Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja - Association des Revues Plurielles

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Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja
O Caso Moçambicano
Filimone Meigos
“homini mendax ab initio”
(o Homem é mentiroso desde o início)
1. A mentira e a inveja sua
irmã siamesa
A mentira ocorre nas re l a ç õ e s
sociais diárias. Ela pode ocorrer na
dimensão do senso comum, da re l igião, da filosofia, da arte ou mesmo
da ciência, essa outra crença em
que todos confiamos e supomos
v i rgem e i maculada. Do ponto de
vista teórico o estatuto de tais
formas de conhecimento é equivalente. Quer dizer que nenhuma das
f o rmas de conhecimento mencionadas vale mais que a outra. Esta não
é a discussão que me pro p o n h o
f a z e r, mas é um parêntesis que
reputo pertinente porque, penso,
ajuda a entender o meu ar gumento.
Neste caso, quero fazer referência à mentira de senso comum que,
ao sê-lo, engloba todas as o utras
formas de conhecimento enquanto
mentiras, exactamente porq u e
gozam do mesmo estatuto. Aliás,
em última análise, qualquer uma
das formas de conhecimento se
“comumsensoaliza”. Isto é, o conhecimento da realidade que nos
c i rcunda, ou falar dela, passa a ser
sensitivo, s ubjectivo e valorativo.
Deste modo, to dos nós temos algo
a dizer, sem que necessariamente
tenhamos que seguir grandes métodos. Basta ouvir dizer, ou simplesmente criar um facto, para animar a
conversa. “Diz-se que”... “ouvi dizer
que”... “porque o vi”, “porque o
senti”.... “porque toda a gente o
diz”.... consta que... Ass im, o senso
comum acaba sendo veículo do
rumor, mentira e inveja que, dada a
dependência funcional entre si,
pode ser objecto duma sociologia
especial, a “sociologia do rumor e
da inveja”.
P a rece-me que a mentira e a
inveja, sua irmã siamesa, são mais
dois entre os vários “sapatos sujos”
n° 25 - décembre 2005
LATITUDES
que podem explicar tentativamente,
o nosso quotidiano. Mentir é uma
atitude para com a vida e, por
conseguinte, para com os outro s .
Escusado será dizer que é uma
“atitude má”, feia e repugnante. Ter
inveja de outrem, se bem que
humano, não se coaduna com uma
atitude de “relação para com os
valores” na vida.
Se assim é, porque é que as
pessoas mentem? Porque é que as
pessoas têm inveja das outras? O
que é que estará por detrás das
mentiras e invejas que povoam a s
nossas relações sociais?
Não se exige de todos uma racionalidade instrumental, portanto,
factual, contingente, sistemática,
verificável e apro x i m a d a m e n t e
exacta. Todavia, no mínimo, é justo
que se exija de cada um de nós uma
“racionalidade com relação a valores”, entendida na acepção do
sociólogo alemão Max We b e r. Isto
significa dizer que, pelo menos,
temos que ter em conta a nossa
cultura, que abomina a mentira.
Temos que revisitar as nossas religiões que, tal como rezam os seus
mandamentos, condenam a mentira.
Temos que repensar a ética que
institucionaliza a verdade. E temos
que rever a nossa noção de estética
que, no mínimo, diz que é feio
m e n t i r, seja no plano do senso
comum, da religião, da ciência, da
arte ou da filosofi a.
P roponho-me, pois, fazer uma
sociologia do rumor tendo por base
o estudo das suas correntes “mentirogéneas” e invejoséneas”1 neologismos que são, aliás, o pilar do
meu argumento neste trabalho.
1.1. O senso comum essa inesgotável fonte primária de “corre n t e s
mentirógenas e invejoséneas”
“Ndzeru Mbawiri”2
O conceito de senso comum
captei-o na UFICS. Devo-o à professora C onceição O sório, das aulas
de introdução às Ciências Sociais, e
às discussões que tínhamos na
cantina, hoje feita secretaria por
força de um acto administrativo. Ao
tempo estudantes, chamávamos a
tais encontros à mesa com cerveja à
mistura, o círculo de Viena, em honra
ao real Círculo, espaço de discussão
de ideias que se fez paradigma.
