Ensaio Sobre a Mentira e a Inveja O Caso Moçambicano Filimone Meigos “homini mendax ab initio” (o Homem é mentiroso desde o início) 1. A mentira e a inveja sua irmã siamesa A mentira ocorre nas re l a ç õ e s sociais diárias. Ela pode ocorrer na dimensão do senso comum, da re l igião, da filosofia, da arte ou mesmo da ciência, essa outra crença em que todos confiamos e supomos v i rgem e i maculada. Do ponto de vista teórico o estatuto de tais formas de conhecimento é equivalente. Quer dizer que nenhuma das f o rmas de conhecimento mencionadas vale mais que a outra. Esta não é a discussão que me pro p o n h o f a z e r, mas é um parêntesis que reputo pertinente porque, penso, ajuda a entender o meu ar gumento. Neste caso, quero fazer referência à mentira de senso comum que, ao sê-lo, engloba todas as o utras formas de conhecimento enquanto mentiras, exactamente porq u e gozam do mesmo estatuto. Aliás, em última análise, qualquer uma das formas de conhecimento se “comumsensoaliza”. Isto é, o conhecimento da realidade que nos c i rcunda, ou falar dela, passa a ser sensitivo, s ubjectivo e valorativo. Deste modo, to dos nós temos algo a dizer, sem que necessariamente tenhamos que seguir grandes métodos. Basta ouvir dizer, ou simplesmente criar um facto, para animar a conversa. “Diz-se que”... “ouvi dizer que”... “porque o vi”, “porque o senti”.... “porque toda a gente o diz”.... consta que... Ass im, o senso comum acaba sendo veículo do rumor, mentira e inveja que, dada a dependência funcional entre si, pode ser objecto duma sociologia especial, a “sociologia do rumor e da inveja”. P a rece-me que a mentira e a inveja, sua irmã siamesa, são mais dois entre os vários “sapatos sujos” n° 25 - décembre 2005 LATITUDES que podem explicar tentativamente, o nosso quotidiano. Mentir é uma atitude para com a vida e, por conseguinte, para com os outro s . Escusado será dizer que é uma “atitude má”, feia e repugnante. Ter inveja de outrem, se bem que humano, não se coaduna com uma atitude de “relação para com os valores” na vida. Se assim é, porque é que as pessoas mentem? Porque é que as pessoas têm inveja das outras? O que é que estará por detrás das mentiras e invejas que povoam a s nossas relações sociais? Não se exige de todos uma racionalidade instrumental, portanto, factual, contingente, sistemática, verificável e apro x i m a d a m e n t e exacta. Todavia, no mínimo, é justo que se exija de cada um de nós uma “racionalidade com relação a valores”, entendida na acepção do sociólogo alemão Max We b e r. Isto significa dizer que, pelo menos, temos que ter em conta a nossa cultura, que abomina a mentira. Temos que revisitar as nossas religiões que, tal como rezam os seus mandamentos, condenam a mentira. Temos que repensar a ética que institucionaliza a verdade. E temos que rever a nossa noção de estética que, no mínimo, diz que é feio m e n t i r, seja no plano do senso comum, da religião, da ciência, da arte ou da filosofi a. P roponho-me, pois, fazer uma sociologia do rumor tendo por base o estudo das suas correntes “mentirogéneas” e invejoséneas”1 neologismos que são, aliás, o pilar do meu argumento neste trabalho. 1.1. O senso comum essa inesgotável fonte primária de “corre n t e s mentirógenas e invejoséneas” “Ndzeru Mbawiri”2 O conceito de senso comum captei-o na UFICS. Devo-o à professora C onceição O sório, das aulas de introdução às Ciências Sociais, e às discussões que tínhamos na cantina, hoje feita secretaria por força de um acto administrativo. Ao tempo estudantes, chamávamos a tais encontros à mesa com cerveja à mistura, o círculo de Viena, em honra ao real Círculo, espaço de discussão de ideias que se fez paradigma. O meu interesse a qui é apenas o senso comum e suas corre n t e s m e n t i rogéneas e invejoséneas. P retendo v er o quão pernicioso o senso comum pode ser para as nossas vidas como pessoas e como comunidade imaginada que somos, este barco no alto mar, a nação moçambicana, quando tal senso comum se tor na mentira e inveja. No entender do senso comum, o que parece é, não precisa de p rova, pois é. É como algumas opiniões que