economia criativa, negócios culturais e gestão

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IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013
Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil
ECONOMIA CRIATIVA, NEGÓCIOS CULTURAIS E GESTÃO FINANCEIRA: O
BNDES E A INTEGRAÇÃO DO MERCADO AUDIOVISUAL BRASILEIRO
Elder Patrick Maia Alves1
RESUMO: Salta aos olhos, nos últimos anos, as mudanças político-institucionais devotadas
ao tratamento da cultura no âmbito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES). Este trabalho busca capturar a direção e o teor dessas mudanças. Os
documentos e os números publicados pelo banco atestam a progressiva institucionalização do
tema da economia da cultura e da economia criativa no interior da sua agenda institucional,
mobilizando um conjunto de justificativas que condensam criatividade, diversidade e
desenvolvimento. A reflexão é conduzida por um argumento de fundo: o BNDES, assim como
a FIRJAN, a FECOMÉRCIO, o SEBRAE e o MINC, buscam se locomover, potencializar e se
posicionar no interior de uma configuração mais ampla e decisiva, a expansão e
complexificação do capitalismo cultural brasileiro.
PALAVRA CHAVE: economia criativa, BNDES, mercado audiovisual.
1. Introdução: capitalismo cultural e economia criativa
Esta reflexão se inscreve no escopo geral das relações entre o domínio estético-expressivo
e o domínio econômico-comercial2, que perfazem uma regularidade sócio-histórica de longa
duração envolvendo economia e cultura. O primeiro abriga e engendra os processos criativos
e as diversas formas de experimentação artístico-culturais; já o segundo, infunde e
institucionaliza a racionalização técnica e o imperativo da lucratividade econômica. Caros à
reflexão sociológica, especialmente aquela levada a cabo pela sociologia da cultura após a
Segunda Guerra Mundial, esses domínios têm assumido contornos novos, plasmando objetos
empíricos e fenômenos econômico-culturais inéditos. É uma condição estrutural do processo
de modernização cultural abrigar, instaurar, potencializar e/ou acomodar as tensões
envolvendo o domínio estético-expressivo e o domínio econômico-comercial, ou seja, tais
aspectos são próprios da condição sociológica moderna. Em outros termos: as tensões, as
fricções e/ou acomodações envolvendo o domínio estético-expressivo e o domínio
econômico-comercial são corolários sócio-históricos do processo de aproximação e
1
Professor/pesquisador adjunto do Instituto de Ciências Socais (ICS) e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Líder do Laboratório de Investigações
Sociológicas (SocioLab) e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD/Cnpq).
E-mail: [email protected]
2
Este trabalho e os seus resultados são parte de uma ampla agenda de pesquisa, empreendida pelo Grupo de
Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD/Cnpq), intitulada Por uma economia simbólica do
entretenimento, coordenada pelo prof. Dr. Edson Farias (UnB/Cnpq).
1
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interpenetração envolvendo arte, técnica, mercado e memória, ocorridos desde a segunda
metade do século XIX.
Em recente trabalho publicado3, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy buscam fundamentar
aquilo que designam de cultura-mundo. Segundo os autores, a realidade global
contemporânea está atravessada, de ponta a ponta, pela consecução da cultura-mundo, cuja
dinâmica se estabelece a partir da expansão dos meios sociotécnicos de produção de imagens
e sons; da ampliação e diferenciação das múltiplas formas de consumo simbólico-cultural; do
volume de novos investimentos nos setores de turismo cultural e serviços de diversão e lazer;
a abertura de novas corporações que exploram os segmentos de moda, arquitetura e design;
dos negócios culturais espalhados pelo ciberespaço; da irreversível ampliação do mercado
publicitário,
que,
conjugados,
sedimentam
aquilo
que
os
autores
chamam
de
hipermodernidade ou capitalismo cultural. As assertivas de Lepovetsky e Serroy, aliadas as
descobertas de outros autores, concorrem para cristalizar a percepção acerca da
interpenetração cada vez maior entre o domínio do simbólico e a esfera econômica, não mais
como algo residual e secundário, mas como algo central às estratégias de ganho e expansão
econômica de empresas, companhias e grupos empresariais de diversos outros ramos da
economia contemporânea de serviços, permitindo, assim, o uso da categoria de capitalismo
cultural. Em uma palavra: as atividades artístico-culturais deixaram de ser apenas uma
ocupação e um vetor de atuação das empresas de comunicação e cultura especializadas, para
se tornarem atividades que interessam também às corporações industriais, às empresas
multinacionais e às diferentes organizações governamentais, como, por exemplo, os grandes
bancos de fomento, antes financiadores apenas das atividades industriais. Alteraram-se
significativamente os elos relacionais envolvendo arte, técnica e mercado e, por conseguinte,
os modos de se interpretar, intervir, planejar e legitimar esses feixes de relações.
