde do Trabalhador PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento PM-SUS – Projeto de Memória do Sistema Único de Saúde PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PN-DST – Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis PNH – Política Nacional de Humanização PPA – Plano de Pronta Ação PPC – Policlínica Piquet Carneiro PQVSTS – Programas de Qualidade de Vida e Saúde para Trabalhadores da Saúde PSC – Projeto de Saúde Coletiva PTS – Projeto Terapêutico Singular R1 – Residente do primeiro ano R2 – Residente do segundo ano SINPAS – Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social SNS – Sistema Nacional de Saúde SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde SUS – Sistema Único de Saúde UDA – Unidade Docente Assistencial UEG – Universidade do Estado da Guanabara UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro UTI – Unidade de Tratamento Intensivo 12 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa baseia-se na minha experiência de trabalho que obtive no Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular. Inicialmente tratava-se de um trabalho exigido pelo curso de Especialização em Psicologia Médica, contudo, posteriormente dei continuidade ao mesmo por sua importância em minha vida. Por ter um desejo imenso de permanecer com o trabalho iniciado, aceitei o convite e permaneci como voluntária de dezembro de 2006 até maio de 2011. Ao chegar nesta enfermaria, logo percebi que existiam duas equipes, enfermagem e cirurgiões, em uma só disciplina, ou seja, uma enfermaria específica que é especializada em uma área da medicina, que trata de um grupo de patologias referentes a sua especialização, se dividia em duas equipes, onde uns não se comunicavam com os outros, era dito apenas o essencial e este fato me incomodou profundamente, pois a pessoa mais prejudicada era o paciente. Foram feitas várias propostas de mudanças, muito poucas aceitas pela chefe da enfermagem, entretanto o chefe dos cirurgiões não se opunha, mas apesar de sua posição favorável, pouquíssimas mudanças foram realizadas no que se referia a interdisciplinaridade entre as equipes. Em dezembro de 2005, a enfermeira chefe foi afastada por motivo de doença e sua substituta comungava dos princípios de humanização, assim como o chefe dos cirurgiões e eu. Gradativamente muitas mudanças foram ocorrendo na equipe e observamos uma disponibilidade crescente no grupo da enfermagem para ouvir o outro, fazendo um convite à fala constantemente, o que contribuiu para uma troca interdisciplinar. Portanto, não podemos reduzir à troca da enfermeira chefe as mudanças constatadas. O que antes se desejava discretamente, de uma forma muito sutil, podemos assim dizer, agora se colocava com mais determinação e a proposta de se ter uma equipe única se concretizava. Passamos a ser uma Equipe de Saúde da Cirurgia Vascular e Endovascular, onde as reuniões eram abertas para todos os profissionais, se fazia o relato dos casos clínicos com nutricionista, fisioterapeuta, 13 assistente social, psicóloga, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, enfermeiro e cirurgião, por vezes, alguém do serviço geral também participava. A comunicação não era apenas nas reuniões, mas em nosso dia-a-dia, era comum encontrar no posto de enfermagem o cirurgião, a enfermeira e a psicóloga transmitindo e recebendo informações sobre determinado paciente. Isto ocorria com todos os profissionais da equipe acima mencionados, cito estes por estarem sempre presentes na enfermaria. O respeito ao paciente foi ganhando espaço, chegando ao ponto de algumas cirurgias, mesmo sendo de extrema necessidade, aguardavam alguns dias para se concretizarem, pois, desta forma o paciente seria preparado para ter um de seus membros amputados. A equipe também ganhou seu espaço, conquistou o direito de se colocar e fazer com que seus direitos e desejos fossem respeitados. Grandes conquistas, grandiosas vitórias e com um ganho significativo para todos, pacientes, familiares e equipe. A semente foi plantada, germinou, cresceu e deu frutos. Orgulho-me muito desse trabalho e da equipe que se tem hoje. Por acreditarmos na humanização, no trabalho em equipe e por termos conquistado um espaço que hoje é respeitado, decidimos repensar o projeto de humanização na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular, à luz da psicanálise. No segundo capítulo desta dissertação apresentamos um pouco da história do Hospital Universitário Pedro Ernesto, ou seja, o Hospital Escola da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – HUPE/UERJ. Não se pode falar de um lugar sem que se saiba a origem de seu nome, sua história, sua missão, sua evolução ao longo dos anos. Assim, como também se faz necessário relatar como surgiu a Enfermaria da Disciplina de Cirurgia Vascular e Endovascular, seu percurso, o que ela trata, seus fundadores e quem hoje se faz responsável pelo trabalho diferenciado em um hospital que é conhecido como referência em saúde. No terceiro capítulo, trazemos a trajetória da Saúde Pública no Brasil, desde seus primórdios com o Brasil Colônia, passando por Oswaldo Cruz, pelo marcante governo de Getúlio Vargas, quando se inicia a Política de Proteção ao Trabalhador, pela década de 80 quando se torna mais presente a Reforma Sanitária e as Conferências Nacionais de Saúde. Em 1988 quando é aprovada a nova 14 Constituição Brasileira e finalmente o Sistema Único de Saúde (SUS) é aprovado e regulamentado por lei. O SUS toma corpo, cria suas diretrizes, princípios e se faz respeitar como uma prática a ser seguida. Com base no SUS, em 2003 se cria a Política Nacional de Humanização (PNH), que vem apoiar e ratificar os princípios do SUS, fazendo que estes sejam realmente cumpridos e os potencializa criando suas próprias diretrizes e premissas básicas. Este processo trouxe um grande diferencial nos hospitais públicos, que hoje em sua maioria adotam a postura humanizada. Percebemos que a humanização em um hospital é necessária, contudo, em uma clínica cirúrgica onde os pacientes podem perder seus membros, é fundamental. Neste capítulo ainda apresentamos a importância de se ter uma equipe de saúde e não equipes fragmentadas que olham para seu paciente como um pedaço ou um órgão, temos um ser humano que precisa de cuidados, cuidados em seu todo. O cirurgião por mais que lhe seja difícil, necessita ter uma sensibilidade para respeitar a dor do outro. A humanização não é feita de regras, mas sim de princípios e bases e existem estratégias para efetivá-la. Supomos que, o fenômeno da transferência, tal como concebido pela psicanálise, constitui-se em importante estratégia na prática da política de humanização. No quarto capítulo, apresento um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, a transferência, com as contribuições de Freud e Lacan. Ainda neste capítulo relato um pouco da minha prática no hospital, apresentando um caso clínico e propondo algumas articulações teórico-clínicas. Podemos nos perguntar o que prova que as relações melhoraram entre médicos e pacientes e entre a equipe profissional? Como comprovar que esta relação denominada pela psicanálise relação transferencial contribuiu para a eficácia da Política Nacional de Humanização? Apresentaremos aqui uma pesquisa qualitativa e os relatos e os testemunhos são instrumentos no processo de validação das hipóteses. Antecipamos neste momento o que será demonstrado nos capítulos desta pesquisa: pacientes que fizeram questão de serem tratados por esta equipe, nesta instituição, mesmo sendo sua moradia de uma distância significativa; profissionais que faziam rodízio nas enfermarias da instituição e solicitavam retornar a esta; falas por vezes emocionadas, dos familiares e pacientes ao se remeterem à equipe de uma forma positiva. 15 Afirmo que esta própria dissertação é um testemunho do desejo e das transferências de trabalho estabelecidas entre a psicóloga e os outros profissionais da equipe. 16 2 HISTÓRICO DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PEDRO ERNESTO – HUPE/UERJ Este capítulo se refere à história do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Vamos relatar um pouco de sua origem, seu fundador, seus objetivos, sua filosofia, seu funcionamento, sua capacidade de atendimento, seus anexos e suas instalações. Faremos também uma breve explanação sobre o que seria a disciplina de cirurgia vascular e endovascular, sua equipe, as patologias atendidas e estudadas, os procedimentos cirúrgicos, suas instalações no hospital e no ambulatório, onde são realizadas as consultas de rotina, entre outras peculiaridades. Foi no ano de 2005 quando iniciei a Pós-Graduação em Psicologia Médica, neste hospital, que conheci e trabalhei na Instituição, participando da implantação do projeto de humanização, eixo principal da presente pesquisa. 2.1 Quem foi Pedro Ernesto? Antes de começarmos a falar sobre esse Hospital, que é referência em saúde, percebemos a necessidade de expor a origem de seu nome e a história do homem que o criou. Pedro Ernesto Rego Baptista, nasceu em Recife, Pernambuco, em 25 de setembro de 1884, veio ao Rio de Janeiro para estudar medicina e morrer em 10 de agosto de 1942. Foi considerado um grande médico e político que faleceu aos 58 anos no Rio de Janeiro. Este, fundou a Casa de Assistência ao Servidor do Estado do Rio de Janeiro – IASERJ. Foi um revolucionário de 1922 a 1930, era chamado de "Mãe dos Tenentes", pelo respeito e admiração que tinham por ele, no Exército Brasileiro. O movimento revolucionário eclodiu em julho de 1932, a Casa de Saúde transformou-se num dos principais centros de reuniões, marcando assim o seu envolvimento com a política. 17 Em 1930, com o golpe, surgiu a oportunidade do seu ingresso na administração pública. Dr. Pedro Ernesto Rego Baptista FONTE: http://www.famososquepartiram.com/2011/08/pedro-ernesto_11.html Interventor da antiga capital da República (1931–1936), nomeado primeiramente pelo Presidente Getúlio Vargas e após eleito por unanimidade pela Câmara Municipal do Distrito Federal em 1934, dirigiu sua administração para os problemas da saúde e educação, inaugurando profícua rede de assistência médicohospitalar, realizou importantes obras de saneamento básico e grande número de escolas de ensino elementar (SITE: HTTP://WWW.HISTORIA.UFF.BR/STRICTO/TD/1561.PDF). Entre outras obras públicas, ao longo de seu governo, Pedro Ernesto fundou os Hospitais Getúlio Vargas, Carlos Chagas, Paulino Werneck, Jesus, Miguel Couto, Dispensário do Sapê, hoje Carmela Dutra. Criou o Hospital Geral Pedro Ernesto, que foi inaugurado anos após a sua morte. Junto com o professor Anísio Teixeira, promoveu ampla reforma na educação carioca, combatendo o elitismo do ensino da época, democratizando a escola pública, sendo o precursor do Centro de Investigação de Políticas de Ensino Superior - CIPES. Por sua administração eminentemente popular e pelo combate ao fascismo dos países do Eixo (a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini), Pedro Ernesto sofreu em 1934 intensa campanha anticomunista, embora ele não se considerasse nem um pouco comunista. Acabou preso em 1936, afastado da Prefeitura e teve cassada sua patente de coronel-médico da reserva do HTTP://WWW.HISTORIA.UFF.BR/STRICTO/TD/1561.PDF ). Exército (SITE: 18 Absolvido pelo Supremo Tribunal Militar, em 13 de setembro de 1937, junto a dezenas de presos políticos. Preso algumas outras vezes, Pedro Ernesto morreu na oposição, em 1942. Até hoje, deixa seu exemplo como político que defendia a gente pobre dos morros. No exercício da medicina, como cirurgião, foi laureado pela Academia Nacional de Medicina com o prêmio Alvarenga. Foi membro de American College of Surgeons, sendo titular e fundador do Colégio Brasileiro dos Cirurgiões. 2.2 Breve Histórico do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) foi inaugurado em 1950, após quase 20 anos de obras, sendo o mesmo parte da Rede Hospitalar da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Em 1962 foi incorporado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) como Hospital-Escola da Faculdade de Ciências Médicas, antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG) (ACS do HUPE, 1991). No ano de 1965, foi incorporado à Universidade do Estado da Guanabara (UEG) como Hospital das Clínicas. Suas atividades privilegiavam exclusivamente as questões acadêmicas de ensino e pesquisa, com o acompanhamento e estudo de raridades clínicas e doenças em estágio final (ACS do HUPE, 1991). Em 1974 o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) firmou o convênio global com a Previdência Social. Isto o transformou num hospital comprometido com a atenção à população. O mesmo era um hospital que funcionava com algumas limitações, com poucos leitos e poucas consultas ambulatoriais. A partir desse ano, através do convênio, que tinha também o intuito de superar as dificuldades de financiamento dos hospitais públicos, o HUPE se expandiu. De 250 leitos e 500 consultas ambulatoriais por mês, ele passou para 700 leitos e mais de 1.000 consultas ambulatoriais por dia, sendo que o número de funcionários também cresceu muito. De cerca de 800 pessoas, entre professores e funcionários, passou a abrigar 3.700 pessoas, sem contar os residentes. crescimento muito grande no hospital. Enfim, houve um 19 O HUPE possui 44 mil m² de área construída, onde funcionam 525 leitos e mais de 60 especialidades e subespecialidades. Tecnologia sofisticada que abrange a cirurgia cardíaca, transplante renal e transplante de coração, além dos atendimentos ambulatoriais de referência em diversas áreas da saúde (SITE: HTTP://WWW.HUPE.UERJ.BR). Ensino e pesquisa são atividades estratégicas à missão de um Hospital Universitário que tem em sua rotina, constantes descobertas e inovações, contribuindo para a melhoria da assistência e do atendimento em saúde. Seu pioneirismo deu-se em 1975, com a inauguração da Enfermaria de Adolescentes Prof. Aloysio Amâncio, primeira do gênero no Brasil a oferecer atendimento especializado multidisciplinar. ao adolescente, com atendimento integral e Hoje, o Núcleo de Estudo da Saúde do Adolescente (NESA) é centro de referência nacional para o atendimento ao adolescente, em especial, cardiopatas e nefropatas crônicos, já que o HUPE dispõe dos serviços de cirurgia cardíaca e transplante renal. Além disso, é centro cooperante do projeto Mundial sobre residência, sob a coordenação da Civitan/OPAS/OMS (SITE: HTTP://WWW.HUPE.UERJ.BR). Nos anos 80, o HUPE introduz, no Estado do Rio de Janeiro, a primeira Clínica da Dor, onde profissionais de diversas áreas do conhecimento desenvolvem e aplicam, desde então, técnicas de combate e eliminação de dores crônicas das mais diversas origens. Neste período, também se iniciaram as atividades da Clínica de Hipertensão do Laboratório de Fisiopatologia Clínica e Experimental (CLINEX) que atende hipertensos, obesos, diabéticos e dislipidêmicos, com enfoque interdisciplinar. À CLINEX cabe o diagnóstico precoce dessas doenças e suas conseqüências cardiovasculares. Em 1987 o HUPE, realizou sua primeira eleição direta para a escolha do Diretor e Vice-Diretor, inaugurando uma nova fase da sua história. Outra questão importante diz respeito ao objetivo do Hospital Universitário que é “Prestar atendimento ou comprometer-se somente com ensino e pesquisa” (SITE: HTTP://WWW.HUPE.UERJ.BR). Dentro do papel que cabe ao Hospital Universitário, incorpora-se a questão do treinamento específico e da formação dos estudantes, objetivando ser campo de prática efetiva para os estudantes da área de saúde, e de outras áreas, promovendo uma interação maior da Universidade. 20 Em 1988, com o propósito de criar um banco de sangue próprio, a direção estabelece entendimentos junto ao Instituto de Hematologia no sentido de atender as necessidades do Hospital. O banco de sangue foi inaugurado em 1989 e permanece até os dias de hoje com o nome de Herbert de Sousa (Herbert José de Sousa), conhecido como Betinho, sociólogo e ativista dos direitos humanos. Em 1998, o HUPE foi o primeiro Hospital Geral e Universitário do Estado a obter o título de “Hospital Amigo da Criança“, conferido pela Fundos das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo incentivo ao aleitamento materno. Foi o Alojamento Conjunto um dos principais fatores que contribuíram para essa conquista, que mantém mãe e bebê juntos desde o nascimento, estimulando a amamentação. Em 9 de setembro de 2002, foi inaugurado o Centro Universitário de Controle do Câncer - Unidade Docente Assistencial de Radioterapia. O CUCC abriga a Unidade Docente Assistencial (UDA) de Radioterapia, o ambulatório de cuidados paliativos e parte do serviço de radiologia e diagnóstico por imagem. O atendimento é feito ambulatorialmente e possui os exames de tomografia computadorizada. Tendo em sua chefia o Dr. Rafael Daher e como equipe profissional: médicos radioterapeutas, especializadas físicos em médicos, oncologia, técnicos técnicos em em radioterapia, enfermagem, enfermeiras nutricionistas, fisioterapeuta, médica de cuidados paliativos, enfermeiro de cuidados paliativos, fonoaudióloga, psicóloga e assistente social (SITE: HTTP://WWW.HUPE.UERJ.BR). Em junho de 2006, foi criado o Núcleo Perinatal, baseado no histórico precursor de serviço de obstetrícia do hospital. Hoje a maternidade é referência em gravidez de alto risco no Estado do Rio de Janeiro com leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) Neonatal cadastrados pelo SUS. O HUPE tem por missão prestar assistência integrada, humanizada e de excelência à saúde, sendo agente transformador da sociedade através do ensino, pesquisa e extensão. Seus valores são definidos pelo respeito à vida e à dignidade do ser humano, a ética nas relações, a transparência na divulgação das ações, a competência técnica, o trabalho em equipe, o pioneirismo e a responsabilidade social. Este é um centro de excelência na área de saúde, dispondo de um corpo clínico formado por profissionais com reconhecimento nacional e internacional, 21 mantém programas permanentes de atualização e modernização através de recursos captados com projetos desenvolvidos por seus profissionais. A demanda e a vinculação ao Centro Biomédico da UERJ transformaram o HUPE num dos maiores complexos docente-assistenciais do país, na área de saúde, hoje se pode afirmar que é um hospital de excelência, uma referência em saúde. Vista panorâmica do HUPE/UERJ FONTE: http://www.panoramio.com/user/400441?with_photo 3372779 2.3 Breve Histórico da Cirurgia Vascular e Endovascular no HUPE A história da Cirurgia Vascular no Hospital Universitário Pedro Ernesto teve início em 1960, pelo Prof. Medina, com a criação da Sessão de Cirurgia Vascular da 1ª Clínica Cirúrgica, na época “comandada” pelo Professor Titular de Cirurgia Manoel Cláudio da Motta Maia. Em 1963 se estabeleceu oficialmente uma parceria entre dois nomes que já vinham seguindo os