aparecem nas cartas de leitores dos nossos jornais, ou nas páginas da internet, que nada mais são se n ão uma forma de criar factos i r reais, de construir inexistências, “só para lixar algum v isado”, p o rque, “ o(a) g ajo(a) tem mania, ginga muito”, é “machangana” e “sacou-me a dama(o)”. Na verdade, o que está por detrás de tais “lixanços”, são a inveja, o discurso de desqualificação do outro, p reconceitos, rotulagens, e, claro está, o teor “mentiro g é n e o ” e “invejoséneo”. Poderia f alar de muitos mais palavrões, mas, j á q ue e stamos na era de descalçar sapatos (Mia Couto) e de limpeza das nossas más maneiras (Elísio Macamo), ficome por aqui, esperando que tudo isso seja um transe passadiço, fugaz e processual, pois, parafraseando Juliyus Nyere re, Moçambique está no alto mar. E stou e m crer que o 21 mau tempo um dia passará e, consequentemente, os t s u n a m i s d a s nossas más maneiras dissipe. De modo geral, o que suscita tais comportamentos no “barco em pleno mar alto” é a sensação causada pelo “ciclone” e consequente “turbilhão” do sucesso de terc e i ros, o que de im ediato acciona nos passageiros mentirosos e invejosos os mecanismos daquilo a q ue os sociólogos chamam de preconceito e de teoria da ro t u l a ç ã o / rotulagem. Uma espécie de “náusea” motivada pelas ondas do sucesso alheio. Chegados aqui, talvez caibam alguns truísmos explicativos já que, “as massas de ar quente” abundam, a ponto de causar mal estar geral no “barco nacional”, quanto menos não seja só pelo “cheiro nauseabundo”. Primeiro truísmo: A inveja Kukhuta kwa njiri, nkhumba nkhabe sekera bi3 A inveja é definida como um sentimento de desgosto e ódio simultâneos provocados pelo bem ou pela felicidade de alguém. Numa outra dimensão, a inveja é o sentimento que se traduz pelo desejo de possuir aquilo que outrem possui ou de o igualar ou superar em alguma coisa. A inveja é um misto de desgosto e raiva por aquilo que outra pessoa tem ou é. No fundo trata-se de despeito. Há quem diga que a inveja não é má. No entanto, eu entendo que, se a acção de cada um de nós for levada a cabo nos quadros de v a l o res mínimos para com o outro, p a rece-me que a inveja não tem razão de ser e t ão pouco tem lugar nas nossas acções. Se estivermos a falar de inveja praticada em espaços partilhados, aliás só assim ela tem razão de ser, a inveja é simplesmente repugnante, embora muitos de nós persistam em en veredar por ela. De qualquer modo ela é um potencial motor para a mentira, ou vice-versa. Segundo truísmo: O preconceito e a rotulagem Pya nkamwene pinadzipa kulonga, pya tebzala pinalongwa na ani?4 22 2.1. O preconceito Segundo o dicionário de sociologia de Allan Johnson, “pre c o nceito é a teoria da desigualdade racial, étnica, entre outras formas, e discriminação é a sua prática”. P reconceito é u ma atitude cultural positiva ou negativa dirigida a membros de um grupo ou categoria social. Como uma atitude, combina crenças e juízos de valor com predisposições emocionais positivas ou negativas. O preconceito é sociologicamente importante porque fundamenta a discriminação, o tratamento desigual de indivíduos que pertencem a um grupo ou categoria partic u l a r. Daqui resulta que, bastas vezes, tudo o que é diferente é julgado com base nos nossos próprios valores. Isso me parece ser “sociologicamente injusto”, já que, embora haja valores universais, também os h á locais e pessoais que não chocam necessariamente com os primeiros, são apenas diferentes. Este é também, outro potente motor que acciona a mentira e a inveja, o não aceitar a diferença, ou melhor, abominar a diferença. A produção da diferença é uma questão que tem a ver com as identidades. Melhor, a identidade também se define como sendo a produção da difere n ç a . Para os invejosos, o facto de eu “ o c o r rer” de forma diferente, como me visto, como falo, como como, e todo o meu modo/estilo de vida ser d i f e rente, é forte motivo para debate no sentido de desqualificação, inveja e rótulo. 