O meu interesse a qui é apenas
o senso comum e suas corre n t e s
m e n t i rogéneas e invejoséneas.
P retendo v er o quão pernicioso o
senso comum pode ser para as
nossas vidas como pessoas e como
comunidade imaginada que somos,
este barco no alto mar, a nação
moçambicana, quando tal senso
comum se tor na mentira e inveja.
No entender do senso comum,
o que parece é, não precisa de
p rova, pois é. É como algumas
opiniões que aparecem nas cartas
de leitores dos nossos jornais, ou
nas páginas da internet, que nada
mais são se n ão uma forma de criar
factos i r reais, de construir inexistências, “só para lixar algum v isado”,
p o rque, “ o(a) g ajo(a) tem mania,
ginga muito”, é “machangana” e
“sacou-me a dama(o)”.
Na verdade, o que está por detrás
de tais “lixanços”, são a inveja, o
discurso de desqualificação do outro,
p reconceitos, rotulagens, e, claro
está, o teor “mentiro g é n e o ” e “invejoséneo”. Poderia f alar de muitos
mais palavrões, mas, j á q ue e stamos na era de descalçar sapatos
(Mia Couto) e de limpeza das nossas
más maneiras (Elísio Macamo), ficome por aqui, esperando que tudo
isso seja um transe passadiço, fugaz
e processual, pois, parafraseando
Juliyus Nyere re, Moçambique está
no alto mar. E stou e m crer que o
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mau tempo um dia passará e, consequentemente, os t s u n a m i s d a s
nossas más maneiras dissipe.
De modo geral, o que suscita tais
comportamentos no “barco em
pleno mar alto” é a sensação causada
pelo “ciclone” e consequente “turbilhão” do sucesso de terc e i ros, o que
de im ediato acciona nos passageiros mentirosos e invejosos os mecanismos daquilo a q ue os sociólogos
chamam de preconceito e de teoria
da ro t u l a ç ã o / rotulagem. Uma espécie de “náusea” motivada pelas
ondas do sucesso alheio.
Chegados aqui, talvez caibam
alguns truísmos explicativos já que,
“as massas de ar quente” abundam,
a ponto de causar mal estar geral no
“barco nacional”, quanto menos não
seja só pelo “cheiro nauseabundo”.
Primeiro truísmo: A inveja
Kukhuta kwa njiri, nkhumba
nkhabe sekera bi3
A inveja é definida como um
sentimento de desgosto e ódio simultâneos provocados pelo bem ou pela
felicidade de alguém. Numa outra
dimensão, a inveja é o sentimento
que se traduz pelo desejo de possuir
aquilo que outrem possui ou de o
igualar ou superar em alguma coisa.
A inveja é um misto de desgosto e
raiva por aquilo que outra pessoa
tem ou é. No fundo trata-se de
despeito. Há quem diga que a inveja
não é má. No entanto, eu entendo
que, se a acção de cada um de nós
for levada a cabo nos quadros de
v a l o res mínimos para com o outro,
p a rece-me que a inveja não tem
razão de ser e t ão pouco tem lugar
nas nossas acções. Se estivermos a
falar de inveja praticada em espaços
partilhados, aliás só assim ela tem
razão de ser, a inveja é simplesmente
repugnante, embora muitos de nós
persistam em en veredar por ela. De
qualquer modo ela é um potencial
motor para a mentira, ou vice-versa.
Segundo truísmo: O preconceito
e a rotulagem
Pya nkamwene pinadzipa
kulonga, pya tebzala pinalongwa
na ani?4
22
2.1. O preconceito
Segundo o dicionário de sociologia de Allan Johnson, “pre c o nceito é a teoria da desigualdade
racial, étnica, entre outras formas, e
discriminação é a sua prática”.