À luz dessas assertivas, o conceito e o tema da economia criativa podem ser
pensados como uma consequência não programada e de longa duração sócio-histórica entre os
diversos atravessamentos envolvendo o cultivo e a valorização da sensibilidade artísticocultural e a racionalidade econômico-empresarial nas últimas três décadas. A profusão e a
aplicação do conceito/tema da economia criativa mundo afora e, especialmente no Brasil, está
escorada em um feixe de transformações: 1) o recrudescimento do processo de diferenciação
do consumo simbólico-cultural; 2) a profusão de uma nova ecologia sócio-técnica, que têm
coalhado o ambiente doméstico das famílias (miniaturização dos suportes e toda sorte de
3
A cultura-mundo, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, São Paulo, Cia das Letras, 2011.
2
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dispositivos digitais); 3) a instantaneidade das tecnologias da informação e da comunicação;
4) a valorização e legitimação das políticas culturais; 5) a utilização dos equipamentos
culturais para o reordenamento e valorização econômica do espaço urbano-imobiliário; 6) o
direcionamento de parte da nova racionalidade administrativa e empresarial para os negócios
culturais; 7) o aumento das práticas de lazer e fruição no ambiente doméstico e fora dele; 8) o
crescimento da proteção jurídica sobre a propriedade intelectual. Esse cipoal de processo
concorreu para plasmar um amálgama contemporâneo ainda mais indissociável entre o
domínio estético-expressivo e o domínio econômico-comercial, de onde derivou o conceito de
economia criativa. As consequências práticas dessas transformações têm elevado o poder e os
investimentos em torno do primeiro, projetando sobre o segundo novas práticas e valores. O
conceito/tema da economia criativa é um corolário desse direcionamento e dessa inflexão, e
tem, com efeito, contribuído para deslocar a balança de poder em direção ao primeiro
domínio. Os processos apontados acima concorreram, ainda, para transformar os códigos
ético-estéticos e o fazer artístico-cultural, produzindo uma nova hierarquia artístico-cultural e
uma mudança substancial no estatuto social da criatividade. Esse movimento levou, desde os
anos 80, a uma aproximação entre arte, tecnologia e entretenimento. Foi exatamente essa
aproximação que, aliado aos pontos mencionados acima, permitiu a advento de conceito de
economia criativa e toda a sua família conceitual: indústrias criativas, classes criativas,
cidades criativas, capital criativo, territórios criativos, distritos criativos e profissionais
criativos. Por sua vez, os processos de transmidiação, convergência e digitalização do
simbólico constituem a ossatura desse movimento, que permitiu, a um só tempo, aproximar
arte, tecnologia e entretenimento dos antigos negócios e mercados culturais, como o
cinematográfico, o publicitário, o televisivo e o editorial. Esses enquadramentos amplos
impactaram no modo como os empresários, os executivos, as empresas, as corporações, os
governos, os bancos, as agências estatais de desenvolvimento, as organizações não
governamentais (ONGs) e as instituições transnacionais passaram a olhar para as relações
entre cultura e economia.
Para compreender o processo de profusão e legitimação do tema e da categoria de
economia criativa e, por conseguinte, as suas implicações econômicas e práticas é necessário
tratar esse tema/categoria como uma formulação nativa. Essa visada metodológica permite
enxergar com clareza os usos teórico-práticos do conceito/tema de economia criativa, assim
como os distintos interesses político-institucionais que se acomodam e se formam em torno
do tema da economia criativa. Urdida a partir dos trânsitos relacionais entre as escolas de
negócios (notadamente europeias), os governos nacionais (principalmente o governo do Reino
3
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Unido e o governo australiano) e as agências transnacionais (como a UNESCO e a UNCTAD),
no decurso das duas últimas décadas, a categoria de economia criativa é uma síntese teórica
nativa, utilizada por uma miríade de novos agentes econômico-culturais para justificar e
implementar políticas econômico-culturais e, por conseguinte, a criação de novos negócios
culturais. Com efeito, importa tomar o conceito não como uma categoria analítica (forjada
pelo artesanato intelectual das ciências sociais), mas como um conceito (um meta-discurso)
mobilizado por diversos agentes econômico-culturais para justificar ações e ampliar o escopo
dos mercados culturais. Em outros termos: importa muito mais os usos práticos do conceito e
as suas implicações político-econômicas e muito menos o eventual potencial explicativo e
interpretativo do mesmo. Nesse sentido, é significativamente mais fecundo compreender
como os investimentos normativos, econômicos, políticos e culturais em torno da criatividade
e dos processos criativos têm alterado o estatuto social da criatividade e produzido uma nova
hierarquia artístico-cultural no Brasil, muito mais difusa e complexa.