passos do Prof. Medina: José Carlos Bastos Côrtes, mineiro de Além Paraíba, recém saído do Serviço do Prof. Augusto Paulino, e Álvaro Medrado Camelier. Dr. Côrtes recebeu a chefia do serviço em 1969 das mãos do Prof. Medina e desde então tem ensinado e influenciado um grande número de cirurgiões de vários cantos do Brasil, e que representam seu maior legado à cirurgia vascular do nosso país. (SITE: WWW.HUPE.UERJ.BR) 22 Dr. Cortes permaneceu como chefe até seu afastamento compulsório da Universidade em junho de 2003, quando então assumiu a coordenação do serviço que já se chamava Unidade Docente-Assistencial (UDA) de Cirurgia Vascular, o Prof. Dr. Carlos Eduardo Virgini-Magalhães. Há alguns anos, a criação da UDA de Cirurgia Vascular, que passou a englobar a disciplina da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e o serviço de cirurgia vascular do HUPE-UERJ, procurou contemplar as necessidades docentes e assistenciais, impossíveis de serem separadas em um Hospital Universitário, oficializando o que já existia na prática: A coordenação única da Disciplina (Faculdade) e do Serviço (Hospital). Em janeiro de 2004, foi inaugurado o novo Ambulatório da Disciplina, que passou a funcionar na Policlínica Piquet Carneiro - PPC-UERJ e foi “batizado” como Ambulatório de Cirurgia Vascular Alvaro Medrado Camelier, em homenagem aos 30 anos de sua dedicação ao antigo PAM São Francisco Xavier, hoje Policlínica Piquet Carneiro. Além do novo espaço, o atendimento foi reformulado e o ambulatório dividido por patologias em dias de atendimento diferentes (SITE: HTTP://WWW.HUPE.UERJ.BR). A divisão de ambulatórios teve como objetivo organizar o atendimento e priorizar a pesquisa em diferentes áreas da cirurgia vascular. Uma experiência que vem dando certo com a implementação de protocolos de acompanhamento de patologias vasculares diversas. Fachada da Policlínica Piquet Carneiro – PPC – UERJ FONTE: http://www.panoramio.com/user/400441?with_photo 3372782 23 O programa de residência médica em cirurgia vascular é reconhecido pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e funciona desde 1974, quando a Universidade ainda chamava-se Universidade do Estado da Guanabara (UEG). Tem duração de dois anos e conta com duas novas vagas a cada ano. Passam pelo Serviço anualmente quatro residentes de Cirurgia Vascular (dois R1 e dois R2), residentes da Cirurgia Geral e de outras especialidades cirúrgicas, além de pósgraduandos de outros programas cirúrgicos da Universidade. Em 2009 teve início o R3 opcional em Cirurgia Endovascular (SITE: HTTP://WWW.VASCULARUERJ.WORDPRESS.COM/HISTORIA). A filosofia de trabalho da Unidade Docente-Assistencial de Cirurgia Vascular tem como objetivos o ensino e a pesquisa, apoiados em um forte compromisso com uma assistência de qualidade, integrada ao Sistema Único de Saúde - SUS. A Unidade de Internação se localiza no Hospital Universitário Pedro Ernesto, 4º andar, enfermarias seis e sete. Nesta são realizadas as cirurgias, procedimentos e exames. A Unidade Ambulatorial se localiza na Policlínica Piquet Carneiro, 2º andar – Ambulatório de Cirurgia Vascular e Endovascular. Nesta são feitos os acompanhamentos pré e pós-cirúrgico, consultas de rotina e acompanhamento. As duas unidades são assistidas pelos mesmos profissionais, assim como chefiadas pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo Virgini-Magalhães, sua equipe é composta por oito staffs cirurgiões vasculares, um cardiologista, dois residentes R1, dois residentes R2, um residente R3 e um especializando, tendo um total de quatorze médicos na equipe. 2.4 O que vem a ser a Cirurgia Vascular e Endovascular Segundo Simonetti (2004), a cirurgia vascular é a especialidade médica que se ocupa do tratamento cirúrgico de doenças das artérias, veias e vasos linfáticos. Atua junto a angiologia que é a especialidade responsável pelo estudo clínico dessas doenças. O cirurgião vascular é o médico responsável pelas doenças que acometem os sistemas arterial, venoso e linfático. Embora seja conhecido mais pelo tratamento de 24 varizes, vasinhos, microvarizes e teleangiectasias, isso seria apenas uma parte dessa ampla especialidade. O cirurgião vascular que possui também titulação para exercer a cirurgia endovascular pode utilizar-se de recentes técnicas minimamente invasivas para realizar procedimentos cirúrgicos. A cirurgia endovascular é uma subespecialidade da cirurgia vascular, na qual se utilizam cateteres e guias, manipulados à distância e monitorados por telas (monitores). O ambiente usado para este tratamento tanto pode ser a sala de hemodinâmica como o centro cirúrgico. A cirurgia vascular e endovascular, tratam de patologias como: aterosclerose (arteriosclerose), úlceras arteriais, decorrente de estenose de carótida (isquemia cerebral de origem extracraniana), pé diabético, claudicação (dor ao caminhar, decorrente da isquemia, diminuição da circulação sangüínea periférica), aneurismas arteriais, tanto da aorta abdominal quanto de outras localizações, tromboses arteriais, isquemia de membros inferiores, obstrução arterial aguda, desbridamentos e amputações (cirurgias mutilantes, mas potencialmente salvadoras de vidas), fasciotomias, arterites e vasculites (SITE: HTTP://WWW.VASCULARUERJ.WORDPRESS.COM/HISTORIA). No sistema venoso, as doenças mais freqüentes são as varizes e as tromboses venosas. As varizes são veias em membros inferiores que se apresentam dilatadas e tortuosas, podendo levar a sintomas como dor, peso e cansaço. A trombose venosa é a formação de coágulos dentro das veias, que podem se desprender e direcionar-se para o pulmão, causando embolia pulmonar (SITE: HTTP://WWW.AMATO.COM.BR/CONSULTORIO-MEDICO/CONTENT/O-QUEANGIOLOGIA-E-CIRURGIA-VASCULAR-E-CIRURGIA-ENDOVASCULAR-TRATA). As principais doenças que se apresentam no sistema venoso são: varizes (vasinhos, microvarizes, teleangiectasias, varicorragia, rotura de varizes), úlceras venosas, tromboflebites e tromboses venosas, trombofilias (doenças do sangue que causam coagulação aumentada). Além destes, no sistema linfático também ocorrem alguns problemas, contudo, menos frequentes e percebem-se quando os membros inferiores apresentam 25 dificuldade de drenagem da linfa, com formação de edema, que é endurecido e constante. Suas principais doenças são: linfangites, linfedema, erisipela e celulite (o termo médico celulite é diferente da celulite popularmente conhecida, e consiste em infecção). Para melhor se definir o tratamento, conta-se com a realização de exames complementares como a ultrassonografia com Doppler e o Eco Doppler arterial e venoso, que vem a ser exames não invasivos de fácil realização, muito útil na detecção das alterações nos sistemas arteriais e venosos em membros inferiores e superiores e também no sistema carotídeo. Estes podem ser realizados pelo próprio cirurgião (SITE: HTTP://WWW.AMATO.COM.BR/CONSULTORIO- MEDICO/CONTENT/O-QUE-ANGIOLOGIA-E-CIRURGIA-VASCULAR-E-CIRURGIAENDOVASCULAR-TRATA). Existem vários tipos de tratamento para as doenças vasculares, uns menos invasivos e outros mais, contudo, nem sempre é possível optar pelo menos invasivo. Infelizmente, por vezes, o procedimento deve ser feito imediatamente, sem um período de preparação do paciente, pois a vida dele pode depender dessa intervenção. Existem dois tipos de tratamento para essas doenças, o medicamentoso e o cirúrgico. O cirúrgico se divide em cirurgia convencional / aberta, cirurgia endovascular minimamente invasiva (angiorradiologia, radiologia intervencionista) e os tratamentos com laser que vem ocupando um espaço cada vez maior, principalmente no que se refere ao tratamento das varizes, tornando-se assim, menos invasivo. No próximo capítulo apresentaremos a trajetória da Saúde Pública no Brasil até chegar a regulamentação do Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal de 1988 e as Bases da Política Nacional de Humanização. Em seguida, serão abordados aspectos do projeto de humanização inseridos na clínica cirúrgica de cirurgia vascular e endovascular do HUPE/UERJ. 26 3 A TRAJETÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL, A HUMANIZAÇÃO E A CLÍNICA DE CIRURGIA VASCULAR E ENDOVASCULAR DO HUPE/UERJ O assunto Saúde Pública é algo complexo, contudo, quando se trata desse assunto em nosso país, se torna algo ainda mais complicado. Ao longo deste capítulo vamos perceber que desde o período do Brasil Colônia já se tinha um movimento voltado para a Saúde Pública. Com o passar dos anos esse movimento foi tomando forma onde se criaram regras, padrões, até que chegou a ser legitimado pela Constituição Federal em 1988 e denominou-se como Sistema Único de Saúde – SUS. Com isso veio o movimento da Humanização, que hoje se chama Política Nacional de Humanização - PNH, que foi implantada nos hospitais públicos, sendo levada, por vezes, para os hospitais particulares. Percebendo-se a necessidade de mudanças e tendo-se um olhar e uma escuta diferenciada, nasce então o Projeto de Humanização na Enfermaria de Cirurgia Vascular e Endovascular do HUPE/UERJ. Neste capítulo serão abordadas essas questões, a partir de dados históricos, artigos relacionados ao assunto e observações a partir da prática. 3.1 - O Início das Políticas Públicas no Brasil Segundo Tatiana Wargas (2009), foi uma longa e árdua trajetória ao longo da história do Brasil, para que a sociedade se organizasse em torno de um interesse comum que se constitui em oferecer saúde como um direito de todos sem qualquer distinção entre os sujeitos. A princípio, no Brasil Colônia, ainda se trabalhava com o conceito de corpomente, o corpo como máquina. O processo de adoecer ficava reduzido ao conceito de corpo como máquina defeituosa e o espaço do cuidado era deslocado para os hospitais e a pessoa era internada para ficar isolada do convívio cotidiano. Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808 determinou-se mudanças na Administração Pública Colonial, principalmente na área da saúde. Como sede provisória do império português e principal porto do país, a cidade do 27 Rio de Janeiro tornou-se centro das ações sanitárias. Fez-se necessário, criar centros de formação de médicos, que até então eram quase inexistentes em razão, em parte, da proibição de ensino superior nas colônias. No mesmo ano da chegada da família real ao Brasil, foi inaugurada a primeira faculdade de medicina, a Escola Médica-Cirúrgica, localizada em Salvador/BA sendo uma institucionalização de programas de ensino e uma normalização da prática médica em conformidade aos moldes europeus. Em meados de 1829, foi criada a Junta de Higiene Pública, que se mostrou pouco eficaz e, apesar de várias reformulações, não alcançou o objetivo de cuidar da saúde da população. Contudo, as instâncias médicas assumiram o controle das medidas de higiene pública. Seu regulamento é editado em 20 de setembro de 1851 e a transforma em Junta Central de Higiene Pública. Seus objetivos eram inspeção da vacinação, o controle do exercício da medicina e a polícia sanitária da terra, que engloba a inspeção de alimentos, farmácias, armazéns de mantimentos, restaurantes, açougues, hospitais, colégios, cadeias, aquedutos, cemitérios, oficinas, laboratórios, fábricas e, em geral, todos os lugares de onde possa provir dano à saúde pública (MACHADO, 1978). Em 1852 é inaugurado o primeiro Hospital Psiquiátrico Brasileiro no Rio de Janeiro, Hospital D. Pedro II, com o objetivo de tratar medicamentosamente os denominados doentes mentais. (COSTA, 1999). As primeiras ações de saúde pública que surgiram no mundo e que também passaram a ser implementadas no Brasil Colônia voltaram-se especialmente para a proteção e saneamento das cidades, principalmente as portuárias, responsáveis pela comercialização e circulação dos produtos exportados, controle e observação das doenças e doentes, inclusive e principalmente dos ambientes e ainda para a teorização acerca das doenças e construção de conhecimento para adoção de práticas mais eficazes no controle das moléstias. A Proclamação da República em 1889 inicia um novo Ciclo na Política de Estado com o fortalecimento e a consolidação econômica da burguesia cafeeira. Criou-se em 1897 a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), o incentivo às pesquisas nas faculdades de medicina e no exterior (no Instituto Pasteur) e surgiram os institutos específicos de pesquisa. 28 Em 1899 ocorrem as epidemias nas cidades, como a de peste bubônica, no Porto de Santos, cria-se então em 1900, duas principais instituições de pesquisa biomédica e saúde pública do país: O Instituto Soroterápico Federal – transformado posteriormente em Instituto Oswaldo Cruz (1908) e Fundação Oswaldo Cruz (1970) no Rio de Janeiro, e o Instituto Butantã, em São Paulo. A partir de 1902, com a entrada de Rodrigues Alves na presidência da República, ocorreu um conjunto de mudanças significativas na condução das Políticas de Saúde Pública. Em 1903 é implementada a Reforma na Saúde, sob a coordenação de Oswaldo Cruz, que assume a diretoria geral de saúde pública. Em 1904, ele propõe um código sanitário que institui a desinfecção, inclusive domiciliar, a banalização das edificações consideradas nocivas à saúde pública, a notificação permanente dos casos de febre amarela, varíola, peste bubônica e a atuação da polícia sanitária. Também implementa sua primeira grande estratégia no combate as doenças: A campanha de vacinação obrigatória. Foi Oswaldo Cruz que inicia de forma mais sistemática no século XX, a pesquisa epidemiológica no Brasil. Em 1907, a febre amarela e outras doenças já tinham sido erradicadas da cidade do Rio de Janeiro e Belém. Outros cientistas, como Emílio Ribas, Carlos Chagas, Clementino Fraga, Belisário Penna, estiveram juntos com Oswaldo Cruz engajados na definição de ações de saúde pública e na realização de pesquisas, atuando em outros estados e cidades do país. (HOCHMAN & FONSECA, 1999). Nas décadas de 1910 e 1920 tem início uma segunda fase do movimento sanitarista com Oswaldo Cruz e a ênfase passou a estar no saneamento rural e no combate a três endemias rurais (ancilostomíase, malária e mal de chagas). Foi durante a Primeira República que o movimento sanitarista trouxe a situação de saúde como uma questão social e política. Em 1920 é criada a Diretoria Nacional de Saúde Pública (DNSP), reforçando o papel do governo central e a verticalização das ações (HOCHMAN & FONSECA, 1999). Em 1923, o chefe de polícia Eloy Chaves, propôs uma lei que regulamentava a formação de Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPS) para algumas organizações trabalhistas mais atuantes política e financeiramente, como os ferroviários e os marítimos, ligados à produção exportadora (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1985). O Estado assume ativamente, a partir de 1930, o papel de regulador da economia e define um projeto 29 econômico baseado na industrialização (FIORI, 1995). Duas mudanças institucionais marcaram a trajetória da política de saúde: a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) e do Ministério do Trabalho (MT), Indústria e Comércio (MTIC). O Governo de Getúlio Vargas tem início em uma crise mundial, efeito da quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 e a partir de uma revolução política interna, a Revolução de 1930, que encerra a República Velha (1889-1930). A política de proteção ao trabalhador iniciada no governo Vargas marca uma trajetória de expansão e consolidação de direitos sociais. É nesta fase que são criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS), ampliando o papel das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPS), constituindo um primeiro esboço do sistema de proteção social brasileiro. A partir da década de 1950, mudanças ocorreram no sistema de proteção à saúde. A criação do Ministério da Saúde em 1953, atribuindo um papel político específico para a saúde no contexto do Estado Brasileiro e a reorganização dos serviços nacionais de controle das endemias rurais no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERU) em 1956, possibilitou as ações nos programas de saúde voltados para o combate às doenças endêmicas na área rural. A primeira ação significativa no sistema previdenciário brasileiro ocorreu em 1966 com a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS) e a constituição do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). A criação do INPS permitiu uma uniformização dos institutos, principalmente em termos dos benefícios prestados. A partir de meados da década de 1970, definiu-se novas estratégias para a garantia de manutenção do governo, dentre elas, a definição do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e a Política de Abertura do Governo. Para a saúde, esse contexto significou a possibilidade de fortalecimento do movimento sanitário. O mesmo apresentava quatro proposições para debate: a saúde é um direito de todo cidadão, independente de contribuição ou de qualquer outro critério de discriminação, as ações de saúde devem estar integradas em um único sistema, garantindo o acesso de toda população a todos os serviços de saúde, seja de cunho preventivo ou curativo, a gestão administrativa e financeira das ações de saúde deve ser descentralizada para Estados e Municípios e o Estado deve promover a participação e o controle social das ações de saúde. 30 A demanda por mudanças significativas na política de saúde possibilitaram transformações concretas ainda nos anos 70, que se efetivaram de forma incipiente e resguardando os interesses do Estado autoritário. Dentre as políticas implementadas, destacam-se: a criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FADS), a formação do Conselho de Desenvolvimento Social (CDS), a instituição do Plano de Pronta Ação (PPA), em 1974, a formação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), em 1975, a promoção do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), em 1976 e em 1977, a constituição do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social (SINPAS), com mecanismos de articulação entre saúde, previdência e assistência no âmbito do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que passou a ser o órgão coordenador de todas as ações de saúde no nível médico-assistencial da previdência social. Na década de 1980, surgem propostas de expansão na área de assistência médica da previdência, apontando os conflitos de interesse com a previdência social e envolvendo o poder institucional e pressões do setor privado. Realiza-se a VII Conferência Nacional de Saúde (1980), que apresenta como proposta a reformulação da política de saúde e a formulação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde). Isto ocorreu com o movimento da Reforma Sanitária. No ano de 1986, o Ministério da Saúde faz uma grande convocação aos técnicos, gestores de saúde e usuários para uma discussão aberta sobre a reforma do sistema de saúde, realizando-se, assim, a VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS). Esta conferência foi um marco histórico da política de saúde brasileira, pois, pela primeira vez, contava-se com a participação da comunidade e dos técnicos na discussão de uma política setorial. Após séculos de desassistência, falava-se na definição de um modelo protetor com a garantia do direito à saúde integral, que consagra: A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, seção II, art.196, 1988). 