2.2 a r otulação/rotulagem O rótulo define o indivíduo como sendo um determinado tipo de pessoa. Portanto, a ro t u l a g e m quer dizer mesmo isso: pôr um rótulo. No entanto, tal rótulo pode corresponder à verdade ou não. De qualquer forma, o rótulo é um “estatuto d irector” no s entido e m que, obscurece todos os outros estatuto s ostentados pelo indivíduo rotulado. Nós compramos a cerveja 2M pelo rótulo que nos foi vendido anteriormente, a marca, a imagem. F a z e n d o - o , supomos que o conteúdo é mesmo 2M. Mas há quem se deleite vendendo gato por lebre. Se, por exemplo, alguém é ro t ulado de drogado, ou tribalista, ou racista, ou armalhão, esse rótulo supera o seu estat uto de pai, irmão, vizinho e provavelmente de b om cidadão, n o s entido d e indivíduo que pensa e age pelos seus e pela República. O rótulo s upera a sua qualidade de ser social arreigado a valores do bem comum e de dignidade que, provavelmente, ostenta. Assim, o i ndivíduo é automaticamente encaixado no padrão dos desviantes, uma subcultura que por definição é contra a norma e a regra. Cá está o gato e a legitima pergunta: quem leva o gato ao guizo, já que vai ser vendido por lebre ? Mais grave, é o facto do indivíduo, pobre lebre, ser tido por desviante, e, como se não bastasse, internaliza essa presunção e, desde então, supõe-se desviante e marg inal, o que afecta a su a conduta, as suas acções e relações sociais. Há no entanto, a prerrogativa da agência ( a g e n c y ). Isto é, a possibilidade que os a ctores sociais t êm de, independentemente do que é dito sobre si, agirem diferentemente e de acordo com o seu estado volitivo-emocional, com vista a in flu e nciar sistemas/ estruturas sociais. Todavia, não nos esqueçamos que, tal como o diz o sociólogo francês Émile Durkheim, os actores sociais são pressionados por um duplo constrangimento, duplo laço: d o u b l e b i n d. Tal s ignifica dizer q ue, p or um lado, os actores sociais são constrangidos pelas normas e valores que são parte do sistema/estrutura. Por outro, o mesmo actor social internaliza-as, o que acaba sendo uma espécie de “autocensura”. É verdade que eu não me comporto de qualquer maneira, caem-me logo em cima as manas, os a migos e os colegas, os profess o res, os e studantes e os “cinzentinhos”. Para não falar dos meus s u p e r i o res hierárquicos e das próprias normas que habitam as minhas condutas. Por outro lado, só de pensar no que me dirão em resultado desse comportamento “impensado” nem sequer me atre v o a levá-lo a cabo. A liás e u próprio constranjo e ssa ignóbil i deia, mal de mim se assim não fosse. LATITUDES n° 25 - décembre 2005 Chegados aqui penso ter ficado claro que o preconceito e a rotulação são atributos que estruturam as c o r rentes mentirogéneas e in vejoséneas. O passo seguinte é a casalar tais atributos veiculados pelo senso comum à sociologia do rumor que os e studa, olhando para as consequências funcionais e p ara as variáveis explicativas estruturadas pela mentira e pela inveja. Partidos que estão os ovos agora vou pôr tudo na batedeira e fazer o bolo. 3. Acasalando o senso comum à sociologia do rumor A primeira vez que ouvi a formulação “sociologia do rumor” foi da minha professora de i ntrodução à Sociologia, a Dra. Maria do Céu do Carmo Reis. Entendi que ela se referia à maneira como os discursos circulam através das redes sociais, e nos chegam via “rádio boca” e em “cadeia nacional”, sendo ou não v e rdade, no entanto fazendo jus ao dito “ segredo é aquilo q ue s e diz baixinho de ouvido em ouvido”: “Diz-se que... ouvi dizer que...”, e lá vai a má nova corroendo os tímpanos dos mais incautos, dos menos prevenidos. Numa explicação dum parágrafo a sociologia trata de alojar os fenômenos, os processos, no espaço e no tempo, traçando as suas características estruturantes, padronizandoos e tipificando-os. A sociologia p rocura compreender para explicar tais fenômenos ( v e r s e t e h e n ). A sociologia d o r umor seria, e ntão, uma sociologia especial. Por conseguinte, seria a sociologia que explica a acção mentirosa, seus atributos e suas nuances estruturantes tentando c o m p reender para explicar as correntes mentirogéneas. No meu entender, o senso comum e a sociologia do rumor têm uma