P reconceito é u ma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a
membros de um grupo ou categoria social. Como uma atitude,
combina crenças e juízos de valor
com predisposições emocionais
positivas ou negativas.
O preconceito é sociologicamente importante porque fundamenta a discriminação, o tratamento
desigual de indivíduos que pertencem a um grupo ou categoria partic u l a r. Daqui resulta que, bastas
vezes, tudo o que é diferente é
julgado com base nos nossos
próprios valores. Isso me parece ser
“sociologicamente injusto”, já que,
embora haja valores universais,
também os h á locais e pessoais que
não chocam necessariamente com
os primeiros, são apenas diferentes.
Este é também, outro potente motor
que acciona a mentira e a inveja, o
não aceitar a diferença, ou melhor,
abominar a diferença. A produção
da diferença é uma questão que tem
a ver com as identidades. Melhor, a
identidade também se define como
sendo a produção da difere n ç a .
Para os invejosos, o facto de eu
“ o c o r rer” de forma diferente, como
me visto, como falo, como como, e
todo o meu modo/estilo de vida ser
d i f e rente, é forte motivo para
debate no sentido de desqualificação, inveja e rótulo.
2.2 a r otulação/rotulagem
O rótulo define o indivíduo
como sendo um determinado tipo
de pessoa. Portanto, a ro t u l a g e m
quer dizer mesmo isso: pôr um
rótulo. No entanto, tal rótulo pode
corresponder à verdade ou não. De
qualquer forma, o rótulo é um “estatuto d irector” no s entido e m que,
obscurece todos os outros estatuto s
ostentados pelo indivíduo rotulado.
Nós compramos a cerveja 2M
pelo rótulo que nos foi vendido
anteriormente, a marca, a imagem.
F a z e n d o - o , supomos que o conteúdo é mesmo 2M. Mas há quem
se deleite vendendo gato por lebre.
Se, por exemplo, alguém é ro t ulado de drogado, ou tribalista, ou
racista, ou armalhão, esse rótulo
supera o seu estat uto de pai, irmão,
vizinho e provavelmente de b om
cidadão, n o s entido d e indivíduo
que pensa e age pelos seus e pela
República. O rótulo s upera a sua
qualidade de ser social arreigado a
valores do bem comum e de dignidade que, provavelmente, ostenta.
Assim, o i ndivíduo é automaticamente encaixado no padrão dos
desviantes, uma subcultura que por
definição é contra a norma e a
regra. Cá está o gato e a legitima
pergunta: quem leva o gato ao guizo,
já que vai ser vendido por lebre ?
Mais grave, é o facto do indivíduo, pobre lebre, ser tido por
desviante, e, como se não bastasse,
internaliza essa presunção e, desde
então, supõe-se desviante e marg inal, o que afecta a su a conduta, as
suas acções e relações sociais.
Há no entanto, a prerrogativa da
agência ( a g e n c y ). Isto é, a possibilidade que os a ctores sociais t êm
de, independentemente do que é
dito sobre si, agirem diferentemente
e de acordo com o seu estado volitivo-emocional, com vista a in flu e nciar sistemas/ estruturas sociais.
Todavia, não nos esqueçamos que,
tal como o diz o sociólogo francês
Émile Durkheim, os actores sociais
são pressionados por um duplo
constrangimento, duplo laço: d o u b l e
b i n d. Tal s ignifica dizer q ue, p or
um lado, os actores sociais são
constrangidos pelas normas e valores que são parte do sistema/estrutura. Por outro, o mesmo actor
social internaliza-as, o que acaba
sendo uma espécie de “autocensura”. É verdade que eu não me
comporto de qualquer maneira,
caem-me logo em cima as manas,
os a migos e os colegas, os profess o res, os e studantes e os “cinzentinhos”. Para não falar dos meus
s u p e r i o res hierárquicos e das
próprias normas que habitam as
minhas condutas. Por outro lado,
só de pensar no que me dirão em
resultado desse comportamento
“impensado” nem sequer me atre v o
a levá-lo a cabo. A liás e u próprio
constranjo e ssa ignóbil i deia, mal
de mim se assim não fosse.