31 A determinação política no contexto da Nova República foi favorável para uma discussão da Assembléia Nacional Constituinte em 1987/88, sendo reconhecido como um documento de expressão social. As propostas da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) não foram concretizadas de imediato. Após a conferência, por iniciativa do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), foi constituído o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que se apresentou como ponte estratégica na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao mesmo tempo em que o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) era implementado, ocorria a discussão da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88. Nela, o relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) foi tomado como base para a discussão da reforma do setor saúde e o Sistema Único de Saúde (SUS) que foi finalmente aprovado. 3.2 A Construção do Sistema Único de Saúde – SUS O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis n. 8.080/90 e n. 8.142/90 (BRASIL, 1990). Com esse propósito, vem sendo socialmente construído especialmente por meio de Normas Operacionais (NO), em consenso pelas três esferas de governo e materializadas em Portarias Ministeriais. Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), fixados na Constituição Federal em 1988 e detalhados na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90 e n. 8.142/90), foram o resultado de um longo processo histórico e social, que buscava interferir nas condições de saúde e na assistência prestada à população brasileira. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi fundamental no processo da luta e construção do modelo protetor brasileiro. Os princípios e diretrizes do SUS inserem-se em um contexto mais amplo da Política Pública a seguridade social que abrange, além das Políticas de Saúde, as Políticas de Previdência e Assistência Social. A definição do modelo de seguridade social no Brasil significou a formulação, pela primeira vez na história do país, de uma 32 estrutura de proteção social abrangente, justa, equânime e democrática, na qual cabe ao Estado a provisão e o dever de atenção. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, art.194, 1988). Neste contexto surgem os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS (BRASIL, M.S., Secretria Executiva, 2000): Princípio 1 - Universalização do acesso às ações e serviços de saúde – Garante a todos os cidadãos, sem privilégios ou distinções, que tenham acesso aos serviços de saúde públicos e privados conveniados, em todos os níveis do sistema. Este será garantido por uma rede de serviços hierarquizada (do menor nível de complexidade para o maior) e com tecnologia apropriada. É o princípio fundamental da reforma. Princípio 2 – Integralidade da atenção – Garante o acesso a um conjunto articulado e contínuo de ações e de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos. Este se apresenta no contexto da reforma como um contraponto ao contexto institucional da saúde que se dividia nas ações promovidas pela saúde pública e pela medicina previdenciária. Neste princípio, o Estado compromete-se a garantir todo e qualquer tipo de atenção à saúde, do mais simples ao mais complexo (da vacina ao transplante). Princípio 3 – Descentralização, com direção única do sistema – Tem por objetivo promover uma maior democratização no processo da saúde, sua finalidade é o enfrentamento das desigualdades regionais e sociais e prevê a transferência de poder decisório do Governo Federal para as instâncias subnacionais de Governo, considerando uma redistribuição das responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo. Acredita-se que o saber das questões pelo gestor, traga uma resolutividade com menor chances de erros. Este exige um novo formato na condução e organização da política. Apresentam-se as diretrizes do SUS de regionalização e hierarquização dos serviços, com a organização de um sistema de referência e contra-referência, incorporando os diversos níveis de complexidade do sistema (primário, secundário, terciário). 33 Princípio 4 – Participação Popular – Garantia constitucional para população, por meio de suas entidades representativas, para participar do processo de formulação das políticas e do controle de sua execução. A participação social foi enunciada na Constituição de 1988 e regulamentada na lei reguladora do Sistema Único de Saúde (SUS) de 1990 (lei 8.142/1990), onde se definem a configuração dos conselhos de saúde e a realização periódica (a cada quatro anos) das conferências de saúde. Iniciou-se o debate em torno da Lei Orgânica da Saúde (LOS 8.080), que propunha regulamentar o SUS, definindo com o maior nível de detalhamento seus objetivos e atribuições, aprofundando a questão do financiamento, da regulação do setor privado, da descentralização, regionalização e hierarquização do sistema, da participação popular, dentre outras. Após três meses da aprovação da lei 8.080, foi aprovada outra (lei 8.142), complementar a esta, definindo algumas propostas vetadas na lei original, especialmente no que diz respeito ao financiamento e a participação popular. A cidadania se constituiu assim a imagem e semelhança da forma de funcionamento do Estado, baseada na garantia de um direito primordialmente individual. (BRASIL, M.S., CARTILHA DA PNH, GESTÃO PARTICIPATIVA E CO-GESTÃO, BRASÍLIA, 2008). As Normas Operacionais Básicas da Saúde (NOBS) publicadas entre os anos de 1991 e 2002 têm exercido, especialmente desde a edição de 1993, o papel de orientação do processo de descentralização, explicitando as competências e responsabilidades de cada esfera de Governo e estabelecendo as condições necessárias para que Estados e Municípios possam assumir novas posições no processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). A primeira Norma Operacional da Assistência a Saúde (NOAS-SUS 01/01), foi publicada em 2001 e em 2002, a Norma Operacional da Assistência à Saúde 2002 (NOAS-SUS 01/02), foi revisada e publicada. (BRASIL, M.S., CARTILHA DA PNH, GESTÃO PARTICIPATIVA E CO-GESTÃO, BRASÍLIA, 2008). Utilizaram-se como instrumento para a definição de estratégias e movimentos tático-operacionais para reorientar e operacionalizar o Sistema Único de Saúde, a partir de uma avaliação periódica de sua implantação e desempenho. Entre os objetivos das Normas Operacionais pode-se destacar: (BRASIL, MS, CARTILHA DA PNH, GESTÃO PARTICIPATIVA E CO-GESTÃO, BRASÍLIA, 2008) ¾ Induzir e estimular mudanças no SUS, 34 ¾ Aprofundar e reorientar a implementação do SUS, ¾ Definir objetivos estratégicos, prioridades, diretrizes e movimentos tático-operacionais, ¾ Regular as relações entre seus gestores, ¾ Normatizar o SUS. Os resultados obtidos pelo SUS nestes vinte anos: (BRASÍLIA, CONASS, 2011): ¾ Em 2010 iniciou-se o projeto Saúde da Família com 30.300 equipes prestando serviços de atenção primária em saúde em mais de 5.000 Municípios e cobertura de 96 milhões de habitantes (BRASIL, M.S., SIAB, 2000). ¾ Em 2007 eliminou-se o sarampo, em 2005, interrompeu-se a transmissão do cólera, em 2009 a rubéola, em 2006 a transmissão vetorial de Chagas. ¾ Redução das mortes de outras 11 doenças transmissíveis, como tuberculose, hanseníase, malária e HIV/AIDS. ¾ As políticas brasileiras de saúde também reforçam a luta contra o tabaco e nos últimos anos reduziram o percentual de fumantes no país 15%. ¾ O Sistema Único de Saúde (SUS) se fez o principal fornecedor de medicamentos e o mercado de genéricos continua crescendo. ¾ O Sistema Nacional de Transplantes é hoje respeitado pela sociedade brasileira, pelos pacientes e pela comunidade transplantadora. ¾ Entre as políticas desenvolvidas pelo SUS com maior reconhecimento nacional e internacional, destaca-se o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (PN-DST/AIDS), que tem como principal missão reduzir a incidência e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/AIDS. ¾ O Brasil é reconhecido internacionalmente como um país que tem um dos mais completos e bem-sucedidos programas de imunizações do mundo, constituindo-se em poderosa ferramenta de controle de doenças transmissíveis imunopreveníveis. Em 2008 ocorreu a maior campanha de vacinação já realizada no mundo, passo importante para a eliminação da Síndrome da Rubéola Congênita. Em cinco 35 meses, foram imunizadas mais de 67,2 milhões de pessoas, atingindo 95,8% de cobertura. Com a reforma, se construiu um olhar diferenciado incorporando uma nova concepção de saúde com uma abrangência muito mais significativa e nisto se incluem a reformulação da formação profissional e a inclusão de novas práticas profissionais. Contudo, apesar de se perceber grandes ganhos, ainda se encontram grandes lacunas na Saúde Púbica, nossos hospitais não estão preparados para atender a população com a qualidade que se faz necessária, não se tem profissionais suficientes para as emergências, faltam equipamentos para exames que, por vezes, são essenciais para definir a conduta do tratamento ou procedimento necessário. Nossa realidade, infelizmente não pode ser chamada de exemplo, alguns aspectos foram conquistados, porém ainda faltam muitas mudanças e principalmente conscientizações para que se possa dizer que o SUS é uma referência em cuidados. 3.3 A Política Nacional de Humanização – PNH Um SUS humanizado é aquele que reconhece o outro como legítimo cidadão de direitos, valorizando os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde (LIMA, 2005). A Política Nacional de Humanização (PNH) surgiu em meados de 2003, entre os inúmeros debates sobre os modelos de gestão e de atenção do SUS. Faz-se necessária uma análise do SUS como Política Pública, partindo do princípio que a Política Nacional de Humanização (PNH) é uma política, que apresenta suas inspirações, conquistas e desafios. A proposta é de uma inseparabilidade entre gestão e atenção, preconizando que a gestão dos processos de trabalho em saúde não podem ser entendidas como tarefas administrativas separadas das práticas do cuidado. A Política Nacional de Humanização (PNH) propõe a criação de dimensões ética, estética e política. Ética porque implica na mudança de atitudes dos usuários, dos gestores e trabalhadores de saúde, de forma a comprometê-los 36 como co-responsáveis pela qualidade das ações e serviços gerados, estética por se tratar do processo de produção/criação da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas, política, porque diz respeito à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do Sistema Único de Saúde (SUS). (BRASILCONASS, 2006). Em 2008, ocorreu a XIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) e nesta foram formuladas Orientações gerais da Política Nacional de Humanização (PNH) com o propósito de melhorar tanto o atendimento aos usuários quanto a qualidade de vida dos trabalhadores, contribuindo desta forma para tentar sanar as insatisfações e as lacunas que existiam, entretanto, vale lembrar, que ainda temos muito que caminhar para que se alcance o mínimo da satisfação coletiva. Entre as orientações encontram-se as seguintes: o reconhecimento da dimensão subjetiva e coletiva em todas as práticas de atenção e gestão no SUS, com isso se fortalece o compromisso com os direitos de cidadania, destacando-se as necessidades específicas de gênero, étnico - racial orientação / expressão sexual e de segmentos específicos, obter trabalhadores, gestores e usuários do SUS com idéias e diretrizes da humanização e fortalecimento das iniciativas existentes, reforçar o trabalho em equipe multiprofissional, aperfeiçoando a transversalidade e a grupalidade, causar conhecimento e aumentar tecnologias relacionais e de compartilhamento das práticas de cuidado e de gestão em saúde, aprovar a construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde e com a produção de sujeitos, aperfeiçoar e ofertar/divulgar estratégias e metodologias de apoio a mudanças sustentáveis nos modelos de atenção e de gestão em saúde, conceber autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos implicados na rede do SUS, a co-responsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e atenção, fortificar o controle social, com caráter participativo, em todas as instâncias gestoras do SUS, estimulando processos de educação permanente em saúde, realizar processos de acompanhamento e avaliação na/da PNH, a organização de espaços de trabalho saudáveis e acolhedores que resulta na ambiência. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL, XIII CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2008) A PNH é caracterizada como uma estratégia de fortalecimento do Sistema Público de Saúde, criada pelo Ministério da Saúde com o propósito de ser uma oferta de mudança, com potência de transformar o SUS e de aproximá-lo, enquanto 37 prática social, a suas exigências discursivas, então, como uma das dimensões fundamentais do SUS, não podendo ser entendida como um “programa”. Uma forma de operar as coletividades seria o conjunto das relações entre profissionais e usuários, entre os diferentes profissionais, entre as diversas unidades e serviços de saúde e entre as instâncias que constituem o SUS, mas principalmente o modo como tais processos devem contribuir para a construção de trocas solidárias, comprometidas com a produção de saúde. Esta mudança da cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho seria o resultado da transformação de um paradigma. Assim como a PNH é caracterizada como uma estratégia para prover saúde, para que o SUS funcione dentro do que se propõe, a transferência, como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, se apresenta também como uma estratégia para articular o atendimento aos pacientes hospitalizados, mesmo quando a demanda não é do próprio paciente e sim do profissional de saúde. A transferência é a estratégia para se chegar ao paciente. A política de humanização só é possível ser efetivada com a construção do vínculo transferencial entre usuários e profissionais que atuam na instituição, ou seja, no hospital. O hospital é um lugar de vários saberes, onde circulam diversos profissionais detentores desses saberes e torna-se propício, especialmente, um encontro entre o saber que abrange o campo da medicina e o saber oferecido pela psicanálise. Retornando à PNH, cabe enfatizar o método por ela utilizado que é a Tríplice Inclusão: trabalhadores, gestores e usuários. Acredita-se que a partir da análise coletiva dos acontecimentos, fatos e fenômenos seja possível obterem-se subsídios para uma melhor compreensão dos limites de um determinado modelo de atenção à saúde. É uma forma de interferência nos processos de produção de saúde. A PNH se baseia em diretrizes que apontam para jeitos de colocar os princípios do SUS em ação. Esses são potencializados por dispositivos pautados em conceitos-experiência, que funcionam a partir da prática de produção de saúde, englobando coletivos que promovem mudanças nos modelos de atenção e de gestão. As diretrizes são as orientações gerais de uma determinada política. Na PNH, suas diretrizes expressam o método da inclusão no sentido da clínica ampliada, da co-gestão, do acolhimento, da valorização do trabalho e do trabalhador; da defesa 38 dos direitos do usuário; do fomento das grupalidades, coletivos e redes e da construção da memória do SUS que dá certo. (CARVALHO, 1996) A Política Nacional de Humanização diferencia arranjos/dispositivos de cogestão em dois grupos: o primeiro grupo diz respeito à organização do espaço coletivo de gestão que permita o acordo entre desejos e interesses tanto dos usuários quanto dos trabalhadores e gestores. O segundo grupo refere-se aos mecanismos que garantam a participação ativa de usuários e familiares no cotidiano das Unidades de Saúde. Estes devem propiciar tanto a manutenção dos laços sociais dos usuários internados quanto sua inserção e de seus familiares nos projetos terapêuticos e acompanhamento do tratamento. Seu objetivo é a participação do usuário, sua família e rede social, na perspectiva de garantir os direitos que lhes são assegurados e também o avanço no compartilhamento e coresponsabilização do tratamento e cuidados em geral. Ao se falar da PNH, torna-se imprescindível compreender a terminologia utilizada que traz em si a conceituação bem como o próprio instrumento para colocar em prática suas premissas básicas, contudo, é importante esclarecer que estes dados foram retiradas da CONASS - M.S. (2011): Acolhimento – É a prática de produção e promoção de saúde que implicam na responsabilização do trabalhador/equipe pelo usuário, desde a sua chegada até a sua saída. Ouvindo suas queixas, considerando suas preocupações e angústias, fazendo uso de uma escuta qualificada que possibilite analisar a demanda e, colocando os limites necessários, garantindo a atenção integral, resolutiva e responsável por meio do acionamento/articulação das redes internas dos serviços e redes externas, com outros serviços de saúde, para continuidade da assistência quando necessário. Alteridade – Troca de experiências com o outro, olhar o outro como um sujeito co-presente. Ambiência- Ambiente físico, social, profissional e de relações interpessoais, voltado para a atenção acolhedora, resolutiva e humana. Envolvendo tecnologias médicas, componentes estéticos e material humano pelo olhar, olfato, audição. O componente principal é o afetivo no acolhimento, a atenção dispensada ao usuário, na interação entre os trabalhadores e gestores. Os componentes culturais e regionais determinam, por vezes, os valores do ambiente. 