relação funcional, porque, se, para o senso comum, aquilo que p a rece é, a “sociologia do rumor” é o ramo da sociologia que operacionaliza e estuda o primeiro. Sabido que a sociologia é o estudo da interdependência, é justo aventarm o s algumas hipóteses de trabalho sobre n° 25 - décembre 2005 LATITUDES Samate, sem título, acrílico sobre tela, 2003. essa interdependência, ou que dela resultam. Primeira hipótese: A mentira, e a inveja sua correlata, podem ter várias funções. Neste caso a primeira é a possibilidade de semear ou não a coesão social nessa interdependência de actores sociais. Segunda hipótese: Paralelamente, a mentira e a inveja estabelecem as balizas do espaço social que ocupamos em interacção. Isto é, tal espaço é estrutura do pela mentira e pela inveja. Ou seja, a mentira e a inveja criam um espaço social cujo denominador comum e a glutinador está ancorado nas correntes mentirogéneas e invejoséneas. Portanto, somos postos perante uma re a l idade s ocial m entida, mentirosa e invejosa, pois só faz sentido mentir s o b re gente que nos diz re s p e i t o , os nossos aos quais temos acesso. Ou, por outra, através da mentira e da inveja é possível construir e destruir o nosso espaço social! Não sei se d aí resulta uma sociedade de m e n t i rosos e invejosos e se isso constitui problema: mas daí re s u ltam coisas que nos deviam pre o c up a r, principalmente no que toca a (des)confiança “no nosso seio”. Se pensarmos como Fukuyama (1996), haverá que ter em conta o facto das lições morais serem passadas, transmitidas, não de form a racional, mas através de imagens, de costumes e de opiniões so ciais. Portanto, se a nossa opinião é mentira e mentirosa, então, estamos a criar um sólido mundo mentiroso, sem carácter, e amoral que se incrusta nos nossos costumes e hábitos que se tornam h a b i t u s, portanto, um conjunto de pre d i s p osições que explicaremos mais adiante. Te rceira hipótese: Não terá a (des)confiança e o receio de dizer, ou de produzir diferença a ver com o facto de que a mentira nos habituou a não confiar, e de recearmos sanções sociais, decorrentes do referido duplo constrangimento, mesmo que o que se diz sobre nós resulte de correntes mentirogéneas e invejoséneas? Quero sublinhar que a confiança pode ser usada como variável explicativa para múltiplas a cções ou não acções, seja no plano político, económico, cultural, ou mesmo nas simples relações s ociais do nosso quotidiano, j á de s i dramatúrg i c o ( G o ffman). Tal como o diz H ollis (1998), a confiança pode ser um p o d e roso activo incrustado no mundo da racionalidade. Isto quer dizer tão somente que a confiança nos põe a agir em “ralenti”, pela i n é rcia, pelo hábito, pela experiência assumida de que “o outro” é 23 alguém em que se pode fazer fé, portanto, em quem se pode confi ar. Na verdade, nenhuma sociedade é possível sem doses elevadas de confiança entre os seus membro s , seja ela tácita ou implícita, seja ela formalizada e contratual: A confiança m a rca s empre uma articulação de jogos de expectativas que se t r a v a m entre “nós” e um “outro”. A confiança é um adensador ou um acelerador das relações sociais. Segundo Rafael Marques (2003): “ Nas margens do risco e do sacrifício, a confiança surge como um operador social de p recipitação so cial, um óleo de sistema que garante que as r elações se acelerem (...) aquele que confia descentra-se de si e mergulha no o u t ro, pre c i p i t a n d o - s e para alguém que figura como elemento capital”. A relação de confiança estabelece como garantia a figura do “ o u t ro” e a entrega do eu ao “outro”, o que implica a ausência de garantias, certificados e suportes e xternos. N o fundo, confiança significa entregar um cheque em branco ao outro nas relações quotidianas. A questão que se nos impõe de imediato é: O que é que se passa quando esse outro não está, tal como nós, nos nossos quadros de referência, nos nossos q u a d ros decisionais, e por conseguinte, age de f o rma “anormal” do nosso ponto de vista, portanto, mente imbuído em correntes mentirogéneas e invejoséneas, isto é, mente com base em “motivos ocultos e intenções estranhas” (Jorg e Rebelo) ? No mínimo esse alguém pega nesse cheque e, ao invés de pre e ncher o montante corre s p o n d e n t e , abusa da nossa confiança e faz das suas, tornando uma simples c o n fiança num caso de PIC (Polícia de Investigação Criminal). 