LATITUDES
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Chegados aqui penso ter ficado
claro que o preconceito e a rotulação são atributos que estruturam as
c o r rentes mentirogéneas e in vejoséneas. O passo seguinte é a casalar
tais atributos veiculados pelo senso
comum à sociologia do rumor que
os e studa, olhando para as consequências funcionais e p ara as variáveis explicativas estruturadas pela
mentira e pela inveja.
Partidos que estão os ovos agora
vou pôr tudo na batedeira e fazer o
bolo.
3. Acasalando o senso comum
à sociologia do rumor
A primeira vez que ouvi a formulação “sociologia do rumor” foi da
minha professora de i ntrodução à
Sociologia, a Dra. Maria do Céu do
Carmo Reis. Entendi que ela se referia à maneira como os discursos
circulam através das redes sociais,
e nos chegam via “rádio boca” e em
“cadeia nacional”, sendo ou não
v e rdade, no entanto fazendo jus ao
dito “ segredo é aquilo q ue s e diz
baixinho de ouvido em ouvido”:
“Diz-se que... ouvi dizer que...”, e
lá vai a má nova corroendo os
tímpanos dos mais incautos, dos
menos prevenidos.
Numa explicação dum parágrafo
a sociologia trata de alojar os fenômenos, os processos, no espaço e
no tempo, traçando as suas características estruturantes, padronizandoos e tipificando-os. A sociologia
p rocura compreender para explicar
tais fenômenos ( v e r s e t e h e n ). A
sociologia d o r umor seria, e ntão,
uma sociologia especial. Por conseguinte, seria a sociologia que explica
a acção mentirosa, seus atributos e
suas nuances estruturantes tentando
c o m p reender para explicar as
correntes mentirogéneas.
No meu entender, o senso
comum e a sociologia do rumor têm
uma relação funcional, porque, se,
para o senso comum, aquilo que
p a rece é, a “sociologia do rumor” é
o ramo da sociologia que operacionaliza e estuda o primeiro. Sabido
que a sociologia é o estudo da interdependência, é justo aventarm o s
algumas hipóteses de trabalho sobre
n° 25 - décembre 2005
LATITUDES
Samate, sem título, acrílico sobre tela, 2003.
essa interdependência, ou que dela
resultam.
Primeira hipótese: A mentira, e
a inveja sua correlata, podem ter
várias funções. Neste caso a
primeira é a possibilidade de
semear ou não a coesão social nessa
interdependência de actores sociais.
Segunda hipótese: Paralelamente,
a mentira e a inveja estabelecem as
balizas do espaço social que ocupamos em interacção. Isto é, tal
espaço é estrutura do pela mentira e
pela inveja. Ou seja, a mentira e a
inveja criam um espaço social cujo
denominador comum e a glutinador
está ancorado nas correntes mentirogéneas e invejoséneas. Portanto,
somos postos perante uma re a l idade s ocial m entida, mentirosa e
invejosa, pois só faz sentido mentir
s o b re gente que nos diz re s p e i t o ,
os nossos aos quais temos acesso.
Ou, por outra, através da mentira e
da inveja é possível construir e
destruir o nosso espaço social! Não
sei se d aí resulta uma sociedade de
m e n t i rosos e invejosos e se isso
constitui problema: mas daí re s u ltam coisas que nos deviam pre o c up a r, principalmente no que toca a
(des)confiança “no nosso seio”.
Se pensarmos como Fukuyama
(1996), haverá que ter em conta o
facto das lições morais serem passadas, transmitidas, não de form a
racional, mas através de imagens,
de costumes e de opiniões so ciais.
