RELENDO A BÍBLIA, REVENDO A TEOLOGIA Volume II

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Paulo Neto
RELENDO A B ÍBLIA,
R EVENDO A T EOLOGIA
Volume II
Análise crítica de alguns temas bíblicos de
acordo com uma visão não dogmática.
Agradecimentos
Os nossos sinceros agradecimentos a todos os membros do Grupo
Apologético Espírita – GAE, (www.apologiaespirita.org) pelo apoio e
incentivo nas pessoas dos amigos Maurício C. Pimenta, Dr. João Frazão
de Medeiros Lima e Hugo Alvarenga Novaes pelas suas valiosas
sugestões aos textos colocados nesse nosso livro.
À minha esposa Rosana e aos meus filhos Ana Luisa, Rebeca e João
Pedro, que souberam compreender o tempo que lhes retiramos para
dedicar a esse livro.
Índice
Apresentação.................................................................................................................4
Prefácio.........................................................................................................................6
Nascido de uma virgem...................................................................................................8
Jesus de Belém ou de Nazaré?.......................................................................................24
A Fuga para o Egito......................................................................................................45
Bodas de Caná: o primeiro sinal.....................................................................................48
João Batista é mesmo Elias?..........................................................................................50
Eucaristia: Jesus a instituiu?..........................................................................................67
A conversa de Jesus com Nicodemos...............................................................................77
O Ritual do Batismo......................................................................................................89
A traição de Judas – uma história mal contada...............................................................106
A questão do bom ladrão.............................................................................................114
Espíritos em Prisão.....................................................................................................118
A morte de Agripa.......................................................................................................121
O antigo testamento foi revogado por Jesus?.................................................................124
Jesus ficava calado?....................................................................................................131
Ressurreição da Carne?...............................................................................................140
O que efetivamente nos salva?.....................................................................................145
Toda Escritura é mesmo inspirada?...............................................................................165
O Consolador veio no Pentecostes?...............................................................................183
Jesus pode ser considerado Deus?................................................................................192
A morte de Jesus foi para a remissão de pecados?..........................................................223
Conclusão Final..........................................................................................................255
Referências Bibliográficas.............................................................................................256
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Apresentação
A Bíblia é um livro excepcionalmente importante para toda a Humanidade.
Foi o primeiro livro a ser impresso tipograficamente, sendo também a obra publicada no
maior número de idiomas em todo o mundo.
Para alguns, o livro representa a palavra de Deus, de capa a capa. Para outros,
entretanto, seu texto deve conduzir à reflexão e apreciado como literatura alegórica, em
muitas oportunidades.
A Bíblia é chamada de “O Livro Sagrado”, pelo respeito exacerbado que, ao longo dos
séculos, foi construído pela Igreja. A reforma protestante exaltou, ainda mais, o texto bíblico,
buscando torná-lo inatacável.
As gerações humanas se sucederam, sem que, mesmo quanto aos trechos da Bíblia
notoriamente exagerados ou controversos se colocasse qualquer observação, sob pena de
granjear, o audacioso que assim procedesse, o epíteto de herege ou sacrílego.
É inegável o excepcional valor de muitos ensinamentos do livro.
É inaceitável, contudo, afirmar-se ser, todo o seu conteúdo a palavra de Deus, tantas
são as menções carentes de racionalidade.
Com a evolução temporal, surgiram vários estudiosos que deliberaram esclarecer,
debater e reparar as passagens bíblicas merecedoras de observação.
No Brasil, anteriormente, destacaram-se, como críticos da Bíblia, o conspícuo Dr. Carlos
Imbassahy, espírita convicto e militante e o Dr. Mário Cavalcanti de Melo, autor do livro “Da
Bíblia aos Nossos Dias”, cujo subtítulo é: “Suas lendas, seus erros e contradições”, em obra
prefaciada pelo Professor Deolindo Amorim.
Hodiernamente, irrompe outro grande estudioso da Bíblia, em seus múltiplos aspectos,
o estimado confrade Paulo da Silva Neto Sobrinho, com os mesmos objetivos colimados por
aqueles precursores ilustres, qual seja, o de retirar as “escamas” que perduram nos olhos de
tantos, incrustados num dogmatismo irremovível.
O escopo de Paulo Neto, nesta obra, confunde-se integralmente ao daqueles baluartes,
o que se pode depreender da transcrição que, com a devida vênia faremos, de excerto do
prefácio do Professor Deolindo Amorim à obra de Mário Cavalcanti de Melo:
“A preocupação do Autor, entretanto, é de quem, não estando conformado com certos
ensinos bíblicos até agora aceitos como definitivos e verdadeiros, quer rasgar o véu que ainda
encobre muitas passagens da Bíblia e, assim, afastar dúvidas ou equívocos sensivelmente
prejudiciais à exata compreensão de muitos pontos da História.”
A maior virtude desta nova obra analisadora e revisora dos textos bíblicos é o enfoque
de novos aspectos, sob uma ótica, raciocínio e lógica diferentes. Entretanto, acontece com
todos aqueles que buscam estudar a Bíblia com base no realismo, serem considerados
heréticos e inimigos da fé.
Anteriormente, Paulo Neto lançou outra apreciada obra sobre o mesmo tema: “A Bíblia
à Moda da Casa”.
Evidenciando o fato de que a análise do texto bíblico prossegue suscitando muito
interesse, surgiu esta nova obra, com nova formatação, em que os temas são estudados em
tópicos separados.
As incongruências, insubsistências e diatribes são exaustivamente estudadas, e o Autor
demonstra excepcional capacidade ao demonstrá-las, e mais, de extrair conclusões eivadas de
racionalidade das suas colocações.
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Assim como aconteceu com a sua obra antecedente, “A Bíblia à Moda da Casa”, este
novo trabalho do Autor é um libelo contra o fanatismo e o dogmatismo.
Tudo porque o enfoque dado ao texto bíblico é calcado num raciocínio embasado na
Doutrina dos Espíritos, de Allan Kardec.
O Espiritismo trouxe novos conhecimentos e novas luzes, em campos do saber humano
até então inamovíveis, seja pelo tradicionalismo, seja pela oclusão mental. “Mais vale repelir
dez verdades do que admitir uma só mentira”, lecionou o Codificador.
Paulo Neto embasa suas reflexões, observações e conclusões no conhecimento espírita,
que vem amealhando ao longo de seus estudos, em estrita observância aos preceitos
doutrinários.
Todo o seu trabalho é, mui certamente, oriundo de exaustivas pesquisas e de uma
busca incessante de fontes confiáveis, pois a abordagem e a temária mexe e incomoda aos
exegetas de plantão. O embasamento é necessário e, muitas vezes, imprescindível, para
abafar reações esdrúxulas dos que se sentem atingidos com a exposição realista que é
apresentada.
Não é possível, entretanto, que se continue aceitando como verdade intocável e
inamovível certas colocações e certas passagens bíblicas, à vista de equívocos e
impossibilidades que saltam à vista de quantos as compulsem.
Esta não é uma obra de leitura, mas sim de estudo. Apresentada em tópicos , cada um
deles vai suscitar reflexão por parte do leitor. Alguns dos raciocínios e explicações
apresentados serão apreciados com surpresa, levando o leitor a uma pergunta inevitável:
“como nunca pensei nisso antes?”
Honra ao raciocínio, à crítica e à capacidade intelectiva de Paulo Neto, lançando esta
nova obra sobre assunto tão delicado e tão profundo quanto o conteúdo da Bíblia.
Usufruamos desse manancial de informações.
Belo Horizonte, em 15/04/2005.
Gil Restani de Andrade (1941-2006)
N.A.: Infelizmente o nosso companheiro e mestre Gil Restani desencarnou em 29/11/2006. A
ele nossa eterna gratidão.
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Prefácio
Mantivemos, aqui nesse volume II, a apresentação do nosso companheiro Gil Restani de
Andrade, por dois motivos. Um como uma singela homenagem póstuma a quem soube viver
plenamente os ensinamentos Espíritas, pois era, como se diz, um Espírita de primeira linha. O
outro, gostaríamos de justificar porque, quando ele fez o prefácio, o texto do livro era único,
mas, por necessidade, acabou sendo publicado em dois volumes.
Continuando com o nosso estudo da Bíblia, agora especificamente, aos textos do Novo
Testamento, vamos rever as explicações oferecidas pela teologia dogmática, para sair das
interpretações de conveniência, em busca daquilo que realmente deve ser entendido os textos.
Como fizemos no Volume I, trabalhamos como se não tivéssemos nenhuma informação
sobre os assuntos enfocados para que nada pudesse nos influenciar, já que os dogmas
poderiam nos manter estacionados nas mesmas interpretações interesseiras, onde, para nós,
se encontram os equívocos teológicos, que não causam preocupação a quase ninguém.
Graças a Deus, estamos sentido uma crescente busca dos fatos acontecidos, isso, como
não poderia deixar de ser, também acontece com os assuntos bíblicos. Disso vislumbramos um
horizonte menos nebuloso para a geração futura, que não mais aceitará imposições
dogmáticas, mas quererá, e com razão, saber das coisas usando para isso a lógica e a razão,
longe do creio porque está escrito.
Em não mudou muito em relação ao Volume I, ou seja, o nosso raciocínio sempre nos
guiou para resultados completamente diferentes dos dogmas e interpretações que estávamos
acostumados a acreditar. Entretanto, sempre nos apoiando em pesquisas formamos as bases
consistentes e sólidas que nos levaram aos mesmos resultados, pelos quais já vimos no
primeiro volume. A razão e lógica foram as bases que buscamos para sustentá-los.
Continuamos ainda com certeza de que muitos dos nossos estudos irão chocar algumas
pessoas, especialmente aos fundamentalistas que não arredam o pé daquilo que aprenderam.
Mas a busca da verdade que fomos, nesse tempo todo, pautando os nossos estudos, não nos
permitiu preocupar a qual resultado final poderíamos chegar.
O choque mais extraordinário que tivemos foi quando, no estudo das citadas profecias a
respeito de Jesus, não encontramos uma só que pudéssemos nos apegar como uma verdadeira
profecia, explícita e direta, a seu respeito. Acreditamos que isso também irá chocar a muitos,
entretanto, achamos que a verdade deverá se sobrepor, até mesmo porque Jesus nos
recomendou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Agora, mais do que nunca,
entendemos o verdadeiro sentido dessa frase. Falava o Mestre justamente das adulterações,
das interpolações, das interpretações de conveniência que fariam de seus ensinamentos,
buscando, principalmente, subjugar os fiéis, os quais se tornam, em suas mãos, nada mais
que simples joguetes do interesse do poder social ou financeiro, base fundamental de seus
princípios, que nada tem, é claro, a ver com a verdade que liberta.
E reafirmamos que esse nosso estudo poderá, se bem divulgado, causar
descontentamento em determinada liderança religiosa, essa a qual mais evidência o interesse
do poder e do dinheiro, da qual já falamos. Mas encontrará repercussão favorável naqueles em
que, como nós, o mais importante é a verdade legítima, não a fabricada por interesses como
essas que vigoram entre quase todas as denominações cristãs.
Queremos ver outros autores, os mais gabaritados que nós, levando adiante essa ideia
que iniciamos com esse livro Relendo a Bíblia, Revendo a Teologia, de forma a forçar uma
revisão teológica, a qual achamos urgente e necessária de se fazer.
Da mesma forma que no Volume I, os textos serão colocados, quando for possível, na
ordem em que os assuntos aparecem no AT, quando isso não possível, serão colocados na
ordem cronológica em que foram escritos.
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Paulo Neto
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Nascido de uma virgem
Era costume muito comum de nossos antepassados colocar seus heróis como provindos
de nascimentos sobrenaturais, cujas mães eram invariavelmente jovens virgens; ocorrência
que também podemos verificar na mitologia de muitos dos povos da antiguidade, falando de
deuses que, em contato com jovens virgens, geravam semideuses, os quais teriam, ao mesmo
tempo, a condição de ser humano e divino.
Mulheres virgens se engravidando de deuses, somente se vê isso na mitologia antiga,
onde é coisa comum, conforme o que se poderá ver em vários autores, como, por exemplo,
nos vários que citaremos a seguir.
Pepe Rodríguez (1953- ), no capítulo III, item “Nascer de virgem fecundada por Deus
foi um mito pagão bastante difundido em todo o mundo antigo anterior a Jesus”, do livro
Mentiras fundamentais da Igreja Católica, afirma:
Lendas pagãs deste género foram obviamente integradas na Bíblia, não só
nos referidos relatos dos nascimento de Sansão, de Samuel ou de João Batista,
como, muito mais tarde, no relato do nascimento de Jesus. Regra geral, desde
tempos remotos, quando o personagem anunciado era de primeira
ordem, a mãe era sempre fecundada por Deus, através de um
procedimento milagroso que, fosse ele qual fosse, confirmava
claramente o mito da concepção virginal. Esta confirmação era
particularmente patente na concepção dos deuses-Sol, uma categoria a que,
como veremos, pertence a figura de Jesus Cristo. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 100101) (grifo nosso).
E, um pouco mais à frente, completa:
Todos os grandes personagens, tenham sido eles reis ou sábios – como, por
exemplo, os gregos Pitágoras (c. 570-490 a.C.) ou Platão (c 417-347 a.C.) –, ou
se tenham tornado o centro de alguma religião e acabado por ser adorados
como “filhos de Deus” (Buda, Krishna, Confúcio e Lao Tsé) foram mitificados
pela posteridade como filhos de uma virgem. Jesus, surgido muito depois, mas
destinado a desempenhar um papel semelhante ao que os seus antecessores
haviam desempenhado, não podia ter um estatuto inferior ao deles. Desse
modo, o budismo, o confucionismo, o tauismo e o cristianismo, ficaram
indelevelmente marcados pelo facto de terem sido fundados por um
“filho do Céu”, encarnado através do acesso directo e sobrenatural de
Deus ao ventre de uma virgem especialmente escolhida e apropriada.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 103) (grifo nosso).
Acrescentamos Hans Küng (1928- ), que também nos traz informações interessantes:
[…] Na mitologia greco-helénica os deuses também contraem
“matrimónios sagrados” com filhas de humanos, dos quais nascem
filhos de deuses tais como Perseu e Herácles ou também figuras históricas
como Homero, Platão, Alexandre, Augusto. É impossível deixar de reparar no
seguinte: a concepção virginal em si não é algo exclusivamente cristão!
A ideia de concepção virginal, é, pois, segundo a exegese actual, utilizada com o
objectivo de apresentar uma “justificação” (grego, “aitía”) para a existência do
filho de Deus. […] (KÜNG, 1997, p. 56) (grifo nosso).
Edward Carpenter (1844-1929) traz curiosas observações, quanto ao tema; vejamos:
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Mas quase mais notável que a crença mundial nos salvadores é a lenda
igualmente difundida de que eles nasceram de Mães-Virgens. Não há quase
nenhum deus - como já tivemos a oportunidade de ver - que seja adorado
como um benfeitor da humanidade nos quatro continentes, Europa,
Ásia, África e América - que não tenha nascido de uma Virgem, ou pelo
menos de uma mãe que atribuísse a concepção não a um pai humano,
mas sim ao céu. E isso parece, à primeira vista, o mais surpreendente, porque
acreditar em tal possibilidade é muito absurdo para nossa mente moderna.
Tanto que, enquanto pareceria natural que tal lenda tivesse se espalhado
espontaneamente em alguma parte incivilizada do mundo, achamos difícil
entender como, nesse caso, teria se espalhado tão rapidamente por todas as
partes, ou - se não se espalhou - como podemos explicar seu surgimento
espontâneo em todas essas regiões. (CARPENTER, 2008, p. 108) (grifo nosso).
Carpenter lista também vinte e uma semelhanças da história de Jesus com histórias
antigas de deuses, o que não deixa de ser algo surpreendente; vejamos o que ele diz:
A história de Jesus, como vemos, tem muita semelhança com as
histórias dos antigos deuses Sol e com o percurso atual do Sol nos céus tantas coincidências, que não podem ser atribuídas à mera coincidência ou até
mesmo a blasfêmias do Demônio! Vamos enumerar algumas delas. Há (1) o
nascimento da Virgem; (2) o nascimento na manjedoura (caverna ou câmera
subterrânea); e (3) em 25 de dezembro (logo depois do Solstício de Inverno).
Há (4) a Estrela do Leste (Sírio) e (5) a chegada dos magos (os "Três Reis"); há
(6) o Massacre dos Inocentes, e o vôo para um país distante (dito também de
Krishna e outros deuses Sol). Há os festivais da Igreja de (7) Candelária (2 de
fevereiro), com procissões das velas para simbolizar a luz crescente; há (8) a
Quaresma, ou a chegada da primavera; há o (9) dia de Páscoa (normalmente
em 25 de março) para celebrar a travessia do Equador pelo Sol; e (10)
simultaneamente a explosão de luzes no Sepulcro Sagrado em Jerusalém. Há
(11) a Crucificação e a Morte do carneiro-deus, na sexta-feira santa, três dias
antes da Páscoa; há (12) a prisão feita com pregos em uma árvore, (13) o
túmulo vazio, (14) a Ressurreição (nos casos de Osíris. Attis e outros); há (15)
os doze discípulos (os signos do Zodíaco); e (16) a traição de um dos doze.
Depois, há (17) o Dia do Meio do Verão, o dia 24 de junho, dedicado ao
nascimento de João Batista, e correspondente ao dia de Natal; há as festas da
(18) Assunção da Virgem (15 de agosto) e do (19) nascimento da Virgem (8 de
setembro), correspondentes ao movimento do Sol por Virgem; há o conflito de
Cristo e seus discípulos com os asterismos outonais, (20) a Serpente e o
Escorpião; e finalmente há um fato curioso de que a Igreja (21) dedica o dia do
Solstício de Inverno (quando qualquer um pode, naturalmente, duvidar do
renascimento do Sol) a São Tomé. que duvidava que a Ressurreição fosse
verdadeira! Algumas coincidências, mas não todas, estão em questão. Mas elas
são suficientes, acredito eu, para provar - mesmo permitindo possíveis margens
de erro - a verdade de nossa contenção geral. Entrar no paralelismo dos
caminhos de Krishna, o deus Sol indiano, e Jesus demoraria muito tempo;
porque, de fato, a semelhança é muito grande." Eu proponho, no entanto, ao
final deste capítulo, que nos aprofundemos um pouco na festa cristã da
Eucaristia, em parte por causa de sua relação com a derivação de rituais
astronômicos e celebrações da Natureza já referidas, e em parte por causa da
luz que a festa geralmente, seja ela cristã ou pagã, joga sobre as origens da
Mágica Religiosa - um assunto que devo abordar no próximo capítulo.
(CARPENTER, 2008, p. 35-36) (grifo nosso).
E, terminado essas citações, trazermos H. Spencer Lewis (1883-1939):
Posso acrescentar que nossos próprios registros de tradições antigas e
escrituras sagradas contêm muitas referências a movimentos religiosos da
antiguidade, cujo grande líder era considerado “O Filho de Deus”.
A Índia teve um grande número de Avatares ou Mensageiros Divinos,
Encarnados por Concepção Divina, tendo dois deles levado o nome de
“Chrishna”, ou “Chrishna o Salvador”. Consta que Chrishna nasceu de uma
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virgem casta chamada Devaki que, por sua pureza, fora escolhida para se
tornar a mãe de Deus. Neste exemplo, encontramos a antiga história de uma
virgem dando à luz um mensageiro de Deus divinamente concebido.
Buda foi considerado por todos os seus seguidores como gerado por Deus e
nascido de uma virgem chamada Maya ou Maria. Nas antigas histórias sobre o
nascimento do Buda, tais como são compreendidas por todos os orientais e
como são encontradas em seus escritos sagrados muito anteriores à Era Cristã,
vemos como o poder Divino, chamado o Espírito Santo, desceu sobre a virgem
Maya. Na antiga versão chinesa dessa história, o Espírito Santo é chamado
Shing-Shin.
Os siameses tinham igualmente um deus e salvador nascido de uma
virgem e que eles chamaram Codom. Nesta velha história, a bela e jovem
virgem fora informada com antecedência de que se tornaria mãe de um grande
mensageiro de Deus e, um dia, enquanto fazia seu período usual de meditação,
concebeu através de raios de sol de natureza Divina. O menino nasceu e cresceu
de maneira singular e notável, tornou-se um protegido da sabedoria e fez
milagres.
Quando os primeiros europeus visitaram o Cabo Comorim, na extremidade
sul da península do Industão, surpreenderam-se ao encontrar os naturais do
lugar, que nunca haviam tido contato com as raças brancas, cultuando um
Senhor e Salvador que fora divinamente concebido e nascera de uma
virgem.
E quando os primeiros missionários jesuítas visitaram a China, escreveram
em seus relatórios que haviam ficado consternados por encontrarem na religião
pagã daquela terra a história de um mestre redentor que nascera de uma
virgem por concepção divina. Ao que consta, esse deus havia nascido 3468
anos a.C. Lao-Tse, o famoso deus chinês, também nascera de uma virgem, de
pele negra, sendo descrita como a bela e maravilhosa como o jaspe.
No Egito, bem antes do advento do cristianismo e muito antes do nascimento
dos autores da Bíblia ou de qualquer doutrina concebida como cristã, o povo
egípcio já tivera vários mensageiros de Deus nascidos de virgens por
Concepção Divina. Hórus, segundo o sabiam todos os antigos egípcios, havia
nascido da virgem Ísis, sendo sua Concepção e seu nascimento um dos três
grandes mistérios ou doutrinas místicas da religião egípcia. Para eles, todos os
incidentes ligados à Concepção e ao nascimento de Hórus eram
pintados, esculpidos, adorados e cultuados como o são os incidentes da
Concepção e do nascimento de Jesus pelos cristãos de hoje. Outro deus
egípcio, Ra, nascera de uma virgem. Examinei uma das paredes de um antigo
templo na margem do Nilo, onde há um belo quadro esculpido representando o
deus Tot – o mensageiro de Deus – dizendo à jovem Rainha Mautmes
que daria à luz um Divino Filho de Deus, que seria o rei e Redentor de
seu povo.
Ao nos voltarmos para a Pérsia descobrimos que Zoroastro foi o primeiro dos
redentores do mundo a ser aceito como nascido em plena inocência, pela
concepção de uma virgem. Antigos entalhes e pinturas deste grande mensageiro
mostram-no cercado por uma aura de luz que inundava o humilde local de seu
nascimento. Ciro, rei da Pérsia, também era tido como nascido de origem
divina, e nos registros de seu tempo ele é chamado de Cristo ou Filho
ungido de Deus e considerado mensageiro de Deus. (LEWIS, 2001, p. 7476) (grifo nosso).
Com o dito por esses escritores confirma-se, portanto, o que falamos a respeito de ser
comum atribuir-se a certos personagens heroicos o nascimento de uma virgem.
Entendemos como um fato perfeitamente aceitável, em virtude desses fatores culturais,
querer-se também atribuir a Jesus essa condição de nascimento sobrenatural e, como não
poderia deixar de ser, nascido de uma virgem. O que não é natural é procurar manter, a todo
custo, essa visão ingênua, ainda nos dias de hoje.
Por outro lado, os teólogos sempre quiseram colocar o sexo como coisa pecaminosa,
motivo pelo qual Jesus não poderia ter vindo de “forma impura”; não é mesmo? Justifica-se,
de certa maneira, o celibato sacerdotal, ou seja, os “santos” padres não poderiam praticar
coisa considerada impura; assim não poderiam se casar. Outro fator, que provavelmente veio
em apoio ao celibato, foi a questão da herança dos padres, que, se casados, não seria
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incorporada ao patrimônio da instituição religiosa da qual faziam parte, já que teria que ficar
com os familiares. Bom; mas isso é uma outra questão; assim, voltemos ao assunto central do
texto.
Sempre dissemos que, por ser Jesus o primogênito, evidentemente, e pelo contexto
cultural da época, já que viviam numa sociedade extremamente machista, Maria, ao se casar
com José, era indubitavelmente virgem; assim, nesse sentido, podemos simbolicamente
considerar Jesus como nascido de uma virgem.
Outra coisa que sempre falávamos é quanto à questão do sexo ser impuro. Não
admitimos essa hipótese de forma alguma, já que foi Deus que fez o ser humano em duas
polaridades; a masculina e a feminina, com órgãos sexuais diferentes. Pensamos que, se o
sexo for realmente “pecado”, devemos convir que Deus não foi muito justo conosco, pois, além
de o conceber de forma a haver “atração fatal” entre os dois sexos – homem e mulher –, ainda
por cima coloca prazer no ato sexual; mas de “espada em punho” diz: Se fizer é pecado ou é
coisa impura. Absurdo teológico, que encontra campo fértil somente em cabeça de fanáticos,
não na de pessoas dadas a utilizar a inteligência, de que Deus dotou a raça humana.