39 Apoio Matricial – Troca de experiências profissionais em todos os campos, trazendo em referencial para outras equipes. Atenção Especializada/Serviço de Assistência Especializada – Unidades ambulatoriais de referência, compostas por equipes multidisciplinares que acompanham os pacientes, prestando atendimento integral a eles e a seus familiares. Autonomia – “Produção de suas próprias leis” ou “faculdade de se reger por suas próprias leis”. Pensar nos indivíduos como sujeitos autônomos é considerá-los como protagonistas nos coletivos de que participam, co-responsáveis pela produção de si e do mundo em que vivem. Classificação de Risco (Avaliação de risco) – Priorização da atenção seja o agravo à saúde e/ou grau de sofrimento e não mais a ordem de chegada. Realizado por profissional da saúde que, utilizando protocolos técnicos, identificam os pacientes que necessitam de tratamento imediato, considerando o potencial de risco. Clínica Ampliada – Universalidade, integralidade da rede de cuidado e a equidade das ofertas em saúde, se fazem necessárias algumas mudanças. Esta ampliação da clínica propõe uma prática de cuidado da clínica hegemônica que percebe a doença e o sintoma como seu objeto, busca a remissão de sintoma e a cura como seu objetivo, realiza a avaliação diagnóstica reduzindo-a a objetividade positivista clínica ou epidemiológica, define a intervenção terapêutica considerando predominantemente ou exclusivamente os aspectos orgânicos. Entretanto, essa ampliação implica em: tomar a saúde como seu objeto de investimento, considerando a vulnerabilidade, ter como objetivo produzir saúde e ampliar o grau de autonomia dos sujeitos, realizar a avaliação diagnóstica considerando não só o saber clínico e epidemiológico, como também a história dos sujeitos e os saberes por eles veiculados, definir a intervenção terapêutica considerando a complexidade biopsíquicossocial das demandas de saúde. Suas propostas seriam: o compromisso com o sujeito e não só com a doença, o reconhecimento dos limites dos saberes e a afirmação de que o sujeito é sempre maior que os diagnósticos propostos, a afirmação do encontro clínico entre dois sujeitos que se co-produzem na relação que estabelecem a busca do equilíbrio entre danos e benefícios gerados pelas práticas de saúde, a aposta nas equipes multiprofissionais e transdisciplinares, o fomento da 40 co-responsabilidade entre os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde e a defesa dos direitos dos usuários. Colegiado Gestor – São os membros da equipe ou representantes, que tem por finalidade elaborar o projeto de ação da instituição, atuar no processo de trabalho da unidade, responsabilizar os envolvidos, acolher os usuários, criar e avaliar os indicadores, sugerir e elaborar propostas. Controle Social (Participação Cidadã) – A população formula projetos e planos, define suas prioridades, fiscaliza e avalia as ações e os serviços, nas diferentes esferas de governo, principalmente na área da Saúde, as conferências e os conselhos de saúde. Dispositivos da PNH - Elementos que podem ser imateriais ou não, frente o qual se faz funcionar, se catalisa ou se potencializa um processo. Os dispositivos da PNH, promovem mudanças nos modelos de atenção e de gestão como: o acolhimento com Classificação de Risco, as Equipes de Referência e de Apoio Matricial (ERAM), o Projeto Terapêutico Singular (PTS) e Projeto de Saúde Coletiva (PSC), os Projetos Co-Geridos de Ambiência (PCGA), o colegiado gestor, o contrato de gestão, os sistemas de escuta qualificada para usuários e trabalhadores da saúde: gerência de “porta aberta”, ouvidorias, grupos focais e pesquisas de satisfação, etc., a visita aberta e direito à acompanhante, o Programa de Formação em Saúde do Trabalhador (PFST) e Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP), os Programas de Qualidade de Vida e Saúde para os Trabalhadores da Saúde (PQVSTS), o Grupo de Trabalho de Humanização (GTH), as Câmaras Técnicas de Humanização (CTH), o Projeto Memória do Sistema Único de Saúde (PM-SUS). Educação Permanente em Saúde - Articulação entre educação e trabalho no SUS, propicia as mudanças nas práticas de formação e de saúde. Eficácia/Eficiência (Resolubilidade) – Junção dos graus de eficácia e eficiência das ações em saúde. A eficácia é a produção da saúde como valor de uso, da qualidade da atenção e da gestão da saúde. A eficiência é à relação custo/benefício, ao menor investimento de recursos financeiros e humanos para alcançar o maior impacto nos indicadores sanitários. Equidade – Igualdade, necessidade de ambientes favoráveis, acesso à informação, a experiências e habilidades na vida, assim como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. O contrário é iniquidade, seriam as desigualdades sociais. 41 Equipe de Referência/Equipe Multiprofissional - Profissionais de diferentes áreas e saberes, uma estrutura permanente e nuclear dos serviços de saúde. Familiar Participante - Representante do usuário, articula a comunicação e elaboração de projetos entre a rede social / familiar / equipe de saúde. Grupalidade - Multiplicidade de termos, agenciamento e transformação, compondo uma rede de conexão na qual o processo de produção de saúde e de subjetividade se realiza. Igualdade - Acesso às ações e aos serviços, para promoção, proteção e recuperação da saúde, além de universal, baseia-se na igualdade de resultados finais. Integralidade – Um olhar sem divisões, o ser humano visto em seu todo, como biopsicossocial. Intersetorialidade - Integração dos serviços de saúde e outros órgãos públicos com a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não-compreendidas no âmbito do SUS. Núcleo de Saber - Área de saber e de prática profissional. Aglutinação de saberes e práticas, compondo um grupo ou um gênero profissional e disciplinar. Ouvidoria - Serviço representativo de demandas do usuário e/ou trabalhador de saúde e instrumento gerencial na medida em que mapeia problemas, aponta áreas críticas e estabelece a intermediação das relações, promovendo a aproximação das instâncias gerenciais. Protagonismo - Autônomos e co-responsáveis no processo de produção de sua própria saúde. Reabilitar-Reabilitação/Habilitar-Habilitação – Processo de desafios sempre em habilitar um novo sujeito a uma nova realidade biopsicossocial. Rede Psicossocial - Participação ativa e criativa dos saberes e instituições, voltados para o enfrentamento de problemas que nascem ou se expressam numa dimensão humana de fronteira. Redes de Atenção em Saúde – Reafirma-se a perspectiva, que prevê níveis de complexidade, viabilizando encaminhamentos resolutivos, porém reforçando a sua concepção central de fomentar e assegurar vínculos em diferentes dimensões: intra-equipes de saúde, interequipes/serviços, entre trabalhadores e gestores, e entre usuários e serviços/equipes. 42 Sujeito/Subjetividade - Resultado de um processo de produção de subjetividade sempre coletivo, histórico e determinado por múltiplos vetores: familiares, políticos, econômicos, ambientais, midiáticos, etc. Trabalho – Gestores e produtores de saberes e de novidades. Universalidade – O Estado tem o dever de prestar atendimento nos grandes e pequenos centros urbanos, e também às populações isoladas geopoliticamente. Vínculo – Processo pelo qual é gerada uma ligação afetiva e ética entre ambos, numa convivência de ajuda e respeito mútuos. A PNH faz uma aposta política, acreditando que seus princípios e diretrizes sejam efetivados. Destaca-se e se faz referência explícita, aos direitos dos usuários e trabalhadores de saúde, com a potencialização da capacidade de criação que constitui o humano, valorizando sua autonomia. 3.4 A Humanização Os valores e as concepções que temos sobre saúde são traços sociais que variam de acordo com o contexto vivido, com sua cultura, crenças e com a sociedade em que se encontra inserida. A humanização pode ser vista como forma de reforço social a ser utilizada no ambiente hospitalar. Humanizar o atendimento não é apenas chamar o paciente pelo nome, nem ter um sorriso constante. Vai muito além disso, humanizar é também compreender seus medos, angústias, incertezas dando-lhe apoio e atenção permanente, a partir do estabelecimento da transferência. Humanização não é apenas o atendimento fraterno e humano, mas também o aperfeiçoamento dos conhecimentos continuamente, valorizando todos os elementos implicados na situação. A humanização é um conjunto de medidas que englobam: o ambiente físico, o cuidado aos pacientes e seus familiares, as relações entre os membros da equipe de saúde e entre estes, os pacientes e familiares. Essas intervenções visam, sobretudo, tornar efetiva a assistência ao indivíduo adoecido, considerando-o como um ser biopsicossocial. 43 Humanizar o ambiente hospitalar é resgatar e fortalecer o comportamento ético, articular o cuidado técnico-científico, com o cuidado que incorpora a necessidade de acolher o imprevisível, o incontrolável, o diferente e singular. Mais do que isso, humanizar é adotar uma prática em que profissionais e usuários considerem o conjunto dos aspectos físicos, subjetivos e sociais, assumindo postura ética de respeito ao outro, de acolhimento do desconhecido e de reconhecimento de limites. (HC-UFMG, 2004, p.3). Propomos nesta pesquisa, introduzir a psicanálise como um referencial que pode contribuir para uma nova leitura de certos aspectos da PNH. A psicanálise neste contexto não visa a adaptação à ordem médica. Busca escutar o sujeito do Inconsciente. Nessa perspectiva, é que é construída a intervenção. (MORETTO, 2001) A função central do analista é oferecer uma escuta diferenciada [...] diferenciada daquele que é o discurso que reina no contexto hospitalar, o discurso médico. Na medida em que o analista promove a fala do sujeito e o escuta a partir de uma posição diferente (que é a posição analítica), abre a possibilidade de o próprio sujeito escutar-se, propiciando, desta forma, a subjetivação. (MORETTO, 2001, p.207). A psicanálise pode contribuir para a prática hospitalar, ressaltando a importância da consideração da singularidade do paciente e apontando a relevância da dimensão inconsciente. Neste processo de atendimento e adoecimento, procura-se individualizar a assistência frente às necessidades de cada um. Cada paciente deve ser considerado único em suas necessidades, valores e crenças específicas. Manter e preservar a sua dignidade significa respeitar os princípios da ética. Para um analista que trabalha em um hospital é imprescindível reconhecer as especificidades de sua situação, sua função. Isso se evidencia ao focalizarmos diferentes saberes, assim como a medicina possui um olhar para as enfermidades físicas e pelo corpo anátomo-fisiológico, a psicanálise legitima o sujeito do inconsciente, não dissocia seu corpo de seus fantasmas em sua tessitura psíquica, assume uma perspectiva sobre esse contexto. Dentro de um pensamento humanizado, que seja contemplado por toda equipe de saúde pode-se afirmar que a atenção por parte da equipe aumenta o conforto, a identidade e a integridade do paciente, a ausência de atenção pode realmente ter 44 efeitos prejudiciais sobre a saúde e a sua recuperação. O calor humano, o amor e a atenção compreensiva são elementos essenciais para boa recuperação. Ao se falar de humanização, segundo Queiroz (1993), faz-se necessário citar três diferentes aspectos a serem considerados: o modo de serem cuidados os pacientes e seus familiares, a atenção ao profissional da equipe e o ambiente físico. Perceber a pessoa não simplesmente como um corpo, não a reduzindo à biologia, pura e simplesmente, isto é um grande desafio. No âmbito de um hospital se trabalha com diversos saberes, com diferentes concepções sobre o corpo humano, destacando-se a medicina e a psicanálise. Bezerra (2003), relata o seguinte: “... a medicina relaciona-se com o sintoma do corpo”. Em outro momento diz: “O sintoma no corpo é a marca do significante, é uma mensagem ignorada pelo próprio autor dela, a ser decifrada na fala deste autorsujeito”. Santos (2004), faz uma outra leitura e traz um esclarecimento interessante sobre o corpo e o sofrimento, à luz da psicanálise: Dois corpos diferentes. O corpo do sofrimento erógeno da psicanálise e o corpo que o médico não vê, simplesmente porque a verdade do sintoma de que nos ocupamos como uma carta em espera, está por fora dos aparatos da ótica cada vez mais sofisticada que a ciência põe a serviço da medicina. É necessário instalar outra perspectiva para poder vislumbrar o que desse corpo se deixa ler – ou melhor, ouvir. (SANTOS ET AL., 2004, p. 91). Reafirmamos assim que a relação médico e paciente é um dos pré-requisitos fundamentais a ser abordado na compreensão desse processo de humanização. A humanização assistida é fundamental para o progresso do tratamento e a recuperação do paciente no ambiente hospitalar. Esta implica-se em perceber o outro, dando lugar à palavra do paciente, cuidadores e toda equipe de profissionais da saúde, de forma que se possa viabilizar os pensamentos e se promova ações, campanhas, programas, políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade. Mas, cautelosamente frente às pessoas que sabem do risco iminente da morte, penso que se faz necessário oferecer uma escuta diferenciada. Se nada podemos fazer a respeito disso, podemos através da palavra tentar contornar o indizível. 45 Segundo Soares (1996), a contribuição da psicanálise dentro do hospital refere-se à escuta, que pode levar o paciente a elaborar e lidar melhor com a situação traumática vivida. O conceito de transferência é fundamental para a psicanálise, pois, é condição para o tratamento. Freud (1912), no texto “A dinâmica da transferência”, aponta que na transferência são revividas as relações do sujeito com as suas figuras parentais. É de domínio no campo psicanalítico que a operação analítica só é possível na medida em que haja transferência e isso implica haver uma demanda endereçada a alguém a quem se destina um suposto saber. O analista, atento à sua função, se encontra ciente desse sujeito suposto lugar e não deve responder a esta sedução, deve se manter no lugar de objeto e nunca de sujeito. O psicanalista deve saber que este é um momento possível do paciente ressignificar as suas vivências, já que vivencia um momento de ruptura e crise, marcado pela sua doença. Conclui-se que, independente do local, a psicanálise é sempre psicanálise à medida que preconize o uso da associação livre e da transferência. (FIGUEIREDO, 2009). O excesso de recorte no organismo que a medicina tem feito demarca com muita precisão qual o objeto de intervenção que as especialidades têm. O analista garante na interlocução com a equipe que há um sujeito portador daqueles pedaços, tarefa, muitas vezes, árdua. O ambiente hospitalar demanda, uma flexibilidade de qualquer profissional que ali realize atividades, e a psicanálise, diferenciando-se em alguns aspectos da clínica comum, não se encontra fora disso. 3.5 A Prática da Humanização na Enfermaria de Cirurgia Vascular e Endovascular no Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ Ao se falar dessa prática, se propõem uma visão global do processo de adoecer, procurando ressaltar todos os fatores que estão envolvidos. Algumas dificuldades de relacionamento foram observadas entre os membros da equipe da enfermaria citada, contudo aos poucos estas foram sendo trabalhadas 46 para que se pudesse ter uma melhor qualidade na convivência e com isso um melhor cuidado para com o paciente. Passou a se ter um cuidado com as notícias do estado de saúde, cuidado que se passou a ter ao transmitir informações tanto ao paciente quanto aos seus familiares. Aos poucos foi-se percebendo que a palavra humanização deixava de ser uma palavra e passava a ganhar vida. As relações se modificavam entre médico- paciente, enfermeiro-paciente, equipe-familiar e médico-enfermeiro. A grande aposta era que se construísse uma só equipe de saúde, a Equipe de saúde da cirurgia vascular composta por multiprofissionais, entre eles: médicos, enfermeiros, psicóloga, assistente social, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, nutricionista e o serviço geral. A proposta é que se tenha um posicionamento ético, não apenas com mudanças de atitude, sendo na verdade mudanças de posição que propicie a emergência da subjetividade, trazendo com isso um ganho que se concretiza na direção do tratamento, na história de todos os envolvidos, como os pacientes, familiares e a própria equipe. Passa-se a pensar o paciente com suas dúvidas, medos, angústias, suas questões oriundas por diversos motivos, sua cultura, enfim, o ser bio-psico-social. É propício a valorização da participação do paciente e do familiar no tratamento, possibilitando que este tenha uma atuação mais ativa, diminuindo a sensação de impotência, geralmente presente nesse momento. O familiar nem sempre consegue oferecer essa participação devido suas condições emocionais: “... a experiência nos mostra que a doença de um paciente grave desestrutura todo o sistema familiar”. (SANTOS, 2007). Percebendo a importância do cuidado ao familiar, foi criado um grupo que atendia apenas aos familiares, contudo, isso não impedia que os atendimentos fossem feitos individualmente, os pacientes por se encontrarem impossibilitados de saírem de seus leitos, os atendimentos eram feitos nos mesmos. Ao longo do tempo foi percebido a necessidade de se ter um espaço para equipe, pois, esta trazia suas questões no dia-a-dia, ocorriam as intervenções pontuais, individuais e em grupo. Esta proposta foi elaborada como resposta a demanda que se apresentava. Criouse então um espaço onde a equipe podia se colocar sem receios, falavam dos seus sentimentos e limitações diante do sofrimento alheio. 