Com efeito, sustentamos que a categoria de economia criativa é uma construção
simbólico-discursiva nativa, erigida em meio às transformações econômico-culturais das
últimas duas décadas. Seu núcleo de significado consiste em revelar, por um lado, a plêiade
de atividades e realizações artístico-culturais contidas em uma série de bens e serviços, por
outro, opera como registro discursivo capaz de engendrar novas práticas e fundos de saber
considerados eminentemente criativos. Assim, em uma frente empírica, a categoria de
economia criativa emerge como um desdobramento simbólico-conceitual decorrente do
crescimento da relevância econômica das atividades, bens e serviços culturais, produzindo um
novo regime discursivo acerca da esfera cultural, vicejando um agudo discurso culturalista no
ambiente empresarial-corporativo e governamental; em outra frente, a categoria de economia
criativa passa a ser, ela mesma, instauradora de novas realidades e dinâmicas econômicoculturais, pois é um tema/conceito que tem sido assaz utilizado para justificar e executar
políticas culturais em países como o Brasil. É precisamente esse o entrecruzamento que
envolve o tema da economia criativa, o crescimento do mercado audiovisual de conteúdos
brasileiros e a atuação político-financeira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES). Vejamos: por um lado, o BNDES tem institucionalizado e fortalecido os
seus mecanismos de financiamento dos bens culturais em razão do relevo econômico
assumido pelos mercados culturais em todo o mundo, cujo um dos resultados foi o surgimento
do conceito/tema da economia criativa e sua família conceitual; por outro lado, ao
institucionalizar o conceito/tema da economia criativa, mediante ações, programas e,
sobretudo, a gestão financeira do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), o banco dinamiza a
4
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própria economia criativa, os mercados culturais e, por conseguinte, o capitalismo cultural
brasileiro. Em face desses aspectos, a pergunta que anima este trabalho é a seguinte: de que
modo a categoria/tema de economia criativa vem sendo incorporada ao ambiente
organizacional e financeiro do maior banco de fomento do país e quais os impactos dessa
incorporação?
2. Criatividade, diversidade e desenvolvimento: o BNDES e a institucionalização da
economia criativa.
No Brasil, os principais agentes responsáveis pela disseminação do tema/conceito de
economia criativa (FIRJAN, FECOMÉRCIO, SEBRAE, MINC e BNDES) o fazem, por um lado,
em decorrência da profusão das políticas culturais e da pressão econômica assumida pelo
tema, e, por outro, o fazem buscando à devida acomodação do tema à suas missões e
interesses político-institucionais. Esse duplo movimento, que corresponde a um pêndulo
empírico e que, em outro trabalho4, buscamos capturar, se realiza no interior do processo de
expansão e complexificação do capitalismo cultural brasileiro. Com o BNDES não tem sido
diferente. Em 2006, o banco criou o Departamento de Economia da Cultura (DECULT), com
vistas a criar um espaço institucional dedicado ao tema, responsável pela implementação do
PROCULT (Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura), cujo eixo central foi o
financiamento da produção audiovisual, notadamente o cinema. Desde então, a capacidade
gerencial e financeira do banco tem sido empregada também para às especificidades dos
negócios culturais, o que, em grande medida, o credenciou para que, em 2011, o banco
assumisse a gestão financeira do maior fundo público de um setor cultural específico: o Fundo
Setorial do Audiovisual – FSA. O DECULT está dividido em duas gerências. A Gerência de
Comunicação e Cultura, que trata dos aspectos ligados ao patrocínio, através da utilização das
leis de incentivo ou de recursos próprios, e a Gerência de Investimentos, que destina, na
forma de empréstimos e créditos acionários, recursos para determinados segmentos, como
cinema, televisão e música. O BNDES atua a partir de quatro dispositivos operacionais de
fomento: crédito de longo e médio prazo a juros baixos para grandes empresas; participação
no capital de empresas, inclusive estatais; investimentos em fundos privados e públicos, que
envolvem, em geral, riscos; e, por fim, crédito de curto prazo para empresas de menor porte.
Todos esses dispositivos, a partir de 2006, mediante o DECULT, foram disponibilizados as
empresas de cultura e a produção cultural em geral. A primeira operação do DECULT foi a
4
Cultura e desenvolvimento: o advento da economia criativa. Elder P. Maia Alves (Org.). Maceió, Edufal/IPEA,
2013.
5
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liberação, em fevereiro de 2007, de R$ 7 milhões para construção de um complexo de
estúdios para a produção de filmes, espaços e espetáculos de exposição em São Paulo. O
DECULT apresenta um caráter bifronte, atua como patrocinador (inserindo o BNDES no
elenco das empresas patrocinadoras que lançam mão das leis de incentivo fiscal) e como
investidor, ou seja, como o empreendedor de determinados projetos culturais, que tem
participação nos lucros e nos ganhos econômicos. De 1995 e 2005, o banco atuou
predominantemente como captador de recursos da Lei Rouanet, lançando mão das
possibilidades de dedução dos impostos devidos para promover ações de patrocínio cultural
que buscavam promover e consolidar a marca institucional do banco.