Vejamos os argumentos de Carlos Torres Pastorino (1910-1980):
A IMPOSIÇÃO DIVINA do uso do sexo para manutenção e multiplicação de
Sua criação, nos diversos estágios evolutivos (plantas, animais e homens) vem
provar que o sexo é SANTO. Não podemos admitir que Deus, Sábio e Bom,
tivesse imposto obrigatoriamente as Suas criaturas uma condição que, ao
cumpri-la, as tornasse imperfeitas. Se no ato sexual houvesse uma leve
imperfeição sequer, ou um sinal de atraso espiritual, esse Deus seria
monstruosamente mau, pois teria obrigado Sua criação a ser imperfeita e
atrasada, a fim de manter e multiplicar Suas obras. Portanto, compreendendo o
ato sexual em si e a maternidade como perfeições altamente
espiritualizantes (porque são o cumprimento de uma Lei Divina), achamos que
Maria se engrandece perante Deus com a maternidade normal, porque assim dá
demonstração de ser fiel e obediente cumpridora da Vontade Divina.
Compreendendo bem esse problema, o jesuíta padre Teilhard de Chardin atribui
à sexualidade um sentido cósmico e afirma que o mundo não se diviniza por
supressões, mas por sublimação, e ainda: que o homem e a mulher tanto mais
se unirão a Deus, quanto mais se amarem, não vendo apenas o objetivo
admirável mas transitório da reprodução, mas o de dar plena expansão à
quantidade do amor, liberado do dever da reprodução. E diz claramente, sem
subterfúgios: a mulher é, para o homem, o termo susceptível de impulsionar
esse progresso para a frente. Pela mulher, e só pela mulher, pode o homem
escapar ao isolamento, no qual sua própria perfeição se arriscaria prendê-lo.
(L'énergie humaine, édition Seujl, pág. 93 a 96). Realmente a união sexual
dentro do amor é a imagem mais fiel da união do homem com a Divindade, e
por isso os místicos denominam essa unificação do homem com Deus de
Esponsalício.
Na profecia de Isaías, o menino seria chamado
Himmanu-El, que
significa Deus conosco, exprimindo a grande verdade de que Deus ESTA
REALMENTE DENTRO DE NÓS, está CONOSCO. (PASTORINO, vol. 1, 1964a, p.
55).
Se sexo for mesmo pecado, então Deus, de antemão, condenou Adão e Eva a pecar, e
por consequência toda a humanidade, quando disse ao suposto primeiro casal: “Crescei-vos e
multiplicai-vos!” (Gn 1,22.28).
Se a mulher só “... será salva pela sua maternidade, desde que permaneça com
modéstia na fé, no amor e na santidade” (1Tm 2,15), então ficamos num beco sem saída,
pois, não havia como ser mãe sem fazer sexo (considerando a época de Paulo).
Vejamos, na narrativa de Mateus, o texto no qual tomam base para afirmar sobre a
virgindade de Maria; ampliamo-lo um pouco mais, pois temos uma importante consideração a
fazer.
Mt 1,18-25:”A origem de Jesus, o Messias, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida
em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do
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Espírito Santo. José, seu marido, era justo. Não queria denunciar Maria, e pensava
em deixá-la, sem ninguém saber. Enquanto José pensava nisso, o Anjo do Senhor lhe
apareceu em sonho, e disse: 'José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria
como esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho,
e você lhe dará o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados'.
Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta:
'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de
Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco'. Quando acordou, José fez conforme o
Anjo do Senhor havia mandado: levou Maria para casa, e, sem ter relações com ela,
Maria deu à luz um filho. E José deu a ele o nome de Jesus”.
Veja bem, caro leitor, que no texto bíblico está se afirmando que José, o pai, é filho de
Davi, para estabelecer a ligação da criança como descendente do rei Davi. Ótimo isso, pois isso
implica dizer que José é pai biológico de Jesus, porquanto, somente dessa maneira ele poderia
ser descendente de Davi, a não ser que argumentem que o “Espírito Santo”, que creem ter
fecundado Maria, seja também filho de Davi. Mas isso seria o máximo em apelação, não é
mesmo?
Lucas afirma que Maria estava “prometida em casamento a um homem chamado José,
que era descendente de Davi” (Lc 1,27). E, para não pairar dúvidas, quanto a Jesus ter
nascido biologicamente de José, trazemos uma fala de Paulo aos romanos, quando, se
referindo ao Mestre, disse: “... nascido da estirpe de Davi segundo a carne” (Rm 1,3).
Portanto, admitir que Jesus não seja filho biológico de José está indo contrário ao que se deduz
dos textos bíblicos; isso sem mencionarmos que não fere a lógica.
Maria Helena de Oliveira Tricca (1940-1997) em Apócrifos I – Os proscritos da Bíblia,
cita a obra “A história de José o carpinteiro”, na qual lemos: “Assim José o Carpinteiro, pai de
Cristo segundo a carne, abandonou esta vida mortal e viveu cento e doze anos”. […]
(TRICCA, 1995a, p. 197) (grifo nosso), o que corrobora o dito por Paulo. Isso nos induz a
concluir que àquela época não tinham Jesus como fruto de fecundação do Espírito Santo, mas
um homem, nascido de homem.
Por outro lado, considerando que para os judeus “Ruah é palavra hebraica, feminina,
que significa Espírito, […] (TRICCA, 1995b, p. 176), é pouco provável que a utilizassem para
sustentar que Maria havia se engravidado de uma mulher. Pode-se ver que em o Evangelho de
Felipe, consta exatamente isso:
17. Alguns dizem que Maria concebeu por obra do Espírito Santo. Esses se
equivocam, não sabem o que dizem. Quando alguma vez uma mulher foi
concebida de uma mulher? Maria é a virgem a quem Potência alguma jamais
manchou. Ela é uma grande anátema para os judeus que são os apóstolos e os
apostólicos. Esta Virgem que nenhuma Potência violou, [… enquanto que] as
Potências se contaminaram. O Senhor não [teria] dito: “Pai meu que estás no
céu”, se não tivesse outro pai; do contrário haveria dito simplesmente: “[Pai
meu]”. (TRICCA, 1995b, p. 182) (colchetes do original)
Ao que parece, alguns tradutores prenderem-se aos dogmas instituídos; como exemplo,
citamos o Pe. Matos Soares, de quem trazemos essa explicação para Mt, 1,16:
José, esposo de Maria. O Evangelista, descrevendo a genealogia de São José,
conforma-se com o costume hebraico de só atender aos homens nas
tábuas genealógicas. Todavia, dá-nos, ao mesmo tempo, a genealogia de
Jesus, visto que Maria era também descendente de Davi. – Da qual nasceu
Jesus. O Evangelista não diz que José gerou Jesus, pois o Salvador foi concebido
no seio de Maria, por obra do Espírito Santo. São José não foi pai natural de
Jesus, mas somente pai legal, como verdadeiro e legítimo esposo de Maria.
(Bíblia Paulinas, 1957, p. 1178) (grifo nosso).
Nosso impasse está no seguinte: Ou Jesus é filho biológico de José, o que fazia dele o
Messias esperado, ou é filho do “Espírito Santo” e não é o Messias.
13
Era de se esperar que a dogmática, querendo sair do impasse, tentasse justificar-se
dizendo que Maria também era filha de Davi; entretanto, “a emenda saiu pior que o soneto”
(Bocage1), já que os judeus tinham a crença de que somente o homem é que dava a
descendência; é por isso que todas as genealogias na Bíblia são traçadas em relação ao pai e
não à mãe da pessoa.
Voltemos ao passo de Mateus, especificando os versículos que falam de uma virgem e a
suposta profecia dizendo que Jesus, como Messias e filho de Davi, veio cumprir:
Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo
profeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado
Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco'”.
Profecia: Is 7,14: “Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem concebeu e dará
à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel”.
Qualquer estudioso bíblico, não compromissado com alguma teologia, verá que esse
passo de Isaías nada tem a ver com Jesus. Devemos, para melhor compreendê-lo, dizer que é
preciso ler os versículos anteriores, iniciando pelo 10, porquanto são sempre subtraídos
quando tentam apontar essa profecia:
Is 7,10-13: “Javé falou de novo a Acaz, dizendo: 'Pede para você um sinal a Javé
seu Deus, nas profundezas da mansão dos mortos ou na sublimidade das alturas'. Acaz
respondeu: 'Não vou pedir! Não vou tentar a Javé!' Disse-lhe Javé: 'Escute, herdeiro de
Davi, será que não basta a vocês cansarem a paciência dos homens? Precisam cansar
também a paciência do próprio Deus?'”
Estritamente dentro do contexto o sinal que Deus promete é ao rei Acaz, cuja mulher,
uma jovem, estava grávida, fato que podemos confirmar:
O reino do Norte (Efraim), cujo rei era Faceia, se aliou a Rason, rei de Aram,
numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o reino do Sul (Judá) não
participou da coalizão entre o reino do Norte e Aram, estes dois temeram que
Judá se tornasse aliado da Assíria; resolveram então atacar o reino do Sul, para
destronar o rei Acaz e colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro. Acaz
teme o cerco e verifica a reserva de água da cidade. Isaías vai ao seu encontro e
o tranquiliza, mostrando que não haverá perigo, pois continua válida a promessa
de que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque total confiança em
Javé. O sinal prometido a Acaz é o seu próprio filho, do qual a rainha (a
jovem) está grávida. Esse menino que está para nascer é o sinal de que Deus
permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus conosco). Bíblia Sagrada
Pastoral, p. 954-955) (grifo nosso).
Então, temos que, pelo contexto bíblico e confirmado por essa explicação, fica fácil
perceber que Deus, na verdade, promete um sinal ao rei Acaz e esse sinal é o filho do rei que
estava por nascer. Dar uma explicação fora disso é tentar distorcer a interpretação realista do
texto. Ademais, esse sinal é um fato presente e não algo para um futuro longínquo, ou seja,
uma previsão; portanto, é agir fora do contexto, quando querem transformá-lo numa profecia
a respeito de Jesus. Além do mais, o nome Jesus significa “Deus é salvação”; portanto,
incontestavelmente, distinto de Emanuel que quer dizer “Deus está conosco”, exatamente o
nome mencionado ao rei Acaz, o que a dogmática, cega pelo fanatismo, não consegue
enxergar e, ao que parece, nem pretende.
Ampliando a explicação do verbete Emanuel, transcrevemos:
É o nome dado por Isaías a uma futura criança cujo nascimento será,
para o rei Acaz, o “sinal” da assistência divina (Is 7,14-17). A
interpretação deste oráculo deve estar ligada ao significado do nome e ao
alcance que terá na conjuntura daquele momento. O reino de Judá é ameaçado
pelos sírios e efraimitas aliados, que querem acertar contas com a dinastia
1
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12/05/2012, às 09:55hs.
acesso
em
14
reinante, a mesma dinastia que se beneficia das promessas feitas a Davi. Em
vez de recorrer a essas promessas, Acaz apela para a Assíria. Isaías condena
este modo de agir e proclama: Deus está presente; ele está “conosco”.
Qual será a criança cujo nascimento será portador de uma mensagem
como esta? Como é ao rei, contemporâneo de Isaías, que o sinal será dado, o
nascimento anunciado deve ocorrer proximamente. Será Ezequias –
afirma-se muitas vezes, e com boas razões. Mas esta criança é descrita numa
linguagem poético-mítica, concretamente irrealizável. O oráculo abre portanto
uma perspectiva que vai além do rei em questão. Graças a este oráculo, os
crentes, insatisfeitos com os reis históricos, esperarão por uma personagem que
finalmente satisfará a esperança deles. Mateus e os cristãos posteriores a ele
reconhecem em Jesus aquele que realiza plenamente o anúncio de Isaías (Mt
1,23). (Dicionário Bíblico Universal, p. 226) (grifo nosso).
Confirma-se, portanto, que a suposta profecia não se refere mesmo a Jesus, conforme
ficou bem claro na explicação acima.
Passar por cima do contexto histórico, ignorando as narrativas dos fatos, para aplicar ao
que desejam, não é muito saudável, pois, a cada dia que passa, a crítica literária vai
revelando.
Não bastasse o que já apresentamos, há ainda um outro problema: é quanto ao
significado da palavra hebraica almah usada em Isaías. Para os tradutores da Bíblia de
Jerusalém “O termo hebraico “almah” designa, quer a donzela, quer uma jovem casada
recentemente, sem explicitar mais” (Bíblia de Jerusalém, p. 1265). Quanto a essa questão,
vejamos estas outras explicações:
O fato de os cristãos tomarem como própria a tradução da LXX e de a
usarem nas controvérsias com os judeus, conduziu a uma progressiva rejeição
desta versão pelos judeus que acabaram substituindo-a por novas traduções
mais fiéis ao texto rabínico. Um exemplo típico de divergência entre o texto
hebraico e o grego, citado em todas as controvérsias entre judeus e cristãos é
Is 7,14, onde a LXX traduz o termo hebraico 'almâ, "jovem (casada ou
recém-casada)", por parthénos, "virgem" em vez do mais apropriado
neânis. Os judeus rejeitaram esta tradução da LXX, pois os cristãos viam nela
uma profecia do nascimento virginal de Cristo (d. p. 621). (BARRERA, 1999, p.
369) (grifo nosso).
Por outro lado, um erro de leitura pode originar um novo texto considerado
inspirado, embora isto não signifique que a doutrina exposta derive
necessariamente do erro textual cometido. O caso mais chamativo é a citação
em Mt 1,22 de, ls 7,14: "a virgem conceberá um filho". Não se trata, neste caso,
de erro do copista, nem de tradução errada. O que se produziu foi um
deslocamento de significado. Os tradutores gregos entendiam
perfeitamente o sentido da palavra hebraica 'almâ, traduzida por
parthénos no sentido de "jovem" e não de "virgem". Os cristãos, que
criam no nascimento misterioso de Cristo, interpretaram o texto de Is como
profecia do nascimento "virginal" do Messias, atribuindo ao termo
parthénos o significado de "virgem". (BARRERA, 1999, p. 397-398) (grifo
nosso).
Sustentar, como o faz a Igreja Católica, que almah de Isaías foi uma
virgem implica persistir conscientemente num engano por motivos
doutrinais interesseiros, sobretudo quando se sabe que as outras almah
bíblicas foram corretamente traduzidas por moçoilas, como pode-se ver na
almah de Provérbios (36) e nas alamoth do Cântico dos Cânticos (37) que,
obviamente, segundo se deduz pelo contexto, perderam a sua virgindade,
respectivamente, na sequência do 'rastro do homem” e da sua função no harém
real.
Todas as versões independentes – ou, simplesmente, não católicas –
da Bíblia traduziram a almah de Isaías por moçoila (ou por donzela)
(38), o que não só é lógico, como coerente com a sequência do texto de
Isaías. Aliás, este, no início do texto citado, concentra-se apenas no nome que
seria dado à criança, ignorando totalmente a mãe, o que seria absurdo se se
tratasse de uma virgem, que, permanecendo tal, estivesse prestes a dar à luz.
[…]
15
_______
(36) “Três coisas me espantam e há uma quarta que não alcanço: o rasto da águia nos
ares, o rasto da serpente sobre a rocha, o rastro do navio no meio do mar e o rastro do
homem na moçoila” (Prov 30,18-19).
(37) “Setenta são as rainhas, oitenta as concubinas, e inúmeras as moçoilas” (Cant 6,8).
(38) O versículo 14, tal como aparece traduzido na Bíblia católica de Nácar-Colunga, “Eis
que a virgem grávida dá à luz um filho e lhe põe o nome de Emmanuel”, não é uma
tradução correcta do original, já que neste o que se diz é exactamente o
seguinte: “Vês esta moçoila engravidada que vai dar à luz um filho. Seu filho
chamar-se-á Emmanuel...” que tem um sentido descritivo absolutamente diferente, pois
coloca o facto no presente, evitando, desse modo, qualquer especulação
profética.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 131) (grifo nosso).
A referência à profecia de Isaías é também estropiada. A passagem
citada encontra-se efetivamente no livro desse profeta (VII, 14), mas, no
contexto, ela não anuncia a vinda do Messias. A palavra hebraica alma nessa
passagem significa “mulher jovem”, e não «virgem». E Isaías nada diz aí sobre o
Messias: “Mas, antes que o menino saiba rejeitar o mal, e escolher o bem, o
país do qual tu temes os dois reis será abandonado”. (Isaías, VII, 16). Isaías
não atribui nada de sobrenatural ao seu nascimento, ele prediz que a
criança verá a luz em uma época que precede de sete séculos a data dos
evangelhos e diz, aliás, que o hão de chamar de Emanuel. Para eliminar
esta contradição, Mateus pretende que um anjo visto em sonho por José lhe
ordenou que desse ao menino o nome de Jesus, que quer dizer em hebreu
“Deus Salvador”.
Portanto, nada neste capítulo pode servir para confirmar a historicidade de
Jesus. Ao contrário, sua genealogia, a concepção imaculada, a citação de
Isaías, o anjo que apareceu a José, demonstram que Mateus procurou,
bastante desajeitadamente aliás, juntar as profecias sobre o Messias, e
os elementos dos cultos orientais, o que nos permite discernir facilmente as
partes constitutivas do mito de Jesus. (LENTSMAN, 1963, p. 175) (grifo nosso).
Mateus faz também referência a um antigo adágio do profeta Isaías: “eis que
uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel” como se dissesse que a gravidez de Maria era a realização dessa profecia (Isaías
7:14. (20). Mas Isaías faz referência a uma criança que deveria nascer na
sua própria época, no século VIII a.C., cujo nascimento seria um sinal
para o rei Ahaz, que então governava. A palavra hebraica (almah) que
Mateus traduz por “virgem”, em sua versão grega, significa “jovem
mulher” ou “donzela”, sem introduzir qualquer implicação miraculosa.
(21). A criança receberia o nome pouco comum de Emanuel, que significa “Deus
conosco”, e Isaías garante ao rei Ahaz que, antes que essa criança tenha idade
suficiente para distinguir “o bem do mal”, os assírios que ameaçavam Jerusalém
e a Judeia seriam removidos da face da terra. Ahaz não teria que esperar muito
tempo. Mateus infere que a profecia de Isaías foi “realizada” pelo
miraculoso nascimento virgem de Jesus – o que claramente não é o
sentido do texto original.
_______
(20) Todas as traduções da Bíblia foram feitas por mim, exceto se indicado de outra forma.
Empreguei itálico para enfatizar determinadas partes.
(21) A tradução grega da Bíblia hebraica, conhecida como Septuaginta ou LXX, usou a
palavra parthenos em Isaías 7:14. Significa “virgem”, porém o sentido evidente do
contexto não é o de uma mulher que engravida sem nenhum homem, mas de
uma menina virgem que nunca fez sexo ficando grávida. Este bebê singular não
nasceria de uma mulher que já teve filhos, mas de uma que era virgem quando ficou
grávida. Como Mateus escreveu em grego e está citando Isaías, ele também usa a palavra
parthenos. Quanto a Versão Revisada do Antigo Testamento foi publicada, em 1952, os
tradutores empregaram corretamente o termo “jovem”, em vez do tradicional “virgem”,
em Isaías 7:14. A tradução foi denunciada por muitos cristãos fundamentalistas como uma
tentativa comunista diabólica de solapar a fé no “nascimento virgem de Cristo”.
(TABOR, 2006, p. 59-60) (grifo nosso).
Durante esses anos sombrios Isaías fora conformado pelo nascimento
iminente de um bebê real, indício de que Deus ainda estava com a casa de Davi.
“Uma jovem (almah) está grávida e logo dará à luz um filho que se chamará
Immanu-El (Deus-conosco)”(31) Seu nascimento seria ainda uma fonte de
esperança, “uma grande luz”, para o traumatizado povo do norte, que
“caminhava nas trevas” e na “profunda escuridão”. (32) Quando o bebê
16
nasceu, foi de fato chamado Ezequias, e Isaías imaginou toda a Assembleia
Divina celebrando a criança real, que, como todos os reis davídicos, se tornaria
uma pessoa divina e um membro do conselho celeste: no dia de sua coroação,
ele seria chamado de “Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe
da Paz!. (33).
_______
(31) Isaías 7:14. Essa é uma tradução literal do versículo, não segue a versão tradicional
da Bíblia de Jerusalém.
(32) Isaías 9:1.
(33) Isaías 9:5-7.
(ARMSTRONG, 2007, p. 25) (grifo nosso).
[…] Não há nenhuma evidência, a não ser nos tendenciosos escritos
da Igreja surgidos depois, de que Jesus jamais tenha se considerado
outra coisa a não ser um judeu entre judeu, buscando a realização do
judaísmo – e, provavelmente, o retorno da soberania judaica no mundo romano.
Como muitos autores já observaram, as diferentes linhagens de profecias
hebraicas que foram forçadas a coincidir com o ministério de Jesus revelam a
defesa da doutrina cristã, e muitas vezes a má formação cultural dos autores
dos Evangelhos.
Para moldar a vida de Jesus conforme as profecias do Velho
Testamento, os autores dos evangelhos de Lucas e Mateus, por
exemplo, insistem que Maria o concebeu virgem (parthenos em grego),
em referência à versão em grego de Isaías 7,14. Infelizmente para os que
gostam da ideia da virgindade de Maria, a palavra hebraica almá (para a
qual parthenos é uma tradução errônea) significa simplesmente
“mulher jovem”, sem qualquer implicação de virgindade. Parece quase
certo que o dogma cristão do parto virgem, e boa parte da ansiedade resultante
a respeito do sexo tenham resultado de uma tradução do original hebraico. (31)
Outro golpe contra a doutrina do parto virgem é que os outros evangelistas,
Marcos e João, parecem não saber nada a respeito disso – embora ambos se
mostrem perturbados com as acusações de ilegitimidade de Jesus. (32)
Aparentemente, Paulo acredita que Jesus era filho de José e Maria, e refere que
Jesus “nasceu da semente de Davi segundo a carne” (Romanos 1,3 – ou seja,
José era seu pai), e “nascido de mulher” (Gálatas 4,4 – significando que Jesus
era realmente humano), sem referência alguma à virgindade de Maria. (33).
_______
31. Ver B. M. Metzger e M. D. Coogan (eds), The Oxford companion to the Bible (Oxford:
Oxford Univ. Press, 1993), pp. 789-90, e A. N. Wilson, Jesus: A live (Nova York: W. W.
Norton, 1992), p. 79. Já foram observados muitos outros pares de citações entre o Velho e
o Novo Testamentos que não sustentam: Mat 2,3-5 e Miq. 5,2; Mat. 2,16-18 e Jer.
31,15/Gên. 35,19; Mat. 8,18 e Isa. 53,4; Mat. 12,18 e Isa. 42,1-4; Mat. 13,53 e Sal.
78,2; Mat. 21,5 e Zac. 9,9/Isa.62,11. Mat. 27,9-10 afirma cumprir uma profecia que
atribui erroneamente a Jeremias, quando, na realidade, aparece em Zacarias 11,12 – eis
aí mais evidências de que “A Bíblia não erra”.
32. Era considerável o estigma ligado à ilegitimidade entre os judeus no século I d.C. Ver
S. Mitchell, The gospel according to Jesus (Nova York: HarperColins, 1991).
33. Ver ibid., p. 78, e J. Pelikan, Jesus through the centuries (Nova York: Haper and Row,
1987), p. 80.
(HARRIS, 2009, p. 109) (grifo nosso).
Confirma-se, mais uma vez, que não se trata mesmo de alguma profecia que diz
respeito a Jesus, mas de algo que aconteceu no século VIII a.C.
Deixamos para citar Pastorino, por último, visto ele também apresentar algo que
dissemos:
A profecia de Isaías afirma que uma virgem conceberá e dará à luz um filho.
O termo virgem merece ser estudado.
Em hebraico há duas palavras: betulân, que especificava a virgindade como
certa; e almâh que exprimia uma oposição, sem garanti-la. Ora, Isaías escreve
exatamente almáh. E verificamos que, em Deut. 22:23, a noiva, e mesmo a
esposa recém-casada era chamada ne'arah betulâh.
Em grego a palavra παρΘένος exprime o mesmo: virgem, mas em sentido
genérico tanto que as moças noivas e também as recém-casadas eram assim
chamadas, e isso na própria Bíblia (cfe. Deut. 22:23; 1 Reis 1:2; Ester 2:3). Em
17
todas essas passagens, a palavra virgem designa a moça que é dada a alguém
para deitar-se com ele, supondo-se que se trata de uma virgem, isto é, de
moça ainda não ligada pelo casamento a um homem.