47 Um caso interessante a ser citado, foi de um enfermeiro que estava no curso de sua residência e ao se deparar com o sofrimento de seus pacientes se confrontava com suas próprias questões, seu sofrimento era nítido, foi destinado a ele um acompanhamento individual constante. Após oito meses, ele percebeu que não conseguia mais lidar com aquela realidade que se apresentava dia após dia, saiu da residência, prestou vestibular para outra graduação e hoje é um residente em odontologia. Por trás de todo trabalho encontra-se a transferência, ela aparece como base para que esse caminho seja trilhado, para que essas situações ocorram. Alguns cuidados passaram a ser adotados por toda equipe, o respeito pelo paciente limitado em seu entendimento passou a ser visto de outra forma, não mais como uma pessoa que apenas não entendia ou não prestava atenção, mas alguém que por vários motivos não conseguia ter o entendimento desejado pela equipe. Nestes casos, se percebia que a postura dos profissionais havia se modificado, se procurava usar uma linguagem mais simples para que o paciente conseguisse entender o que estava ocorrendo consigo. Entre a própria equipe o diálogo passou a ser mais constante. A equipe passou a ter um olhar mais voltado para o ser humano e com isso as participações mais ativas se tornavam mais constantes, tanto dos familiares quanto dos pacientes. A equipe foi tornando-se uma equipe interdisciplinar, a troca não ocorria apenas entre as especialidades, mas entre os próprios cirurgiões, que se apoiavam, se organizavam para que seu trabalho fosse o melhor possível e com isso as relações profissionais eram mais produtivas. Por trás desse movimento se encontra a transferência, que se faz presente em todas as relações. A transferência é uma ferramenta de humanização como transferência de trabalho. Este tipo de transferência evidencia a presentificação do desejo da equipe profissional em relação àquele trabalho específico. Muitas vezes o paciente que chegava para o tratamento na enfermaria, sua doença apresentava um quadro extremamente evoluído e pouco tempo se tinha para que se tentasse minimamente informar/preparar esse paciente para ter seu corpo mutilado, sua imagem de corpo modificada por uma amputação necessária, era como uma troca, “se troca um membro por uma vida”. Apesar dessa urgência, a equipe se propunha a entender que esse sujeito precisava de um tempo para tentar 48 entender o que estaria por lhe acontecer. Posso dizer que essa foi uma das maiores conquistas como profissional nesta enfermaria, onde eram todos detentores de um saber que se salva vidas a qualquer custo e o mais rápido possível, mas que se permitiam respeitar o momento do outro. Lacan define a transferência de trabalho somo sendo uma espécie de “cola imaginária”. Sendo esta uma indicação da psicanálise para esse trabalho coletivo em equipe. Pode-se tomar o conceito em sua acepção simbólica, de demanda ao saber, de suposição de saber. Se no tratamento essa suposição passa pelo analista e se dirige ao sujeito do inconsciente, analogamente no trabalho em equipe ela circula entre os pares na mesma direção. O saber é sempre suposto ao sujeito. Se a transferência tal como concebida por Freud e reafirmada por Lacan, com todas as suas conseqüências, é condição para o trabalho analítico, a transferência seria condição para o trabalho em equipe. Lacan fala da importância da escolha entre pares, visando ao trabalho. Se no serviço público muitas vezes não escolhemos nossos pares, uma escolha deve ser feita pelo trabalho, não cabe a nós escolher de quem tratar e sim, sermos escolhidos pelo sujeito. Se o movimento de transferência é do sujeito, na transferência de trabalho, o movimento é de cada um da equipe em direção ao trabalho, tomando seus pares como parceiros. A questão é o que se apresenta do sujeito em algum endereçamento a nós. Um campo comum seria a forma, cujo referencial, é dado a partir do sujeito. Cabe ressaltar que apesar de ser uma clínica cirúrgica, muitas condutas não são encaminhadas para esse desfecho. Ao contrário, a cirurgia é a última opção sempre, busca-se uma terapêutica medicamentosa e outros cuidados. Há vários viezes que podem ser tomados no presente estudo a partir desta experiência nesta enfermaria de cirurgia vascular e endovascular. Apesar de apresentarmos alguns casos onde a amputação não foi necessária, cabe um foco especial no paciente diante da finitude, ou seja, diante do sofrimento da amputação. Ocorreu um caso muito interessante em que se constata a transferência com a equipe de saúde. Um paciente de aproximadamente 65 anos, residente do Município de Guaratinguetá - SP, encontrava-se com sua perna em estado muito grave, com doença avançada e em uma primeira avaliação com poucas possibilidades de se “salvar o membro”. O paciente foi medicado, solicitou-se que buscasse um posto de saúde próximo a sua casa para que lhe fizessem os curativos, que precisavam ser trocados a cada cinco dias, pois era usada uma 49 medicação específica, inclusive a medicação lhe foi fornecida. Para surpresa da equipe, na semana seguinte, o paciente retornou. Sua consulta estava marcada para dali a um mês. Ele justificou que preferia acordar de madrugada, ficar horas na estrada dentro do ônibus, mesmo sentindo dor por conta do balanço do transporte do que ser tratado por outras pessoas. Em seus relatos chegava a dizer que se não fosse curado por aqueles médicos, era porque não era para ficar bom, pois ele tinha os melhores médicos do mundo. Seu desejo e determinação eram imensos, tudo que lhe era proposto aceitava e realizava com a perfeição que conseguia. Sua perna foi melhorando e a hipótese de uma provável amputação foi diminuindo a cada semana. Foram oito longos meses de consultas semanais para curativos, que lhe proporcionaram a cura. Sua perna ficou totalmente curada. A confiança e certeza que apenas aqueles médicos podiam curá-lo é um exemplo de transferência com essa equipe que além de acolher sua patologia, acolheu seu medo, crença, insegurança de ser tratado por outro profissional. Este caso evidencia o entrelaçamento entre desejo e transferência. A comunicação entre os profissionais a cada dia estreitava-se mais. Lembrome de uma cena que ocorreu na enfermaria. Estava no leito de um paciente fazendo o atendimento e ao lado uma enfermeira fazendo o curativo de outro. Neste momento passou o chefe dos cirurgiões e lhe disse que seria melhor usar a medicação “X”, ela questionou o porquê e ele prontamente lhe explicou, sem se incomodar com tal questionamento. Passaram-se alguns minutos e o chefe retorna com uma prótese da patologia do paciente e solicita a atenção da enfermeira para que possa lhe explicar com mais precisão sua conduta. Vivenciar essa interação foi um ganho incalculável. Posso afirmar, que este episódio ocorreu devido à transferência estabelecida, que se transforma em confiança e com isso a interdisciplinaridade se presentifica nos profissionais de saúde, ou seja, a troca de saberes. Considera-se que humanizar a assistência significa agregar à eficiência técnica e científica, valores éticos, além de respeito e solidariedade ao ser humano. O planejamento da assistência deve sempre valorizar a vida humana e a cidadania, considerando assim, circunstâncias sociais, étnicas, educacionais e psíquicas que envolvam cada paciente. Humanizar é resgatar a importância dos aspectos psíquicos, indissociáveis dos aspectos físicos na intervenção em saúde. 50 Quando se fala de humanização em uma clínica cirúrgica, se faz necessário levantar algumas questões sobre isso. Seria propício se o cirurgião conseguisse ter claro que o paciente que o procura para realizar o tratamento cirúrgico, transporta uma carga de emoções proporcionais à natureza do diagnóstico e fantasias sobre a dimensão da intervenção e expectativas sobre sua vida futura. O paciente espera encontrar um cirurgião ético, competente e, sobretudo humano, isto é, capaz de se colocar no nível e no lugar dele, que compreenda a sua aflição e que demonstre solidariedade. (MORETTO, 2001). Com a humanização, a história de vida desse paciente e dessa família é compartilhada tanto no discurso, como na escrita do prontuário e é através dessa comunicação que se passa a entender a dinâmica das famílias e dos pacientes, suas limitações, seus medos e é neste momento que se consegue articular horários, mesmo fora dos pré-determinados pela instituição para visitas, tendo em vista a necessidade do outro. Strain (1978) postula oito categorias de estresses psicológicos a que está sujeito o paciente hospitalizado por uma doença aguda: ameaça básica à integridade narcísica, ansiedade de separação, medo de estranhos, culpa e medo de retaliação, medo da perda do controle, perda de amor e de aprovação, o medo da perda de, ou dano a partes do corpo, medo da morte e da dor. A disponibilidade do profissional em geral, transparece em sua face, expressando tranqüilidade pessoal, segurança e acolhimento. Não se pode olvidar e deixar de observar a condição de fragilidade, insegurança e, às vezes, incerteza dos pacientes, o que os torna regredidos e necessitados de uma escuta diferenciada. Ao longo desta vivência foram formuladas várias questões para serem pensadas, analisadas e revistas. Evidenciaram-se alguns pontos a serem observados. São eles: aprimorar o conhecimento científico continuamente, aliviar sempre que possível e controlar a dor, além de atender a queixas físicas e psíquicas, oferecer informações sobre a doença, prognóstico e tratamento, respeitar o modo e a qualidade de vida do paciente, respeitar a privacidade do paciente, compreender a importância de se oferecer ao paciente suporte emocional adequado e por último, a instituição deve oferecer condições de trabalho adequadas ao profissional de saúde. É essencial que se tenha um olhar diferenciado para o paciente, seus familiares e para a equipe de saúde, como sujeitos que possuem particularidades, 51 que se envolvem e, por muitas vezes, sofrem com determinadas questões que fogem ao seu alcance. Busca-se também a manutenção da privacidade do paciente durante a realização de procedimentos na unidade, a utilização de divisórias ou biombos podem facilitar o bem-estar do paciente e garante que esse seu direito seja respeitado. Algo primordial é a autonomia do paciente, tendo em vista que a relação de dependência é automaticamente fomentada numa internação, deve-se adotar uma filosofia na unidade que valorize e incentive a participação do paciente no tratamento. Nesta enfermaria se realiza um procedimento que é a angioplastia (colocação de stent, balão na artéria), feita em uma sala específica com todo respaldo necessário. Numa manhã estava na enfermaria fazendo os atendimentos de rotina, quando um residente me pediu para descer até a referida sala, pois uma de nossas pacientes que estava programada para fazer tal procedimento não estava bem. No caminho fui me lembrando dessa paciente, uma senhorinha de 78anos, repleta de pudores e por conta disso, a equipe se organizava para tentar que preferencialmente ela fosse examinada e cuidada por mulheres. Quando cheguei na sala percebi seu desespero, pois o procedimento seria feito por um médico. Este era um dos staffs da equipe e não estava conseguindo dar continuidade ao seu propósito, apenas me pediu ajuda para que ela ficasse calma para que ele prosseguisse. Relatei-lhe o que estava acontecendo e sua postura foi magnífica. Foi comigo até a paciente, pegou em sua mão, lhe fez carinho na cabeça e com muita calma foi conversando com ela com uma voz suave lhe dizendo que entendia seus pudores, mas que aquilo era necessário, lhe prometeu que iria lhe cobrir todo o tempo com o lençol e em momento algum olharia para algum lugar que não o local que precisasse olhar. Esse procedimento devido a patologia é feito pela virilha. Ele lhe prometeu que eu também estaria ao seu lado e tomaria conta do lençol. Ela aceitou. Durante todo procedimento a senhorinha segurou uma de minhas mãos e a outra, segundo ela ficava livre para tomar conta do lençol. O médico todo o tempo conversava com ela lhe passando segurança, lhe olhava nos olhos, piscava um dos olhos, sorria. O procedimento levou muito mais tempo que o previsto, mas foi realizado com sucesso e sua patologia tratada e curada. A transferência se encontra nessa confiança, nessa escuta, nesse olhar, também nesse respeito aos pudores do outro. A cura 52 pode ser facilitada devido à transferência que se instalou entre a paciente e os profissionais para que o procedimento pudesse ser realizado. Provavelmente, o remédio mais eficaz em termos de cura é a qualidade do relacionamento mantido entre o paciente e a equipe de saúde e entre o paciente e sua família. A qualidade da relação terapêutica pode facilmente ser enfraquecida ou ameaçada quando reações emocionais (negação, raiva, culpa e medo) dos pacientes, familiares ou equipe de saúde não são adequadamente trabalhadas. Ao conviver com especialistas que estão habituados a focalizar apenas a dor física é um ganho significativo perceber que conseguem ouvir seu paciente falar de outras dores, que não provêm de seu corpo, de sua patologia, mas de seus sentimentos, olhando seus pacientes como seres humanos e não apenas como um membro a ser tratado. As urgências impostas, as dinâmicas institucionais, entre outros fatores, interferem na possibilidade de um trabalho mais demorado. São comuns os dias em que conversamos com um paciente e no dia seguinte ele recebeu alta ou veio a óbito. Quando se consegue fazer e se sentir parte de uma equipe, pode-se dizer que se “está no mesmo barco”, se passa pelas mesmas dificuldades, pelo mesmo sofrimento e por trás disso se encontra a transferência, que é fundamental para que se consiga alcançar tal cumplicidade entre a equipe. O trabalho da psicóloga junto aos residentes de cirurgia vascular e endovascular, no momento de compartilhar a notícia da amputação visava criar uma nova mentalidade no hospital que valorizasse este momento tanto no que diz respeito à fala dos profissionais sobre um tema tão difícil, enfatizando ao mesmo tempo a importância de escutar os pacientes nessa hora. Pode-se dizer que o hospital é uma espécie de setting mutante, contudo, o ser humano continua sendo um sujeito de linguagem, com sua associação livre. Dentro dessa visão, se coloca a contribuição da psicanálise na humanização em uma prática hospitalar, proporcionando uma qualidade de vida sem que se negue o malestar da patologia. Entre muitos pacientes que acompanhei, tive uma em especial, especial por ser uma pequena menina de 6 anos e em nossa enfermaria não haviam pacientes infantis, todos tinham acima dos 60/65anos. Esta menina, devido a doenças anteriores, fora submetida a duas amputações em suas perninhas, metade de uma 53 perna e metade do pé que lhe restou, um caso difícil para todos, um sofrimento mútuo, contudo, houve total apoio na equipe. Em um dos atendimentos com a psicóloga, ela estava desenhando e ao terminar disse o seguinte: “Tia, olha, é como um passarinho, cortaram as asas dele, mas ele ainda consegue carregar um montão de coisas presas nele, mas tá caindo tudo, alguém cortou o rabo dele também, tadinho, mas ele consegue voar, tá voando, olha tia, ele voa, voa lá pro alto... Um dia eu também vou voar, voar bem alto e vou levar você e os tios aqui, aqui ó, no meu coração...” Neste momento se percebe a transferência, não apenas com a psicóloga, mas com toda a equipe de cirurgiões, enfermeiros, entre outros, que acompanhavam seu caso, sua internação. Ao ouvir isso percebi exatamente como ela se sentia, alguém que apesar de estar sem uma de suas pernas, metade de seu pé, ter perdido quase toda pele de suas pernas, nem fralda mais podia usar devido a uma alergia que apresentara, ainda sonhava em ter uma vida “normal”, “em voar” para outros lugares e nós, a equipe que cuidava dela, estaríamos sempre em suas lembranças. Passou-se aproximadamente um ano e meio, quando estava no corredor do hospital e fui surpreendida por alguém abraçando minhas pernas pelas costas, ao me virar reconheci a pequena menina, que pulava e sorrindo me dizia: “Olha tia, eu tenho uma perna nova, eu ganhei uma perna, olha eu consigo correr, pular, eu posso tudo, tudo, tudo...” Não consegui conter minhas lágrimas, apenas abaixei e a abracei. Ela sorria e parecia muito feliz e apenas lhe disse: “Estou muito feliz por você.” A pequena me olhou nos olhos e me perguntou por que eu chorava, apenas lhe respondi: “Por lhe ver feliz, minha pequena, são lágrimas de felicidade...” Humanizar também é isso, é se permitir chorar de felicidade ao reencontrar uma sobrevivente. Apesar da menina ter sido submetida a uma intervenção cirúrgica invasiva, percebo que através da transferência que se instalou ao longo do processo junto à equipe, foi possível se construir meios para que tanto a menina como sua família se estruturassem, para darem conta da nova situação que lhes era apresentada, sem que isso tivesse proporcionado um dolo incalculável, mas uma questão a ser enfrentada com uma clareza de informações e posso dizer, com um equilíbrio emocional além da retomada de vida da menina. Permaneci nesta enfermaria de janeiro de 2006 até maio de 2011. O aprendizado foi incalculável, as histórias de vidas ouvidas e compartilhadas, carrego 54 em minha bagagem de vida, mas a gratidão por terem me permitido fazer parte de tal equipe de saúde, seguirá presente em minha caminhada para sempre. O próximo capítulo abordará um dos quatro conceitos da psicanálise, a transferência, que é fundamental em todas as relações. 55 4 A TRANSFERÊNCIA COMO ESTRATÉGIA NA POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO A transferência é um dos principais conceitos da psicanálise e, por se tratar de um fenômeno, seus sinais podem ser percebidos no decorrer de uma prática profissional. Desde a criação da psicanálise com Freud, sabemos que a transferência se faz presente em todos os tipos de relação, portanto, em todas as situações de trabalho é importante considerar a presença da transferência e seus efeitos. Na psicanálise, o paciente endereça uma demanda de saber para o analista, supondo nele um saber sobre o seu inconsciente. O tratamento psicanalítico opera a partir da transferência e podemos, de início, concebe-lo como um amor dirigido ao saber. Na presente pesquisa focalizamos o trabalho desenvolvido por profissionais da saúde com pacientes internados num hospital geral, especialmente, os desdobramentos da Política Nacional de Humanização nesta prática interdisciplinar hospitalar. Os aprimoramentos que a Política Nacional de Humanização tem possibilitado para o tratamento de pacientes em situação hospitalar nos permite pensar a transferência como estratégia implícita nesta política. Demonstrar a importância do fenômeno da transferência na aplicação desta política é uma das contribuições que esta pesquisa pretende dar à prática hospitalar. Neste quarto capítulo, apresentamos o conceito de transferência tal como é concebido pela psicanálise, considerando o percurso feito por Freud desde os primórdios de suas teorias, com os acréscimos feitos por Lacan à teoria da transferência. 4.1 O termo Transferência O conceito de transferência foi elaborado, inicialmente, pelo criador da Psicanálise, Sigmund Freud. Foi apresentado em suas "Obras Completas" originalmente escrita em alemão e, por esta razão, faremos uma breve análise do termo transferência neste idioma. 