24 Quarta hipótese: Se este é o nosso comportamento t al d á a zo a u ma q uarta e, por enquanto, última hipótese re l acionada com o conceito deh a b i t u s entendido na acepção de Bourdieu. Na verdade, o termo h a b i t u s é bastante antigo, vem d os t empos de Aristóteles, se bem que Bourdieu o use de forma distinta. Para B o u rdieu (1994), tais disposições geram práticas, percepções e atitudes que são “regulares” mesmo sem Bela Rocha, “Segredo”. serem conscientemente coordenadas, ou governadas por quaisquer regras. As disposições que constituem o h a b i t u s são inculcadas, estruturadas, duráveis, t ransponíveis ( t r a n s p o s a b l e ) e g enerativas. Estas disposições merecem uma pequena explicação. Elas são adquiridas, segundo B ourdieu, através dum processo gradual de inculcação onde a socialização primária é particularmente importante. Através duma série de processos de apre n- dizagem mimética nós internalizamos o h a b i t u s. Tal é o caso, por exemplo, das boas maneiras á mesa (não f alar com a b oca cheia, n ão comer com o s olhos, e tc.). A ssim os indivíduos adquirem um naip de disposições que enformam, estruturam o s eu q uadro d e re f e r ê n c i a s . Um individuo que cresceu num ambiente e mbebido em corre n t e s m e n t i rogéneas e invejoséneas é mais propenso a re p roduzir tal ambiente social. As disposições estruturadas são duráveis, uma vez inculcadas deixam celeumas para o resto da história de vida do indivíduo operando de modo préconsciente o que torn a a sua mudança difícil à luz duma consciência reflexiva. Finalmente, as disposições s ão g enerativas e t ransponíveis no sentido em que elas são p ropensas a gerar uma multiplicidade de práticas e percepções noutro s campos que não s ejam os da sua proveniência. Ou seja, se me ensinaram a mentir em política, tal se reflecte, sem que eu dê por i sso no meu quotidiano com a namorada, com os colegas e com o cobrador do c h a p a, por exemplo. Se me ensinaram a mentir, a batotar no futebol, tal se re flecte no meu dia a dia, já que a vida é também um jogo, se bem que suposto ser limpo (fair play). O habitus providencia os indivíduos com estratégias de como vão agir e responder aos estímulos diários na sua vida. Por conseguinte, mentindo e tendo inveja dos outros, estamos a passar um mau legado, um h a b i t u s d e c o r rentes mentirogéneas e invejoséneas às gerações vindouras. O resultado dessa equação é uma juventude mentirosa, passe o exagero e salvas as devidas excepções. Por conseguinte, ver-nos-emos confro n- LATITUDES n° 25 - décembre 2005 tados com uma juventude sem compromisso com a verdade e valores correlatos. Na verdade, trata-se de uma juventude fruto desse processo mimético que é a so cialização incrustada pela intriga, fruto da mentira e da inveja, que “nós os mais velhos” ensinamos através dos nossos actos e d iscursos mentirosos e invejosos. Perg u n t a r-me-ão: Não será exagerado pensar assim, e só por isso culpar toda uma g eração “mais velha” sobre o porvir? Em resposta direi que nunca é demais re c o rdar o adágio: “as palavras levam-nas o vento”. Assim, daqui decorre uma série de contra perguntas: - Como fazer dissipar equívocos, mentiras e invejas pro p a l a d a s pelos “mais velhos”, aos sete ventos, pelos quatro cantos do mundo, se “tudo o vento levou”? - Quem acarreta com os danos morais, por vezes materiais, se o rumor a caba s endo imputado a um autor/actor colectivo i nominado? - Onde começa e onde acaba a nossa responsabilidade? - Não terá o nosso fraco sentido de responsabilidade a ver com o facto de que lidamos com um mundo social que consideramos i m p revisível, incerto, mentiroso e invejoso? Penso que aqui cabe muito bem alusão à sociologia do risco, da incerteza. - Não terá o espírito do “deixa andar” de alguns a ver com o facto de não quere