Até 2006, as ações do BNDES em cultura se davam por meio da ação de
diferentes unidades da estrutura operacional do Banco. Naquele ano, o
BNDES decidiu incorporar a economia da cultura à sua estrutura formal. Foi
criado um departamento, hoje integrado à estrutura da Área Industrial, para
tratar prioritariamente desse tema, unindo as diversas ações e aprimorandoas com a adoção de uma visão de desenvolvimento de cadeias produtivas.
Conforme mencionado, desde que o BNDES abraçou a economia da cultura
como parte de sua missão, optou-se pela adoção de um novo enfoque de
atuação no setor da cultura, migrando de uma visão de patrocínio, afeita às
ações de comunicação institucional do Banco, para uma visão de
desenvolvimento e fortalecimento da cadeia produtiva, típica de sua atuação
nos demais setores que compõem a economia. Ou seja, alçou-se o setor
cultural a um status de setor econômico, com inerente potencialidade de
geração de resultados econômicos, emprego, renda e de crescimento
econômico (GORGULHO, 2009).
Com vistas a responder as demandas vicejadas por conta da expansão dos mercados
culturais no Brasil5 e, simultaneamente, tencionando consolidar suas ações financeiras no
interior do capitalismo cultural brasileiro, o BNDES criou, em 2009, o Novo BNDES
PROCULT, que expandiu o escopo de atuação do banco no financiamento da produção
cultural, disponibilizando recursos próprios não reembolsáveis e crédito de longo prazo para
setores como o editorial, o patrimônio cultural e o design. Em um artigo publicado no livro
BNDES setorial, em 2009, intitulado Economia da cultura, o BNDES e o desenvolvimento
sustentável6, os técnicos do DECULT evidenciaram uma sintonia fina com o debate global
acerca da economia criativa, deixando claro, segundo o artigo, as similitudes conceituais
entre economia criativa, economia da cultura e indústria cultural. A publicação - primeira
divulgada oficialmente pela instituição acerca da sua atuação de fomento junto aos setores
culturais – laçou, no interior da organização, o germe de justificação que, amiúde, tornou-se o
5
Consultar Alves, Elder P. Maia, A economia criativa no Brasil: o capitalismo cultural brasileiro
contemporâneo, In: Cultura e desenvolvimento: o advento da economia criativa. Maceió, Edufal/IPEA, 2013.
6
BNDES Setorial, 30, 2009, p. 299-355.
6
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núcleo central de legitimação do tema/conceito de economia criativa no Brasil: a justaposição
entre criatividade, diversidade e desenvolvimento. Essas relações aparecem, nos últimos anos,
como conceitos-força que encarnam princípios éticos, estéticos e políticos. Nas falas, ações,
programas, leis, documentos e propostas dos agentes econômico-culturais especializados, as
relações entre essas categorias-força emergem como uma reciprocidade permanente, que
aponta para a cultura popular brasileira (também filtrada e valorizada por meio das políticas
para o patrimônio imaterial) como a fonte viva e vibrante da diversidade artístico-cultural
brasileira e, por conseguinte, como o grande manancial criativo, que pode ser explorado, por
meio de bens, serviços ou atividades econômico-culturais. Essa rede de relações figura, assim,
como uma justificativa ética, estética e como um recurso econômico, presente nas falas e
ações de executivos e empresários da cultura; de gestores e técnicos governamentais; de
empresas e organizações de entretenimento; de presidentes de bancos de fomento; de
entidades de capacitação e apoio; órgãos de pesquisa, institutos e universidades; profissionais
do design; da moda; da arquitetura; da publicidade; do teatro; da televisão; da canção popular;
do cinema; da gastronomia, etc. Em outra frente complementar, essa mesma rede de
justificação vem sendo atualizada e utilizada por meio do debate contemporâneo entre cultura
e desenvolvimento, que tem ocupado a atenção e os interesses de importantes setores
governamentais e das agências estatais de desenvolvimento, como o BNDES. A partir dessa
rede de justificação, esses agentes têm explorado a chave contemporânea do desenvolvimento
humano sustentável, aproximado a diversidade simbólico-cultural da diversidade ecológicoambiental, ambas vistas como imprescindíveis7. Talvez um trecho do texto de apresentação
do Plano da Secretaria da Economia Criativa (SEC/MINC), de autoria do Presidente do
BNDES, Luciano Coutinho, expresse tais homologias.
Hoje se reconhece que quanto mais denso, diverso e rico o conteúdo cultural
de uma sociedade, maiores as suas possibilidades de desenvolvimento. O
vigor das manifestações culturais mais enraizadas permite sua preservação e
difusão e pode representar uma significativa alternativa de inclusão
produtiva, seja pelas oportunidades de criação de emprego e renda, seja pela
ampliação do acesso e da qualificação desses serviços. Em consonância com
o Plano Brasil sem Miséria, destaque-se, ainda, a capacidade de estimular o
desenvolvimento de outras atividades produtivas associadas às atividades
culturais. Esses atributos são particularmente importantes em países como o
Brasil, de vasta riqueza e diversidade natural, patrimonial e cultural, fruto de
um território de dimensões continentais e da fusão de múltiplas etnias
(COUTINHO, 2011, p.02).