A mesma designação é atribuída a Maria, demonstrando que, ao lhe ser dada
como noiva, era virgem, o que é natural e normal. No entanto, em nenhum local
dos Evangelhos se diz, nem se supõe, que Maria continuou Virgem depois. Ela
era virgem quando concebeu, o que de modo geral ocorre com todas as
moças.
Esses nossos esclarecimentos não visam a diminuir o respeito e a veneração
que todos temos pela Mãe Santíssima de Jesus, pois o fato da virgindade
nenhuma importância apresenta diante da espiritualidade. (PASTORINO, vol 1,
1964a, p. 55) (grifo do original).
Além de corroborar o que foi dito a respeito da palavra almah, apresenta, no penúltimo
parágrafo, um argumento que confirma o que nós dissemos a respeito de como podemos
considerar Jesus nascido de virgem.
Certamente, que uma tradução errada leva inevitavelmente a uma interpretação
equivocada. Entretanto, algo bem mais curioso, que esse problema na tradução, encontramos
na cultura persa com Tom Harpur (1929- ), ao citar Graves, quanto a uma profecia idêntica à
de Jesus:
[…] Kersey Graves, no seu livro The World's Sixteen Crucified Saviours, cita
uma profecia de Zoroastro, divindade persa: “Uma virgem deverá
conceber e gerar um filho, e uma estrela deverá aparecer brilhando no
meio-dia para indicar o acontecimento”. Zoroastro disse aos seus
seguidores: “Quando virem a estrela, sigam-na até onde os levar. Adorem a
criança misteriosa, oferecendo-lhe presentes com profunda humildade. Ela
é na realidade a Palavra Onipotente que criou o céu. Ela é na realidade o seu
Senhor e Rei eterno”. (HARPUR, 2008, p. 51) (grifo nosso)
Dessa fala de Graves temos mais alguns “graves” problemas, com os quais se
estabelece uma semelhança desconcertante com fatos narrados a respeito de Jesus. Vejam,
que a profecia de Zoroastro dizia de uma estrela que deveria levar ao menino, o que Mateus
narra (cap. 2), magos seguindo uma estrela que localizou Jesus, ao qual ofereceram
presentes, como também previsto oferecer a Zoroastro. Sobre estes presentes vejamos:
[…] ou os rituais como os efectuados na Pérsia, já na época do rei Dario I
(521-486 a.C.), mas que provavelmente remontam a muito antes, em que os
magos/sacerdotes ofereciam a Ahura-Mazda (o principal deus solar)
(12) os presentes de ouro, incenso e mirra que aparecem citados em Mt
2,11.
_______
(12) Na inscrição de Naqsh i Rustam, do tempo de Dario I, é afirmado que “Ahura-Mazda é
um grande deus. Criou esta terra. Criou o céu. Criou o homem. Criou a felicidade do
homem. Fez de Dario um rei”.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 105) (grifo nosso).
Ouro, incenso e mirra, tal e qual os magos ofereceram ao filho de Maria, conforme
narrativa de Mateus (Mt 2,11), certamente, utilizaram-se de uma profecia persa para aplicá-la
a Jesus.
Geza Vermes (1924- ), em seu livro Natividade, também trata da concepção virginal e
da profecia de Isaías; leiamos:
A concepção virginal em Mateus e a profecia de Isaías
Até aqui, Mateus contou uma história desconcertante. A não ser pela
alusão a algum tipo de envolvimento do Espírito Santo, uma expressão para
designar o poder através do qual Deus age no mundo, o anjo do sonho
não esclarece como Maria engravidou. O evangelista então intervém e lança
uma nova luz sobre a questão valendo-se de uma profecia do Antigo
18
Testamento, segundo a qual uma virgem virá a dar à luz o Salvador do povo
judeu. Na versão do Evangelho para as palavras de Isaías, diz a profecia: “Eis
que a Virgem conceberá e dará à luz um filho que se chamará Emanuel, que
significa 'Deus conosco'” (Isaías 7,14, em Mt 1,23).
Este é o primeiro texto bíblico apresentado como prova por Mateus em
sua narrativa da infância. Em Lucas não há nenhum. Mas esse testemunho
profético, cujo objetivo é anunciar uma gravidez milagrosa ou concepção
virginal, só é eficaz sob uma condição: ele funciona apenas se for seguida
a versão da Septuaginta grega para Isaías 7,14, destinada a um público
grecófono e interpretada como os leitores gregos o entenderiam. Como
se sabe, a forma que subsistiu do Evangelho de Mateus é a grega e, como tal,
seu alvo era obviamente um público grego. Contudo, o público original para o
qual a tradição da narrativa do nascimento de Jesus foi desenvolvida era de
judeus palestinos e o idioma em que foi inicialmente transmitida seria o
aramaico ou, possivelmente, o hebraico, não o grego. Também é evidente que
para esses palestinos, em sua maioria judeus da Galileia, o texto de Isaías teria
sido extraído da Bíblia hebraica, não da Septuaginta grega.
O que nos deixa em um verdadeiro dilema. Para aludir à mulher que virá a
conceber e dar à luz um filho, Isaías 7,14 em hebraico não se refere a uma
virgem, ou betulah em hebraico, mas a uma 'almah, isto é, "uma jovem
mulher': termo neutro que não implica necessariamente virgindade. Por
exemplo, no Cântico dos Cânticos 6,8 o termo “jovens mulheres” ('alamot)
aparece em paralelo com "rainhas e concubinas", que seguramente não são
virgens. Ademais, é muito improvável que a 'almah mencionada em Isaías 7, a
jovem que no futuro próximo há de conceber e dar à luz um filho, seja virgem.
O contexto sugere que ela já é casada, e esposa do então rei judeu, Acaz, ao
fim do século VIII a.C.
Quando fala em 'almah, o texto hebraico de Isaías em lugar algum
especifica que ela ainda é virgem ou que está prevista uma concepção
milagrosa de qualquer tipo. O sinal profético em Isaías 7,14, em hebraico,
está não na condição virginal da mãe, mas no significado do nome que ela
deverá dar a seu filho - “Emanuel” - sugerindo que o futuro príncipe, em
conformidade com o bom augúrio expresso no nome, “Deus conosco”' trará
proteção divina aos habitantes de Jerusalém, naquela época sob ameaça de dois
reis inimigos que sitiavam a cidade (ver Isaías 7,16). Considerando tudo isso, a
conclusão a que se chega é que o relato semita subjacente à versão grega de
Mateus que conhecemos de forma alguma poderia conter uma previsão da
concepção virginal do Messias.
Como então esta noção entrou no Evangelho da Infância, de Mateus? Por
puro acidente, o tradutor da Septuaginta usou para o termo hebraico 'almah de
Isaías 7,14 a palavra grega parthenos (virgem), que, no entanto, pode também
significar solteira ou mulher não-casada que não seja necessariamente virgem.
O Mateus “grego” ou o editor grego do Mateus semita topou com essa tradução
imprecisa e a adotou. Esse feliz achado permitiu-lhe apresentar a seus leitores
de fala grega a concepção de Jesus como única e situada em posição muito
superior a todas as outras concepções milagrosas do Antigo Testamento.
Existe uma prova incontestável de que uma proporção substancial do
público visado pelo texto final de Mateus era composta por gregos, que não
tinham conhecimento do hebraico. Em Mateus 1,23, o nome hebraico “Emanuel”
na citação de Isaías é apresentado com uma tradução para explicar seu
significado: “Deus conosco”. Como se sabe, o original hebraico de Isaías não
inclui tal interpretação e, o que é mais importante, ela também não consta da
tradução grega da Septuaginta. Os judeus da diáspora, para quem a
Septuaginta foi produzida, supostamente deveriam saber o que significava
Emanuel. O comentário grego a essa citação em Mateus - “que significa Deus
conosco” - é obviamente criação do próprio evangelista, para auxiliar seus
leitores gregos não-judeus. Assim, aplicada a Maria, a profecia de Isaías em sua
versão grega destinava-se a transmitir ao público grego da narrativa materna da
infância que “Jesus-Emanuel” ou “o Messias-Filho de Deus” seria concebido
através do Espírito Santo e milagrosamente gerado por Maria na condição de
virgem.
O Mateus grego, consequentemente, afirma que a concepção virginal é
demonstrada pela citação de Isaías. No entanto, o argumento do evangelista
está invertido. Ele quer que seu leitor entenda que o evento representa o
cumprimento da profecia; em outras palavras, que a concepção de Jesus por
19
Maria ocorreu porque, de acordo com Isaías, assim estava predestinada por
Deus. A verdade é bem o contrário: a ideia da “parthenos que concebe”,
fornecida pela profecia, é que motivou a história. Foi o texto grego de Isaías
7,14 que proporcionou a Mateus uma fórmula surpreendente para exprimir o
caráter milagroso do nascimento de Jesus, como o cumprimento de uma
previsão das escrituras.
Repetindo pela última vez, a concepção virginal é uma extrapolação
das palavras da Septuaginta, fazendo uso de material histórico,
apresentada a, e compreendida por, leitores cristãos gentios helenistas
do Evangelho de Mateus. A história do nascimento de Jesus, contada em
aramaico ou hebraico e citando Isaías em hebraico, jamais poderia ter
dado origem a tal interpretação. Mas em grego, em combinação com a
exegese literal do nome “Emanuel = Deus conosco”' tornou-se a fonte da qual
surgiu o conceito do Filho divino de mãe virgem. É preciso reiterar, mesmo que
seja ad nauseam, que tal evolução somente foi possível em um meio cultural
helenístico grecófono. Os antecedentes ideológicos da mitologia greco-romana e
as lendas sobre a origem divina de figuras eminentes da época e de um passado
recente (ver Capítulo 4) propiciaram um campo fértil para o crescimento do que
viria a ser, no jargão teológico cristão, a Cristologia. Com o tempo, através de
Paulo, de João e dos filosofantes Padres da Igreja gregos, essa ideia original
evoluiu para a deificação de Jesus, Filho da Virgem grávida de Deus
(Theotokos).
Também é possível contestar que a ideia da concepção virginal inferida no
texto de Mateus, com seu uso da versão da Septuaginta para Isaías, era de
origem cristã-gentia helenística, pela posição adotada pelo antigo cristianismo
judaico sobre o assunto. Facetas importantes da doutrina desses cristãosjudeus, conhecidos como os ebionitas ou os Pobres, foram preservadas nos
escritos dos apologistas da Igreja, que procuravam refutá-las. Sob a
denominação de ebionitas, devemos entender comunidades cristãs-judaicas que,
após sua separação da Igreja cristã-gentia central, provavelmente na virada do
século I d.C., sobreviveram ainda por mais duzentos ou trezentos anos. Através
do Padre da Igreja Irineu, do fim do século II, que foi bispo de Lião, e do
historiador da Igreja Eusébio de Cesareia, do século IV, sabemos que os
ebionitas rejeitavam a doutrina do nascimento virgem. Eusébio deixa claro
que, para eles, Jesus era “o filho de uma união normal entre um homem
e Maria” (História Eclesiástica 3,27). Irineu anteriormente havia argumentado,
usando frases emprestadas do Novo Testamento, que os ebionitas "se
recusavam a entender que o Espírito Santo havia vindo a Maria e que o poder do
Altíssimo a havia envolvido com sua sombra" (Contra as Heresias, 5,1, 3). Ele
explicava ainda que a fim de sustentar seus ensinamentos e “puxar o tapete” da
ortodoxia cristã, os ebionitas defendiam a versão grega de Teodósio e Aquila
como mais correta do que a Septuaginta, e substituíram o parthenos (virgem)
desta última pelo termo neanis (jovem mulher) em sua tradução de Isaías 7,14
(ibid. 3,21, 1). Na opinião deles, a prova de que a Septuaginta não era confiável
representava o fim da doutrina de Mateus e da Igreja cristã a respeito de
concepção virginal.
Com efeito, a (almah do Isaías hebraico e o correspondente neanis de
Aquila e Teodósio revelam a fragilidade da ideia do nascimento virgem, conforme
concebida pelo Mateus grego. Sua adoção pelo evangelista (ou por seu editor
final) tornou inevitável a revisão da formulação direta da genealogia (A gerou B
etc.), com vistas a excluir a paternidade de José; e tem também o efeito
imprevisto de prejudicar a prova montada para autenticar a legitimidade de
Jesus como Messias descendente direto de Davi, através de José. (VERMES,
2007, p. 74-79) (grifo nosso).
Em A dinastia de Jesus: a história secreta das origens do cristianismo, o autor James D.
Tabor (1946- ), tece explicações interessantíssimas a respeito da virgindade de Maria, que não
podemos deixar de transcrevê-las:
[…] É fácil imaginar que os cristãos primitivos acreditavam em Jesus e o
queriam tão louvado e celestial quanto qualquer dos heróis e deuses gregos e
romanos, e se apropriaram dessa maneira de contar a história do seu
nascimento como uma maneira de afirmar que Jesus era ao mesmo
tempo humano e divino. Os intérpretes modernos, que adotam essa
20
abordagem para as histórias, afirmam habitualmente que José era
provavelmente o pai, e que esses relatos sobrenaturais eram inventados pelos
discípulos de Jesus para atribuir-lhe honras e promover seu status elevado de
uma maneira comum a essa cultura. (TABOR, 2006, p. 76) (grifo nosso).
[...] O ensinamento sobre a “virgindade perpétua” simplesmente não
é encontrado no Novo Testamento e não faz parte dos primeiros credos
cristãos. A primeira menção oficial a essa ideia só vem a partir de 374 d.C., com
o teólogo cristão Epifânio. (3) A maior parte dos escritos cristãos primitivos
anteriores ao século IV d.C. aceita naturalmente que os irmãos e irmãs de Jesus
sejam filhos nascidos de José e Maria. (4)
_______
(3) A ideia da virgindade perpétua de Maria foi afirmada no 2º Concílio de
Constantinopla, em 553 d.C. e no Concílio de Latrão, em 649. Embora seja uma
parte do dogma católico solidamente estabelecida, nunca foi, no entanto, objeto de uma
declaração de infalibilidade pela Igreja Católica Romana.
(4) Essa é a chamada visão elvídica, em homenagem a Elvídio, um escritor cristão do
século IV, que Jerônimo procura refutar. Eusébio, o historiador da igreja do século IV, cita
regularmente fontes antigas e refere-se a irmãos de Jesus “segundo a carne”, certamente
concebendo-os como filhos de Maria e José. Consulte Eusébio, Churc History 2.23;3.19.
(TABOR, 2006, p. 90) (grifo nosso).
A própria disciplina dos historiadores os obriga a trabalhar dentro dos
parâmetros de uma visão científica da realidade. As mulheres nunca
engravidam sem um homem. Portanto, Jesus tinha um pai humano, quer
consigamos identificá-lo, quer não. Os corpos mortos não ressuscitam – se
considerados clinicamente mortos – como fora seguramente o caso de Jesus
depois da crucificação romana e de três dias em uma tumba. Portanto, se a
tumba estava vazia, a conclusão histórica é simples – o corpo de Jesus
fora removido por alguém e possivelmente sepultado em outro local. Os
historiadores podem se referir ao que foi dito por Paulo ou aos relatórios sobre
as aparições que circulavam na altura em que os evangelhos foram escritos,
mas esses escritos, feitos décadas depois do acontecimento,
testemunham mais o desenvolvimento das crenças teológicas do que o
que teria acontecido. Alguns estudiosos questionaram a veracidade histórica
da própria história da tumba vazia, argumentando ter sido desenvolvida para
sustentar a alegação teológica de que Jesus tinha sido ressuscitado dos mortos.
Mas dada a natureza apressada e temporária do sepultamento de Jesus,
era de esperar que a tumba estivesse vazia. Nunca houve a intenção de que
Jesus permanecesse naquela tumba. A questão que se põe é: o que aconteceu
com seu corpo? Onde e por quem poderia ter sido sepultado permanentemente?
A resposta mais curta é que não sabemos, e qualquer sugestão é especulativa.
Mas temos, ainda assim, algumas pistas em nossas fontes que nos permitem
reconstruir algumas possibilidades plausíveis.
Existem algumas histórias alternativas aos evangelhos do nosso Novo
Testamento. Tertuliano,um autor cristão do século III, nos fala de uma polêmica
em voga nessa época: o corpo de Jesus fora removido pelo jardineiro do
cemitério, que temia ver suas plantas pisoteadas pelas multidões em visita à
tumba. (14) Em um antigo texto medieval chamado Toledot Yeshu, o jardineiro
leva o corpo e o sepulta em um riacho próximo, temendo que os discípulos se
antecipassem e levassem o corpo, alegando que ele havia sido ressuscitado dos
mortos. Há um texto copta do século VI d.C. que até nos diz o nome do
jardineiro, Filógenes. Nessa versão, o jardineiro planeja levar o corpo para
sepultá-lo condignamente, mas, à meia-noite, quando fora buscá-lo, a tumba
estava rodeada de anjos e ele testemunhara Jesus ressuscitando dos mortos.
(15). Todas essas histórias sobre um jardineiro parecem ser embelezamento ao
evangelho de João, em que Maria de Madalena, confundindo Jesus com o
jardineiro, ao encontrá-lo na tumba, pergunta-lhe: “Se foste tu que o tiraste,
dize-me onde o puseste” (João 20:15).
_______
(14) Tertuliano, De Spectaculis 30.
(15) Book of the Resurrection of Christ by Bartholomew the Apostle 1.6-7.
(TABOR, 2006, p. 250-251) (grifo nosso).
O que ainda não conseguimos entender é que em Paulo, autor dos primeiros escritos
cristãos e em Marcos autor do primeiro Evangelho, não se vê nada sobre virgindade de Maria,
21
conforme constatou Hans Küng:
[…] Nas cartas de Paulo, os documentos mais antigos do Novo Testamento,
refere-se de forma lapidar, sem mencionar nomes, o nascimento de
Jesus “de uma mulher” (Ggl 4,4), mas não de “uma virgem” – com vista
a acentuar a humanidade de Jesus.
O Evangelho mais antigo de Marcos desconhece a história do
nascimento e prossegue logo, sem todos os sonhos, com João Baptista e com a
vida pública de Jesus e com os seus ensinamentos, sobre os quais infelizmente
não se encontra uma palavra no apostolado. […] (KÜNG, 1997, p. 57) (grifo
nosso).
Deduz-se disso que, muito provavelmente, tais coisas foram acrescentadas por conta do
desenvolvimento da mitificação de Jesus, para elevá-lo à condição de um deus.
Mais taxativo é o “erudito Alfred Loisy, especialista em estudos bíblicos e historiador das
religiões” (RODRÍGUEZ, 2007, p. 98), cuja fala, citada por Pepe Rodríguez, transcrevemos:
“para afastar os relatos do nascimento milagroso e da concepção virginal,
basta observar que foram ignorados por Marcos e por Paulo, e que entre o de
Mateus e o de Lucas não há concordância, apresentando ambos todas as
características de uma pura invenção” (4)
_______
4. Cf. Loisy, A. (1908), Simples Réflexions, Paris, p. 158. Depois da publicação deste seu
livro crítico, Loisy, tido por iniciador do modernismo, foi excomungado pela Igreja. Já
anteriormente, em 1889, tinha sido obrigado a deixar de leccionar a cadeira de Hebreu e
de Sagrada Escritura, de que era responsável no Instituto Católico de Paris, por ter sido
acusado de cultivar ideias heterodoxas sobre a infalibilidade da Bíblia. Em 1903, um
decreto do Santo Ofício (Inquisição) havia incluído cinco dos seus livros no Index (lista de
livros cuja leitura era absolutamente proibida)
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 98) (grifo nosso)
Na verdade, não há como não pensar na hipótese de invenção, visando
“endeusamento” de Jesus, para igualá-lo com certos heróis e deuses da antiguidade.
o
Resolvemos fazer um levantamento nas Bíblias para ver qual seria os termos utilizados
por elas nos textos de Isaías e de Mateus:
Bíblias consultadas
Isaías 7,14
Mateus 1,23
1-TEB
A jovem
A virgem
2-De Jerusalém
A jovem
A virgem
3-Do Peregrino
A jovem
A virgem
4-Santuário
A jovem
A virgem
5-Vozes
A jovem
A virgem
6-Novo Mundo
Donzela
A virgem
7-Ave-Maria
Uma virgem
A virgem
8-Paulinas 1957 - Pe Matos
Uma virgem
A virgem
9-Paulinas 1977 - Pe Matos
Uma virgem
A virgem
10-Paulinas 1980 – Pe. Matos
Uma virgem
A virgem
11-SBB
Uma virgem
A virgem
12-SBB- Nova versão (NTLH)
A jovem
A virgem
13-Anotada
A virgem
A virgem
14-Barsa
Uma virgem
Uma virgem
15-Shedd
A virgem
A virgem
22
16-SBTB
A virgem
A virgem
Das quatorze traduções, em seis delas constam em Isaías a jovem/donzela, ou seja,
47%. Embora não seja a maioria é bem significativo e pouco producente evocar para a
tradução a palavra virgem, como se faz ao traduzirem Mateus. Aliás isso, consequentemente,
prova a contradição em relação aos que traduziram Isaías como jovem/donzela. Além disso,
ainda temos a SBB com duas “traduções” para o mesmo verso, só que um adaptado à
linguagem atual. Não será o caso de constatar-se que os tradutores já estão chegando à
conclusão de que a sociedade atual não está aceitando a “virgem” como estado físico, mas,
sim, com a conotação de juventude?
Por outro lado, ainda teríamos que desconsiderar que, em Mt 12,46 e Mt 13,55-56, são
mencionados os irmãos de Jesus; inclusive, nesse último passo, nomearam os homens – Tiago,
José, Simão e Judas-; as mulheres não são quantificadas e nem nomeadas, demonstrando
como a sociedade machista da época as tratava. Apesar disso, a dogmática ainda afirma que
Maria foi virgem antes, durante e após o parto. Haja fé para acreditar nisso! Para confirmar o
que estamos falando, transcrevemos as seguintes explicações em notas de rodapé nas Bíblias:
Mt 2,25: Enquanto (ou até que) esta palavra portuguesa traduz o latim
donec e o grego heos ou, que por sua vez estão calcados sobre a expressão
hebraica ad ki que se refere ao tempo anterior a esse limite sem nada dizer do
tempo posterior, cf. Gen 8,7; Sl 109,1; Mt 12,20; 1 Tim 4,13. A tradução exata
seria: “sem que ele a tivesse conhecido, deu à luz...” pois a nossa expressão
sem que tem o mesmo valor. Primogênito quer dizer o nascido em primeiro
lugar, mas nada diz contra a virgindade perpétua de Maria pois, na Bíblia,
tem o valor de um termo técnico para significar aquele que deve ser oferecido a
Deus e resgatado segundo a Lei (Ex 13,2; Num 18,15-17), que viesse a ser o
filho mais velho que continuasse filho único. Exemplo frisante do uso do termo
nesse sentido, se encontra no epitáfio de Arsinoé que morreu “nas dores do
parto do meu primogênito”. (Bíblia Barsa, p, 2 – NT). (grifo nosso).
Mt 1,25: Mateus afirma a virgindade de Maria antes do parto. Que ela
tenha permanecido virgem no parto e depois dele, nós o sabemos pelos
santos Padres e pela Igreja, e é verdade de fé católica, isto é, universalmente
admitida, embora ainda não tenha sido definida solenemente. (Paulinas 1980, p.
1061) (grifo nosso).
Lc 1,34-35: Maria, ciosa da sua virgindade, da qual fizera doação a Deus,
pede explicações acerca do ministério da maternidade divina, anunciado pelo
anjo. A resposta é que Deus realizará um estupendo milagre. Ela se tornará mãe
por virtude do Espírito Santo e dará à luz o Filho de Deus encarnado,
conservando o privilégio da virgindade. (Paulinas 1980, p. 1121) (grifo
nosso).
Considerando a localização histórica do evento, é totalmente anticientífico se afirmar
que Maria se manteve virgem “no parto e depois dele”.
O interessante é que, nessa última explicação, vão além do que se conhece de Maria
para afirmar que ela tenha feito voto de castidade, e que, por algum ato milagroso, tenha,
depois do parto, “conservado o privilégio da virgindade”. Quanto ao primeiro ponto, trazemos
essa explicação dos tradutores da Bíblia de Jerusalém:
Lc 1,34: A “virgem” Maria é apenas noiva (v. 27) e não tem relações
conjugais (sentido semítico de “conhecer”, cf. Gn 4,1 etc.). Este fato, que parece
opor-se ao anúncio dos vv. 31-33, induz à explicação do v. 35. Nada no texto
impõe a ideia de um voto de virgindade. (Bíblia de Jerusalém, p. 1787)
(grifo nosso).