Portanto, se a nossa opinião é
mentira e mentirosa, então, estamos
a criar um sólido mundo mentiroso,
sem carácter, e amoral que se
incrusta nos nossos costumes e
hábitos que se tornam h a b i t u s,
portanto, um conjunto de pre d i s p osições que explicaremos mais
adiante.
Te rceira hipótese: Não terá a
(des)confiança e o receio de dizer,
ou de produzir diferença a ver com
o facto de que a mentira nos habituou a não confiar, e de recearmos
sanções sociais, decorrentes do
referido duplo constrangimento,
mesmo que o que se diz sobre nós
resulte de correntes mentirogéneas
e invejoséneas?
Quero sublinhar que a confiança
pode ser usada como variável explicativa para múltiplas a cções ou não
acções, seja no plano político,
económico, cultural, ou mesmo nas
simples relações s ociais do nosso
quotidiano, j á de s i dramatúrg i c o
( G o ffman). Tal como o diz H ollis
(1998), a confiança pode ser um
p o d e roso activo incrustado no
mundo da racionalidade. Isto quer
dizer tão somente que a confiança
nos põe a agir em “ralenti”, pela
i n é rcia, pelo hábito, pela experiência assumida de que “o outro” é
23
alguém em que se pode fazer fé,
portanto, em quem se pode confi ar.
Na verdade, nenhuma sociedade
é possível sem doses elevadas de
confiança entre os seus membro s ,
seja ela tácita ou implícita, seja ela
formalizada e contratual: A confiança
m a rca s empre uma articulação de
jogos de expectativas que se t r a v a m
entre “nós” e um “outro”. A confiança
é um adensador ou um acelerador
das relações sociais. Segundo Rafael
Marques (2003): “ Nas margens do
risco e do sacrifício, a
confiança surge como
um operador social de
p recipitação so cial, um
óleo de sistema que
garante que as r elações
se acelerem (...) aquele
que confia descentra-se
de si e mergulha no
o u t ro, pre c i p i t a n d o - s e
para alguém que figura
como elemento capital”.
A relação de confiança estabelece como
garantia a figura do
“ o u t ro” e a entrega do
eu ao “outro”, o que
implica a ausência de
garantias, certificados e
suportes e xternos. N o
fundo, confiança significa entregar um cheque
em branco ao outro nas
relações quotidianas. A
questão que se nos
impõe de imediato é: O
que é que se passa
quando esse outro não
está, tal como nós, nos
nossos quadros de referência, nos nossos
q u a d ros decisionais, e
por conseguinte, age de
f o rma “anormal” do
nosso ponto de vista, portanto,
mente imbuído em correntes mentirogéneas e invejoséneas, isto é,
mente com base em “motivos ocultos e intenções estranhas” (Jorg e
Rebelo) ?
No mínimo esse alguém pega
nesse cheque e, ao invés de pre e ncher o montante corre s p o n d e n t e ,
abusa da nossa confiança e faz das
suas, tornando uma simples
c o n fiança num caso de PIC (Polícia
de Investigação Criminal).
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Quarta hipótese:
Se este é o nosso comportamento t al d á a zo a u ma q uarta e,
por enquanto, última hipótese re l acionada com o conceito deh a b i t u s
entendido na acepção de Bourdieu.
Na verdade, o termo h a b i t u s é
bastante antigo, vem d os t empos
de Aristóteles, se bem que Bourdieu
o use de forma distinta. Para
B o u rdieu (1994), tais disposições
geram práticas, percepções e atitudes que são “regulares” mesmo sem
Bela Rocha, “Segredo”.
serem conscientemente coordenadas, ou governadas por quaisquer
regras. As disposições que constituem o h a b i t u s são inculcadas,
estruturadas, duráveis, t ransponíveis ( t r a n s p o s a b l e ) e g enerativas.