7
Consultar ALVES, Elder P. Maia. A economia simbólica da cultura popular sertanejo-nordestina. Maceió,
Edufal, 2011.
7
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As relações entre a diversidade cultural, a criatividade artística e o desenvolvimento
sustentável tornam-se, assim, a grade central de justificação da economia criativa, não só
porque aciona políticas e ações com vistas à manutenção e à profusão da diversidade e da
criatividade, mas porque catalisa dois aspectos centrais: 1) por um lado, trata-se de um
princípio ético-estético que goza de grande reconhecimento e legitimidade em diversos
grupos, organizações e instituições nacionais e transnacionais, que, em uníssono, cerram
fileiras em nome da diversidade cultural; 2) por outro lado, trata-se de um princípio-meio,
pois, em todas as falas institucionais e governamentais, a diversidade é percebida como o
principal recurso simbólico-econômico da economia criativa brasileira; ou seja, como um
manancial vibrante e fecundo, prenhe das mais variadas possibilidades criativas. No Brasil, o
princípio da diversidade cultural encontrou acolhida governamental por meio da criação da
Secretaria da Diversidade e da Identidade Cultural (SID), em 2004, hoje Secretaria da
Cidadania Cultural do MINC, mas também encontra grande ressonância prática e legitimidade
estético-econômica na Secretaria da Economia Criativa (SEC), no Plano Nacional de Cultura
(metas 3, 4, 5 e 6), no Sistema Nacional de Cultura, na Lei 12.485 (Lei da TV por assinatura)
e no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
3. A progressiva integração do mercado audiovisual brasileiro: o BNDES, o FSA e a Lei
12.485.
A grade de justificação mencionada acima está inteiramente presente nos dois principais
dispositivos legais que, conjugados, têm contribuído para a integração e o crescimento do
mercado de conteúdos audiovisuais brasileiros: o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e a Lei
n° 12.485, Lei de Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado (lei da TV por
assinatura), de 12 de setembro de 2011, que, entre outras mudanças, traz, como princípios
legais: a promoção da diversidade cultural e das fontes de informação, produção e
programação; a promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira; o estímulo à
produção independente e regional e o estímulo ao desenvolvimento social e econômico do
País. A lei tem vicejado discussões, seminários, audiências públicas e ações na justiça, mas,
sobretudo, tem impactado na estrutura do mercado audiovisual, pois, como estabelecem os
princípios legais, exige 03h30min minutos de programação nacional por parte dos canais.
Diante do fremente crescimento da TV por assinatura no Brasil, as produtoras audiovisuais
têm demandadas para produzir tais conteúdos. Entre 2009 e 2012, o número de assinantes e
usuários diretos dos serviços da TV por assinatura cresceu mais de 100%, alcançando, no final
de 2012, 16 milhões de assinantes.
8
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Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil
Gráfico 1.
Fonte: ANATEL.
No decurso atual do processo de regulamentação e implementação da Lei 12.485, cabe a
8
ANATEL estabelecer os procedimentos, prazos e critérios de definição e unificação das
tecnologias, assim como as exigências para operar no setor. Por outro lado, tem ficado sob a
incumbência da ANCINE9 a tarefa de definir o que significa exatamente a classificação de
“conteúdo brasileiro”, empresa programadora, produtora e empacotadora brasileira, assim
como a definição do que se julga como horário nobre. O objetivo maior, segundo a própria
agência, é assegurar o cumprimento da Emenda nº 36, de maio de 2002, assim como
dispositivos posteriores que asseguram a inserção de conteúdos nacionais, a fim de promover
a cultura nacional e regional, o estímulo à produção independente e a sua divulgação
(ANCINE). Em nota esclarecedora sobre as instruções normativas que visam à regulamentação
da lei, a agência assim se manifestou sobre a politica de cotas prevista na lei: “por fim, o
Brasil ao assinar a Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais (Decreto Legislativo n. 485, de 20/12/2006), obrigou-se a estabelecer
uma política que preserve e fomente a diversidade cultural e regional. Portanto, a política de
quotas estabelecida no projeto de lei aprovado não faz mais do que implementar esse objetivo
constitucional do Estado brasileiro e o compromisso internacional assumido pelo Brasil ao
aderir à Convenção da Diversidade Cultural”. Esses princípios normativos constituem o cerne
da estrutura dos códigos ético-estético de parte dos grupos de poder a frente das principais
organizações governamentais de cultura no Brasil, assim como dos principais grupos de
8
9
Agência Nacional de Telecomunicações, ligada ao Ministério das Telecomunicações.
Agência Nacional de Cinema, ligada ao Ministério da Cultura.
9
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pressão que, em grande medida, pautam a agenda da administração cultural no Brasil e no
mundo.