Então, temos, aqui, tradutores contra tradutores; não é fato?
Em relação ao suposto “privilégio da virgindade” é algo que nos soa bem estranho, pois,
naquela época, a mulher que não gerasse filhos era abandonada pelo marido e desprezada
pela sociedade.
23
Resta-nos um último ponto, que nos causou estranheza, em virtude da seguinte fala de
Küng: “[…] uma das últimas profissões de fé (antes de Paulo) reza o seguinte na introdução:
Jesus Cristo foi 'constituído Filho de Deus ao ressuscitar dos mortos' (Rm 1,4)”. (KÜNG, 1997,
p. 73).
Ora, se Jesus tornou-se “Filho de Deus” ao ressuscitar dos mortos, então qual o sentido
de lhe atribuírem o nascimento como sendo por obra do Espírito Santo, que o fazia “filho de
Deus”? Ou será que se tornou “filho de Deus” por ocasião do seu batismo (Mt 3,17; Mc 1,11;
Lc 3,22)? Ou, ainda, quando Moisés e Elias lhe apareceram no Monte Tabor (Mt 17,5; Mc 9,7;
Lc 9,35)?
Entendemos que algumas pessoas devem reformular o conceito que têm de moral, pois
achar que a moral do homem está relacionada a seu órgão sexual é desvirtuar totalmente o
significado dessa palavra. Ainda vamos mais longe; achamos que devemos passar todos os
conceitos teológicos do passado por uma ampla revisão, já que muitos deles estão
impregnados de prepotência e de um egoísmo eclesiástico incomum, pelos quais verdades
foram dobradas às conveniências religiosas, visando, a todo o custo, dominar a mente dos
fiéis; quiçá era desejo dominar toda a humanidade... Intolerância, guerras, cruzadas,
inquisição, etc. foram as armas utilizadas pelos religiosos do passado, apoiados pelos teólogos,
para impor, a ferro e fogo, suas teorias completamente distorcidas dos ensinamentos de Jesus.
24
Jesus de Belém ou de Nazaré?
Resolvemos fazer o presente estudo pelo motivo de já termos visto estudiosos bíblicos
dizerem que Jesus não nasceu em Belém, fato, que a princípio, pareceu-nos estranho haja
vista que sempre nos falaram que sim. Talvez o comodismo de aceitar certas coisas, sem
questioná-las, especialmente, aquelas vindas de pessoas que, em nosso julgamento, parecem
conhecer do assunto, nos fez acreditar nessa história a respeito da cidade do nascimento de
Jesus.
João Loes (1983- ), em reportagem, na revista IstoÉ, intitulada “A face humana de
Jesus”, apresenta o seguinte sobre esse assunto:
Embora os evangelhos de Mateus e Lucas afirmarem que Jesus tenha nascido
em Belém, é muito provável que isso tenha ocorrido em Nazaré. “Todos os
grandes especialistas bíblicos são unânimes em admitir que Jesus
nasceu em Nazaré”, afirma Frei Betto, religioso dominicano autor do recémlançado “Um homem Chamado Jesus”. Ao que tudo indica, Lucas e Mateus
teriam escolhido Belém como cidade natal de Jesus para que suas
versões da vida de Cristo se alinhassem a uma profecia do Antigo
Testamento, segundo a qual o Messias nasceria na Cidade do Rei Judeu, ou
seja, a Cidade de Davi, que é Belém. (LOES, 2009, p. 65) (grifo nosso).
Realmente, Mateus dá como certo o nascimento de Jesus em Belém, seu objetivo
parece confirmar o que foi dito na reportagem, que é o de fazer-nos crer que o nascimento
nessa cidade tenha ocorrido para cumprimento de uma certa profecia, pois, ele, Mateus, mais
do que qualquer um dos outros evangelistas, preocupava-se em relacionar os vários
acontecimentos da vida de Jesus com algum tipo de profecia, chegando ao ponto de até
mesmo de citar profecias inexistentes, como é o caso, por exemplo, do passo Mt 2,23, que
iremos ver, no qual ele diz que profetas previram que Jesus “Será chamado o Nazareno”.
Elaine Pagels (1943- ), professora de religião na Universidade de Princeton, confirma
essa tendência do autor do Evangelho de Mateus: “[…] Hoje, porém, muitos estudiosos
sugerem que a correspondência entre profecia e evento que Mateus descreve mostra que
ele às vezes adaptou sua narrativa de modo a adequá-la às profecias”. […] (PAGELS,
2004, p. 114) (grifo nosso).
Mt 2,1-6: “Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judeia, no tempo do rei
Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, e perguntaram: 'Onde está o
recém-nascido rei dos judeus? Nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos para
prestar-lhe homenagem'. Ao saber disso, o rei Herodes ficou alarmado, assim como
toda a cidade de Jerusalém. Herodes reuniu todos os chefes dos sacerdotes e os
doutores da Lei, e lhes perguntou onde o Messias deveria nascer. Eles responderam:
"Em Belém, na Judeia, porque assim está escrito por meio do profeta: 'E você,
Belém, terra de Judá, não é de modo algum a menor entre as principais
cidades de Judá, porque de você sairá um Chefe, que vai apascentar Israel,
meu povo'".
A questão de Jesus ter nascido em Belém é hoje motivo de sérios questionamentos por
parte dos estudiosos, como por exemplo, James D. Tabor (1946- ), professor do Departamento
de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, graduou-se em
doutorado pela Universidade de Chicago em Estudos Bíblicos e é especialista nos Manuscritos
do Mar Morto, que em seu livro intitulado A dinastia de Jesus: a história secreta das origens do
cristianismo, nos dá a seguinte informação:
Existem estudiosos do Novo Testamento que duvidam da validade
25
histórica até mesmo desse arcabouço básico, especialmente da história do
nascimento de Jesus em Belém. Sustentam que a história de Belém foi
provavelmente acrescentada para dar crédito a Jesus como Messias
descendente de Davi, já que Belém era a cidade de Davi. Existem certos
indícios de que a questão do local do nascimento de Jesus, na Galileia ou na
Judeia, tornou-se uma questão de controvérsia e discussão dentro de grupos
judeus (consulte João 7:40-44). (TABOR, 2006, p. 336). (grifo nosso).
Podemos ainda citar uma conclusão emanada do Seminário de Jesus, “uma instituição
composta por cerca de 100 pesquisadores, altamente qualificados, que, há 26 anos, se
dedicam à investigação científica dos Evangelhos, em busca das palavras e ações autênticas de
Jesus”. (SOUZA, 2011, p. 65): “Jesus provavelmente nasceu em Nazaré, sua cidade
natal. Lendas posteriores que localizam seu nascimento em Belém foram inventadas para
satisfazer uma antiga profecia”. (SOUZA, 2011, 104) (grifo nosso).
Outros autores irão confirmar essa história da inclusão no texto do nascimento em
Belém para relacionar o episódio ao cumprimento uma suposta profecia.
Vejamos algumas outras interessantes conclusões dos especialistas participantes do
Seminário de Jesus:
Jesus não nasceu de uma virgem; os pesquisadores do SJ duvidam que
Maria tenha concebido Jesus sem relação sexual. O pai de Jesus foi José ou
algum outro homem desconhecido que seduziu a jovem Maria […] (SOUZA,
2011, p. 104) (grifo nosso).
O recenseamento mundial, a viagem para Belém, a estrela no oriente, os
astrólogos [reis magos], a fuga para o Egito e o retorno do Egito, o massacre
das crianças, os pastores nos campos e o parentesco com João Batista são tudo
ficções cristãs. (SOUZA, 2011, p. 104) (grifo nosso).
[…] Os pesquisadores do SJ chegaram a concluir que apenas 18% (dezoito
por cento) do total de palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos
podem ser realmente consideradas autênticas e que apenas 16%
(dezesseis por cento) do total de ações a ele atribuídas nos Evangelhos
pode ser, de fato, consideradas autênticas, ou seja, aproximadamente 82%
das palavras e 84% das ações atribuídas a Jesus nos Evangelhos não são
verdades históricas, mas crenças cristãs (cf. FUNK & THE JESUS SEMINAR, p. 1)
(SOUZA, 2011, p. 67) (grifo nosso).
A Revista Superinteressante nº 183, publica um artigo do jornalista e editor Rodrigo
Cavalcante intitulado “Quem foi Jesus?”, do qual ressaltamos este interessante trecho:
[...] E o segundo problema, ainda mais grave, é que provavelmente Jesus
não nasceu em Belém. “Há quase um consenso entre os historiadores de que
Jesus nasceu em Nazaré”, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro de Estudos
Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Então por que o
evangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório explica que o
texto segue o gênero literário conhecido por midrash. Basicamente, o midrash é
uma forma de contar a história da vida de alguém usando como pano de fundo a
biografia de outras personalidades históricas. No caso de Jesus, ele explica, a
referência a Belém é feita para associá-lo ao rei Davi do Antigo
Testamento – que, segundo a tradição, teria nascido lá. (CAVALCANTE,
2002, p. 43) (grifo nosso).
Pelo que se depreende desse texto, para o autor de Mateus, a família de Jesus residia
em Belém, local de seu nascimento, tal fato se deu, conforme sua alegação, para se cumprir
uma suposta profecia de Miqueias que diz:
“Mas você, Belém de Éfrata, tão pequena entre as principais cidades de Judá! É de você
que sairá para mim aquele que há de ser o chefe de Israel. A origem dele é antiga,
desde tempos remotos”. (Mq 5,1 ou 5,2).
A citação dessa “profecia’” de Miqueias é pura apelação, porquanto, quem a utilizou,
26
simplesmente, pegou parte de um texto, fora do seu contexto, fato que leva quem o lê a crer
numa realidade completamente diferente daquela que corresponde à verdade dos
acontecimentos. Para entendermos o contexto é necessário continuarmos lendo a sequência da
narrativa:
“Pois Deus os entrega só até que a mãe dê à luz, e o resto dos irmãos volte aos
israelitas. De pé, ele governará com a própria força de Javé, com a majestade e o
nome de Javé, seu Deus. E habitarão tranquilos, pois ele estenderá o seu poder até as
extremidades da terra. Ele próprio será a paz. Se a Assíria invadir o nosso território e
quiser pisar o interior de nossos palácios, poremos em luta contra eles sete pastores e
oito comandantes. Eles vão governar a Assíria com espada, a terra de Nemrod com
punhal. Ele nos livrará da Assíria, se invadirem o nosso território, se
atravessarem nossas fronteiras”. (Mq 5,2-5 ou 5,3-6).
A pessoa de quem Miqueias está falando, nesse passo, é, provavelmente, Ezequias,
filho do rei Acaz, Rei de Judá (721-693 a.C.), é nele que o povo hebreu deposita a sua
esperança em livrá-lo da Assíria, portanto, nada tem a ver com alguma profecia a respeito de
Jesus, por mais esforço exegético que se faça.
Mateus, na continuação da narrativa, passa a informar da fuga da família de Jesus para
o Egito, de onde todos retornam para morar em Nazaré:
Mt 2,13-23: “Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e
disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu te
avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar’. José levantou-se durante a
noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de
Herodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: Eu
chamei do Egito meu filho (Os 11,1).Vendo, então, Herodes, que tinha sido
enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou massacrar em Belém e nos seus
arredores todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo exato que
havia indagado dos magos. Cumpriu-se, então, o que fora dito pelo profeta Jeremias:
Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus
filhos; não quer consolação, porque já não existem! (Jer 31,15). Com a morte
de Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, e disse: ‘Levantate, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os que
atentavam contra a vida do menino’. José levantou-se, tomou o menino e sua mãe e foi
para a terra de Israel. Ao ouvir, porém, que Arquelau reinava na Judeia, em lugar de
seu pai Herodes, não ousou ir para lá. Avisado divinamente em sonhos, retirou-se para
a província da Galileia e veio habitar na cidade de Nazaré para que se cumprisse o que
foi dito pelos profetas: Será chamado Nazareno”.
Nesse trecho o autor de Mateus volta a “atacar” com as supostas profecias, citando
mais três, que, também, nada têm a ver com Jesus.
Será que Herodes tentou mesmo matar o menino, como é afirmado? O primeiro
problema que se nos apresenta é “que Herodes faleceu quatro anos antes da era cristã”
(WILSON, 2007, p. 11). Por isso essa suposta matança das crianças tem tudo para ser algo
fictício, o que é fácil de se perceber, pois não há um relato sequer que João Batista, a essa
época com menos de dois anos, tenha sido poupado por Herodes ou que, talvez, sua família
tenha também fugido para escapar dele. Quanto a idade de João Batista basta ler Lucas (1,3944) para ver que a jovem Maria foi visitar Izabel, mãe de João, e esta, “cheia do Espírito
Santo” (v. 41) reconheceu a gravidez de sua prima.
Pepe Rodríguez (1953- ), destacado jornalista de investigação, especialista em religiões
comparadas, com diversos livros já publicados, dá a respeito de Mt 2,13-18, citado acima, a
seguinte opinião:
Este relato é o máximo: mostra um Herodes profundamente estúpido que,
apesar de “perturbado” com a notícia do nascimento de um rei messias que
podia destroná-lo (Mt 2,3-5), se revela incapaz de enviar os seus soldados a
Belém, situada a pouca distância do seu palácio, para o prender e, em lugar de
27
mandar, ao menos, algum dos seus muitos espias da corte para que o
informassem com diligência, ficou à espera das notícias de três magos
desconhecidos que se haviam declarado adoradores do recém-nascido. Um
recém-nascido que, conforme conta Mateus, já podia ter perto de dois anos, o
que nos leva a perguntar: passou Jesus os seus dois primeiros anos num
estábulo à espera dos magos?, ficou Herodes durante esses dois anos à espera
dos magos sem tomar qualquer medida, mesmo depois de esse prazo ter
passado?, eram tão idiotas os soldados de Herodes que não soubessem
distinguir entre um recém-nascido e uma criança mais crescida, a ponto de
Herodes ter de os mandar assassinar todos os nascidos “de dois anos para
baixo”?
Contrariamente ao que nos fazem crer Mateus, os dados históricos
reais dizem-nos que Herodes não era um rei papa-açorda e sanguinário.
Muito pelo contrário. Mas, ao silenciarem os factos descritos por esse
evangelho, dizem-nos também que Mateus está a mentir. Não aparecem
relatados em lado algum; nem mesmo nas Antiguidades Judaicas ou em
qualquer outra das obras documentadas do historiador judeu Flávio Josefo (c.
37-103 d.C.): este autor, que lutou contra os Romanos na guerra judaica, nunca
deixou passar em silêncio os massacres cometidos contra o seu povo, sendo
assim impossível não ter contado – num relato minucioso, como são todos os
seus – a notícia da matança das crianças, se esta tivesse efetivamente
acontecido (15).
Esta lenda, como restante mito evangélico sobre Jesus, é falsa. Na
sua origem contam-se antigas tradições pagãs. Como é óbvio, foi
introduzida por Mateus – o único texto canónico em que aparece – por um
motivo muito concreto: reforçar a credibilidade do mito básico do cristianismo,
mostrando como este dá cumprimento a duas supostas profecia sobre o Messias.
_______
(15) Por outro lado, dado que os Judeus, submetidos ao Império Romano, não podiam
aplicar a pena de morte aos seus próprios concidadãos, sem uma autorização explícita do
governador imperial, não é razoável pensar-se que Herodes tenha ordenado a matança,
como não é provável, caso tal tivesse acontecido, que o rei judeu não tivesse sido
castigado pela autoridade romana.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 110-111) (grifo nosso).
Por outro lado, segundo o escritor Werner Keller (1909-1980), “inexiste prova histórica
ou arqueológica da ‘fuga para o Egito’”. (KELLER, 2000, p. 366). Sobre esse assunto, não nos
estenderemos, porquanto, já o estudamos, pormenorizadamente, em nosso texto “A fuga do
Egito”, o qual sugerimos a você, caro leitor, a sua leitura.
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém explicam essa narrativa como sendo uma tentativa
de ser fazer “um paralelo anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas:
segundo estas, quando o nascimento da criança foi anunciado, por meio de visões, ou por
intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as crianças recém-nascidas” (Bíblia de
Jerusalém, p. 1705-1706).
Vejamos esse episódio em Flávio Josefo (37-103 d.C.), o historiador hebreu:
[…] Um dos doutores da sua lei, ao qual eles dão o nome de escribas das
coisas santas e que passam entre eles por grandes profetas, disse ao rei que
naquele mesmo tempo deveria nascer um menino entre os hebreus, cuja
virtude seria admirada por todo o mundo, pois aumentaria a glória de sua
nação e humilharia o Egito, e cuja reputação seria imortal. O rei, assustado
com a predição e seguindo o conselho daquele que lhe fazia essa
advertência, publicou um edito pelo qual ordenava que se deveriam
afogar todas as crianças hebreias do sexo masculino e ordenou às
parteiras do Egito que observassem exatamente quando as mulheres fossem dar
à luz, porque não confiava nas parteiras de sua nação. Esse edito ordenava
também que aqueles que se atrevessem a salvar ou criar alguma dessas
crianças seriam castigados com a pena de morte, juntamente com toda a
família. (JOSEFO, 2003, p. 79) (grifo nosso).
O paralelo entre os dois personagens – Moisés e Jesus – é evidente: ambos
28
representavam problemas políticos no futuro, com a possibilidade de virem a querer ocupar os
cargos dos mandatários.
Em relação à morte das crianças, Keller explica o seguinte:
Assim, hoje em dia usa-se de um cuidado bem maior do que outrora
na apreciação da historicidade do infanticídio de Belém e, antes, tende-se
a considerar o relato em questão como uma tentativa, condicionada à
mentalidade contemporânea que visa realçar a importância de Jesus, pelos
meios usados na época (para tanto, existe ainda uma certa autenticidade
histórica, representada pelas atitudes efetivamente tomadas por Herodes em
sua contenda com os fariseus, por causa do Messias. Veja o fim do capítulo
precedente). No entanto, há ainda mais. O relato do infanticídio de Belém
estabeleceu um nexo entre Jesus e Moisés, pois também desse último a
Bíblia conta como escapou, milagrosamente, de perseguições idênticas, sofridas
por parte do faraó egípcio (Êxodo 1.15, 2.10). (KELLER, 2000, p. 366) (grifo
nosso).
Corroborando o que foi dito acima, transcrevemos, respectivamente, de Roberto
Carneiro Puccinelli Junior (1960- ), escritor, espiritualista e mestre em ciências e Bart D.
Ehrman (1955- ), é Ph.D. em Teologia pela Princeton University, que dirige o Departamento de
Estudos Religiosos da University of North Carolina, Chapel Hill. É especialista em Novo
Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e da vida de Jesus, é a
maior autoridade em Bíblia do mundo:
Outro exemplo é a matança de meninos de até dois anos, que teria sido
ordenada por Herodes “em Belém e todo seu território” (Mt2:16). Mateus faz
uso aqui de tradições rabínicas sobre a vinda de Moisés, segundo as
quais tão logo o nascimento da criança foi anunciado por meio de visões
e anúncios dos magos, o faraó teria mandado chacinar crianças recémnascidas do sexo masculino (*). Também se observa um paralelo com o livro
do Êxodo, quando o rei do Egito manda as parteiras assistentes do povo hebreu
assassinar todo recém-nascido menino e poupar a vida das meninas. Conforme
explica Roselis von Sass em “O Livro do Juízo Final”, Jesus nasceu em 12 a.C.,
data confirmada também pelo Dr. Jerry Vardaman, diretor do Instituto de
Arqueologia da Universidade do Mississípi e professor de religião. Nessa época,
Herodes não estava preocupado com o nascimento de nenhum Messias,
mas sim com dois de seus filhos que, segundo imaginava, tramavam a sua
morte. Nesse ano ele foi com os filhos até Roma para que o imperador Augusto
decidisse a questão, o qual não viu indícios de nenhuma rebelião e reconciliou
pai e filhos. Ainda nesse ano de 12 a.C., Herodes presidiu a edição dos Jogos
Olímpicos e até deu dinheiro do próprio bolso para garantir o sucesso do
empreendimento. De preocupações com o Messias nascido, nem sinal.
_______
(*) O faraó de fato tencionava matar os hebreus recém-nascidos do sexo masculino, mas
não para se ver livre de uma criança chamada Moisés, e sim porque achava que o povo
escravizado estava se tornando muito numeroso, o que poderia ser perigoso para o país.
Ao leitor que desejar conhecer detalhes dessa história indicam-se as obras Aspectos do
Antigo Egito ou Moisés, ambas publicadas pela Editora Ordem do Graal na Terra.
(PUCCINELLI JUNIOR, 2006, p. 192-193) (grifo nosso).
Quanto ao registro histórico, também devo chamar a atenção para o fato de que
não há nenhum relato, em qualquer fonte antiga, sobre o rei Herodes
massacrar crianças em Belém, ou em seus arredores, ou em qualquer
outro lugar. Nenhum outro autor, bíblico ou não, menciona isso. […]
(EHRMAN, 2010, p. 46) (grifo nosso).
Para nós, fica nítido que a fuga da família de Jesus para o Egito foi utilizada também
para tentar aplicar o que se supõe ser uma profecia de Oseias. Ao analisarmos a citada
passagem desse profeta (Os 11,1) vemos que ela nem mesmo é uma profecia, pois, na
verdade, trata-se de um fato já acontecido. Deve-se observar que o verbo “chamar” está no
pretérito, o que indica fato do passado e não um evento a acontecer no futuro. Ademais,
expressão “meu filho”, usada no passo, tem como referência o povo de Israel e não alguém em
29
particular.
Por outro lado, a matança das crianças é, por certo, uma tentativa de justificar uma
suposta profecia de Jeremias (31,15). Porém, como já acontecido anteriormente, essa
passagem também não é uma profecia, uma vez que se refere à tomada de Jerusalém por
Nabucodonosor, rei da Babilônia, que subjuga o povo e o leva cativo para seu país, daí “o
pranto de Raquel (sepultada em Ramá, perto de Belém) pelos filhos massacrados ou
deportados pelos caldeus depois da destruição de Jerusalém em 596 a.C.,...” (Bíblia Sagrada,
Edições Paulinas, p. 1062).
A suposta ida da família de Jesus para Nazaré é, da mesma forma, algo que foi forjado
para se relacionar ao cumprimento de mais uma profecia que teria sido dita por vários
profetas. Entretanto, a bem da verdade, não há nenhuma profecia em que um só profeta
tenha dito: “Será chamado Nazareno”; portanto, é pura invenção de Mateus ou de alguém
que, por algum motivo, colocou isso lá.
Considerações de Geza Vermes (1924- ), professor da Universidade de Oxford, é
considerado um dos maiores especialistas acadêmicos sobre Manuscritos do Mar Morto e
história do cristianismo, ao versículo “[Ele] será chamado Nazareno” (Mt 2,23):
Enquanto a descendência davídica de Jesus é um tema recorrente bem
estabelecido nos Evangelhos, especialmente nos Sinóticos, sua proveniência da
Judeia parece ser mais de uma vez ignorada ou contestada. As pessoas o viam
não como sulista, mas como nascido e criado na Galileia. Ele era chamado de
Jesus, o Nazareno, isto é, originário de Nazaré, ou, por extenso, o
profeta Jesus de Nazaré da Galileia (Mt 21,11). Nazaré e a região do lago
da Galileia era sua patris, o que pode significar igualmente seu lugar de
nascimento, sua cidade e sua pátria (Mc 6,4; Mt 13,57; Lc 4,24, Jn 1,46).
Obviamente, alguns judeus locais se recusaram a aceitá-lo como o
Messias justamente porque sabiam que ele era da Galileia e não “de
Belém, a cidade onde vivia Davi” (Jo 7,41-42). Ademais, eles expressavam
o preconceito sem dúvida originário da Judeia, segundo o qual nenhum grande
profeta provinha da Galileia (Jo 7,52). Devemos reconhecer, portanto, que
estamos em um impasse: o nascimento em Belém é asseverado com certeza
teológica, mas é questionado no que parece ser conhecimento factual. (VERMES,
2007, p. 97) (grifo nosso).
Apresentamos também as considerações de alguns tradutores:
O adjetivo provém, sem dúvida, do nome de Nazaré. Serviu para
designar os cristãos (At 24,5). (Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 1286) (grifo nosso).