Estas disposições merecem uma
pequena explicação. Elas são adquiridas, segundo B ourdieu, através
dum processo gradual de inculcação onde a socialização primária é
particularmente importante. Através
duma série de processos de apre n-
dizagem mimética nós internalizamos o h a b i t u s. Tal é o caso, por
exemplo, das boas maneiras á mesa
(não f alar com a b oca cheia, n ão
comer com o s olhos, e tc.). A ssim
os indivíduos adquirem um naip de
disposições que enformam, estruturam o s eu q uadro d e re f e r ê n c i a s .
Um individuo que cresceu num
ambiente e mbebido em corre n t e s
m e n t i rogéneas e invejoséneas é
mais propenso a re p roduzir tal
ambiente social.
As disposições estruturadas são duráveis,
uma vez inculcadas
deixam celeumas para
o resto da história de
vida do indivíduo operando de modo préconsciente o que torn a
a sua mudança difícil à
luz duma consciência
reflexiva.
Finalmente, as disposições s ão g enerativas e t ransponíveis no
sentido em que elas são
p ropensas a gerar uma
multiplicidade de práticas e percepções noutro s
campos que não s ejam
os da sua proveniência.
Ou seja, se me ensinaram a mentir em política,
tal se reflecte, sem que
eu dê por i sso no meu
quotidiano com a namorada, com os colegas e
com o cobrador do
c h a p a, por exemplo. Se
me ensinaram a mentir,
a batotar no futebol, tal
se re flecte no meu dia a
dia, já que a vida é
também um jogo, se
bem que suposto ser
limpo (fair play). O habitus providencia os indivíduos com estratégias de como vão agir e responder
aos estímulos diários na sua vida.
Por conseguinte, mentindo e tendo
inveja dos outros, estamos a passar
um mau legado, um h a b i t u s d e
c o r rentes mentirogéneas e invejoséneas às gerações vindouras. O resultado dessa equação é uma juventude mentirosa, passe o exagero e
salvas as devidas excepções. Por
conseguinte, ver-nos-emos confro n-
LATITUDES
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tados com uma juventude sem
compromisso com a verdade e valores correlatos. Na verdade, trata-se
de uma juventude fruto desse
processo mimético que é a so cialização incrustada pela intriga, fruto
da mentira e da inveja, que “nós os
mais velhos” ensinamos através dos
nossos actos e d iscursos mentirosos
e invejosos. Perg u n t a r-me-ão: Não
será exagerado pensar assim, e só
por isso culpar toda uma g eração
“mais velha” sobre o porvir?
Em resposta direi que nunca é
demais re c o rdar o adágio: “as palavras levam-nas o vento”. Assim,
daqui decorre uma série de contra
perguntas:
- Como fazer dissipar equívocos,
mentiras e invejas pro p a l a d a s
pelos “mais velhos”, aos sete
ventos, pelos quatro cantos do
mundo, se “tudo o vento levou”?
- Quem acarreta com os danos
morais, por vezes materiais, se o
rumor a caba s endo imputado a
um autor/actor colectivo i nominado?
- Onde começa e onde acaba a
nossa responsabilidade?
- Não terá o nosso fraco sentido de
responsabilidade a ver com o
facto de que lidamos com um
mundo social que consideramos
i m p revisível, incerto, mentiroso e
invejoso? Penso que aqui cabe
muito bem alusão à sociologia do
risco, da incerteza.
- Não terá o espírito do “deixa
andar” de alguns a ver com o
facto de não quere rem sofre r
re p resálias, fruto de corre n t e s
“mentirogéneas” e “invejoséneas”
d e c o r rentes de comportamentos
e atitudes organizacionais anteriormente enraizados?
A incerteza e a impre v i s i b i l i d a d e
são extensíveis a todas a s e sferas
da acção social.
O campo económico não lhes
escapa, evidência disso, por exemplo, são os anúncios publicitários.
Atentemos para a ambiguidade
deste anúncio: “quer parecer mais
bonita? use... o melhor produto do
mundo; ou o produto X custa Y, e
no acto do pagamento afinal custa
Z e lá está uma menina de sorriso
aberto a explicar que o preço Z é
com o IVA incluído! Ou os pre ç o s
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LATITUDES
do tipo 2,999! Não serão estas,
mentiras da gr ossa?