Diante do crescimento das demandas por conteúdos audiovisuais nos últimos dez anos, a
ANCINE firmou contrato para que o BNDES passasse a ser o principal agente financeiro do
Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mecanismo criado para planejar o desenvolvimento
articulado da atividade audiovisual brasileira, que dispõe de uma linha exclusiva de conteúdos
audiovisuais para a televisão. O acordo, firmado no fim de 2011, estabeleceu que fossem
repassados ao BNDES R$ 2 bilhões até o final de 2015, para o desenvolvimento de um
mercado de conteúdos para televisão, cinema e outras mídias (ANCINE). De acordo com a
ANCINE, o FSA tem se destacado no incremento da cooperação entre os diversos agentes
econômicos, na ampliação e diversificação da infraestrutura de serviços e de salas de
exibição, no fortalecimento da pesquisa e da inovação, no crescimento sustentado da
participação de mercado do conteúdo nacional e no desenvolvimento de novos meios de
difusão da produção audiovisual brasileira.” O BNDES foi escolhido pelo Comitê Gestor do
FSA por sua vocação para o desenho de políticas de desenvolvimento, por sua expertise na
administração de mecanismos financeiros e pelo fato de incluir, entre suas finalidades, o
estímulo a agentes de desenvolvimento” (ANCINE, 2011).
O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) foi criado em 2006, regulamentado em 2007,
e, desde então, tem sido utilizado como potencial mecanismo de incentivo a produção
audiovisual no Brasil e organização interna do setor, a partir de quatro linhas de ação (linha A
- produção cinematográfica: investimento na produção de obras cinematográficas de longametragem; linha B - produção independente para TV: investimento na produção independente
de obras audiovisuais seriadas ou de documentários com metragem superior a 52 (cinquenta e
dois) minutos com destinação inicial para o mercado de televisão, privada ou pública, aberta
ou por assinatura; linha C - aquisição de direitos de distribuição: investimento na aquisição de
direitos de exploração comercial de obras cinematográficas de longa-metragem nos diversos
segmentos de mercado visando à sua posterior distribuição; linha D - comercialização:
investimento na comercialização de obras cinematográficas de longa-metragem em salas de
cinema), totalizando uma disponibilização de recursos, desde 2008, da ordem de R$ 900
milhões. O FSA abriga quatro ações orçamentárias especificas: investimento (o fundo
participa dos resultados comerciais dos projetos); financiamento (empréstimo a projetos, com
exigibilidade dos recursos repassados); equalização (redução de encargos financeiros para
projetos aprovados); valores não reembolsáveis (previstos apenas para casos excepcionais).
As fontes de receitas que compõem o FSA vêm de dispositivos diretos do orçamento da
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União, sobretudo a partir das arrecadações decorrentes da Contribuição para o
Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE) e das receitas
advindas das permissões e das concessões que compõem o Fundo de Fiscalização das
Telecomunicações (FISTEL). A CODECINE extrai seus recursos a partir da veiculação,
produção, licenciamento e distribuição de bens audiovisuais com finalidades comerciais. A
partir da implementação da Lei 12.484, os recursos da CODECINE e, por conseguinte, do FSA
elevaram-se substancialmente, pois a CODECINE passou a incidir sobre os prestadores de
serviços (empresas de telecomunicação e operadoras de serviços de televisão por assinatura),
que utilizam os diversos meios para a distribuição comercial de conteúdos audiovisuais.
Desse modo, instaura-se entre o FSA e a Lei 12.485, uma relação umbilical entre cinema e
televisão, permitindo, além de uma aproximação ético-estética, uma estreita retroalimentação
financeira entre o Fundo Setorial do Audiovisual e a nova lei da TV por assinatura.
Tabela 1.
ORÇAMENTO FSA
VALORES (R$)
2007
37.963.007,00
2008
56.160.628,00
2009
99.346.483,00
2010
65.237.792,00
2011
227.875.011,00
2012
109.760.348,00
2012/Suplementação
Total
400.000.000,00
996.443.269,00
Fonte: ANCINE/FSA.
Dos 83 filmes brasileiros produzidos em 2012, 17 contaram com recursos diretos do
FSA, ou seja, 20% do total. Como se pode atestar na tabela 1, a vultosa suplementação
orçamentaria de 2012 deveu-se ao crescimento da arrecadação da CODECINE, potencializada
pela vigência da Lei 12.485. A rigor, hoje, a principal fonte financiadora do FSA é a nova lei da
TV por assinatura, cujos recursos são direcionados para um fundo gerenciado pelo BNDES.