rem sofre r re p resálias, fruto de corre n t e s “mentirogéneas” e “invejoséneas” d e c o r rentes de comportamentos e atitudes organizacionais anteriormente enraizados? A incerteza e a impre v i s i b i l i d a d e são extensíveis a todas a s e sferas da acção social. O campo económico não lhes escapa, evidência disso, por exemplo, são os anúncios publicitários. Atentemos para a ambiguidade deste anúncio: “quer parecer mais bonita? use... o melhor produto do mundo; ou o produto X custa Y, e no acto do pagamento afinal custa Z e lá está uma menina de sorriso aberto a explicar que o preço Z é com o IVA incluído! Ou os pre ç o s n° 25 - décembre 2005 LATITUDES do tipo 2,999! Não serão estas, mentiras da gr ossa? Na esfera política são os p rogramas eleitoralistas que não definem nada, omitindo, ou, mentindo: “faremos isto mais a q u e l o u t ro”; construiremos um estádio de futebol em cada pro v í ncia; quando eu ganhar ninguém pagará impostos! Estes são um arrolamento de mentiras desmedidas, vontades expressas que vão ao encontro dos desejos do já de si depauperado nosso povo. Não será isto mentira e anti-ética da grossa? As “correntes mentiro g é n e a s ” atingem as nossas instituições políticas; o rumor e a i ntriga a ndam e tresandam pelos meandros da política. Não é sem razão que o actual chefe do Estado fez questão de dizer no seu primeiro discurso, após sua proclamação, que não vai tolerar a intriga. Tal significa no mínimo que os meandros da nossa política, p a r t i c u l a rmente do partido no p o d e r, não escapam às corre n t e s m e n t i rogéneas, e que, por i sso, o aviso à navegação passa por uma mudança a t i t u d i n a l e de cultura o rganizativa. Aqui cabe papel p reponderante ao partido Fre l i m o que, no meu entender, deve continuar a desempenhar papel de nave mãe dos processos sócio-económicopolítico-culturais em Moçambique. Portanto, se assim é, assim deve ser: a Frelimo deve levar avante a chama da verdade, combatendo a mentira e a sua irmã a inveja, primeiro entre os seus membros. Depois, tal como nos anos posteriores a 75, estender a luta do Rovuma ao Maputo a través dum trabalho político de base, tal como a chama da unidade acende a nação inteira. Por tudo isto, me parece legítimo citar Jorge Rebelo: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”. Se queremos, tal como Jorg e Rebelo o escreveu, i n t e rn a l i z a r a nossa pureza e a justiça, que é, p r i m e i ro que tudo, a luta pela verdade que é a liberdade, a produção da diferença e o bem-estar do nosso povo, então temos que, desde já, mentir menos e, paulati- namente, p autarmos s ó e só pela v e rdade. D e c ontrário, e stamos a passar um legado que, tanto quanto eu s aiba, não corresponde nem à ciência, tão pouco à arte, muito menos à filosofia e tão pouco ao mito. Contrariamente, estaremos a dizer que o que deve vingar são as c o r rentes mentirogéneas e invejoséneas, o que não parece ser apanágio do povo moçambicano. O povo moçambicano é sério e abomina a mentira e a i nveja. Quanto menos não seja só pela nossa tradição enraizada na ver dade l 1 2 3 4 No seu estudo O Suicídio, Durkheim refere-se às correntes suicidogéneas como sendo aquele conjunto de pré condições conducentes ao acto do suicídio. Por analogia, corrente mentirogéneas seria o conjunto de pré requisitos (predisposições) que impelem à mentira. Analogamente, e na mesma lógica, corrente invejosénea seria o conjunto de condições pré criadas conducentes à inveja. Ndzeru mbawiri quer dizer literalmente o juízo são dois, isto é, o bom juízo é o de duas pessoas. Tal como o diz José Pampalk, “o sentido é uma pessoa sòzinha engana-se, é preciso contrastar opiniões, consultar, ouvir os outros. A palavra e sabedoria de várias pessoas merece atenção, respeito - contrariamente à mentalidade do sabe-tudo.” O porco não se contenta com a saciedade do javali. Ridículo não é? Provérbio Sena cuja tradução livre é: Sabe bem comentar as coisas do genro (desqualificando-o) e as coisas do sogro por quem serão comentadas? Moral: não desqualifiques o outro sob pena que tu também sejas desqualificado. 25