56 O termo em alemão que corresponde a transferência é Übertragung. Para analisar o termo transferência vamos utilizar a pesquisa feita por Luiz Alberto Hanns, apresentada no dicionário por ele organizado intitulado "Dicionário comentado do alemão de Freud" (1996). Na língua alemã, esse termo implica nas idéias de plasticidade e reversibilidade. Nele está contida a representação de um arco, indicando um movimento de idas e vindas, mudanças de um contexto para outro, movimentações de uma pessoa para outra e passagem de um tempo para o outro. A representação da transferência pela figura de um arco pode ser assim esquematizada: ida vinda Passado Contexto anterior Pessoa do passado Presente Contexto atual Pessoa atual De acordo com este esquema, a transferência pode ser pensada como um deslocamento do passado incluindo contexto e pessoas desse tempo anterior para o presente, incluindo algum contexto e pessoas da atualidade. Desde o início Freud percebeu as movimentações próprias do fenômeno da transferência e um de seus textos principais sobre este tema intitula-se "Dinâmica da transferência" (1912). Na análise do termo Übertrangung encontra-se o prefixo über, que possui vários sentidos: movimento em direção de alguma coisa, dinâmica de resguardar algo, deslocamento de um local para outro. Trag, é o radical que tem por significado transportar, utilizar, trajar, manter, proceder, etc. Üng, é o sufixo de substantivação, correspondendo ao sufixo "ção" em português. A conotação tanto do verbo übertragen, tanto do substantivo Übertrangung apontam para as idéias de "por sobre" e "carregar", o que pode ser bem visualizado na representação do arco anteriormente apresentado. As concepções de 57 plasticidade e reversibilidade indicam justamente, a possibilidade de se transitar entre tempos, lugares e pessoas diferentes. Utilizando-nos ainda do "Dicionário comentado do alemão de Freud" (1996), aos termos übertragen, em alemão e seu correspondente transferir em português, Hanns apresenta os significados como os mais usuais: ¾ Aplicar em outro contexto, ¾ Transmitir (televisão, rádio), ¾ Transcrever ¾ Transmitir força mecânica, ¾ Transmitir, confiar encargo, ¾ Contagiar, ¾ Abstrair, colocar em linguagem figurada, ¾ Traduzir para outra língua. Quanto ao verbo transferir, o autor apresenta três significados usados com mais freqüência: ¾ Transmitir, confiar encargo, ¾ Mudar data, postergar, ¾ Mudar de local, pessoa, âmbito. O estudo de Hanns nos mostra a diversidade de significados referentes ao termo transferência. Se nos reportarmos à teoria freudiana, constatamos que Freud também utilizou este termo de diversas maneiras em diferentes contextos e momentos de sua obra. No início da elaboração sobre a teoria da transferência, Freud a concebeu com uma "falsa conexão", mas ao longo de seus estudos modificou tal concepção, ampliou o conceito de transferência, lançou questões sobre seu manejo e sua importância no âmbito do diagnóstico diferencial e do tratamento. Apresentaremos, no item seguinte, um pouco da história do conceito de transferência. 58 4.2 Um pouco de história Em 06 de maio de 1856, nasceu em Freiberg, na Moravia, Schlomo Sigismund, após alguns anos ele mesmo alterou seu nome para Sigmund Freud. Foi chamado e reconhecido como o "Pai da Psicanálise". Em 23 de setembro de 1939, ele faleceu em Londres, na Inglaterra. Foi em 1880 que ocorreu um marco para a história do movimento psicanalítico, o encontro de Freud e Breuer, no momento em que Breuer tratava a paciente Anna O. (Bertha Pappenheim). Anna O. tinha vinte e um anos e adoeceu durante os cuidados que destinava ao seu pai que faleceu de um abscesso pulmonar. Além dos sintomas emocionais, a mesma desenvolveu outros sintomas físicos, como: distúrbio da visão, da audição, da fala, paralisia de três extremidades com contrações e anestesias, assim como lapsos de consciência e alucinações. Quando se encontrava em estado hipnótico era possível que fizesse uma troca radical de sua personalidade, do estado infantil cheia de vontades, para o de uma mulher dentro do previsto de sua idade. Anna O. endereça um amor para Breuer, pois, segundo o mesmo, era parecido com seu pai, inclusive fisicamente. Este amor pode ser pensado como sendo uma transferência positiva. A dedicação intensa de Breuer a sua paciente, lhe trouxe problemas com sua esposa e por conta disso ele resolveu dar como encerrado o tratamento. Neste exato momento, Anna O. desencadeia uma catarse emocional, representada por dores histéricas comparáveis às de um parto e Breuer utiliza a hipnose para conter tal episódio. Breuer segue com sua esposa para Veneza e alguns autores revelam que sua esposa havia retornado grávida de tal viagem. Anna O. foi diversas vezes internada, fez uso de morfina, mas se recuperou chegando a se formar em Serviço Social e tornou-se uma feminista ativa e reconhecida. Anna O. tinha uma expressão muito peculiar para descrever seu tratamento: “A limpeza de uma chaminé" e a partir dela, tornou-se conhecida a expressão "cura pela palavra". O caso Anna O. desempenhou uma papel fundamental na criação da psicanálise no desenvolvimento das concepções teórico-clínicas acerca da transferência. O amor dirigido por Anna O. a Breuer constituía manifestações de sua sexualidade, o que corroborava as idéias incipientes de Freud a respeito da etiologia sexual das neuroses. No entanto, Breuer afastou-se todo o tempo deste importante papel da sexualidade na histeria. 59 Em 1885, Freud aos 30 anos de idade, ganha uma bolsa de estudos no Hospital Salpêtrière, em Paris, onde se encontrava o neurologista Jean Martin Charcot, que se dedicava ao estudo da histeria, concebendo-a como uma doença nervosa e não uma simulação. Neste momento, Freud abandona seus estudos em anatomopatologia e passa a se interessar pelos problemas colocados pela histeria. Nos anos de 1885 e 1886, Charcot tornou-se o grande mestre de Freud. Em 1886, ocorre seu retorno a Viena como médico especialista em doenças nervosas, abre seu consultório e recebe um convite do pediatra Max Kassowitz para trabalhar no Departamento Neurológico do Instituto de Doenças Infantis, tornando-se uma autoridade em paralisias infantis. Ao mesmo tempo, começa a traduzir os livros de seu mestre Charcot: "Lições sobre doenças do sistema nervoso e Lições de terça-feira", o que contribuiu muito para a base de sua teoria sobre a etiologia sexual das neuroses. Freud acompanha o trabalho de Charcot em sua clínica com as histéricas, o que lhe causa grande impacto e lhe leva a estudar sobre o assunto, percebendo que as queixas por elas trazidas direcionavam-se para um núcleo sexual. Por volta de 1887, Freud começa a construir sua teoria sobre o trauma, onde a sedução ocupa um lugar privilegiado. A teoria do trauma e da sedução seriam uma ponte para a conquista sobre as relações entre a sexualidade e o inconsciente. Ainda neste ano Freud é apresentado por Breuer a Wilhelm Fliess, médico otorrinolaringologista, dois anos mais jovem que ele e se encontrava fazendo pesquisas sobre fisiologia sexual. Os dois se tornaram grandes amigos e se correspondiam com freqüência, essa amizade durou até 1904. Em 1888, Freud escreve um artigo para o “Dicionário Médico Villaret”, sobre a histeria e nesse artigo, pela primeira vez, ele utiliza a palavra transferência em francês, indicando com ela, o deslocamento de um sintoma histérico de um lado para o outro do corpo. Em 1889, Freud segue para Nancy com Charcot para vivenciar as experiências de Bernheim sobre o hipnotismo. Em 1895, Freud publica "Estudos sobre histeria". publica "A etiologia da histeria", onde afirma que: No ano seguinte ele 60 [...] os sintomas da histeria são determinados por certas experiências do paciente que atuaram de modo traumático e que são reproduzidas em sua vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos. (FREUD (1895), 1969, p. 190). Em 4 de novembro de 1899, aos 43anos, Freud publica "A interpretação dos sonhos" (Die Traumdeutung), contudo, por acreditar que seria uma marca num novo século, solicita ao editor Franz Deutike que colocasse a data de 1900. Freud traz pela primeira vez a palavra Übertragung, referindo-se a transferência. Nesta obra apresenta suas concepções sobre a elaboração onírica e concebe os sonhos como a realização de um desejo recalcado. Freud fala pela primeira vez em transferência de sentido, de deslocamento, de utilização pelo desejo de formas alheias a ele das quais se apodera e as quais utiliza no trabalho de transferência onírica, seguindo as exigências da censura. A transferência aparece ligada à idéia de deslocamento. Em 1901, se iniciam os conflitos com Fliess, seu grande amigo e correspondente. Ainda neste ano, Freud recebe Dora (Ida Bauer) como sua paciente e fala abertamente da dinâmica da transferência e seus efeitos. É ao atender Dora, ao escrever o seu caso, que vem à tona a importância de construir uma teoria sobre a transferência. Contudo, este tratamento, foi considerado mal sucedido, por não ter percebido, a tempo, a dinâmica da transferência durante o processo. Foi entre outubro e dezembro de 1900, que Freud atendeu a esta jovem de dezoito anos, virgem, com um quadro de histeria. informações eram trazidas por seu pai. A princípio todas as Dora vivenciou desde sua infância a fragilidade da saúde de seu pai, necessitando inclusive que toda família fosse morar em vários lugares para que se pudesse buscar um restabelecimento para o mesmo. Por volta dos seus dez anos, seu pai viaja para Viena com seu médico para se consultar com Freud. Após quatro anos dessa intervenção, a moça é apresenta por seu pai a Freud, contudo, neste ínterim, ela já havia apresentado comportamentos “estranhos”. Nesta época Freud conhece alguns familiares de Dora, como: sua tia acometida por uma psiconeurose grave e seu tio um solteirão hipocondríaco. Soube que sua mãe apresentava uma neurose obsessiva, contudo, não chegou a conhecêla. A relação entre mãe e filha sempre foi conflituosa e aos oito anos, ela já apresentava sintomas neuróticos e sofria de uma dispnéia crônica. Por volta dos doze anos começou a sofrer de dores de cabeça e acessos de tosses nervosa e finalmente aos dezoito, iniciou seu tratamento com Freud. Dora apresentava: 61 desânimo, distúrbios nervosos, tosse convulsiva, afonia, depressão, tendências suicidas e uma alteração de caráter que foram norteando os principais traços de sua patologia, procurava evitar o contato social e não gostava das imposições de sua mãe quanto aos afazeres domésticos. Ocorreu um episódio, em que seus pais encontraram uma carta escrita pela moça, despedindo-se de todos por não suportar a vida, isto trouxe uma preocupação significativa aos mesmos e neste período Dora foi acometida por um ataque de perda de consciência, que fora encoberto por uma amnésia. Por esta ocasião a família havia feito amizade com o Sr. e a Srª K, que segundo ela, lhe havia assediado sexualmente a beira de um lago e ela o havia esbofeteado, entretanto, seu pai não manifestou credibilidade à sua narração. Dora nunca encontrou a cura de seu horror por homens, mas seus sintomas se aplacaram após sua curta análise. Ela alcançou sua vingança da humilhação sofrida, ao induzir a Srª K a confessar seu romance com seu pai e levou o Sr. K a assumir a cena no lago. Contemplou seu pai com tal verdade e rompeu definitivamente com o casal. Em 1903 casou-se e dois anos mais tarde teve seu único filho, ela faleceu por volta de 1945. No caso Dora, Freud concluiu que esta transferiu os afetos dirigidos ao Sr. K. para ele e, de maneira vingativa, interrompe o tratamento abandonando-o, tal como ela fora abandonada por aquele senhor e por seu pai. Posteriormente Freud resolve reavaliar a si mesmo e todo o processo, e percebe seu grande equívoco, pois, Dora estava interessada na Srª. K e não no Sr. K. ou seja manifestava por ela desejos homossexuais. Com o caso Dora, inicia-se, efetivamente, uma elaboração acerca da teoria da transferência na psicanálise. Anteriormente, a transferência era percebida como sendo uma patologia que precisava ser curada, entretanto, com o desenvolvimento dos trabalhos reconheceuse que era inevitável, por ser um desejo inconsciente que é mobilizado pelo próprio tratamento. Em 1909, Sandor Firenczi, (discípulo de Freud na mesma época que Jung) aborda a relação entre professor e aluno, médico e paciente, enquanto Freud trabalha o conhecido caso “O homem dos ratos”, considerando os aspectos transferenciais e concluindo sobre a constante presença da transferência nas relações humanas. Em 1912, Freud escreve então seu primeiro texto exclusivo sobre a transferência, “A dinâmica da transferência”. Ele não criou a transferência, mas sim a percebeu através, e no discurso de seus pacientes. 62 Pode-se dizer que a transferência está presente em todas as relações, é fundamental, por ser a mola mestra da relação e deve ser observada pelo profissional para que não venha a se constituir como uma resistência em um tratamento. Essa resistência traz consigo um grande enigma, pois, a transferência é motor, ou seja, estratégia de cura e, ao mesmo tempo, é resistência. Todo tratamento é acompanhado pela resistência, que cria uma reconciliação entre o desejo do restabelecimento e seu contrário. Tem-se claro que a transferência ocorre: [...] quando algo do material complexivo serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência é realizada, ela produz a associação seguinte e se anuncia por sinais de resistência – por uma interrupção, por exemplo. (FREUD (1912), 1969, p.138). Com Freud, pode-se falar em transferência positiva e negativa. A transferência positiva é aquela que favorece a associação livre, regra fundamental da psicanálise. A transferência negativa dificulta ou impede a associação livre e, portanto, deve ser manejada para que seja possível a continuidade do tratamento. A transferência negativa traz mudanças no comportamento do analisante, que tenta burlar a regra principal da psicanálise, falar tudo que lhe vem à mente, deixando de lado o motivo pelo qual buscou a análise. É travada uma espécie de luta do analista com o inconsciente do analisante, o inconsciente se fecha, porém o analista busca manejar tal situação. Afirma Freud: "Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a procura da ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência". (FREUD (1912), 1969, p.143). Pode-se dizer que a principal dificuldade do analista não é interpretar o que o analisante lhe traz, mas sim, manejar a transferência. Por ser o amor transferencial um amor genuíno e, ao mesmo tempo falso, situações de enamoramento podem surgir. Segundo Freud, três caminhos podem ser tomados: o primeiro seria a possibilidade de uma realização do sentimento, chegando-se a união dos envolvidos; o segundo e mais comum seria a separação dos mesmos e com isso a interrupção do tratamento e o terceiro, eticamente 63 inaceitável, seria manterem uma relação, ao mesmo tempo, em que se daria prosseguimento ao tratamento. Os caminhos apontados por Freud podem servir como recomendação para profissionais de outras áreas. Diante de uma situação de enamoramento na área de cirurgia vascular e endovascular, o profissional deverá analisar cuidadosamente se a relação profissional-paciente assim como o trabalho s ser desenvolvido ficarão ou não prejudicados por tal enamoramento. Tal como na psicanálise, questões éticas e técnicas se colocam nessas situações. Este é um fenômeno que pode ocorrer em todas as relações profissionais, porém o profissional deve ter claro que o enamoramento não se dá pela sua pessoa, mas em função da estrutura da relação, por ser ele o profissional quem escuta, quem cuida, quem dispensa seu tempo. Tal fenômeno pode ocorrer em qualquer relação profissional-paciente. O analista, assim como qualquer profissional, pode ocupar o lugar de alguém que é importante e é o que faz com que o paciente deposite nele todo seu amor, o amor transferencial ou amor de transferência. Para Freud (1912), "Todo amor é um amor infantil, portanto todo amor transferencial é infantil". Em 1914, Freud publica “Recordar, repetir e elaborar”. A importância deste texto se deve ao fato de apontar o trabalho básico no tratamento analítico, considerando a rememoração, a repetição e a elaboração. A repetição transparece na transferência, pois em vez do paciente recordar algo, atua, ou seja, repete seu saber sem saber que está repetindo. Fica clara a presença da transferência neste momento, pois ela é um fragmento da repetição e essa transferência é um fragmento do passado esquecido. Tendo-se como referência a leitura deste texto, compreende-se que, ao se manejar a transferência, se tem como principal instrumento a ser trabalhado a compulsão para repetição do paciente e transformála em recordação. Em 1915, Freud publica o texto "Observações sobre o Amor Transferencial", onde faz considerações acerca do amor presente no fenômeno da transferência. Segundo Freud ((1915),1969, p.213), “... o analista nunca deve, em quaisquer circunstâncias, aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são oferecidos...”. Considerando-se as relações com pacientes, isto vale para qualquer área profissional, como dito anteriormente neste trabalho. 64 Se a demanda amorosa da analisante for retribuída, seria uma vitória para ela, contudo, uma verdadeira falência para seu tratamento. Não existe uma conduta modelo para se trabalhar a transferência, o que se tem são cuidados no manejo de tal transferência. Não se pode retribuir ou recusar, deve-se manter o domínio de tal amor, tratá-lo como algo irreal, mas necessário ser vivido e trazido para sua consciência, para ser trabalhado sob o manejo do analista. O analista se coloca como alguém que não é suscetível a esses desejos. Com isso, se estabelece uma confiança para que suas questões venham à tona junto com suas raízes infantis amorosas. É possível através do trabalho analítico se desvendar a escolha objetal infantil da analisante e as fantasias criadas ao seu redor. Para que esta investigação seja possível, o analista não deve responder às demandas de amor do paciente. Por isso se diz que trata-se de um amor esvaziado. “Para o médico, motivos éticos unem-se aos técnicos para impedi-lo de dar à paciente seu amor” (FREUD (1915), 1969, p.219). Isto não é tarefa fácil, mas necessária a todo analista. Para o homem é difícil resistir a idéia de se envolver com uma mulher que declara seu amor por ele. Por vezes, pensa-se em esquecer sua técnica, ética e missão em prol de viver essa experiência. O termo transferência possui algo característico, por promover um consenso entre todos os psicanalistas, pois, independentemente da linha que se siga, todos concordam com esse princípio, como sendo a mola mestra da cura. Em 1920, Freud publica: “Mais-além do princípio do prazer”, onde se refere ao caráter repetitivo da transferência, constatando que essa repetição sempre se referia a fragmentos da vida sexual infantil. Ele ligou a transferência ao complexo de Édipo e já havia concluído no texto “Recordar, repetir, elaborar” que a neurose original era substituída, na análise, por uma neurose artificial, ou “neurose de transferência”. A neurose de transferência é artificial, ela começa na análise e termina quando a mesma se encerra. Em 1920, concebe a psicanálise como a arte de interpretar, como um acesso a um território inabitável, o inconsciente, que se expõe para que possa ser decifrado e com isso alcançar a cura. Segundo Miller (1987), a transferência aparece sempre como um conceito evanescente, que se confunde com os outros conceitos, que se confunde em um 65 sentido com a repetição, em outro com a resistência e com a sugestão em um terceiro sentido. Em 1937, Freud escreve: “Análise terminável e interminável”, onde procurou vincular a transferência ao término da análise. Pode-se pensar o término da análise pela via do objeto, ou seja, quando o analista cai do lugar ocupado por ele até então de objeto causa de desejo, o que resulta de um desfecho da transferência. Em 1938, Freud escreve seu último artigo, "Esboços da psicanálise", ao contrário dos outros escritos, este não era destinado aos leigos, mas sim aos que se intitulavam psicanalistas, ou estudiosos de suas obras. Este texto faz o que se pode chamar de um sobrevôo panorâmico pela totalidade das obras de Freud, apesar de ter sido publicado inacabado, mas com sua teoria madura e revisada. Nele é ressaltada a ambivalência da transferência, como sendo uma repetição da vida infantil, que se apresenta no momento em que o analista é colocado no lugar de autoridade, de pai, mãe, trazendo-lhe uma mistura de sentimentos, ternos, afetuosos, assim como os hostis. Freud destaca a transferência como a principal fonte motivadora da colaboração do paciente no tratamento. 