Bastante atenta à estrutura de oportunidades comerciais e estéticas criadas pelo FSA, estão as
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médias e grandes produtoras e coprodutoras audiovisuais. Entre elas está a maior coprodutora
brasileira de filmes, a Globo Filmes (Empresa de produção e coprodução de filmes do
Sistema Globo de Televisão), que, desde 1998, tem dinamizado e transformado o mercado de
conteúdos audiovisual nacional. Entre 2009 e 2012, dos 10 filmes brasileiros que alcançaram
a marca de mais de um milhão de espectadores que contaram com recursos do FSA, 7 foram
produzidos ou coproduzidos pela Globo Filmes. No entanto, muitos antes da existência do
FSA, a Globo Filmes vem dinamizando o trânsito estético e comercial entre cinema e
televisão. A empresa criou um modelo híbrido de produção e distribuição dos seus filmes,
que, por um lado, consiste em lançar mão da capilaridade e da grande penetração do selo da
TV Globo, empregando o grande poder publicitário do principal canal de televisão aberta do
país (líder absoluto de audiência), realizando com grande eficácia a divulgação (uma espécie
de distribuição paralela) dos seus filmes; por outro lado, a empresa retira grande apelo
publicitário e poder criativo da experiência consolidada de realização de novelas, série e
minisséries, contando com a atuação artística de diretores, roteiristas, atores, atrizes,
produtores, cenógrafos, fotógrafos, entre outros. A partir de projetos pilotos bastante exitosos,
como o filme O Auto da Compadecida (2000), que, um ano antes, havia sido veiculado na
forma de uma minissérie na televisão aberta, a empresa passou, gradualmente, a forjar um
padrão artístico-comercial que pudesse ser, simultaneamente, comercializado e exibido na
televisão e no cinema. Como sentencia a empresa no seu sitio10, desde 1998 a Globo Filmes já
produziu ou coproduziu 130 filmes, que, em conjunto, foram vistos, nas salas de exibição e na
televisão, por cerca de 145 milhões de espectadores. Entre os maiores êxitos comerciais e/ou
artísticos que tiveram a participação da coprodutora estão Tropa de Elite 2 (2010, filme mais
visto da história do cinema brasileiro, com mais de 11 milhões de espectadores), Cidade de
Deus (2002), 2 Filhos de Francisco (2005), De Pernas Pro Ar 2 (2012), Carandiru (2003),
Nosso Lar (2010), Chico Xavier (2010), Olga (2004), Cilada.com (2010), O Palhaço (2011),
Gonzaga: de pai pra filho (2012), entre outros. Como evidencia Lia Bahia (2012), dos títulos
nacionais lançados entre 2000 e 2007, apenas 17,1% foram lançados com a participação da
Globo Filmes. No entanto, no mesmo período, 77,3% do total de público e 77,8% da
totalidade da renda auferidas foram obtidos pelos títulos que contaram com a participação da
Globo Filmes. Entre algumas das descobertas e conclusões do rigoroso e premiado trabalho
de Bahia, a autora destaca:
[...] Assim, é de se supor que a entrada da Globo Filmes afrouxou a
oposição que marcou as posições do setor cinematográfico em relação à
10
http://globofilmes.globo.com/quemsomos.htm
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televisão e estabeleceu uma nova etapa da relação entre cinema e televisão
no Brasil. A participação dela no cinema nacional está relacionada, hoje,
muito mais à colaboração possível entre os meios do que ao confronto
mortal entre eles. O mais significativo de tudo é que, paradoxalmente, a
televisão, acusada de ser a maior inimiga do cinema nacional, torna-se seu
mais relevante e significativo aliado. Produtos lançados no cinema e
exibidos na televisão ilustram a integração promovida com a
institucionalização da metodologia da Rede Globo e de seu departamento de
cinema (BAHIA, 2012, p. 178).
A constatação de Bahia é bastante perspicaz. Não obstante, resta uma indagação
decisiva e definitiva: por que há, hoje, uma colaboração possível entre os meios? A entrada
tardia da TV Globo no mercado de cinema, somente final do século XX, não foi a causa do
afrouxamento da oposição político-cultural entre cinema e televisão, mas antes a
consequência de um processo em curso desde a década de 80 do século passado. Como
exploramos em outro trabalho11, a geração de criadores brasileiros (cineastas, diretores,
escritores, músicos, críticos, publicitários, pesquisadores, entre outros) que nasceu nos anos
50/60 se socializou e forjou sua estrutura de sensibilidade em meios às aproximações
estruturais entre arte, entretenimento e tecnologia. Foram essas experiências e aproximações,
incorporadas e reprocessadas no fazer artístico-criativo e na trajetória profissional de nomes
como Walter Sales, Fernando Meirelles e Guel Arraes (artífices do chamado cinema da
retomada), que, mais tarde, já nos anos 90, permitiram o afrouxamento da oposição entre
cinema e televisão constatada por Bahia. Esses diretores e cineastas, assim como diversos
outros criadores da mesma geração, experimentaram, nos anos 80 e 90, a dissolução da
hegemonia político-cultural da crítica estética do nacional-popular, tributária dos movimentos
político-cultural dos anos 60: CPC da UNE, canção de protesto, Teatro de Arena e Cinema
Novo. A estrutura de sensibilidade desses cineastas e diretores foi tecida a partir da
incorporação de outros códigos ético-estéticos, muito menos marcados, por exemplo, por uma
suposta polaridade inconciliável entre cultura de massa e cultura popular tradicional e/ou
“autêntica”. Não só a entrada da Globo Filmes, como atesta Bahia, mas também a própria
existência do FSA (a partir de 2007) e a implementação da Lei 12.485 (em 2011), evidencia o
funcionamento de novos códigos ético-estéticos, muito menos informados e sensibilizados
pelas categorias de indústria cultural e cultura de massa (como predominou entre os
criadores das esquerdas nacionalistas nos anos 60 e 70) e muito mais afeitos às
experimentações envolvendo o teatro, a publicidade, o cinema e a televisão.