A palavra “Nazareno” pode ter um duplo sentido: habitante de
Nazaré e “Nazir”, isto é, consagrado a Deus por um voto (Cf. Lv 21,12; Jz
23,57). Talvez Mt quisesse literariamente visar os dois sentidos: Jesus é de
Nazaré e é consagrado especialmente ao Senhor. (Bíblia Sagrada Santuário, p.
1437) (grifo nosso).
“Nazareu” (nazôraios forma usada por Mt, Jo e At) e o seu sinônimo
“nazareno” (nazarênos, forma usada por Mc; Lc tem as duas formas) são duas
transcrições correntes do mesmo adjetivo aramaico (nasraya), derivado
do nome da cidade de Nazaré (Nasrath). Aplicado primeiro a Jesus –
indicando sua origem (26,69.71) – e depois a seus sequazes (At 24,5), esse
termo ficou como designativo dos discípulos de Jesus no mundo semítico,
enquanto no mundo greco-romano prevaleceu o nome de “cristão” (At 11,26).
[…] (Bíblia de Jerusalém, p. 1706) (grifo nosso).
Ao que nos parece, o consenso geral é que o adjetivo “Nazareno”, aplicado a Jesus, está
mais para designar a sua origem do que qualquer outra coisa, inclusive, o próprio autor de
Mateus coloca Jesus indo habitar Nazaré para relacioná-lo a esse adjetivo, embora, a rigor, é
mais lógico aplicá-lo a quem nasceu em Nazaré; porém, é certo que a principal preocupação
desse autor era relacionar Jesus a uma suposta profecia do que ser lógico e coerente em seus
relatos. Voltaremos a esse assunto mais ao final desse estudo.
30
Existem outras passagens em Mateus nas quais cita-se uma cidade ou região
relacionada a Jesus:
Mt 3,13: “Jesus foi da Galileia para o rio Jordão, a fim de se encontrar com João, e ser
batizado por ele”.
Mt 4,12-13; “Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia. Deixou
Nazaré, e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, nos
confins de Zabulon e Neftali”.
Mt 13,53-54: “Quando Jesus terminou de contar essas parábolas, saiu desse lugar, e
voltou para a sua terra. Ensinava as pessoas na sinagoga, de modo que ficavam
admiradas. Diziam: 'De onde vêm essa sabedoria e esses milagres?'”
Mt 19,1: “Quando Jesus acabou de dizer essas palavras, ele partiu da Galileia, e foi
para o território da Judeia, no outro lado do rio Jordão”.
Mt 21,10-11: “Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou agitada, e
perguntavam: "Quem é ele?" E as multidões respondiam: "É o profeta Jesus, de
Nazaré da Galileia”.
A citação inicial de Galileia (3,13), provavelmente trata-se de Nazaré. Jesus muda-se
para Cafarnaum, ainda na Galileia (4,12-13), depois volta à “sua terra” (13,53-54),
certamente, Nazaré, conforme é afirmado em: Novo Testamento Loyola, Bíblia de Jerusalém e
Bíblia Santuário. E, finalmente, ele se transfere para a Judeia (19,1), chegando à Jerusalém
(21,10-11). O interessante é que nessa cidade “que mata os profetas” ele foi reconhecido
como Jesus de Nazaré, bem estranho se tivesse nascido em Belém, que é na Judeia, e que
localiza-se a cerca de 10 km ao sul de Jerusalém, que dizer, na própria região, onde dizem ter
nascido, eles o conhecem como sendo de Nazaré.
Mt 20,29-30: “Quando saía de Jericó, uma numerosa multidão o seguiu. Então dois
cegos, sentados à beira da estrada, percebendo que Jesus passava gritaram:
'Senhor, tem piedade de nós, ó Filho de Davi!'”.
Mc 10,46-47: “Jesus e os discípulos chegaram a Jericó. Quando ele já saía de lá com os
seus discípulos, e acompanhados de uma numerosa multidão, o cego Bartimeu, filho
de Timeu, estava sentado à beira do caminho pedindo esmola. Tendo sabido que se
tratava de Jesus de Nazaré, ele começou a gritar: 'Filho de Davi, Jesus, tem piedade
de mim!'”.
Lc 18,35-38: “Quando Jesus se aproximava de Jericó, um cego estava sentado à beira
do caminho, mendigando. Ouvindo o barulho da multidão que passava, perguntou o
que havia. Anunciaram-lhe: É Jesus, o Nazareno que está passando. Então, ele
começou a gritar: 'Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!'".
Relacionando-se os passos de Marcos e Lucas, podemos, mais uma vez, concluir que
Nazareno quer significar nascido em Nazaré.
É curioso como o “Espírito Santo” inspira os autores bíblicos de forma divergente, em
Mateus é afirmado que são dois cegos, em Lucas e Marcos temos um só, inclusive, neste
último autor é citado até o nome dele. E aí temos sérios problemas, caso S. Jerônimo esteja
certo quando disse: “A Verdade não pode existir em coisas que divergem”.
Vejamos, agora, as referências do Evangelho de Marcos:
Mc 1,9: “Nesses dias, Jesus chegou de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no
rio Jordão”.
Mc 1,14: “Depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a Galileia, pregando a
Boa Notícia de Deus”.
Marcos tem que Jesus residia em “sua terra” Nazaré, portanto, não é fora de propósito
presumir-se que, por não falar nada dele ter nascido em algum outro lugar, que essa cidade é
31
o local onde ele nasceu. Fato que podemos confirmar levando-se em conta a própria fala de
Jesus:
Mc 6,1-6: “Jesus foi para Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam.
Quando chegou o sábado, Jesus começou a ensinar na sinagoga. Muitos que o
escutavam ficavam admirados e diziam: 'De onde vem tudo isso? Onde foi que arranjou
tanta sabedoria? E esses milagres que são realizados pelas mãos dele? Esse homem
não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? E
suas irmãs não moram aqui conosco?' E ficaram escandalizados por causa de Jesus.
Então Jesus dizia para eles que um profeta só não é estimado em sua própria
pátria, entre seus parentes e em sua família. E Jesus não pôde fazer milagres em
Nazaré. Apenas curou alguns doentes, pondo as mãos sobre eles. E Jesus ficou
admirado com a falta de fé deles”.
Numa outra versão, o trecho destacado do versículo 4 tem o seguinte teor: “Um profeta
só é estimado fora da sua terra natal” (Loyola), ou seja, aqui temos o próprio Jesus afirmando
ser Nazaré o seu local de nascimento, que também é o sentido de “sua própria pátria” na
versão acima.
Ernest Renan (1823-1892), escritor, filósofo e historiador, que, na obra Vida de Jesus,
em analisando a infância e a juventude de Jesus, objetivamente disse:
Jesus nasceu em Nazaré (1), pequena cidade da Galileia, que antes desse
importante acontecimento não teve nenhuma celebridade (2). Durante toda a
sua vida foi conhecido pelo nome de "Nazareno" (3), e só após entrarmos por
um atalho bem complicado (4) é que seremos capazes de entender o porquê da
lenda que diz ter ele nascido em Belém. Veremos adiante (5) o motivo
dessa suposição e como ela era a consequência obrigatória do papel messiânico
atribuído a Jesus (6). Ignora-se a data precisa de seu nascimento. Ele ocorreu
sob o reino de Augusto, provavelmente por volta do ano 750 de Roma (7), ou
seja, alguns anos antes do ano 1 da era que todos os povos civilizados datam
como o dia oficial de seu nascimento (8).
______
(1) Mat., XIII, 54 e seg.; Marcos, VI, 1 e seg.; João, I, 45-46.
(2) Ela não é mencionada nem nos escritos do Velho Testamento, nem em Josefo, nem no
Talmude. Mas é nomeada na liturgia de Kalir, para o 9 de ab.
(3) Mat., XXVI, 71; Marcos, I, 24; XIV, 67; Lucas, XVIII, 37; XXIV, 19; João, XIX, 19;
Atos, II, 22; III, 6; X, 38. Comp. João, VII, 41-42; Atos, II, 22, III, 6; IV, 10; VI, 14;
XXII, 8; XXVI, 9. Daí o nome de nazarenos (Atos, XXIV, 5), aplicado durante muito tempo
aos cristãos pelos judeus, e que os designa ainda em todos os países muçulmanos.
(4) Essa circunstância foi inventada para responder a Miqueias, V, 1. O
recenseamento efetuado por Quirino, ao qual a lenda relaciona a viagem a Belém, data de
pelo menos dez anos além do ano em que, segundo Lucas, Jesus teria nascido. Os dois
evangelistas, de fato, situam o nascimento de Jesus sob o reino de Herodes (Mat., II, 1,
19, 22; Lucas, I, 5). Logo, o recenseamento de Quirino só aconteceu após a deposição de
Arquelau, quer dizer, dez anos após a morte de Herodes, no ano 37 da era de Acio (Josefo,
Ant., XVII, XIII, 5; XVIII, 5, 1; II, 1). A inscrição pela qual se tentava outrora estabelecer
que Quirino fez dois recenseamentos é reconhecida como falsa (V. Orelli, Insc. Lat., nº
623, e o suplemento de Henzen nesse número; Borghesi, Fastos Consulares [ainda
inéditos], no ano de 742). Quirino pode ter sido núncio por duas vezes na Síria, mas só
houve recenseamento na segunda nunciatura (Mommsen, Res gestae divi Augusti, Berlim,
1865, p. 111 e seg.). O recenseamento, em todo caso, teria sido aplicado às partes
reduzidas à província romana, e não aos reinados e tetrarquias, mormente enquanto
vivesse Herodes, o Grande. Os textos pelos quais se tenta provar que algumas das
operações de estatística e de cadastro determinadas por Augusto devem ter se estendido
ao domínio de Herodes ou não têm a importância que se lhes quer dar ou são de autores
cristãos, que tomaram este dado emprestado do Evangelho de Lucas. O que bem prova,
aliás, que a viagem da família de Jesus a Belém não tem nada de histórico, que é o motivo
a ela atribuído. Jesus não era da família de Davi (ver cap. 15) e, mesmo que fosse, não se
conceberia, ademais, que seus pais tivessem sido forçados, por uma operação puramente
cadastral e financeira, a ir se inscrever no local de onde seus ancestrais haviam saído mil
anos antes. Impondo tal obrigação, a autoridade romana teria angariado para si
pretensões carregadas de ameaças.
(5) Cap. 14.
(6) Mat., II, 1 e seg.; Luc., II, 1 e sego A omissão desse relato em Marcos e as duas
passagens paralelas, Mat., XIII, 54 e Marcos, VI, 1, nas quais Nazaré aparece como "a
terra" de Jesus, provam a ausência de tal lenda no texto primitivo que forneceu o esboço
narrativo dos Evangelhos atuais de Mateus e Marcos. É diante dessas objeções
32
frequentemente repetidas que se terão acrescentado, quanto ao Evangelho de Mateus,
reservas cuja contradição com o resto do texto não era tão flagrante a ponto de obrigar a
correção dos locais que haviam sido descritos sob um ponto de vista muito diferente.
Lucas, ao contrário (IV, 16), escrevendo refletidamente, empregou, para ser consequente,
uma expressão mais amenizada. Quanto ao quarto evangelista, ele nada sabe da viagem a
Belém; para ele, Jesus é simplesmente "de Nazaré", ou "galileu", em duas circunstâncias
em que seria da maior importância lembrar seu nascimento em Belém (I, 45-46; VII, 4142).
(7) Mateus, II, 1, 19,22; Lucas, I, 5. Herodes morreu na primeira metade do ano 750,
correspondente ao ano 4 a.C.
(8) Sabe-se que o cálculo q e serve de base à era vulgar foi feito no século VI por Dionísio,
o Pequeno. Esse cálculo envolve certos dados puramente hipotéticos.
(RENAN, 2004, p. 99-100) (grifo nosso).
Mais claro não precisa: Jesus nasceu em Nazaré é pura lenda colocá-lo nascendo em
Belém.
Mc 1,23-24: “Nesse momento, estava na sinagoga um homem possuído por um espírito
mau, que começou a gritar: 'Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos
destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus!'".
Até mesmo um espírito mau reconhece Jesus como natural de Nazaré, eis o motivo dele
o ter chamado de Nazareno. Nas versões: Novo Testamento Loyola, A Bíblia Tradução
Ecumênica, Bíblia Sagrada Santuário, Bíblia Sagrada Ave Maria e Bíblia do Peregrino, lemos
“Jesus de Nazaré”, disso deduzimos que seus tradutores entendem o adjetivo Nazareno é
aplicado a quem é natural de Nazaré.
Apenas para curiosidade: se o homem estava possuído por “Um” espírito mau, qual a
razão da pergunta “que queres de nós”, uma vez que aqui se denota ser mais de um? E não
venham com o tal do plural majestático como explicação! Lucas também narra esse episódio
(Lc 4,33-34).
Mc 1,21: “Foram à cidade de Cafarnaum e, no sábado, Jesus entrou na sinagoga e
começou a ensinar”.
Mc 2,1: “Alguns dias depois, Jesus entrou de novo na cidade de Cafarnaum. Logo se
espalhou a notícia de que Jesus estava em casa”.
Mc 3,20: “Jesus foi para casa, e de novo se reuniu tanta gente que eles não podiam
comer nem sequer um pedaço de pão”.
Mc 9,33: “Quando chegaram à cidade de Cafarnaum e estavam em casa, Jesus
perguntou aos discípulos: 'Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?'".
Sem dar nenhuma notícia de que Jesus tenha se mudado, Marcos já tem Jesus como
residindo em Cafarnaum.
Mc 16,5-6: “Então entraram no túmulo e viram um jovem, sentado do lado direito,
vestido de branco. E ficaram muito assustadas. Mas o jovem lhes disse: 'Não fiquem
assustadas. Vocês estão procurando Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele
ressuscitou! Não está aqui! Vejam o lugar onde o puseram'”.
O jovem vestido de branco diz à Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé que
Jesus não estava mais lá no túmulo, pois havia ressuscitado. Este jovem, na visão de Mateus
era um anjo, que desceu do céu (Mt 28,2-3), dessa forma, temos que o plano espiritual
confirma que Jesus é de Nazaré e não de Belém.
Seguindo com a nossa análise, vejamos o Evangelho de Lucas:
Lc 1,26-27: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da
Galileia chamada Nazaré. Foi a uma virgem, prometida em casamento a um homem
chamado José, que era descendente de Davi. E o nome da virgem era Maria”.
Lc 2,39-40: “Quando acabaram de cumprir todas as coisas, conforme a Lei do Senhor,
33
voltaram para Nazaré, sua cidade, que ficava na Galileia. O menino crescia e ficava
forte, cheio de sabedoria. E a graça de Deus estava com ele”.
Lc 2,51: “Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e permaneceu obediente a
eles. E sua mãe conservava no coração todas essas coisas”.
Em todos esses passos é fato incontestável que a família de Jesus morava em Nazaré,
inclusive, o anjo enviado para avisar Maria sobre os futuros acontecimentos foi a Nazaré,
cidade onde ela morava. O ponto que se há de resolver é que, conforme as supostas profecias
o Messias nasceria em Belém, assim Lucas apresenta como justificativa um fictício
recenseamento a mando de César Augusto, conforme se vê no passo a seguir.
Lc 2,1-7: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto, ordenando o
recenseamento em todo o império. Esse primeiro recenseamento foi feito quando
Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se, cada um na sua cidade natal.
José era da família e descendência de Davi. Subiu da cidade de Nazaré, na Galileia,
até à cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua
esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, se completaram os
dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou, e o
colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro da casa”.
Vermes tem a seguinte opinião sobre o mencionado recenseamento:
Não há registro de nenhum censo imperial na época de Augusto. Houve um
recenseamento fiscal na Judeia em 6/7 d.C. sob Quirino, governador da Síria,
após a deposição de Herodes Arquelau e a transformação de sua etnarquia na
província romana da Judeia. Porém, nenhum censo romano teria sido
imposto a um rei dependente como Herodes, e tampouco Quirino foi
governador da Síria durante a vida de Herodes. Finalmente, mesmo que
tenha havido um censo na época do nascimento de Jesus, José não teria
sido obrigado, sob as leis romanas, a viajar para a terra ancestral de sua
tribo, e tampouco Maria teria sido obrigada a acompanhá-lo. Lucas parece
ter combinado o censo que de fato houve sob Quirino, cerca de doze anos após
o nascimento de Jesus, com o seu roteiro teológico. (VERMES, 2006, p. 255)
(grifo nosso).
Além disso, acreditamos que jornalista A. N. Wilson (1950- ), escritor, biógrafo e
romancista, tem razão quando diz:
[…] Nenhum historiador antigo, por exemplo, faz a menor alusão a
esse recenseamento universal ordenado pelo imperador Augusto. Josefo,
em seu Antiguidades, menciona um recenseamento ocorrido na Judeia no ano 6
da EC e diz que tinha por finalidade contar cabeças antes do lançamento de uma
capitação. A impopularidade desse imposto, e do recenseamento, provocou a
insurreição chefiada por Judas de Gamala (mencionada pelo próprio Lucas nos
Atos dos Apóstolos). (3). A finalidade desse recenseamento era puramente
estatística. Não há razão para supor que qualquer uma das pessoas que
foram contadas tenha recebido ordem de voltar à aldeia onde algum
putativo antepassado teria residido mais de mil anos antes.
______
3. Atos, 5:37. Vide supra, 26.
(WILSON, 2007, p. 100).
E dele ainda temos:
[…] O Evangelho, segundo Lucas, fixa-a especificamente numa época em que
César Augusto exigiu que todos os indivíduos no Império Romano fossem
submetidos a um recenseamento. Isso aconteceu no tempo em que Quirino era
governador da Síria(1). Herodes, na época, era rei da Judeia(2). Esse fato
aparentemente estabeleceria com grande precisão o nascimento de Jesus, até
descobrirmos que Herodes faleceu quatro anos antes da era cristã e que
34
Quirino não foi governador da Síria durante o reinado de Herodes.
Nenhum historiador do Império Romano faz a menor referência a um
recenseamento universal durante o reinado do imperador Augusto, embora
Flávio Josefo nos informe, no seu Antiguidades judaicas, que, de fato, houve um
recenseamento na Judeia no ano 6 da era cristã.
____
1. Lucas, 2:2
2. Mateus, 2:1.
(WILSON, 2007, p. 10-11) (grifo nosso).
Por outro lado, é difícil acreditar que José se lembrasse de seus antepassados que
viveram até mil anos antes dele, ainda mais levando-se em conta que, àquela época,
provavelmente, não existiam registros nos quais pudesse apoiar-se para saber de sua árvore
genealógica ancestral, que retroagia até o rei Davi. É o que nos afirma Bart D. Ehrman
(1955- ):
Os problemas históricos em Lucas são ainda maiores. Para começar, nós
temos registros relativamente confiáveis do reinado de César Augusto, e
em nenhum deles há qualquer referência a um censo do império inteiro,
para o qual todos teriam de se registrar retornando ao lar de seus
ancestrais. E como isso poderia ter sido imaginado? José retorna a Belém
porque seu ancestral Davi tinha nascido lá. Mas Davi viveu mil anos antes de
José. Devemos imaginar que no império romano todos deveriam retornar
ao lar de seus ancestrais de mil anos antes? Se fizéssemos um censo
mundial hoje e cada um de nós tivesse de retornar à cidade de nossos
ancestrais de mil anos antes, para onde você iria? Você consegue imaginar a
absoluta perturbação da vida humana que esse tipo de êxodo universal exigiria?
E consegue imaginar um projeto desse porte não ser mencionado em nenhum
jornal? Não há nenhuma referência a um censo assim em qualquer fonte antiga,
a não ser em Lucas. Então por que ele diz que esse censo aconteceu? A resposta
pode parecer óbvia. Ele queria que Jesus nascesse em Belém, embora
soubesse que era de Nazaré. Mateus também, mas ele fez com que
Jesus nascesse lá de modo diferente. (EHRMAN, 2010, p. 46) (grifo nosso).
São grandes, portanto, os problemas com os quais nos defrontamos, caso façamos
opção de seguir as narrativas bíblicas preterindo os registros históricos.
Apenas para deixar registrada outra curiosidade a respeito de Jesus, vejamos o
seguinte passo:
Lc 2,41-47: “Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa.
Quando o menino completou doze anos, subiram para a festa, como de costume.
Passados os dias da Páscoa, voltaram, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem
que seus pais o notassem. Pensando que o menino estivesse na caravana, caminharam
um dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre parentes e conhecidos. Não o
tendo encontrado, voltaram a Jerusalém à procura dele. Três dias depois,
encontraram o menino no Templo. Estava sentado no meio dos doutores,
escutando e fazendo perguntas. Todos os que ouviam o menino estavam
maravilhados com a inteligência de suas respostas”.
Então, todos nós acreditamos piamente nessa história, entretanto, o estudioso Geza
Vermes trata essa história sobre os conhecimentos extraordinários de Jesus de doze anos junto
aos doutores da lei como uma lenda (VERMES, 2006, p. 185).
Lc 3,23: “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era,
conforme se supunha, filho de José, filho de Eli”.
Não vamos nem entrar no mérito de que em Mateus o pai de José é Jacó, e não Eli
como aqui em Lucas, porquanto tem algo mais interessante para vermos. Observe, caro leitor,
que Lucas não quis colocar a mão no fogo sobre quem era verdadeiramente o pai de Jesus,
pois dizer que “conforme se supunha”, não é a mesma coisa que afirmar que é. Porém, aqui
caímos num outro problema, pois se não for filho carnal de José, e, no caso, pensa-se que é
35
filho do Espírito Santo, via de consequência, Jesus também não era descendente de Davi, fato
que, obviamente, não fazia dele o Messias esperado.
Lc 4, 14-16: “Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama
espalhou-se por toda a redondeza. Ele ensinava nas sinagogas, e todos o elogiavam.
Jesus foi à cidade de Nazaré, onde se havia criado. Conforme seu costume, no
sábado entrou na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura”.
Ao que tudo indica, aqui já temos Jesus residindo em outra cidade; é bem provável que
seja Cafarnaum, como dito por Mateus e Marcos.
Um fato que achamos interessante aqui é que Jesus “levantou-se para fazer a leitura”,
porquanto, João afirma que ele “nunca estudou” (Jo 7,15), embora, contraditoriamente, no
episódio da mulher adúltera (Jo 8,1-11), o próprio João tenha colocado Jesus escrevendo no
chão (v. 6 e 8).
Lc 23,5-6: “Eles, porém, insistiam: 'Ele está provocando revolta entre o povo, com seu
ensinamento. Começou na Galileia, passou por toda a Judeia, e agora chegou aqui'.
Quando ouviu isso, Pilatos perguntou se Jesus era galileu”.
Galileu, obviamente, por ter nascido na Galileia, região onde se localizava Nazaré,
portanto, mais uma afirmativa de que Jesus não era mesmo de Belém, que fica na Judeia. E a
respeito do costume de se colocar a denominação da cidade de nascimento junto ao nome da
pessoa, vejamos:
Lc 23,50-51: “Havia um homem bom e justo, chamado José. Era membro do
Conselho, mas não tinha aprovado a decisão, nem a ação dos outros membros. Ele era
de Arimateia, cidade da Judeia, e esperava a vinda do reino de Deus”.
Mc 15,42-43: “Ao entardecer, como era o dia da Preparação, isto é, a véspera do
sábado, chegou José de Arimateia. Ele era membro importante do Sinédrio, e
também esperava o Reino de Deus. José encheu-se de coragem, foi a Pilatos, e pediu o
corpo de Jesus”.
Jo 19,38: “José de Arimateia era discípulo de Jesus, mas às escondidas, porque ele
tinha medo das autoridades dos judeus. Depois disso, ele foi pedir a Pilatos para retirar
o corpo de Jesus. Pilatos deu a autorização. Então ele foi e retirou o corpo de Jesus”.
Nesses passos temos a prova desse costume na época, é por este motivo que se Jesus
tivesse nascido em Belém, seria chamado de “Jesus de Belém”; porém, como o chamavam
de Jesus de Nazaré, é forçoso, por lógica, ter que aceitar que ele era natural de Nazaré.
Juan Arias (1932- ), padre escritor e jornalista, corrobora o que acabamos de falar:
[…] E hoje tudo leva a crer que Jesus não nasceu em Belém, como
afirmam os evangelhos de Mateus e Lucas (Marcos e João nem menciona seu
nascimento), mas em Nazaré.
Segundo alguns biblicistas modernos, como Antonio Piñero, a notícia de que
Jesus nasceu em Belém deve-se à intenção de fazer coincidir o nascimento do
Messias com a profecia de Miqueias, tal como aparece na Bíblia, que diz o
seguinte: “E tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre os milhares de Judá! Mas
de ti há de sair aquele que há de reinar em Israel”, justamente um texto citado
por Mateus quando narra o episódio do nascimento.