4.3 Os avanços com Lacan Jacques-Marie Émile Lacan, era francês, iniciou sua formação como médico neurologista, contudo, posteriormente migrou para psiquiatria. Nasceu em Paris em 13 de abril de 1901 e faleceu em 9 de setembro de 1981, em Paris. Lacan faz uma releitura das obras completas de Freud e trouxe importantes contribuições para a psicanálise. Lacan para falar sobre transferência, dedicou seu “Seminário 8” a este tema entre os anos de 1960 e 1961. Lacan (2010) define a transferência como alguma coisa que se assemelha ao amor: A transferência é algo que põe em causa muito profundamente no que se refere à reflexão analítica por ter introduzido nela, como uma dimensão essencial, aquilo a que se chama a sua ambivalência. Se o sujeito busca encontrar na análise o que tem e não conhece, o 66 que vai encontrar é o que lhe falta, a saber, seu desejo. (LACAN (1964), 2010, p.88, 89). Para Lacan, a transferência se encontra em uma fronteira entre o desejo e o amor. Ela seria um amor genuíno, como relata Freud, mas ao mesmo tempo falso. Na metáfora do amor, Lacan utiliza duas palavras érastès, seria o amante, o desejante e érôménos seria o amado, o desejado. O analista por disponibilizar seu tempo para ouvir o outro, se torna, muitas vezes, o desejado, o amante. A transferência pode se tornar um obstáculo, uma resistência para a comunicação do inconsciente, em contrapartida, é ela que possibilita o acesso ao inconsciente, se torna algo ambíguo. Por trás do amor de transferência existe uma afirmação do vínculo do desejo do analista com o desejo do paciente, estes são processos inconscientes. A saber, qual a nossa relação com o ser de nosso paciente? Sabese bem, afinal, que é isso que se trata em análise. Nosso acesso a esse ser, será ou não do amor? O fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: O amor (LACAN (1964), 2008, p.54). Para Lacan (1964), o amor de transferência é sem dúvida um efeito do processo, mas em fase de resistência. Diz respeito ao amor, com a demanda de ser amado que se articula e como este será acolhido, tratado, em que a psicanálise se diferencia de outros métodos. Um fenômeno que está presente em todas as relações onde o amor se evidencia, mas a sua análise é a condição para o progresso do tratamento psicanalítico. Através da transferência a psicanálise se viabiliza como método de tratamento e será condição preliminar para o seu início. Lacan concebe duas vias em relação à transferência: a via imaginária e a via simbólica. Quando se trata da via simbólica na transferência nos referimos a dois significantes: um que representa o analisante e o outro que representa o analista. Lacan formulou um matema para a transferência. Desta forma, a constituição da transferência passou a ser representada pelo seguinte algoritmo: 67 S Sq s (S1, S2... Sn) Explicando o matema da transferência elaborado por Lacan, temos: no numerador, S indica o significante da transferência, ou seja, é o significante do analisante que se articula a um significante qualquer do analista, o qual é representado na fórmula por Sq. No denominador, encontramos a representação da associação livre. O conceito de transferência sofreu acréscimos com Lacan, e este situa no seu fundamento, uma função inédita em Freud, que é a do sujeito suposto saber, como sendo o pivô de tudo que se articula em relação à transferência. Segundo Lacan (1950), “o sujeito suposto saber é para nós o pivô no qual se articula tudo o que se relaciona com a transferência”. Em análise seria o girar em torno da mesma questão, do mesmo pivô. O analisante coloca o analista no lugar do sujeito suposto saber; para ele o analista sabe tudo, é um ser intocável, porém ao longo da análise ele percebe que não é bem assim, mas a transferência já foi estabelecida com base nessa suposição. A análise se inicia com um amor dirigido pelo paciente ao analista. Trata-se de um amor ao saber, saber suposto ao analista e por essa razão o lugar que este ocupa neste momento da análise é designado como sujeito suposto saber. Lacan não tinha como objetivo reinventar a psicanálise, mas formular questões sobre as suas condições de possibilidades. Demonstrou então que o descobrimento sobre o inconsciente por Freud só encontra conexão através da proposição de que o inconsciente está estruturado com uma linguagem. Segundo Lacan: “O analista exerce uma pressão sobre o inconsciente pela própria oferta que faz de escutar o paciente, escutá-lo a medida que diz qualquer coisa”. (LACAN (1953), 2009, p.238). Lacan não faz mudanças na teoria de Freud sobre a transferência, na verdade, ele acrescenta o que seria o amor transferencial e o sujeito suposto saber, contudo, a idéia principal permanece. Em 1953, em “Função e campo da palavra e da linguagem”, Lacan descreve a transferência como sendo uma repetição. Mais tarde, quando escreve “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, onde retoma o assunto e funda a transferência como sendo uma consequência imediata da regra fundamental para 68 psicanálise, um dispositivo da cura. Neste momento fica claro o lugar do sujeito suposto saber, ele é apresentado ao paciente pelo analista no início de sua análise, para que possa ocorrer o discurso livre, pode-se dizer que é o princípio constitutivo da transferência. Por vezes, o analisante pode estar decepcionado com seu analista, mas, isto não o impede de vê-lo como sujeito suposto saber. O sujeito suposto saber, segundo a teoria de Lacan, seria uma consequência imediata da estrutura da situação analítica, ou seja, do discurso analítico. Vista por esse prisma a transferência seria um fundamento transfenomênico dela mesma, resultando para o analista a postura de ouvinte de um discurso livre, que foi estimulado pelo mesmo. O analista se coloca na posição passiva, pois quem vivencia a experiência de análise é o paciente. O analisante traz o material e o analista tem a função estrutural de recebê-lo, escutá-lo, apreciá-lo, e em algumas ocasiões, interpretá-lo. Esse lugar que ele ocupa pode ser chamado de amo da verdade, contudo, tem-se que ter muito cuidado com esse o ponto decisivo da teoria de Lacan. O analisante busca sua verdade na fala, fala essa dita de forma livre e entregue ao analista, entregue ao grande Outro, ao ouvinte que se torna fundamental para decidir sua significação, este é o lugar que o analista se coloca neste momento. Para que isso ocorra, se faz necessário o silêncio, para que se tenha a escuta, por isso o silêncio é tão importante, a escuta é essencial. É essencial para o analista que não se deixe seduzir pelo lugar do sujeito suposto saber, pois este pode ser confortável. O analisante coloca seu analista neste lugar, mas o analista o recusa. Segundo Miller (1987), “A grandeza do psicanalista é, no sentido de Lacan, consagrar-se, pelo contrário, a permanecer no lugar de desejo”. Quando Lacan fala de desejo, ele se refere ao surgimento de um deslizamento no significante, no deslocamento de um objeto para outro, pois nenhum objeto é capaz de completar o sujeito, pois a falta precisa existir sempre. Contudo, para que isso ocorra, para que se passe de amor para desejo, se faz necessário que o analista esteja sendo regido pelo seu desejo, pelo desejo do analista, que seria apenas o desejo de analisar, fazer com que o sujeito tenha seu próprio desejo, desejar que o seu paciente caminhe para associar livremente. Desta forma, se propicia a cura do amor ao desejo, retirando-se do lugar de ideal para ser apenas um resto, essa é a tarefa do analista, o que nos remete ao que 69 Freud fala no seu texto “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” ((1912), 1969, p.129): “Um cirurgião dos tempos antigos tomou como divisa as palavras: Fiz-lhe os curativos: Deus o curou. O analista deve contentar-se com algo semelhante” Lacan acrescenta que ao final da análise há um luto, considerando de certa maneira a perda do objeto, o abandono do psicanalista, mas paradoxalmente, este deve permanecer no lugar de causa de desejo. Retomamos neste ponto o que também foi uma contribuição de Lacan: a transferência de trabalho, já apresentada anteriormente nesta pesquisa. A transferência de trabalho, não é como o nome pode indicar, transferir o trabalho para o outro. Ao contrário, a transferência de trabalho é concebida a partir do próprio conceito de transferência, central no tratamento psicanalítico, contudo como um instrumento do trabalho entre pares. Seria a condição do estabelecimento de um laço produtivo entre pares visando, por um lado, o fazer clínico e, por outro, a produção de saber que lhe é conseqüente. A transferência que deve operar no trabalho em equipe deve ser norteada pelo fato de que há um objetivo comum às diferentes profissões, que é uma determinada concepção da clínica pautada no sujeito. 4.4 Transferência e a prática hospitalar A psicologia hospitalar se constitui como um campo de atuação para o psicólogo em hospitais. Segundo Alfredo Simonetti (2006, p.15), em “Manual de psicologia hospitalar”, afirma que: A psicologia hospitalar é o campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento, seu objeto de trabalho não é só a dor do paciente, mas também a angústia declarada da família, a angústia disfarçada da equipe e a angústia geralmente negada dos médicos. (SIMONETTI (2004), 2006, p.15). Dentro de um hospital, as demandas são dirigidas ao psicólogo ou analista de uma forma pouco convencional, diferente do consultório. Assim, ele a qualquer momento pode ser chamado por conta de uma angústia que emerge no contexto da enfermaria. O apelo: “Chama a psicóloga”, só é possível devido a construção desse 70 lugar ocupado pelo psicólogo ou analista. Essa seria a inserção desses profissionais no hospital, a inserção de um outro saber que não é o do médico, mas que faz-se necessário. Para a psicanálise o sujeito é um “sujeito-a-ser”, ele não é completo, é um ser de linguagem, ele se constitui pela linguagem. A linguagem é a matéria prima da psicanálise, o que importa é o que foi dito e aquilo que se quis dizer num discurso livre, na associação livre. Segundo Quinet (2007), é a partir da transferência que ocorre a presentificação da realidade do inconsciente enquanto sexual e o seu estabelecimento é correlato à delegação àquele que é seu alvo de um bem precioso que causa o desejo, causando, portanto a própria transferência. Com base na psicanálise, a transferência é uma estratégia para se alcançar os objetivos desejados na prática hospitalar. Para Lacan (1958), a estratégia é definida no campo da transferência, contudo, para Freud ela ocupa o eixo central da experiência analítica. O que fica claro na prática hospitalar é que a transferência inicialmente não é direcionada especificamente ao profissional. O encontro com o profissional é, por vezes, promovido por outra pessoa, como por exemplo um enfermeiro, um assistente social, com quem já foi construído um vinculo transferencial. Não se pode deixar de referenciar o lugar que o médico ocupa e que muitas vezes, no contexto hospitalar, a transferência ocorre primeiramente dirigida a esse saber médico. Porém, pelo médico não lidar com sentimentos conscientes e inconscientes, o psicanalista é chamado a intervir para que possa reconhecer e manejar a transferência. Um dos propósitos é implicar o paciente no seu tratamento. Através da palavra abre-se um espaço e aposta-se na reconstrução desse campo simbólico. A palavra pode ser utilizada como uma sutura da cadeia dos significantes e acreditar na eficácia dessa palavra é possibilitar que o sujeito reconstrua sua história e suas representações. Quando algumas perguntas são utilizadas nos atendimentos como: “O que aconteceu? Como chegou até aqui?”, pode-se considerar como um convite, quase irrecusável, para que se abra o campo da fala, da palavra. Isso seria a grande aposta no sujeito. Uma fala dos profissionais, interessante e comum no hospital é: “Não temos mais nada o que fazer, tudo já foi feito, ele não escuta, não entende, não obedece”. 71 Para a medicina, para a ciência, realmente talvez não se tenha mais nada a ser dito, mas para psicanálise, sempre “há algo a ser dito”. Ocorre então um grande confronto que o analista enfrenta no hospital, o tempo da instituição e suas normas e o tempo subjetivo, o tempo do sujeito. Neste impasse a única certeza que se tem é de que não se pode pressionar o sujeito, contudo, isso implica em considerar o tempo subjetivo. Segundo Moura (2002, p.77), “Cabe ao analista instaurar a pausa na pressa sustentando a enunciação”. Neste momento podem emergir falas significativas, pois, ao analista cabe sustentar o campo da subjetividade e da singularidade do paciente, isso pode ser visto como um respaldo, uma segurança que vai propiciar a fala, a associação livre. Percebe-se claramente a transferência instalada. Segundo Moura (2002), o hospital é como um “Real insuportável” que questiona o psicanalista em sua função. Ao sermos confrontados com esse insuportável, ou seja, essa dor, sofrimento e morte, somos convidados a incorporar um saber sobre o que fazer e dizer. Mesmo não possuindo esse saber, nos é depositada esta certeza de tê-lo. O que fica claro é que temos um lugar de saber específico e só podemos intervir nele através da fala. Quando existe o desejo do sujeito em falar, é nosso papel escutar o que o mesmo quer dizer, oferecermos nossa escuta para acolher seu discurso, respeitando suas particularidades e subjetividades, podendo apontar neste, sua vivência, sua história, resgatando sua implicação e responsabilidade com sua patologia. O inconsciente do sujeito está para além do real do sintoma no corpo, expressando em seu adoecer, as marcas de sua história que dizem respeito ao seu singular. Essa escuta se torna a única ferramenta que propicia o emergir da verdade do sujeito e ela acontece a partir da transferência estabelecida, sendo esta, permeada pelo princípio da neutralidade e da abstinência. Esta abstinência é recomendada por Freud (1912), em “O amor de transferência”. Segundo ele, o analista deve permanecer em posição de abstinência, não como passividade, mas no lugar de um saber ético que direciona o tratamento e o sujeito até seu próprio saber sobre si e seu desejo, esse caminho ocorre no convite a produzir a associação livre na fala. Este trabalho é uma reflexão à luz da psicanálise, frente aos atendimentos, por vezes, desafiadores aos pacientes hospitalizados na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular, que em seu contexto, apontam a importância da 72 transferência na condução dos casos. O que se tem é um corpo modificado fisicamente por uma mutilação, uma cirurgia inevitável, contudo, é entrevisto um investimento libidinal que marca o campo transferencial. A história se modifica, o que antes era primordial, agora não parece ser tão importante, outra parte de seu corpo ganha uma importância imensa, e por vezes é como se sua vida passasse a girar ao redor deste coto, deste pedaço de perna que traz e faz uma nova história. A experiência da amputação é como algo que todo o tempo lhe é questionado por essa nova vivência, essa nova imagem corporal. A cada cirurgia as dores se repetem, com valores, crenças, significantes diferentes, histórias de vida distintas, mas com alguma coisa em comum. Em todos os casos, a transferência é a estratégia que facilita ou dificulta a condução do tratamento e que deve ser considerada para que sua via de facilitação prepondere e se imprima de forma positiva nas práticas hospitalares. 4.4.1 Um Caso Clínico A paciente que aqui chamaremos Ana, do sexo feminino, negra, 52 anos, casada, dois filhos, residente do Estado do Rio de Janeiro, em uma comunidade, hipertensa, diabética, não tabagista, começou seu tratamento na Unidade de Cirurgia Vascular e Endovascular do Hospital Universitário Pedro Ernesto – HUPE/UERJ com a doença em estágio avançado por volta de fevereiro de 2007. Para nossa enfermaria ela é considerada uma paciente jovem. O atendimento da paciente teve início no dia seguinte de sua internação, devido à gravidade de seu diagnóstico, por solicitação da equipe médica, e teve um ano e quatro meses de duração. Nas entrevistas iniciais, observou-se que apenas a paciente apresentava demanda para acompanhamento, contudo, no decorrer da internação prolongada, sua filha solicitou, por vezes, ser ouvida. A paciente se encontrava com humor estável, lúcida e orientada. Reclamava de muitas dores em sua perna direita, na qual se encontrava a patologia, Ana estava com suas artérias totalmente comprometidas. A mesma foi submetida a um revascularização, contudo, o enxerto parou após 36 horas e isto comprometeu sua perna. 