11
A economia criativa do Brasil: modernização cultural, criação e mercado.
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É precisamente por conta desses novos códigos ético-estéticos (resultado da
aproximação entre arte, entretenimento e tecnologia, como destacamos na introdução deste
artigo), que ora aproximam culturalistas e industrialistas (nos termos da análise de Bahia12),
que é possível, hoje, uma aproximação inédita entre o fazer artístico-criativo do cinema e da
televisão, que, direta e indiretamente, se reverbera na elaboração e execução de políticas
econômico-culturais e nos mecanismos jurídico-financeiros do FSA e da nova lei da TV por
assinatura. Os princípios político-culturais da diversidade cultural, da valorização dos
conteúdos regionais e do desenvolvimento da produção audiovisual independente, que
organizam parte dos códigos ético-estéticos de muitos criadores que nasceram a partir dos
anos 50 e 60, e que constituem o substrato do FSA e da nova lei da TV por assinatura, servem
muito mais para explorar os novos meios (plataformas móveis, internet e celulares) e as suas
diversas mediações (transmídia e convergência digital) e, assim, realizar e efetivar tais
princípios, e muito menos para erguer fronteiras entre comercial versus cultural ou massivo
versus artístico. Já há algum tempo, sobretudo por parte dos criadores que fazem o cinema, a
televisão é cada vez menos vista e percebida como o domínio, por excelência, da indústria
cultural e da cultura de massa (ou seja, a encarnação do domínio econômico-comercial da
cultura), e cada vez mais percebida tão-somente como um meio, capaz de oferecer
possibilidade de experimentação e criação audiovisual. Essa mudança não se deu a partir de
um estalo instantâneo, ela vem se processando desde os anos 80, muito em razão das novas
relações estéticas e políticas entre arte, técnica e mercado. Do mesmo modo, essas
aproximações não elidem por completo as tensões e assimetrias entre as linguagens, os setores
e o mercado televisivo e cinematográfico, apenas dissolvem antigas antinomias políticoestéticas, criando as condições para a existência de um mercado integrado de conteúdo
audiovisual nacional. Note-se que o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é um fundo
financeiro dedicado ao audiovisual, com uma linha especifica (linha B) destinada à produção
de conteúdos para a televisão (séries e documentários), e não somente um fundo para o
cinema. A título de consideração final, poderíamos sustentar: tanto a Globo Filmes, quanto o
FSA e a nova lei da TV por assinatura devem sua existência aos novos códigos ético-estéticos
que orientam o fazer artístico-cultural e aproximam ainda mais os domínios estéticoexpressivo e econômico-comercial. Em outros termos: os mesmos códigos ético-estéticos que
preconizam a defesa da diversidade e estimulam, mais do que nunca, a criatividade, são os
mesmos que contribuíram para a criação de mecanismos como o FSA, o DECULT/BNDES e a
12
Lia Bahia, Discursos, políticas e ações: processos de industrialização do campo cinematográfico brasileiro.
São Paulo, Rumos Itaú Cultural, 2012.
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nova lei da TV por assinatura, potencializando novos mercados criativos da diversidade e, por
conseguinte, complexificando o capitalismo cultural brasileiro. Esses mercados fazem parte
dos amplos mercados globais de construção da alteridade e das identidades étnico-culturais,
para os quais os bens simbólico-culturais (entre eles o audiovisual) jogam um papel decisivo.
O capitalismo cultural brasileiro não começou hoje nem tampouco na década passada.
Ocorre que, agora, grande parte dos códigos ético-estéticos dos principais grupos de poder
(corporações, artistas, empresários, produtores culturais, governos, bancos, etc.) está sendo
forjados a partir do cruzamento cotidiano entre economia e cultura. Esse aspecto não
significa, todavia, uma capitulação cínica e resignada ao julgo do capital, como muitos
denunciam. Longe disso. Sugere, sim, que a diversidade, as identidades e a criatividade têm
se realizado e se plasmado sob a forma de mercados culturais, com seus nichos específicos de
fruição e experimentação estético-políticos. No Brasil, o BNDES, mediante o FSA e o
DECULT, tanto potencializa quanto é potencializado por tais processos.
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