É a partir daí que Mateus e Lucas constroem o relato do nascimento em
Belém. Mas de maneira bem diferente. Mateus fala da ira de Herodes que
ordena a matança dos inocentes, o que Lucas ignora. Lucas, ao contrário, fala
de um recenseamento decretado por César Augusto, que seria o motivo de os
pais de Jesus se mudarem para Belém, fato que Mateus ignora. E, de fato,
parece que não há provas históricas da existência desse censo naquela época e
naquele lugar. Crossan diz isso com todas as letras: “Nunca houve um censo
geral no tempo de Augusto”. Além do mais, o censo tinha uma finalidade fiscal, e
cadastrar alguém longe do seu local de trabalho teria significado um verdadeiro
36
pesadelo para a burocracia.
O mais provável é que Jesus tenha nascido em Nazaré. De fato, nos
evangelhos ele nunca é chamado de “Jesus de Belém” e sim de “Jesus
de Nazaré”, que era como se costumava chamar as pessoas, ou seja,
pelo lugar de nascimento ou pelo nome do pai. Neste caso, ele teria sido
“Jesus de José”, mas nunca foi chamado assim, provavelmente porque, como se
sabe, os evangelistas não davam importância a São José, que é apresentado
acima de tudo como um velho, devido à importância atribuída à virgindade de
Maria antes e depois do parto. Curiosamente, o pai de Jesus é o grande
desconhecido nos evangelhos e em toda a tradição cristã. Talvez por isso
existam tantas lendas extraoficiais sobre sua pessoa. (ARIAS, 2001, p. 50-51)
(grifo nosso).
Devia-se prestar mais atenção no que se tem descoberto a respeito dos costumes do
povo hebreu, porquanto, são, muitas vezes, peças importantes para a interpretação de um
texto.
Lc 24,19: “Jesus perguntou: 'O que foi?' Os discípulos responderam: 'O que aconteceu
a Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em ação e palavras, diante de Deus
e de todo o povo''.
Nazareno, certamente, quer dizer natural de Nazaré, porquanto nas Bíblias Shedd, Ave
Maria, Vozes e Santuário ao invés de “Jesus, o Nazareno”, as traduções constam “Jesus de
Nazaré”. Além disso, fecha-se com o consenso anteriormente falado ao analisamos Mt 2,23.
Lc 4,31: “Jesus foi a Cafarnaum, cidade da Galileia, e aí ensinava aos sábados”.
Lc 7,1: “Depois que terminou de falar todas essas palavras ao povo que o escutava,
Jesus entrou na cidade de Cafarnaum”.
Jo 2,11-12: “Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele
manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele. Depois disso, Jesus desceu
para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos. E aí ficaram apenas
alguns dias”.
Lucas e João mostram que Jesus pregava em Cafarnaum, não que residia lá, como
Mateus (4,13) e Marcos (2,1; 3,20; 9,33) dizem, apesar deste último não informar que Jesus
tenha mudado para essa cidade.
Jo 1,43-46: “No dia seguinte, Jesus decidiu partir para a Galileia. Encontrou Filipe e
disse: 'Siga-me'. Filipe era de Betsaida, cidade de André e Pedro. Filipe se encontrou
com Natanael e disse: 'Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e também
os profetas: é Jesus de Nazaré, o filho de José'. Natanael disse: 'De Nazaré pode
sair coisa boa?' Filipe respondeu: 'Venha, e você verá'”.
Jo 4, 1-3: “Os fariseus ficaram sabendo que Jesus atraía discípulos e batizava mais do
que João. (Na verdade, não era Jesus que batizava, mas os seus discípulos). Ao saber
disso, Jesus deixou a Judeia e foi de novo para a Galileia”.
Jo 4,43-45; “Dois dias depois, Jesus foi para a Galileia. Mas o próprio Jesus tinha
declarado: 'Um profeta nunca é bem recebido em sua própria terra'. Entretanto,
quando ele chegou à Galileia, os galileus o receberam bem, porque tinham visto tudo o
que Jesus havia feito em Jerusalém durante a festa. Pois eles também tinham ido à
festa”.
Jo 4,46-47: “... Ora, em Cafarnaum havia um funcionário do rei que tinha um filho
doente. Ele ouviu dizer que Jesus tinha ido da Judeia para a Galileia. Saiu ao
encontro de Jesus e lhe pediu que fosse a Cafarnaum curar seu filho que estava
morrendo”.
Certamente, que as várias citações da região da Galileia se refere à cidade de Nazaré,
até mesmo porque Jesus referindo-se a si mesmo disse “Um profeta nunca é bem recebido em
sua própria terra” (Jo 4,44). E, aqui também, temos, mais uma vez, Jesus sendo reconhecido
37
como de Nazaré e não de Belém (Jo 1,45), como se supõe, baseando-se em Mateus e Lucas.
Jo 2,1-2: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a
mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de
casamento, junto com seus discípulos”.
Segundo conseguimos apurar “Caná da Galileia fica localizada a cerca de treze
quilômetros ao norte de Nazaré” (CHAMPLIN e BENTES, vol. 1, 1995a, p. 622), portanto, na
região onde Jesus morava, e, conforme estamos vendo, ele nasceu, razão pela qual foi um dos
convidados para a festa de casamento (Jo 2,1-12). Foi nessa cidade que Jesus de Nazaré
iniciou o seu ministério (ver Jo 2,11).
Jo 7,25-27: “Algumas pessoas de Jerusalém comentavam: 'Não é este que estão
procurando para matar? Ele está aí falando em público, e ninguém diz nada! Será que
até as autoridades reconheceram que ele é o Messias? Entretanto, nós sabemos de
onde vem esse Jesus, mas, quando chegar o Messias, ninguém saberá de onde
ele vem'”.
Que interessante, aqui temos algo nitidamente contraditório, pois se diziam que o
Messias viria de Belém (Jo 7,42), como aqui se afirma que “ninguém saberá de onde ele vem”?
Jo 7,40-42: “Ouvindo essas palavras, alguns diziam no meio da multidão: 'De fato, este
homem é mesmo o Profeta!' Outros diziam: 'Ele é o Messias'. Outros ainda afirmavam:
'Mas o Messias virá da Galileia? A Escritura não diz que o Messias será da
descendência de Davi e que virá de Belém, povoado de onde era Davi?'”
Jo 7,50-52: “Mas Nicodemos, um dos fariseus, aquele que tinha ido encontrar-se com
Jesus, disse: 'Será que a nossa Lei julga alguém antes de ouvir e saber o que ele faz?'
Eles responderam: 'Você também é galileu? Estude e verá que da Galileia não sai
profeta'”.
Em ambas as passagens se confirma que Jesus é da Galileia, região onde está
localizada a cidade de Nazaré. Na primeira é até mesmo afirmado, ainda que de forma
indireta, que Jesus não é de Belém, fato que outros autores perceberam, como, por exemplo,
A. N. Wilson:
[…] Podemos observar, no entanto, que o Quarto Evangelho (de São João)
afirma com toda clareza que Jesus não nasceu em Belém e que não fazia
parte da linhagem de Davi. (2). Nesse Evangelho, as multidões não
acreditavam na possibilidade de que ele seja o Messias porque veio da Galileia, e
não de Belém. […]
______
2. João, 7:42.
(WILSON, 2007, p. 99) (grifo nosso).
Veremos agora o próprio Mestre dizendo se chamar Jesus de Nazaré:
Jo 18,1-12: “Tendo dito isso, Jesus saiu com seus discípulos, e foi para o outro lado do
riacho do Cedron, onde havia um jardim. Ele entrou no jardim com os discípulos. Jesus
já tinha se reunido aí muitas vezes com seus discípulos. Por isso, Judas, que estava
traindo Jesus, também conhecia o lugar. Judas arrumou uma tropa e alguns guardas
dos chefes dos sacerdotes e fariseus e chegou ao jardim com lanternas, tochas e
armas. Então Jesus, sabendo tudo o que lhe ia acontecer, saiu e perguntou a eles:
'Quem é que vocês estão procurando?' Eles responderam: 'Jesus de Nazaré'.
Jesus disse: 'Sou eu'. Judas, que estava traindo Jesus, também estava com eles.
Quando Jesus disse: 'Sou eu', eles recuaram e caíram no chão. Então Jesus perguntou
de novo: 'Quem é que vocês estão procurando?' Eles responderam: 'Jesus de
Nazaré'. Jesus falou: 'Já lhes disse que sou eu. Se vocês estão me procurando,
deixem os outros ir embora'. … Então a tropa, o comandante e os guardas das
autoridades dos judeus prenderam e amarraram Jesus”.
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Por duas vezes Jesus se identifica como Jesus de Nazaré, a quem os guardas
procuravam. Podemos ainda corroborar essa identificação trazendo o depoimento de Pedro,
que possivelmente representa o pensamento dos outros discípulos. Em três momentos
diferentes, ele disse:
At 2,22: “Homens de Israel, escutem estas palavras: Jesus de Nazaré foi um homem
que Deus confirmou entre vocês, realizando por meio dele os milagres, prodígios e
sinais que vocês bem conhecem”.
At 4,10: “Pois fiquem sabendo todos vocês, e também todo o povo de Israel: é pelo
nome de Jesus Cristo, de Nazaré, - aquele que vocês crucificaram e que Deus
ressuscitou dos mortos, - é pelo seu nome, e por nenhum outro, que este homem está
curado diante de vocês”.
At 10,38: “Eu me refiro a Jesus de Nazaré: Deus o ungiu com o Espírito Santo e com
poder. E Jesus andou por toda parte, fazendo o bem e curando todos os que estavam
dominados pelo diabo; porque Deus estava com Jesus”.
Nota-se a particularidade de que é afirmado que Pedro estava “cheio do Espírito Santo”
(Jo 4,8) ao confirmar sobre a sua procedência: “Jesus Cristo, de Nazaré”. Então, se Pedro
inspirado não disse “Jesus Cristo, de Belém”, é porque ele, certamente, não procedia da
cidade de Davi.
Em relação ao “A Escritura não diz que o Messias será da descendência de Davi e que
virá de Belém, povoado de onde era Davi?” (Jo 7,42), na Bíblia Anotada temos a seguinte
informação: da descendência de Davi. Veja 2Sm 7:12. Belém. Veja Mq 5,2 (p. 1332).
Fomos confirmar o que se tem no passo 2Sm 7,12 e vimos que nele não há previsão
alguma a respeito da vinda de Jesus; na verdade, o que temos é uma profecia a respeito de
Davi. Vejamos o teor do passo:
2Sm 7,12-13: “Quando teus dias se cumprirem, e descansares com teus pais, então
farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu
reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do
seu reino”.
Incluímos também o versículo 13, para demonstrar que esse descendente de Davi é o
rei Salomão, reinou Israel 970 a 931 a.C. (Bíblia Shedd, p. 1789) que construiu o Templo de
Jerusalém. Como sabemos, Salomão é filho bastardo de Davi, fruto de seu adultério com
Betsabeia mulher do soldado Urias, cuja morte foi tramada pelo rei Davi, que instruiu a seus
soldados para deixá-lo sozinho no front da batalha contra os amonitas.
O interessante é que na própria Bíblia Anotada que cita esse passo (2Sm 7,12-16),
encontramos:
Esta grande aliança que Deus, em graça, estabeleceu com Davi
incluía as seguintes provisões: (1) Davi teria um filho que o sucederia e
estabeleceria o seu reino, v. 12; (2) esse filho (Salomão), e não Davi, construiria
o templo, v. 13a; (3) o trono do reino de Salomão seria estabelecido para
sempre, v. 13b; (4) embora os pecados de Davi justificassem a disciplina, a
misericórdia divina (heb., hesed; veja a nota sobre Is 2:19) seria eterna, vv. 1415; (5) a casa, o reino e o trono de Davi seriam estabelecidos para sempre (v.
16). […] (Bíblia Anotada, p. 415) (grifo nosso).
Como distorcem as interpretações visando justificar mitos estabelecidos anteriormente,
e não bastasse esse, foi também o que aconteceu com o outro (Mq 5,1 ou 5,2, dependendo da
tradução). Na verdade, pegaram parte de um texto, que fora de seu contexto, pode dar uma
ideia falsa do que realmente ele narra. Sobre Mq 5,1 ou 5,2, já falamos anteriormente, lá
quase no início desse estudo.
Jo 19,19: “Pilatos escrever também um letreiro e mandou colocá-lo no alto da cruz.
Nele estava escrito: 'Jesus de Nazaré, o rei dos Judeus'”.
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Teor na versão da Bíblia Ave-Maria e Novo Testamento Loyola; porém, não são
unânimes as traduções quanto à denominação de “Jesus de Nazaré”, na Bíblia Tradução
Ecumênica se lê “Jesus, o Nazoreu” e na Bíblia de Jerusalém se tem “Jesus Nazareu”, e em
todas as outras o que se vê é “Jesus Nazareno” ou “Jesus, o Nazareno”, entretanto, pelo que já
vimos até aqui, não nos resta alternativa senão considerar a referência como sendo Jesus de
Nazaré o nome escrito no letreiro.
Em resumo o que já temos até aqui:
1) Mateus faz Jesus nascer em Belém, local onde morava os seus pais, conta a história
da matança das crianças por Herodes e fuga da família de Jesus para o Egito e ao voltar passa
a residir em Nazaré.
2) Para Lucas a família de Jesus morava em Nazaré, e para que Jesus nascesse em
Belém apresenta um suposto recenseamento ordenado por César Augusto, pelo qual as
famílias deveriam voltar às cidades de origem dos seus antepassados, mesmo que eles tenham
vivido mil anos antes.
3) Marcos, no início do seu relato, coloca Jesus partindo de Nazaré para ir ao encontro
de João Batista, do que se pode concluir que para ele essa era a cidade de nascimento de
Jesus, pois caso não fosse ele, certamente, teria informado sobre isso.
4) Em João o relacionamento de Jesus com Nazaré acontece quando ele inicia o
recrutamento dos seus discípulos, e um deles, Natanael, o reconhece como sendo de Nazaré.
5) Pelo que se depreende dos textos dos Evangelhos o povo, os discípulos, Pilatos e o
próprio Jesus todos o reconhecem como de Nazaré, inclusive, não há um só passo em que ele
é chamado de Jesus de Belém.
Assim, diante disso tudo, particularmente, concluímos que Jesus é natural de Nazaré e
não de Belém como nos querem fazer crer alguns interpretadores bíblicos, certamente, para
justificarem dogmas instituídos pelas suas correntes religiosas ou calcados apenas nas
tradições.
Antes de finalizar vamos colocar dois pontos, nos quais se verá a opinião de vários
autores, para que você, caro leitor, veja por si mesmo que de tudo quanto foi dito, ainda causa
polêmica a questão da cidade de Nazaré ter existido ou não à época de Jesus e se ao invés de
Nazareno não ele seria um nazireu?
1) Nazaré existia ou não?
O modo pelo qual os autores dos evangelhos falam de Nazaré não é menos
característico. Seu nome não figura no Antigo Testamento. Os autores
judeus do século I também nada dizem sobre ela, se bem que eles se façam
notar (particularmente Flávio Josefo) pela amplitude de suas informações sobre
o pequeno país que era a Judeia. Ouve-se falar de Nazaré, pela primeira
vez, nas fontes que datam do século III. Ora, nos evangelhos, Nazaré é
chamada de “cidade”. (Mateus, II, 33; Lucas, I, 26; II, 39, etc.) Não parece,
portanto, que Nazaré tenha sido uma cidadezinha perdida que pudesse
ser ignorada por todos os historiadores da Judeia.
Porém, por que se encontra esse nome tantas vezes nos evangelhos? Para
explicar isso, convém lembrar que no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento,
fala-se, por duas vezes, que Sansão será o “nazareno de Deus”. A raiz dessa
palavra em hebraico, nazir, significa um justo cuidadoso na observância estrita
de certos ritos. Os autores dos evangelhos não conheciam a Judeia senão
pelos textos do Antigo Testamento e achando visivelmente, que
“nazareno” significava originário de Nazaré, deram esse nome ao lugar
do nascimento do Cristo, sem sequer suspeitar que semelhante
localidade ou vila não existia na Judeia. (LENTSMAN, 1963, p. 177) (grifo
nosso).
Estive recentemente em Nazaré e fiz exaustivas pesquisas com o propósito
de comprovar as declarações contidas nos registros Rosacruzes; a maioria de
meus leitores ficará provavelmente surpresa em saber que, ao tempo em que
Jesus nasceu, não havia cidade ou vila na Galileia com o nome de Nazaré
e que a cidade que hoje traz este nome, na Galileia, não só é uma cidade
recente mas também veio a ter este nome, por causa da insistência dos
40
investigadores em encontrar alguma localidade que tivesse o nome de
Nazaré, na Galileia. (LEWIS, 2001, p. 57) (grifo nosso).
Houve grandes dificuldades na busca de um lugar que correspondesse ao
nome de Nazaré, na Galileia, visto que nenhuma cidade com este nome fora
mencionada no Velho Testamento e nenhum dos mapas antigos do tempo do
Cristo revelava a existência desse local. Um pequeno povoado chamado "enNasira", entretanto, foi localizado bem longe do Mar da Galileia e
imediatamente rebatizado "Nazaré" e associado à infância de Jesus. A
descoberta deste povoado en-Nasira ocorreu no terceiro século depois de Cristo,
e desde então passou a ser conhecido pelo nome de Nazaré, embora ainda hoje
continuem a faltar quaisquer evidências que justifiquem o uso desse nome. Em
Marcos VI: 1,2 diz-se que Jesus voltou a seu próprio país e que Seus discípulos
o seguiram e que, quando chegou o Shabat, ele começou a ensinar na sinagoga.
No quarto verso do mesmo capítulo, Jesus se refere ao fato de que Ele era um
profeta em Seu próprio país, entre seus próprios parentes e em Sua própria
casa. Essas referências foram interpretadas como sendo relativas a Nazaré, a
cidade onde muitos estudiosos da Bíblia acreditam que Jesus nasceu e passou a
infância. Ora, se é verdade que Jesus retornou à Sua cidade natal e pregou na
sinagoga para grandes multidões, não poderia ter sido em en-Nasira, ou a
chamada Nazaré; mesmo no segundo e terceiro séculos após o nascimento de
Jesus, en-Nasira ou Nazaré ainda não tinha uma sinagoga nem era
suficientemente grande para possuir qualquer edificação ampla onde multidões
pudessem ter ouvido Jesus pregando, nem havia multidões nas vizinhanças para
ouvi-Lo. Portanto, as referências de Marcos à Sua cidade natal não podem ter
sido relativas a en-Nasira. En-Nasira era tão-somente um povoado em torno de
um poço chamado na época de "poço da casa da guarda", embora, segundo
descobri, tenha sido chamado, nos últimos anos, de "Poço de Santa Maria". Esta
mudança de nome e a atribuição de significado religioso a um local sem
importância da Palestina é bem típica das modificações que estão sendo feitas
naquele país para agradar os turistas.
Procurando nos registros judaicos, vemos que estes confirmam que só nos
livros do Novo Testamento, escritos muito após a vida de Jesus, há menção de
Nazaré como uma cidade da Galileia, e que este local não é mencionado no
Velho Testamento, nos escritos históricos de Josefo nem no Talmude. Durante a
vida de Jesus, a cidade de Jafa era a mais importante na Galileia, sendo a que
mais atraía os viajantes e era mais citada nos escritos históricos.
Nos registros da Igreja Católica Romana e nas suas enciclopédias, vemos que
o vilarejo en-Nasira era conhecido estritamente como um povoado judeu até o
tempo de Constantino, havendo referências de ser habitado totalmente por
judeus. Esta pequena aldeia, em volta de um poço, portanto, não poderia ter
sido o centro da população gentia da Galileia. Hoje em dia há uma pequena
igreja ou capela em Nazaré, a qual visitei, supostamente erigida sobre a gruta
onde Maria e José viviam no tempo da anunciação, quando o arcanjo revelou a
Maria o iminente nascimento da encarnação do Logos. (LEWIS, 2001, p. 61-63)
(grifo nosso).
Será chamado Nazareno?
(Mateus 2:23) – “... assim se cumpriu o que foi anunciado pelos profetas:
<Ele será chamado Nazareno>”.
Aqui, num pequenino trecho, não só um amontoado de erros, como muita
mentira e má fé de Mateus (ou do escriba que fez o texto e atribuiu a ele a
autoria do versículo). Mateus especializou-se em inventar "profecias
retroativas" que aconteciam muitos anos (pelo menos 40 anos) depois dos
fatos terem sido relatados como acontecido. Como também Mateus inventava
muitas profecias do Antigo Testamento, sem que as citadas profecias realmente
estivessem no Antigo Testamento. Isto porque, não existe um único registro
no Antigo Testamento a respeito de Nazaré ou Nazareno. Trata-se de
invencionice de Mateus (ou do escriba que escreveu por ele), escrevendo sobre
a vida de Jesus mais de 70 anos após o seu nascimento e após a destruição de
Jerusalém no ano 70, e tentando fazer coincidir, no ano 70, "profecias
retroativas", como se elas tivessem realmente se realizado. Aliás, Nazaré
sequer existia como cidade quando Jesus nasceu. Existia, sim, o lago de
Genesaré (Mar de Tiberíades), mas não a cidade de Nazaré, que somente
veio a existir alguns anos (cerca de quinze anos) após Jesus ter nascido.
41
Vejamos a má fé de Mateus (ou do escriba que escreveu por ele). Ele afirma,
após o ano 70, época da destruição de Jerusalém e da diáspora e extermínio dos
essênios, portanto 70 anos depois de Jesus já ter nascido, que 70 anos antes
iria se realizar uma "profecia retroativa" e que Jesus iria ser chamado de
Nazareno.
Uma profecia ao Contrário, relatada depois do fato ter acontecido, passados
mais de 70 anos. Porém, o mais gritante é que além de Nazaré sequer
existir quando Jesus nasceu, sendo impossível, dessa forma, tal
registro, Mateus ainda confunde Nazireu com Nazareno, que são coisas
completamente diferentes. (MACHADO, 2004, p. 168-169) (grifo nosso).
Mark Lidzbarski chega a afirmar que, durante a vida de Jesus, nem
teria existido um lugar geográfico chamado Nazaré. Contraargumentando, pode-se dizer que, embora não soubéssemos como era Nazaré
nos tempos de Jesus, achados arqueológicos confirmam a existência
daquele povoado (se é que uns precaríssimos abrigos podem ser
chamado de “povoado”), no período entre cerca de 900 a.C. e 600 d.C., e
esses achados incluem também peças datando do reinado de Herodes, o Grande
(de 40 a 4 a.C.). Aliás, o comentário pouco lisonjeiro de Natanael, transmitido
pelo Evangelho de São João: “De Nazaré pode, porventura, sair coisa que seja
boa?...”, pode ser uma alusão à precariedade do lugarejo, todavia promovida a
“cidade” pela Bíblia. Em todo caso, não há nenhum indício de Jesus, Maria e
José. Somente desde o século XI da nossa era, o nome Nazaré ficou sendo
comprovado pela Fonte da Virgem Maria, onde até hoje as mulheres vão buscar
água com a qual enchem suas jarras, como o faziam nos tempos de Jesus...
(KELLER, 2000, p. 367) (grifo nosso).
2) Nazareno ou um Nazireu?
Da mesma forma, inexiste qualquer prova histórica ou arqueológica da “fuga
para o Egito”, como tampouco existe prova da estada de Jesus em Nazaré. Aliás,
a rigor, a Bíblia cita Jesus por muito mais vezes como “nazireu” do que
“nazareno”, e “nazireu” pode ter vários significados, mas normalmente não
define o “homem de Nazaré”. Essa última interpretação poderia ser deduzida
somente de maneira indireta, de um trocadilho com a palavra hebraica “nezer”
= “vara”, veja Isaías 11,1; “Sairá uma vara do tronco de Jessé e uma flor
brotará da sua raiz”. De fato, o Evangelho de São Mateus torna a citar o termo
controvertido “nazareno” no contexto de uma profecia: “...e, chegando, habitou
uma cidade chamada Nazaré, cumprindo-se desse modo o que tinha sido predito
pelos profetas, que seria lá chamado Nazareno” (Mateus 2,23). Isso em nada
facilita as coisas, pois não deixa bem claro a que profetas o texto se refere (a
não ser Isaías, autor das palavras supracitadas). Talvez se pretenda estabelecer
um certo nexo com o termo “nazireu” (“consagrado a Deus”, qualificação outrora
atribuída a Sansão (Juízes 13,5 e 7, 16,17)), que exigiu uma certa ascese por
parte da pessoa assim qualificada (ele devia observar determinados tabus);
contudo, tal conjetura não deixará de implicar em certos problemas filológicos.