Na esfera política são os
p rogramas eleitoralistas que não
definem nada, omitindo, ou,
mentindo: “faremos isto mais
a q u e l o u t ro”; construiremos um
estádio de futebol em cada pro v í ncia; quando eu ganhar ninguém
pagará impostos!
Estes são um arrolamento de
mentiras desmedidas, vontades
expressas que vão ao encontro dos
desejos do já de si depauperado
nosso povo. Não será isto mentira
e anti-ética da grossa?
As “correntes mentiro g é n e a s ”
atingem as nossas instituições políticas; o rumor e a i ntriga a ndam e
tresandam pelos meandros da política. Não é sem razão que o actual
chefe do Estado fez questão de
dizer no seu primeiro discurso, após
sua proclamação, que não vai tolerar a intriga. Tal significa no mínimo
que os meandros da nossa política,
p a r t i c u l a rmente do partido no
p o d e r, não escapam às corre n t e s
m e n t i rogéneas, e que, por i sso, o
aviso à navegação passa por uma
mudança a t i t u d i n a l e de cultura
o rganizativa. Aqui cabe papel
p reponderante ao partido Fre l i m o
que, no meu entender, deve continuar a desempenhar papel de nave
mãe dos processos sócio-económicopolítico-culturais em Moçambique.
Portanto, se assim é, assim deve ser:
a Frelimo deve levar avante a chama
da verdade, combatendo a mentira
e a sua irmã a inveja, primeiro entre
os seus membros. Depois, tal como
nos anos posteriores a 75, estender
a luta do Rovuma ao Maputo a través dum trabalho político de base,
tal como a chama da unidade
acende a nação inteira.
Por tudo isto, me parece legítimo citar Jorge Rebelo: “Não basta
que seja pura e justa a nossa causa,
é necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós”.
Se queremos, tal como Jorg e
Rebelo o escreveu, i n t e rn a l i z a r a
nossa pureza e a justiça, que é,
p r i m e i ro que tudo, a luta pela
verdade que é a liberdade, a produção da diferença e o bem-estar do
nosso povo, então temos que,
desde já, mentir menos e, paulati-
namente, p autarmos s ó e só pela
v e rdade. D e c ontrário, e stamos a
passar um legado que, tanto quanto
eu s aiba, não corresponde nem à
ciência, tão pouco à arte, muito
menos à filosofia e tão pouco ao
mito. Contrariamente, estaremos a
dizer que o que deve vingar são as
c o r rentes mentirogéneas e invejoséneas, o que não parece ser apanágio do povo moçambicano. O povo
moçambicano é sério e abomina a
mentira e a i nveja. Quanto menos
não seja só pela nossa tradição
enraizada na ver dade l
1
2
3
4
No seu estudo O Suicídio, Durkheim
refere-se às correntes suicidogéneas
como sendo aquele conjunto de pré
condições conducentes ao acto do
suicídio. Por analogia, corrente mentirogéneas seria o conjunto de pré
requisitos (predisposições) que
impelem à mentira. Analogamente, e
na mesma lógica, corrente invejosénea seria o conjunto de condições
pré criadas conducentes à inveja.
Ndzeru mbawiri quer dizer literalmente o juízo são dois, isto é, o
bom juízo é o de duas pessoas. Tal
como o diz José Pampalk, “o sentido
é uma pessoa sòzinha engana-se, é
preciso contrastar opiniões, consultar, ouvir os outros. A palavra e
sabedoria de várias pessoas merece
atenção, respeito - contrariamente à
mentalidade do sabe-tudo.”
O porco não se contenta com a
saciedade do javali. Ridículo não é?
Provérbio Sena cuja tradução livre é:
Sabe bem comentar as coisas do
genro (desqualificando-o) e as coisas
do sogro por quem serão comentadas? Moral: não desqualifiques o
outro sob pena que tu também sejas
desqualificado.
25
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