73 Ana era cozinheira, trabalha em casa e era a provedora financeira da família, seu marido era pedreiro e segundo ele, não dava sorte nos trabalhos. Seus filhos com 16 anos (menino) e 14 anos (menina), apenas estudavam. Ana trazia em seu discurso uma vontade e necessidade de viver, pensava todo o tempo em seus filhos, aceitava todo o tratamento sem questionar, tinha consciência que as medicações eram necessárias e as cirurgias também. A transferência se faz presente e constatamos a constituição do Sujeito suposto Saber, tal como formulado por Lacan como pivô da transferência. Ao aceitar o tratamento médico proposto, reconhecendo a necessidade das medicações e cirurgias, atribuía aos profissionais um saber. É importante ressaltar que o profissional não deve responder de um lugar de saber absoluto, para que possa permanecer numa atitude investigativa, questionando e levantando novas hipóteses no trabalho com o paciente. “Sei que vou ficar boa e vou voltar a trabalhar, preciso do meu corpo bom e quando sair daqui vou fazer umas coisas gostosas e trazer para vocês.” Após dois meses, Ana foi para casa com medicação na esperança de suas dores cessarem e não ter que passar por mais cirurgias, contudo, isso não ocorreu e ela retornou, com uma úlcera no pé que antes era pequena, agora se tornara significativa. “Senti saudade e voltei, mas não deu para trazer nada, mas da próxima vez trago, mas vou voltar só para visitar.” Ana tinha total certeza que ficaria boa e tentava todo o tempo agradecer com suas promessas de guloseimas, como se isso garantisse o seu tratamento. Questionei-lhe várias vezes sobre isso, se tudo que o outro fazia por ela tinha que ser porque ela lhe proporcionava algo, se ela precisava pagar todo o tempo por tudo... Ela me disse que em sua vida tudo sempre foi pago, ela sempre precisou pagar tudo e não sabia ser diferente... A paciente oferecia suas guloseimas constantemente, como se estas fossem uma forma de pagar, presentear a equipe que a cuidava. Este é um sinal da presença do fenômeno da transferência. A doença se agravou e a vida de Ana começou a correr um risco importante. A equipe antes de pensar na amputação supra-patelar (acima do joelho), optou por fazer uma angioplastia e assim foi feito, o resultado foi o esperado, sua perna foi 74 salva, após 16 dias teve alta, foi embora abraçando a todos e prometendo um mundo de coisas gostosas... Passaram-se 27 dias e Ana retornou com dores insuportáveis, ao se deitar no leito forçou sua perna e a artéria rompeu e começou a jorrar sangue continuamente, rapidamente foram chamados os residentes e o sangramento foi contido, seu leito limpo e medicação ministrada para dor. No dia seguinte Ana foi submetida a exames e verificou-se que o “stent” havia infeccionado e sua retirada deveria ser imediata. Sua perna novamente estava em risco. Até então Ana trazia histórias de sua vida bem humoradas, não se permitia ser vista como alguém frágil, segundo ela, não tinha problemas, vivia no mundo cor de rosa e bolinhas azuis. A partir desse episódio, ela se tornou mais sensível ao falar do desejo de ver seus filhos formados, deles poderem traçar uma vida diferente da dela, não falava muito de seu marido, dizia que ele havia lhe dado o que tinha de mais importante na vida, os filhos e pronto. O ““stent” ” colocado foi na altura da artéria femoral (um pouco abaixo da virilha), foi necessário que se abrisse a cirurgia para que se pudesse lavar o local até se chegar a artéria e consequentemente ao “stent”. Esse procedimento era feito na enfermaria pelo residente e eu o acompanhava por uma solicitação primeiramente dele, pois não estava conseguindo lidar com tal sofrimento naquele momento. No primeiro curativo, ao término, a paciente, me solicitou que estivesse presente nos próximos. Ana apertava minha mão com tal força que, por vezes, eu tinha a impressão que iria quebrá-la, suas lágrimas eram de total desespero, e tanto o residente quanto eu, não tínhamos como aliviar suas dores, apenas lhe dávamos apoio. Essa rotina se repetiu durante cinco meses de segunda a segunda, nós, o residente e eu, combinávamos os horários e íamos juntos, Ana solicitou que fossemos sempre nós dois a realizar tal tarefa. Neste momento fica clara a transferência que se estabeleceu com a psicóloga e com o médico, sua confiança era notória, se percebe que a paciente coloca esses profissionais no lugar do Sujeito suposto Saber. Solicitei então ao meu chefe (chefe da equipe) que isso fosse possível, pois existe o rodízio dos residentes e ao perceber a importância, ele concedeu. 75 Após o curativo, Ana sempre nos chamava de anjos por cuidarmos dela, nos agradecia com lágrimas, não mais de dor, mas de gratidão. “Vocês são meus doutores, meus anjos, obrigada...” Ana, por vezes, já no final do curativo, quando a dor era menos intensa, ela brincava, nos fazia perguntas indiscretas e ficávamos, por vezes, sem graça, e isso era uma diversão para ela, sempre pedia desculpas depois e no final tudo terminava em um clima muito harmonioso, apesar das dores. Ana nunca se queixava, para ela tudo estava perfeito, em seus relatos trazia o desejo de voltar para casa e o medo de morrer, começa a aparecer... Sua determinação e força para ficar boa eram o que lhe sustentavam... Começamos a falar da finitude, da possibilidade da perda da perna e isso lhe trazia pânico, foram atendimentos intensos, chegando a dizer: “Não me deixe morrer, corte tudo, mas preciso dos meus braços para trabalhar, por favor, me cure me ajude, você pode, você estudou e sabe de tudo, você é um anjo, o meu anjo, nunca tive ninguém que cuidasse de mim com tanto carinho, ninguém nunca me ouviu tanto, me cura.” Esta fala indica uma transferência favorável ao tratamento. Ana sempre me chamava de anjo, por mais que lhe dissesse que não era, ela mantinha sua fala e brincava dizendo: “que eu tinha até asas e podia voar...” Os ditos dessa paciente apontam claramente a constituição do Sujeito suposto Saber: “.você estudou e sabe tudo...” A equipe de profissionais ocupa um lugar idealizado, o que se evidencia em vários momentos de seu discurso, como por exemplo ao dizer que um dos profissionais tinha até asas e podia voar. A necessidade de colocar o outro no lugar do Sujeito suposto Saber, além de ter alguém que seja um ser intocável, alguém superior. Ana tinha um olhar muito expressivo, em muitos momentos não eram preciso palavras, apenas me olhava, apertava minha mão e eu lhe dizia: “Imagino o quanto está difícil, mas você não está sozinha, tem toda uma equipe lutando junto com você”, ela abaixava os olhos e balançava a cabeça sem conseguir dizer uma palavra verbalizada, seu silêncio já havia dito tudo. Ana precisou de uma medicação que não era fornecida pelo hospital, a equipe se viu desolada, pois, uma paciente que amava a vida e desejava acima de tudo ficar boa, iria ter sua finitude antecipada por falta de dinheiro para comprar. 76 Nosso chefe então fez uma proposta para equipe, havia conseguido 70% de desconto com o laboratório, mas os outros 30% ainda eram caros, então propôs para equipe que eram em número de quatorze (entre cirurgiões e a psicóloga) que se responsabilizassem e assim foi feito e Ana teve sua medicação por vinte e cinco dias, tudo para salvar o “stent” e conseqüentemente sua perna. Durante todo esse processo, essas questões eram trabalhadas e lhe era esclarecido que todo o possível estava sendo feito, Ana apenas dizia: “Não sei como agradecer tudo que fazem por mim, não sou ninguém, vocês não me conhecem, nunca fiz nada de bom para nenhum de vocês e cuidam tão bem de mim, obrigada, vocês são anjos.” Ao se referir a equipe como anjos, a idealização aparece novamente direcionada para todos da equipe. Ao solicitar a presença da equipe junto a ela, também é um sinal de que a transferência estava presente. Infelizmente todo esforço não trouxe o resultado esperado e após sete meses de internação Ana perdeu sua perna na altura da coxa, uma amputação supra patelar. O sofrimento antes da cirurgia foi imenso, suas dores, o odor da ferida infectada, ela chegou a pedir: “Corta essa coisa podre, tira essa dor de mim, por favor, me ajudem.” No pré-operatório, sempre era trabalhado que o sujeito iria trocar um pedaço ruim por uma vida, se continuasse com aquele pedaço ira perder sua vida e com ela toda uma possibilidade de realizar tantos sonhos, desejos, objetivos... Ao mesmo tempo também era trabalhada a questão da prótese que só seria possível em média de seis meses a um ano, após a cirurgia, além de ter que reaprender a se locomover e ter que precisar da ajuda de terceiros para algumas coisas. Neste momento percebi um desespero pela primeira vez, pois relatou não poder contar com ninguém, seus filhos tinham cada um sua vida e seu marido, só sabia comer, dormir e transar. Este foi um momento de muita surpresa, pois Ana nunca havia falado de sua família dessa forma e sua maior preocupação com a amputação era se o marido iria querer transar com uma mulher sem perna: “Será que ele vai me querer sem perna, como vai ser, não vou conseguir me mexer...” 77 Ana gostava de pertencer à tribo dos casados e não se imaginava de outra forma. Seu marido ao perceber que o estado de saúde de sua esposa estava se agravando a cada dia mais, procurou emprego e conseguiu, inclusive de carteira assinada, sua filha começou a ficar com ela no hospital e seu filho a vinha visitar três vezes por semana. Essas mudanças no comportamento familiar trouxeram um grande acalanto para paciente. Chegou o momento da cirurgia, consegui adiar durante duas semanas para poder trabalhar essa família. No atendimento à família, pude perceber que apenas com a doença e a possibilidade da perda se deram conta do valor que essa mulher/mãe possuía. Acompanhei Ana até o centro cirúrgico, ela segurou minha mão, me olhou com olhos cheios de lágrimas e me disse: “Obrigada meu anjo, sei que fez tudo que pode, eu vou ficar boa, vou andar de perna de pau, meu coração não dói mais, você é o meu anjo, obrigada.” Neste momento também se percebe a transferência com a equipe. Sabemos com Lacan que na base da transferência está o desejo do analista. Este desejo supomos existir nos profissionais de outras áreas que sustentam seus tratamentos e que se constitui como condição de possibilidade para o estabelecimento da transferência. O profissional deseja que seu paciente continue a se tratar, o que contribui para a presença do amor de transferência, isto é, amor ao saber, saber dirigido a quem deseja que ele se trate. Na análise, espera-se a transmutação do amor em desejo. Supomos que em qualquer tratamento, espera-se também o aparecimento desse desejo de se tratar. Toda quinzena fazíamos o grupo com os profissionais, após esse episódio o mesmo começou a ser realizado toda semana. Ana se saiu bem da cirurgia, apesar de ser aberta, após cinco longos meses sua ferida estava fechada e poderia ir para casa. Seu medo de recomeçar era nítido em sua fala: “Como vai ser agora, como vou fazer as coisas, não sei se quero voltar, não sei se quero essa vida lá fora, posso ficar aqui?” Foram momentos complicados, Ana esteve para ter alta cinco vezes, mas conseguia ficar mais um pouco, por duas vezes sua pressão subiu e não foi liberada. 78 Sua sexta alta estava pronta e esta foi trabalhada com ela e toda equipe, a qual se emocionava por saber que aquela que vivia rindo e de bem com vida ia embora, mas era necessário, Ana precisava retomar sua vida, reaprender a andar, a se locomover, não existia mais propósito para permanecer internada, estava curada... “Meu anjo, você me curou, mas não quero mais ficar boa, me deixa ficar aqui...” Ana com seu carisma e carência conseguia seduzir a todos e acabava ficando... Ela não se queixava de nada, tudo estava perfeito, a imperfeição morava lá fora, fora do hospital... No dia de ir embora, Ana me disse que seu coração não iria aguentar: “Meu anjo, sei que tenho que ir embora, mas olha só, vou lhe contar um segredo, meu Deus veio me dizer que se eu sair daqui irei morrer. Me deixa ficar aqui com você, fico quieta, prometo, mas me deixa ficar, vai... Você pode..., Deixa, vai...” Neste momento ela perde o desejo de seguir, de caminhar, de andar de perna de pau, ela perde a coragem e isso pode ter ocorrido devido as questões que se apresentaram ao longo de sua internação, contudo se mantém a transferência com a psicóloga e ao mesmo com a instituição pela qual ela verbaliza o desejo de permanecer internada. Foi muito difícil dizer não para alguém que tanto tinha ensinado àquela equipe, nos momentos de dor imensa, seu humor nunca ia embora, nunca nos tratou com aspereza, nunca disse uma palavra áspera, sempre sorrindo, mesmo com lágrimas nos olhos, um ser que marcou a vida de todos nós... Sua família chegou e ela tentou novamente olhando para mim e para o Dr. Fábio: “Me deixa ficar meus anjos, se eu for vou morrer, me deixa ficar...” Essa certeza dela nos deixava confusos, mas ela foi sentada na cadeira de rodas, saiu da enfermaria chorando, deixando todos emocionados, entrou no elevador e teve um enfarto, voltou para enfermaria correndo com um enfermeiro que estava acompanhando outra paciente, neste momento todos ficaram em choque apenas nos lembrávamos de suas palavras, tudo foi feito, Ana olhava para a equipe que se movimentava freneticamente com os olhos cheios de lágrimas e então ela disse com toda calma que era apenas dela: “Obrigada meus anjos...” 79 Ana é lembrada até hoje pelos que passaram por sua vida como uma paciente singular, alguém que nunca estava zangada, vivia de bem com a vida... Numa prática hospitalar constata-se a importância do estabelecimento de uma transferência que, ao atribuir um saber ao profissional, permita a continuidade do tratamento. Mesmo que tal transferência não possa ser manejada tal como no dispositivo analítico, é importante criar e manter condições para sua presença, facilitando assim a relação do paciente com os profissionais e, consequentemente, favorecendo as ações terapêuticas necessárias. 80 5 CONCLUSÃO A presente pesquisa teve como objetivo principal rever uma experiência de humanização, à luz da psicanálise, na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A inserção deste tema no Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, que se caracteriza essencialmente pela prática interdisciplinar, é bastante pertinente, considerando-se tanto a psicanálise quanto a Política Nacional de Humanização. Desde a sua criação, a psicanálise caracteriza-se pela interdisciplinaridade, enlaçando-se a outras áreas do saber, como a neurologia, psiquiatria, antropologia, filosofia, linguística, etc. Da mesma forma, a Política Nacional de Humanização propõe uma troca de saberes para melhor atender a cada paciente. A humanização não é feita de regras, mas sim de princípios e bases, cujo nascedouro pode ser constatado, neste estudo, através da reconstituição histórica da trajetória da saúde pública no Brasil. Esta pesquisa evidenciou que existem estratégias para se efetivar a Política Nacional de Humanização e dentre elas, supomos que a transferência, conceito fundamental da psicanálise, constitui-se em importante estratégia na prática desta política. Portanto, a hipótese norteadora desta pesquisa pressupõe o fenômeno da transferência, tal como é concebida no campo da psicanálise, como estratégia fundamental na prática da Política Nacional de Humanização, uma vez que encontra-se presente em todas as relações humanas, determinando sucessos e insucessos no campo profissional. A humanização é um conjunto de medidas que englobam as condições físicas; as relações entre os profissionais; os laços entre os membros da equipe de saúde; os pacientes e seus familiares; e o cuidado aos usuários e seus familiares. Essas intervenções visam, acima de tudo, tornar efetiva a assistência ao indivíduo adoecido, considerando-o como um ser bio-psico-social. Os recursos propostos pela Política Nacional de Humanização emparelhamse com diversas concepções da psicanálise, tais como a função da palavra, tanto do paciente quanto do profissional, a valorização da singularidade e a importância da transferência. Sabendo identificar a presença da transferência, com seus aspectos facilitadores e impeditivos em qualquer tipo de tratamento, os profissionais de saúde estarão melhor equipados para manejar muitas situações com as quais se deparam 81 no cotidiano hospitalar, decidindo outros rumos no tratamento, como por exemplo modificar o modo de abordar o paciente, buscar outra forma de apresentar a terapêutica necessária, ou mesmo dirigir o paciente para outro profissional. O que a transferência nos ensina é que em toda relação profissional há algo representativo do paciente, da sua história, do seu desejo que se presentifica no tratamento, facilitando-o ou dificultando-o. A presente pesquisa é classificada como qualitativa, inserido-se, assim, na série das investigações psicanalíticas. Neste tipo de pesquisa, os relatos e testemunhos, seja de profissionais, seja de pacientes, são procedimentos importantes na validação da hipótese de trabalho. Constatamos, nesta pesquisa, relatos de pacientes que demonstram um saber dirigido aos profissionais. Identificamos demandas de membros da equipe de profissionais, evidenciando a presença de uma transferência de trabalho que os fez solicitar a permanência na equipe. Os relatos e os testemunhos colhidos através desta pesquisa nos mostram a presença do pivô da transferência que é uma suposição de saber dos pacientes dirigida aos profissionais; a evidência de transferências de trabalho entre os profissionais; e ainda a presença de um amor que podemos nomear de amor transferencial. Estas observações são evidências que validam nossa hipótese de trabalho: o fenômeno da transferência constitui uma importante estratégia na condição de qualquer tratamento na área de saúde e encontra-se nas enunciações da Política Nacional de Humanização. Desenvolver esta pesquisa para repensar o projeto de humanização na enfermaria de cirurgia vascular e endovascular, à luz da psicanálise, é um testemunho do desejo de contribuir para uma relação ainda melhor entre pacientes e profissionais. Este desejo é fruto de uma transferência de trabalho. 82 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO HUPE.HUPE-Hospital Universitário Pedro Ernesto-UERJ: Ontem e Hoje.Gráfica UERJ, maio 1991. BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. História das políticas de saúde no Brasil: A trajetória do direito à saúde. In: CORRÊA, Gustavo; MOURA, Ana Lúcia (Orgs.). Políticas de saúde: A organização e operacionalização, 2009. BARRETO, José Augusto. São Lucas Clínica e Hospital 40 anos. Aracaju: Editora Gusmão Comunicação Integrada, 2009. BASTOS, Angélica, FREIRE Ana Beatriz. A prática entre vários: princípios e aplicação da psicanálise. In: SANTOS, Tânia C. dos (Org). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada.Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. 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Justificativa: A transferência atravessa todas as relações humanas e, por esta razão, entende-se que ela esteja também operando nas relações que se estabelecem nas unidades de saúde, podendo influir diretamente na condução e na adesão ao tratamento. Além disso, na prática hospitalar pode-se perceber a importância dos profissionais adquirirem mais instrumentos para o aprimoramento das práticas de humanização no atendimento. Esta pesquisa oferece como contribuição, e as considerações e articulações feitas entre o conceito de transferência e a Política Nacional de Humanização, fundamental esta proposta de multiplicar através de palestras estas considerações para os profissionais envolvidos nas práticas em unidades de saúde. Público a ser atingido: - Profissionais de saúde; 90 - Profissionais de outras áreas envolvidos na assistência a pacientes em unidades de saúde. Conteúdo: ¾ A Política Nacional de Humanização; ¾ A humanização no ambiente hospitalar; ¾ Uma experiência de práticas de humanização numa unidade pública de saúde; ¾ A Transferência como instrumento para a política de humanização. Metodologia: Palestras em unidades de saúde e em eventos científicos, através de exposição oral e material audiovisual. Referências Bibliográficas: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília, 2000. _______. Ministério da Saúde. Núcleo técnico da política de HUMANIZA-SUS: Política Nacional de Humanização. Ministério da Saúde - Secretaria Executiva; Brasília; 2003. _______. Ministério da Saúde. HUMANIZA-SUS. Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. 4ª ed. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. _______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. 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