Assim, também, aí torna a surgir um sinal de interrogação, e a esse respeito
cumpre não silenciar o fato de alguns cientistas interpretarem os
pronunciamentos dos Evangelhos, mencionando Nazaré como “cidade da
infância e juventude” de Jesus, como meras construções, relacionadas com o
título “nazireu”, não muito bem compreendido pelos evangelistas, os quais, por
causa disso, reinterpretam-nos e sumariamente o substituíram por “nazareno”.
(KELLER, 2000, p. 366-367).
Em primeiro lugar, devemos tornar claro que o título de Nazareno não queria
dizer que a pessoa que o tivesse fosse de uma cidade chamada Nazaré. O título
de Nazareno era dado pelos judeus a pessoas estranhas que não seguiam sua
religião e que pareciam pertencer a um culto ou seita secreta que existira ao
Norte da Palestina por muitos séculos; podemos verificar na Bíblia Cristã que o
próprio João Batista era chamado de Nazareno. Também encontramos muitas
outras referências a pessoas conhecidas como nazarenos. Em Atos XXIV:5,
encontramos um homem qualquer sendo condenado como provocador de uma
rebelião entre os judeus em todo o mundo e sendo chamado de "líder da seita
dos nazarenos". Sempre que os judeus entravam em contato com alguém em
seu país que fosse de outra religião, e especialmente se tivesse uma
compreensão mística das coisas da vida e vivesse de acordo com um código
42
ético ou filosófico diferente do judaico, chamavam-no de Nazareno por falta de
um nome mais adequado.
Existiu realmente uma seita chamada Os Nazarenos, citada nos registros
judaicos como uma seita de Primitivos Cristãos ou, em outras palavras, aqueles
que eram essencialmente preparados para aceitar as doutrinas cristãs. De fato,
os enciclopedistas e autoridades judaicas parecem concordar em que o termo
Nazareno abrangia todos os cristãos que haviam nascido judeus, que não
desejavam ou não podiam abrir mão de seu antigo modo de vida, mas que
tentavam ajustar as novas doutrinas às antigas. As enciclopédias judaicas
também afirmam ser bastante evidente que os Nazarenos e os Essênios tinham
muitas características em comum, e mostravam, portanto, tendência para o
misticismo. Os Essênios e Nazarenos, na verdade, eram considerados heréticos
pelos judeus cultos, mas existe a seguinte diferença ou distinção no uso destes
dois termos: os Essênios não eram tão conhecidos pela população da Palestina
como os Nazarenos; um homem dificilmente era chamado Essênio a não ser por
pessoas bem informadas, que conhecessem a diferença entre Essênios e
Nazarenos, ao passo que muitos Essênios e membros de outras seitas que
levavam uma vida peculiar ou não aceitavam a religião judaica eram chamados
de Nazarenos.
São Jerônimo, famosa autoridade bíblica, refere-se ao fato de que em seu
tempo ainda existia entre os judeus, em todas as sinagogas do Oriente, uma
heresia condenada pelos fariseus, cujos seguidores eram chamados de
Nazarenos. Ele disse que estes acreditavam que Cristo, o Filho de Deus, havia
nascido da Virgem Maria, havia sofrido sob Pôncio Pilatos e ascendido aos céus.
"Mas," disse São Jerônimo, "embora pretendessem ser ao mesmo tempo judeus
e cristãos, não eram nem uma coisa nem outra".
Consultando as mais altas autoridades da Igreja Católica Romana, vemos que
o título de Nazareno, aplicado ao Cristo, só ocorre uma vez na versão da Bíblia
feita por Douai, e esta autoridade declara que o termo "Jesus Nazareno" foi
uniformemente traduzido como "Jesus de Nazaré", o que representa um erro de
tradução, sendo a forma correta "Jesus, o Nazareno." Em nenhuma parte do
Velho Testamento existe a palavra Nazaré descrevendo uma cidade existente na
Palestina, mas no Novo Testamento encontramos referências a Jesus
regressando a uma cidade chamada Nazaré. Estas referências resultam da
tradução da frase "Jesus voltando aos Nazarenos" para "Jesus retomando a
Nazaré." Um ponto interessante é reforçado pelas autoridades católicas
romanas, que dizem que Jesus, embora fosse comumente chamado de
Nazareno, não pertencia absolutamente àquela seita.
Reunindo os registros judaicos e católicos romanos e comparando-os com as
informações contidas em nossos próprios registros, verificamos que os
nazarenos constituíam uma seita de judeus que, embora tentasse seguir os
antigos ensinamentos judaicos, acreditava na vinda do Messias, que nasceria de
maneira singular e seria o Salvador de sua raça. Depois de iniciado o ministério
de Jesus, esses Nazarenos aceitaram Jesus como o Messias e também as
doutrinas que Ele pregava, ao mesmo tempo que continuavam a tentar seguir
muitos fundamentos de sua religião judaica. Os registros judaicos afirmam que
os Nazarenos rejeitaram Paulo, o Apóstolo dos Gentios, e que alguns Nazarenos
só exaltavam em Jesus o fato de ser um homem justo. (LEWIS, 2001, p. 57-60)
Para efeito de argumentação, vamos conceder o benefício da dúvida e admitir
que Mateus estivesse com falhas mentais (pois ele era contemporâneo de Jesus
e que quando teoricamente escreveu o seu evangelho, logicamente já tinha mais
de 80 anos) e com isso não se lembrou ou "confundiu" que Nazaré (a cidade)
não existia quando Jesus nasceu, mas tão somente o lago de Genesaré.
Entretanto, como Mateus pode ter "confundido", novamente, Nazareno
(nascido em Nazaré) com Nazireu (de Nazir), que é um judeu que tomou os
votos de sacrifícios especiais, de não beber vinho, não comer uvas e não cortar
os cabelos, que não era o caso de Jesus, pois Jesus era essênio, e como tal era
adepto da eucaristia, do ritual do pão e do vinho, e comia uvas. Não podendo,
por isso mesmo, ser um Nazireu.
A profecia do Antigo Testamento a respeito do Nazireu, refere-se a Sansão e
não a Jesus. Dessa forma, Mateus ao "confundir" a profecia do Antigo
Testamento sobre Sansão, que era Nazireu, que não bebia vinho, não comia
uvas e não cortava os cabelos, com Jesus, chamando-o de Nazareno, não é o
que se pode dizer como um caso do acaso, quando a má fé e má intenção estão
43
bastante claras. Mas o pior de tudo é dizer que cumpriu-se a profecia do Antigo
Testamento afirmando que o messias se chamaria Jesus, quando os nomes de
"Jesus", assim como Nazaré, sequer são citados no Antigo Testamento. [...]
(MACHADO, 2004, p. 169)
Nazareno
Esse adjetivo significa “natural de Nazaré”. Essa palavra é usada no Novo
Testamento referindo-se somente a Jesus, o qual tanto assim se chamou quanto
foi chamado pelos outros. Ver Mat. 2:23, onde se lê que havia uma predição que
dizia que Jesus seria chamado Nazareno. Mas a palavra também é usada no
plural, em Atos 24:5, onde está em foco a seita dos “nazarenos”, isto é, os
seguidores de Jesus. Isso mostra que Jesus foi chamado de “o nazareno” por
parte de outras pessoas, amigas e inimigas, igualmente. Visto que o Antigo
Testamento não menciona em parte alguma a cidade de Nazaré, ali também não
se lê qualquer coisa sobre os possíveis nazarenos. Acresça-se a isso que alguns
intérpretes têm confundido o significado de nazareno com o significado de
nazireu (ver Núm. 6:1-21). No entanto, é possível que esteja em vista o termo
hebraico netser, “ramo”, pois Jesus, em diversos trechos bíblicos é chamado de
“renovo de Jessé”, ou seja, alguém pertencente à linhagem de Davi.
[…]
O título Nazareno, ainda que para nós seja um título famoso, por causa de
Jesus Cristo, nos dias dele geralmente era usado como termo de menoscabo
(ver João 1:45 7:52). No plano terreno, Jesus não foi alguma árvore grandiosa,
um filho reconhecido da casa real de Davi; mas tão somente um renovo de
Jessé. No entanto, sua grande estatura espiritual finalmente propagou a sua
fama pela terra inteira. Conforme dissemos acima, alguns comentadores
relacionam a palavra “nazareno” aos indivíduos que, no Antigo Testamento, são
chamados “nazireus” (ver Núm. 6:2; 12:18-20), os quais faziam certos votos
difíceis de serem cumpridos, votos de consagração a Deus. Tais comentadores,
pois, aplicam essa ideia a Cristo, imaginando que, na qualidade de nazareno, ele
teria o mesmo propósito que tinham os nazireus. Assim interpretam Tertuliano,
Jerônimo, Erasmo, Calvino e outros intérpretes modernos. Mas, a despeito dessa
interpretação envolver uma aplicação útil, não parece que Mateus quisesse
destacar tal coisa, em 2:23 de seu evangelho. Acrescente-se a isso que, tanto
no hebraico quanto no grego, nazareno e nazireu têm grafia diferente. Também
há alguma razão na interpretação que diz que Jesus seria desprezado, como
habitante da obscura cidade de Nazaré. Todavia, não parece ser isso o que o
autor sagrado quis destacar nessa passagem. O que ele realmente queria era
mostrar que Jesus pertencia à família de Jessé, como o Renovo de Davi, e,
secundariamente, que o lugar onde Jesus residiu como criança, e onde também
deu início ao seu ministério, fora escolhido por Deus, apesar das diversas
circunstâncias que poderiam ter servido de obstáculo a esse ministério.
Quanto à expressão “Jesus de Nazaré”, ver Marc. 10:47; Luc. 24,19. Os
espíritos imundos assim chamaram a Jesus (Mar. 1:24; Luc. 4:34), tal como o
fizeram os anjos que anunciaram a sua ressurreição (Mar. 16:6). É os trechos de
Mat. 26:71 e Mar.14:67 mostram que essa expressão foi usada pejorativamente
pelos inimigos de Jesus. E acabou sendo dada, como apelido de menosprezo à
comunidade cristã (Atos 24:5). E Jesus continuou a ser vinculado a Nazaré,
mesmo após a sua ressurreição, pelos seus discípulos (ver Atos 2:22; 3:6;
10:38). (CHAMPLIN e BENTES, vol. 4, 1995d, p. 465)
Após a morte de Herodes, novamente funciona a mediunidade onírica de
José: em sonhos um .anjo manda-o regressar à “terra de Israel”, como ainda
hoje se diz: ςκ
José obedeceu de imediato e (segundo Mateus)
dispunha-se a regressar a Belém, quando “ouve dizer” que lá governava
Arquelau, filho de Herodes. Instala-se nele o medo. Realmente, à morte de
Herodes (4 A. C. ) Arquelau tinha 18 anos; mas como os judeus se opuseram a
seu reinado, revoltando-se por não ter sido deposto o sumo sacerdote Joasar,
ele mandou matar 3.000 judeus (Josefo, Ant. Jud. XVII, 9, 1). Mas à noite, outro
sonho esclarece-o, indicando-lhe que se dirija à Galileia, “a uma cidade chamada
Nazaré”. Como estamos vendo, essa cidade constituía para Mateus uma
“novidade” absoluta. Parece que José e Maria nem a conheciam. Como conciliar
com as palavras de Lucas, de que eles eram da cidade de Nazaré, isto é, que lá
tinham nascido e residiam normalmente? Teria sido mais fácil dizer que do Egito
regressaram à sua cidade de Nazaré... pois lá eles possuíam casa, a oficina de
carpinteiro de José, os parentes e amigos. Entretanto, Mateus desconhece tudo
44
isso, mostra-o desejoso de ir para Belém (fazer o quê?) e só o aviso .em sonho.
o faz dirigir-se para Nazaré, como se fora um local que eles pisassem pela
primeira vez. E ainda explica: “para que se cumprisse a profecia, que o chama
NAZOREU”. Nem é “nazareno”...
Esse gentilício é usado quatro vezes por Marcos e duas vezes por Lucas. Mas
o próprio Mateus emprega duas vezes nazoreu, que é utilizado uma vez por
Lucas, três vezes por João, e sete vezes por Atos.
Eram assim chamados (nazoreus) os cristãos por volta do ano 60 (At. 24:5).
O Talmud denomina Jesus o NOZRI, e chama os cristãos NOZRIM.
Notemos que não há profecia alguma que diga dever o Messias ser
chamado .nazareno. nem “nazoreu”. A única frase que poderia ser aplicada seria
a de Isaías (11:1) quando diz que “do tronco de Jessé sairá um rebento, e de
suas raízes sairá um renovo (= nezêr) que frutificará. E o Espírito de YHWH se
deterá nele”. Tendo Mateus apresentado Jesus como o último rebento (o renovo)
na genealogia, pode ter feito mentalmente uma aproximação, embora forçada.
(PASTORINO, vol. 1, 1964, p. 90)
A Palavra "Nazareno" aparece com mais frequência sob a forma "Nazoreu"
(nâshôray e nazôraios, em hebr. e grego). Porém, não se confunda essa palavra
com "nazireu"! Com efeito, nos evangelhos temos onze vezes a forma nazoreu
(Mt. 2:23 e 26:71; João, 18:5,7, e 19:19; Atos, 2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8;
24:5 e 26:9) contra seis vezes a forma "nazareno" (Marc. 1:24; 10:47; 14:67 e
16:6, e Luc. 4:34 e 24:19). Mesmo neste local o texto de Mateus varia nos
códices entre nazarenus (Vaticano e outros) e nazoreu (Sinaítico e outros).
(PASTORINO, vol. 6, 1969, p. 129)
Segundo João (episódio omitido nos sinópticos) Jesus se aproxima da malta e
pergunta “A quem procuram” . A resposta é rápida: “Jesus, o nazoreu”. No
original não está “nazareno”, forma que só aparece em Marcos (1:24, 10:47;
14:67 e 16:6) e Lucas (4:34 e 24:19). A forma .nazoreu. está em Mateus (2:23
e 26:71), em Lucas (18:37); em João (18:5 e 7 e em 19:19) e nos Atos (2:22;
3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 24:5 e 26:9), podendo reler-se o que escrevemos no
vol. 1.
_______
(*) Passos estudados: Mt 26:47-56; Marc. 14:43-52; Lc 22.47-53; João, 18:2-12 (N. A.).
(PASTORINO, vol. 8, 1971, p. 70)
Levando-se em conta o que está aqui abordado, sobre esses dois pontos polêmicos,
ficamos sem saber para que lado ir, pois se nem os especialistas se entendem, que dirá de nós
simples mortais? Em princípio, mantemos a nossa opinião anterior, por parecer-nos que a
maioria das informações tende mais para o que lá concluímos. Certamente, que jamais iremos
impor a nossa maneira de pensar a quem quer que seja, pois se advogamos para nós o direito
de livre pensar, somos, moralmente obrigados a dá-lo aos outros.
45
A Fuga para o Egito
De todos os quatro evangelistas, apenas Mateus fala sobre esse episódio (2,13-23), que
teria acontecido com a família de Jesus, cujo teor transcrevemos:
“Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse:
‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu te avise,
porque Herodes vai procurar o menino para o matar’. José levantou-se durante a noite,
tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de
Herodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: Eu
chamei do Egito meu filho (Os 11,1)”.
“Vendo, então, Herodes, que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e
mandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos de dois anos para
baixo, conforme o tempo exato que havia indagado dos magos. Cumpriu-se, então, o
que fora dito pelo profeta Jeremias: Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandes
lamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação, porque já não
existem! (Jer 31,15)”.
“Com a morte de Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, e
disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque
morreram os que atentavam contra a vida do menino’. José levantou-se, tomou o
menino e sua mãe e foi para a terra de Israel. Ao ouvir, porém, que Arquelau reinava
na Judeia, em lugar de seu pai Herodes, não ousou ir para lá. Avisado divinamente em
sonhos, retirou-se para a província da Galileia e veio habitar na cidade de Nazaré para
que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Será chamado Nazareno”. (texto:
Bíblia Sagrada, Ed. Ave Maria).
Por que será que somente Mateus cita tal acontecimento? Achamo-lo por demais
importante, para que fosse esquecido pelos outros três evangelistas. Ou será que tal episódio
de fato não teria ocorrido? Questionamentos que saltam à nossa mente, que, por estar livre
das imposições dogmáticas das religiões tradicionais, nos leva a aplicar integralmente o:
“examinai tudo, retende o que é bom” (1Ts 5,21).
Segundo Werner Keller (1909-1980), em seu livro E a Bíblia tinha razão...(p. 366),
“inexiste prova histórica ou arqueológica da ‘fuga para o Egito’”, e para não ficar só nisso,
acrescenta: “tampouco existe prova da estada de Jesus em Nazaré”. Vê-se que por aí já nos
deparamos com esses dois espinhosos problemas.
Alguns tradutores explicam essa narrativa como “um paralelo anterior na infância de
Moisés, descrita pelas tradições rabínicas: segundo estas, quando o nascimento da criança foi
anunciado, por meio de visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as
crianças recém-nascidas” (Bíblia de Jerusalém, p. 1705-1706).
Com respeito à morte das crianças, conta-nos Keller:
[…] Assim, hoje em dia usa-se de um cuidado bem maior do que outrora na
apreciação da historicidade do infanticídio de Belém e, antes, tende-se a
considerar o relato em questão como uma tentativa, condicionada à mentalidade
contemporânea que visa realçar a importância de Jesus, pelos meios usados na
época (para tanto, existe ainda uma certa autenticidade histórica, representada
pelas atitudes efetivamente tomadas por Herodes em sua contenda com os
fariseus, por causa do Messias. Veja o fim do capítulo precedente. No entanto,
há ainda mais. O relato do infanticídio de Belém estabeleceu um nexo entre
Jesus e Moisés, pois também desse último a Bíblia conta como escapou,
milagrosamente, de perseguições idênticas, sofridas por parte do faraó egípcio
(Êxodo 1.15, 2.10) (KELLER, 2000, p. 366)
46
Quando o anjo aparece a José, dizendo para ele e sua família voltarem para Israel
“porque morreram os que atentavam contra a vida do menino”, notamos que isso não faz
sentido, pois, no início, a referência que se faz é a Herodes; o correto seria então dizer
“morreu” e não “morreram”.
O primeiro aviso em sonho, José o segue fielmente; quando do segundo, demonstra
receio de voltar para Judeia, lugar indicado pelo anjo. Isso não condiz com seu comportamento
anterior, pois, pensando em deixar Maria, um anjo lhe aparece em sonho avisando que o filho
que ela levava na barriga é “obra do Espírito Santo”, já que ele ouve a voz do anjo e não
abandona Maria. Apesar de relatado, esse fato não se coaduna com a cultura machista daquela
época. E até a bem pouco tempo atrás se isso acontecesse aqui em nossa sociedade mesmo a
mulher seria, com certeza, repudiada. E duvidamos que um homem, pela cultura daquela
época, ou mesmo dessa de pouco tempo atrás, descobrindo que sua futura mulher estivesse
grávida e esse filho não fosse dele, ainda ficaria com ela...
Se José teve receio de ir para a Judeia porque estava sendo governada por um filho de
Herodes, então, por que motivo foi para a Galileia que também estava sendo governada por
outro filho dele, no caso, Herodes Antipas? Não estaria correndo o mesmo risco?
Observamos que a primeira vez que Mateus cita o nome de alguma cidade relacionada a
Jesus, diz de Belém da Judeia, local onde nasceu. Quando do retorno do Egito fala que José
não quis voltar para a Judeia, do que podemos concluir que deveria ser especificamente a
cidade de Belém. Cidade essa que, segundo se deduz das narrativas desse evangelista, teria
sido o local onde Jesus viveu até que fosse para o Egito; só após a sua volta é que passou a
morar em Nazaré. Entretanto, Lucas deixa muito claro que Maria e José viviam em Nazaré
(1,26; 2,4); foram a Belém para se alistar no recenseamento; lá nasceu o menino e terminado
os dias de purificação, o levaram ao Templo, em Jerusalém, para cumprirem as prescrições da
Lei: “todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor” (Ex 13,2.15), após o
que “voltaram à Galileia, para Nazaré, sua cidade” (Lc 2,39), afirmando, um pouco mais à
frente, que “foi a Nazaré, onde tinha crescido” (Lc 4,16).
É uma divergência para a qual não encontramos nenhuma explicação plausível, a não
ser de que a razão poderia estar mesmo com Lucas, já que também Marcos dá a entender que
Jesus, até o dia em que foi batizado por João Batista, morava em Nazaré (Mc 1,9) e que
Mateus, seguindo o que acreditavam na época, procurou adaptar a pessoa de Jesus às
profecias sobre o Messias; por isso teria modificado a descrição dos acontecimentos, para
sustentar esse pensamento. Entretanto, conforme já informamos anteriormente, não existe
prova arqueológica da estada de Jesus em Nazaré, permanecendo, portanto, essa dúvida.
Que os bibliólatras nos desculpem, mas, após esse estudo, a visão que passamos a ter
dessa passagem não é coisa de que irão gostar, com certeza.
Primeiro, a “fuga” para o Egito é uma situação criada para tentar aplicar o que dizem
ser uma profecia de Oseias. Entretanto, ao analisarmos a passagem citada (Os 11,1),
percebemos claramente que ela nem mesmo é uma profecia; trata-se, na verdade, de uma
coisa já acontecida. Observe que o verbo “chamar” está no pretérito; portanto, fato do
passado. E mais a expressão “meu filho”, utilizada na passagem, se refere ao povo de Israel e
não a uma pessoa em particular.
Segundo, a matança das crianças justificaria uma outra profecia, agora de Jeremias
(31,15). Só que, como acontecido com a anterior, essa passagem também não é uma profecia;
está relacionada à tomada de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia, que leva o povo
de Israel, que acabara de subjugar, cativo para o seu país; daí “o pranto de Raquel (sepultada
em Ramá, perto de Belém) pelos filhos massacrados ou deportados pelos caldeus depois da
destruição de Jerusalém em 596 a.C.,...”. (Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, p. 1062).
Terceiro, a ida para Nazaré foi forjada para relacioná-la ao cumprimento de mais uma
outra profecia que teria sido dita por vários profetas. Entretanto, a realidade é bem outra, pois
não há nenhuma profecia em que, pelo menos, um só profeta tenha dito: “Será chamado
Nazareno”; é pura invenção do autor bíblico.
Sabemos que, o que estamos dizendo poderá chocar alguns; entretanto, aos que, acima
de tudo, buscam a verdade, será ouvido de bom grado. A verdade que entendemos, não
necessita ser imposta a ferro e fogo; ao contrário, quando alguém quer, por todos os meios,
fazer com que os outros aceitem a sua verdade, é porque, com certeza, não está com ela, pois
47
a verdade é algo tão cristalino que não necessita de nada mais, a não ser que seja mostrada.
Os sábios a sentirão, enquanto que os ignorantes a contestarão.
O que nos conforta é que não estamos sozinhos nessa busca. Recentemente,
encontramos um artigo, onde parte do texto tem a ver com o que estamos tratando aqui, do
qual transcrevemos:
(...) E o segundo problema ainda mais grave, é que provavelmente Jesus
não nasceu em Belém. ‘Há quase um consenso entre os historiadores de
que Jesus nasceu em Nazaré’, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro de
Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte... Assim como o
nascimento em Belém, a terrível execução de recém-nascidos ordenada por
Herodes e a fuga de Maria e José para o Egito também teriam sido uma ‘licença
poética do texto’, dessa vez para simbolizar que Jesus é o novo Moisés – já que
essa narrativa é bem semelhante ao que se contava da vida do patriarca
bíblico”. ‘Isso não foi uma criação maquiavélica para glorificar Jesus, era apenas
o estilo literário da época’, diz Vitório. (CAVALCANTE, 2002, p. 43) (grifo nosso).
Sobre Jesus ter nascido em Nazaré e não em Belém é um assunto que, certamente,
merece um estudo específico, o que fizemos no texto: “Jesus de Belém ou de Nazaré?”.
48
Bodas de Caná: o primeiro sinal
Esse é o título da passagem em que João narra o primeiro milagre de Jesus. Apesar de
temos refletido muito sobre ela, ainda não tínhamos nenhuma explicação que justificasse a
atitude de Jesus em transformar água em vinho, para embebedar os convidados da festa de
que participava.
Vejamos o episódio:
“No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus
estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de casamento, junto com
seus discípulos.
Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse:
- Eles não têm mais vinho!
Jesus respondeu:
- Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou.
A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo:
- Façam o que ele mandar.
Havia aí seis potes de pedra de uns cem litros cada um, que serviam para os ritos de
purificação dos judeus.
Jesus disse aos que serviam:
- Encham de água esses potes.
Eles encheram os potes até a boca.
Depois Jesus disse:
- Agora tirem e levem ao mestre-sala.
Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água transformada em vinho, sem saber
de onde vinha. Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles que tiraram a água.
Então o mestre-sala chamou o noivo e disse:
- Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem
o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora.
Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele manifestou a sua
glória, e seus discípulos acreditaram nele.
Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus
discípulos. E aí ficaram apenas alguns dias”. (Jo 2,1-12).
Ao lermos essa passagem, podemos achar que Jesus tenha faltado com respeito à sua
mãe quando diz: “Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou”. Hoje, se
usássemos a expressão “mulher”, talvez pensaríamos ser mesmo um desprezo, entretanto,
naquela época correspondia à palavra “senhora”, com que, atualmente, tratamos com respeito
as mulheres. Jesus não estava negando qualquer relação entre Ele e sua mãe. A explicação
que encontramos foi que o sentido seria “em si nós nada temos a ver com esta falta de vinho.
Minha hora de fazer milagres ainda não chegou. Contudo, a teu pedido, antecipo esta hora”
(Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 1385).
Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o vamos encontrar no que a
pessoa encarregada da festa disse para o noivo: Todos servem primeiro o vinho bom e,
quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até
agora.
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Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua missão, podemos
dizer que o “vinho bom guardado até agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aos
recebidos anteriormente, por meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de pior
qualidade,. Até mesmo porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época não
estava preparada para receber vinho de melhor qualidade, se assim podemos nos expressar.
O que podemos confirmar com o que, por várias vezes, foi dito por Jesus: “aprendeste
o que foi dito, eu porém vos digo”, deixando-nos bem claro que os ensinamentos anteriores
não eram, daquele momento em diante, suficientes para “encher” o coração dos homens da
verdade do Pai. Fatos que nos levam à conclusão de que Jesus veio trazer coisas novas. Os
fariseus ficavam inconformados por Jesus não seguir as prescrições da Lei Mosaica, ao que
obtiveram como resposta: “Não se coloca remendo de pano novo em pano velho, nem vinho
novo em odres velhos” (Mt 9,16-27).
Podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em comparação com esta imensa glória, o
esplendor do ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2Cor 3,10), e “Dessa maneira é
que se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de sua fraqueza e inutilidade – a
Lei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi introduzida uma esperança melhor pela qual
nos aproximamos de Deus” (Hb 7,18-19).
Assim, não temos dúvida alguma quanto à superioridade dos ensinamentos de Jesus,
principalmente se entendermos o sentido dessa passagem como o que estamos propondo.
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João Batista é mesmo Elias?
Pelo fato de não aceitarem a reencarnação, muitas pessoas têm defendido a tese de
que João Batista não teria sido Elias em nova encarnação. Evidentemente, partem de uma
interpretação pessoal, completamente associada ao dogmatismo religioso em que vivem,
resultando em algo que pouco ou nada tem a ver com os textos bíblicos.
Faremos um estudo para ver qual é a realidade, esperando responder à pergunta inicial;
mas, como sempre, em relação a esses, de quem falamos, não alimentamos a mínima
pretensão de demovê-los de suas ideias com o que resultar desse estudo. A única coisa que irá
modificar-lhes o pensamento será, por ironia do próprio destino, só mesmo a reencarnação, já
que ela é uma lei natural, que não pergunta a ninguém se nela crê ou não, para que lhe sujeite
e se cumpra o “é necessário nascer de novo” (Jo 3,3).
Vamos analisar algumas passagens bíblicas para elucidar o caso.
O povo hebreu esperava a volta de Elias, confiante nas duas profecias do Antigo
Testamento, que afirmam sobre o seu retorno. Propositalmente, as colocaremos na ordem
inversa, ou seja, da mais nova para a mais antiga. Leiamo-la:
Eclo 48,10: “tu que foste designado nas ameaças do futuro, para apaziguar a cólera
antes do furor, para reconduzir o coração dos pais aos filhos e restabelecer as
tribos de Jacó”.
Nos versículos 1 a 12 do capítulo 48 do livro Eclesiástico, escrito por volta do ano 200
a.C., está-se falando de Elias; então, a afirmativa de que “foste designado nas ameaças do
futuro” refere-se a uma profecia a respeito da volta de Elias. Na sequência, diz-se que um dos
objetivos de sua volta seria “para reconduzir o coração dos pais aos filhos”, exatamente o que
iremos ver o anjo Gabriel afirmando a Zacarias sobre o personagem João Batista (Lc 1,14-18).
E, certamente, corrobora o que encontramos em Malaquias (Ml 3,22-24[2]), que lhe é anterior,
contendo essa mesma afirmação, conforme veremos um pouco adiante. E o versículo 11 inicia
afirmando “Felizes os que te virem...”, o que dá conotação de algo a acontecer no futuro.
A segunda passagem, onde, na verdade, se encontra a primeira profecia, está no último
livro do A.T, que é o de Malaquias, que, segundo pudemos levantar, viveu cerca de 400 anos
a.C. (Dicionário Prático - Barsa, p. 165); assim ele disse:
Ml 3,1: “Vejam! Estou mandando o meu mensageiro para preparar o caminho à
minha frente. De repente, vai chegar ao seu Templo o Senhor que vocês procuram, o
mensageiro da Aliança que vocês desejam. Olhem! Ele vem! - diz Javé dos exércitos”.
Mais à frente, esse mensageiro é identificado, no mesmo texto do próprio profeta
Malaquias:
Ml 3,23-24 ou 4,5-6: “Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha
o grandioso e terrível Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais voltem para
os filhos e o coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei o
país à destruição total”.
O passo seguinte é quando, no tempo de Herodes, rei da Judeia, um sacerdote
chamado Zacarias recebe a visita de um anjo, que lhe anuncia que sua mulher Izabel, apesar
de estéril, daria a luz a uma criança, cujo nome deveria ser João (Lc 1,5-13); caracterizando
essa criança, o anjo Gabriel declara a Zacarias:
Lc 1,15-18: “[...] ele vai ser grande diante do Senhor. Ele não beberá vinho, nem
2
Em algumas traduções bíblicas essa passagem é citada como Ml 4,4-6.
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bebida fermentada e, desde o ventre materno, ficará cheio do Espírito Santo. Ele
reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus. Caminhará à frente deles,
com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos
e os rebeldes à sabedoria dos justos, preparando para o Senhor um povo bem
disposto”.
Afirmando que a criança virá “com o espírito e o poder de Elias”, se usa da linguagem
de época, para confirmar que aquela criança seria o espírito de Elias reencarnado. Isso se
confirma quando, na sequência, é dito “a fim de converter os corações dos pais aos filhos”,
exatamente como consta em Eclesiástico (Eclo 48,10) e como também disse Malaquias na
profecia que anteriormente citamos (Ml 3,22-24 ou 4,4-6), na qual também se afirma
categoricamente que Elias haveria de voltar: “eu mandarei a vocês o profeta Elias”.
No dia em que o menino foi levado para ser circuncidado, Zacarias, mudo por castigo
imposto pelo anjo, escreve, numa tábua, o nome que deveria ser dado a seu filho: João. Fez
isso porque queriam dar à criança o mesmo nome do pai ou de algum parente. Logo após,
Zacarias profetiza dizendo várias coisas (Lc 1,67-79), e dentre elas destacamos:
Lc 1,76-77: “E a você, menino, chamarão profeta do Altíssimo, porque irá à frente do
Senhor, para preparar-lhe os caminhos, anunciando ao seu povo a salvação e perdão
dos pecados”.
Isso confirma, primeiro, a profecia anterior de Malaquias e, segundo, o que o anjo
Gabriel havia dito a Zacarias, como para não deixar dúvidas de quem era aquele menino,
embora, nos dias de hoje, haja os que, por puro dogmatismo, não enxergam isso.
Na narrativa, em que se relata o início da pregação de João Batista, lemos:
Lc 3,3-6: “E João percorria toda a região do rio Jordão, pregando o batismo de
conversão para o perdão dos pecados, conforme está escrito no livro do profeta Isaías:
‘Esta é voz daquele que grita no deserto: preparem o caminho do Senhor, endireitem
suas estradas. Todo vale será aterrado, toda a montanha e colina serão aplainadas; as
estradas curvas ficarão retas, e os caminhos esburacados serão nivelados. E todo
homem verá a salvação de Deus’”.
Como se nota, João, mais uma vez, está sendo relacionado a uma profecia a respeito
da vinda do Mensageiro.
Mais à frente, João Batista é preso por Herodes, e da prisão, envia seus discípulos a
Jesus. Logo após esse encontro de Jesus com os discípulos de João, ele, o Mestre, em se
referindo à “voz que clama no deserto” diz:
Mt 11,7-15: “O que é que vocês foram ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento?
O que vocês foram ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas aqueles que vestem
roupas finas moram em palácios de reis. Então, o que é que vocês foram ver? Um
profeta? Eu lhes afirmo que sim: alguém que é mais do que um profeta. É de João
que a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai
preparar o teu caminho diante de ti'. Eu garanto a vocês: de todos os homens que já
nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céu
é maior do que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu sofre
violência, e são os violentos que procuram tomá-lo. De fato, todos os Profetas e a Lei
profetizaram até João. E se vocês o quiserem aceitar, João é Elias que devia vir.
Quem tem ouvidos, ouça”.
Na afirmação de que “é de João que a Escritura diz”, Jesus está relacionando João
Batista exatamente à profecia de Malaquias a respeito do envio do mensageiro (Ml 3,1),
identificado pelo próprio profeta como sendo Elias (Ml 3,22-24), conforme já vimos.
Há, aqui, uma frase que nunca vimos ninguém comentar; entretanto, ela é muito
singular. Estamos falando da frase: “Desde os dias de João Batista até agora”, expressão que,
por lógica, só faria sentido se João Batista não fosse contemporâneo de Jesus. Mas
acreditamos que é realmente isso que Jesus, de forma figurada, está afirmando o que, em
outras palavras, poderia ser dito assim: “Desde os dias de Elias até agora”, já que, na
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sequência, ele arremata claramente que João é Elias, aquele mesmo que havia de vir. Na
certeza de que muitos não acreditariam, completa: “quem tem ouvidos, ouça”, ou seja, quem
quiser acreditar que acredite: João Batista é mesmo o Elias reencarnado.
Vale também observar que Jesus nunca impôs sua maneira de pensar a ninguém,
exemplo que muitos não se preocupam e nem fazem questão de seguir; principalmente,
aqueles que tentam incutir na cabeça dos outros suas interpretações pessoais dos textos
bíblicos; seriam eles os falsos profetas de quem Jesus sempre falava? Em Mt 7,21-23 Ele nos
dá algumas pistas sobre quem poderiam ser esses falsos profetas: usariam o nome dele para:
(1) profetizar; (2) expulsar demônios e (3) fazer muitos milagres. Será que é de alguns líderes
religiosos atuais que Jesus está se referindo? Fica a resposta por sua conta, caro leitor.
Como explicar que João Batista seja o maior de todos os homens, mas que no “Reino do
Céu” ele é o menor? Somente com a possibilidade de evolução individual de cada um de nós.
Se isso não for verdade, haveremos de, forçosamente, acreditar que Deus age com
parcialidade, contrariando a afirmação de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34), o
que faria de Sua “justiça” uma justiça por demais humana, privilegiando algumas pessoas em
detrimento de outras.
Em outra passagem Jesus volta, novamente, a afirmar sobre João ser Elias. Ei-la:
Mt 17,1-13: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, os irmãos Tiago e João, e os
levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles: o
seu rosto brilhou como o sol, e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisso lhes
apareceram Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra, e
disse a Jesus: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas:
uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’. Pedro ainda estava falando, quando
uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra, e da nuvem saiu uma voz que dizia:
‘Este é o meu Filho amado, que muito me agrada. Escutem o que ele diz’. Quando
ouviram isso, os discípulos ficaram muito assustados, e caíram com o rosto por terra.
Jesus se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantem-se, e não tenham medo’. Os
discípulos ergueram os olhos, e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Ao
descerem da montanha, Jesus ordenou-lhes: ‘Não contem a ninguém essa visão, até
que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos’. Os discípulos de Jesus lhe
perguntaram: ‘O que querem dizer os doutores da Lei, quando falam que Elias deve vir
antes?’ Jesus respondeu: ‘Elias vem para colocar tudo em ordem. Mas eu digo a vocês:
Elias já veio, e eles não o reconheceram. Fizeram com ele tudo o que quiseram. E o
Filho do Homem será maltratado por eles do mesmo modo’. Então os discípulos
compreenderam que Jesus falava de João Batista”.
Transcrevemos a passagem por completo para podermos melhor explicá-la. Os espíritos
Moisés e Elias aparecem no monte Tabor e conversam com Jesus, fato que Pedro, Tiago e João
testemunham (e ainda dizem que os mortos não se comunicam...). Os discípulos, lembrandose das profecias a respeito da volta de Elias, ficam intrigados; daí pensaram: se Elias está
aqui, então como na Escritura é dito que ele voltaria? Em consequência pedem uma explicação
a Jesus: “O que querem dizer os doutores da Lei, quando falam que Elias deve vir antes?”. A
resposta de Jesus sobre isso é categórica: “Elias já veio, e eles não o reconheceram”. Fato que
por si só se explica porque o espírito que animou Elias esteve reencarnado como João Batista;
entretanto, nem todos o reconheceram. É por isso que no texto consta “eles”, os doutores da
Lei, e não “ninguém”, que abrangeria o desconhecimento por parte de todo mundo, inclusive
dos apóstolos, de que João era Elias. Quanto aos apóstolos, podemos dizer que apenas
queriam essa confirmação por parte de Jesus, pois já supunham que João era mesmo Elias, já
que não teriam feito essa pergunta se não cressem na reencarnação.
Será interessante vermos essa passagem pela narrativa de Marcos; leiamo-la:
Mc 9,1-13: “E Jesus dizia: 'Eu garanto a vocês: alguns dos que estão aqui, não
morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com poder'. Seis dias depois, Jesus
tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e os levou sozinhos a um lugar à parte,
sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles. Suas roupas ficaram
brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira no mundo as poderia alvejar.
Apareceram-lhes Elias e Moisés, que conversavam com Jesus. Então Pedro tomou a
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palavra e disse a Jesus: 'Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma
para ti, outra para Moisés e outra para Elias'. Pedro não sabia o que dizer, pois eles
estavam com muito medo. Então desceu uma nuvem e os cobriu com sua sombra. E da
nuvem saiu uma voz: 'Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz!' E, de repente,
eles olharam em volta e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles.
Ao descerem da montanha, Jesus recomendou-lhes que não contassem a ninguém o
que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles
observaram a recomendação e se perguntavam o que queria dizer 'ressuscitar
dos mortos'. Os discípulos perguntaram a Jesus: 'Por que os doutores da Lei dizem
que antes deve vir Elias?' Jesus respondeu: 'Antes vem Elias para colocar tudo em
ordem. Mas, como dizem as Escrituras, o Filho do Homem deve sofrer muito e ser
rejeitado. Eu, porém, digo a vocês: Elias já veio e fizeram com ele tudo o que queriam,
exatamente como as Escrituras falaram a respeito dele'".
Será que o “ressuscitar dos mortos” aí equivale a reencarnar? Os discípulos discutiam
sobre o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” e, ao que parece, não chegaram a um
denominador comum; assim, querendo um esclarecimento, perguntam a Jesus sobre a volta
de Elias. Obviamente, como estavam conversando sobre ressurreição dos mortos, e nessa
conversa sai o nome de Elias, é porque, certamente, tinham Elias como morto e não como um
arrebatado.
Muito interessante o que pudemos ver quanto ao teor do versículo 13, em duas outras
traduções bíblicas bem antigas. Na Bíblia Paulinas (1957) e na Bíblia Barsa (1965), nesse
verso consta o seguinte:
Mc 9,13: “Mas digo-vos que Elias já veio (e fizeram dele quanto quiseram) como
está escrito dele”.
A diferença entre os textos bíblicos pode ter sido porque o que está aqui entre
parênteses é, certamente, uma glosa. Conforme o Dicionário Bíblico, glosa “são os acréscimos
feitos a um texto para explicá-lo, corrigi-lo e adaptá-lo. De modo geral colocados à margem
pelos autores, as glosas são progressivamente inseridas no texto até pelos próprios copistas”.
(MONLOUBOU e DU BUIT, 1997, p. 328). Assim, temos o texto original, sem a glosa: “Mas
digo-vos que Elias já veio como estava escrito dele”, ou seja, corrobora as duas profecias, já
citadas.
Embora tudo isso quanto colocamos, até aqui, seja claro aos que não estão
encabrestados por sua liderança religiosa, ainda continuarão aparecendo dogmáticos com
argumentos contrários a essa verdade bíblica, colocando Jesus como mentiroso, já que foi Ele
quem disse que João era Elias, e não nós, os Espíritas, fato que não há como contestar.
Falta-nos ainda fazer uma análise da passagem que relata a morte de João Batista; é o
que faremos agora; mas, primeiro, leiamo-la:
Mt 14,7-11: “Então Herodes prometeu com juramento que lhe daria tudo o que ela
pedisse. Pressionada pela mãe, ela disse: 'Dê-me aqui, num prato, a cabeça de João
Batista'. O rei ficou triste, mas por causa do juramento na frente dos convidados,
ordenou que atendessem o pedido dela, e mandou cortar a cabeça de João na
prisão. Depois a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e esta a levou para
a sua mãe”.
Considerando que a reencarnação está diretamente associada à lei de causa e efeito, a
morte de João Batista é mais um fato que se ajusta ao nosso conjunto de provas, pois ele
morreu exatamente da mesma forma que, quando estava encarnado como Elias, fez perecer
os sacerdotes de Baal: teve a cabeça cortada. Vejamos o relato:
1Rs 18,40: “Então Elias disse a eles: ‘Agarrem os profetas de Baal. Não deixem escapar
nenhum’. E eles os agarraram. Elias fez os profetas de Baal descer até o riacho
Quison, e aí os degolou”.
1Rs 19,1: “Acab contou a Jezabel o que Elias tinha feito e como tinha matado a fio
de espada todos os profetas”.
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E para que ninguém diga que a lei de causa e efeito não é bíblica, como ao gosto dos
dogmáticos, apresentamos para sustentação do nosso entendimento as seguintes passagens:
Jó 4,8: “Pelo que eu sei, os que cultivam injustiça e semeiam miséria, são esses que as
colhem”.
Jo 8,34: “Jesus respondeu: ‘Eu garanto a vocês: quem comete o pecado, é escravo do
pecado’”.
Mt 26,52): “Jesus, porém, lhe disse: ‘Guarde a espada na bainha. Pois todos os que
usam a espada, pela espada morrerão’”.
Gl 6,7: “Não se iludam, pois com Deus não se brinca: cada um colherá aquilo que tiver
semeado”.
Há uma passagem em que Jesus ressalta a lei de causa e efeito ao estabelecer uma
correlação entre a doença de uma pessoa como consequência de, anteriormente, ter “pecado”.
É o caso de um paralítico, que assim se encontrava há trinta e oito anos, que foi curado num
dia de sábado. Pouco tempo depois Jesus o encontra no templo e lhe diz: “Olha que já estás
curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior” (Jo 5,14). Não resta dúvida que,
perante essa fala de Jesus, podemos concluir que a paralisia desse homem estava diretamente
relacionada a um “pecado” cometido por ele, embora, pelo texto não dê para sabermos se foi
ou não de uma outra vida. Jesus ainda lhe adverte que se pecar outra vez a doença poderá ser
pior, reafirmando essa lei.
Vamos agora analisar as principais objeções que se levantam contra João Batista ser
Elias reencarnado. Iremos dividi-las em dois grupos; um específico quanto a essa questão e o
outro mais genérico, onde argumentam contra a reencarnação, dizendo que não é bíblica e que
Jesus nunca pregou tal coisa. Convém ressaltar que as genéricas, não raro, têm sido usadas
como rota de fuga e de compensação, perante a inocuidade das objeções específicas.
1 - Elias não poderia ter reencarnado porque não morreu, mas foi arrebatado.
Se João, o Batista, fosse mesmo Elias reencarnado, Elias teria de ter morrido
para reencarnar. Ora, sabemos que Elias nunca morreu, pois foi arrebatado vivo
ao céu (2Rs 2,11). Perguntamos aos espíritas qual o texto da Bíblia que
confirma a morte de Elias? A resposta é: nenhum. Elias não morreu. Será que os
espíritas aceitariam a Bíblia como um livro inspirado, ou vão torcer o significado
do texto?
O grande problema é que muitas pessoas acreditam piamente em tudo que consta da
Bíblia, como se, realmente, ela fosse, “capa a capa”, de inspiração divina. Certamente, o seria
se não houvesse nela a mínima contradição; no entanto, podemos ver que elas existem; mas
só percebem isso os que estão livres das “viseiras dogmáticas”. No presente caso, acontecem
várias. Vejamo-las:
a) Gn 3,19: “[...] tu és pó e ao pó tornarás”.
Elias, caso tivesse sido arrebatado, não teria voltado ao pó conforme o que Deus
estabeleceu aqui nessa passagem como coisa que acontecerá a todo ser humano.
b) 1Cor 15,50: “Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue não podem herdar o
reino de Deus, [...]”.
Se Elias foi arrebatado, certamente que foi para o reino dos céus no corpo físico, ou
seja, com sua carne e seu sangue, fato que vem contrariar o que está aqui dito nesse passo.
c) Jo 3,13: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a
saber, o Filho do homem”.
Se o arrebatamento de Elias for verdadeiro, então ele subiu ao céu, e antes do que
Jesus, o que contradiz essa fala de Jesus, que foi a única pessoa que havia subido ao céu, e
ninguém mais, conforme suas próprias palavras.
d) Hb 9,27: “[...] aos homens está ordenado morrerem uma só vez [...]”.
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Se Elias não morreu - nem uma única vez -, fica evidente que essa passagem não se
cumpriu.
e) At 10,34: “[...] Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de
pessoas; [...]”.
Explica-nos o Houaiss que acepção é: “escolha, predileção por alguém; inclinação,
tendência em favor de pessoa(s) por sua classe social, privilégios, títulos etc.”.
Consequentemente, se o tal do arrebatamento aconteceu a Elias, há evidente contradição com
o texto aqui citado. E, por outro lado, considerando que Tiago disse que “Elias é homem fraco
como nós” (Tg 5,17), qual seria então, a razão desse suposto privilégio de Elias, já que ele é
igual a nós?
f) Jo 6,63: “O espírito é que vivifica; a carne para nada aproveita; [...]”.
Na possibilidade de Elias ter sido arrebatado, ele foi “em carne” para o mundo
espiritual; mas isso é estranho em função do “a carne para nada se aproveita”;
porquanto, nessa passagem, fica claro que o Espírito é que é o mais importante.
g) Jo 4,24: “Deus é Espírito, [...]”.
Agora, sim, é que as coisas se tornaram mais incoerentes, uma vez que Deus, sendo
espírito - essa é a nossa semelhança para com Ele -, certamente vive em seu reino nessa
condição. Entretanto, Elias teria que viver em corpo físico, caso tivesse sido arrebatado. Se for
verdade o que disse Jesus, de que o “reino dos céus está dentro de vós” (Lc 17,21),
então ele não é um lugar, mas um estado de consciência, ficando, portanto, sem
qualquer sentido alguém ser arrebatado fisicamente.
h) 2Cr 21,12: “Então lhe chegou às mãos uma carta do profeta Elias”.
Nesse livro, o de Crônicas, está se afirmando que Elias envia uma carta a Jorão (forma
abreviada de Jeorão), fato que comprova que ele não foi arrebatado coisíssima nenhuma, uma
vez que o envio dessa carta aconteceu cerca de dez anos depois do seu suposto
arrebatamento, o que comprovamos com: “De acordo com a cronologia de 2Rs, Elias tinha
desaparecido antes do reinado de Jorão de Israel (2Rs 2; 3,1) e, portanto, antes de Jorão de
Judá (2Rs 8,16; cf. no entanto 2Rs 1,17)” (Bíblia de Jerusalém, p. 607). A não ser que o
correio daquela época não tenha sido tão eficiente quanto o atual e tenha atrasado a entrega
dessa carta.
Ainda temos o tradutor Russell P. Shedd (1929- ), teólogo evangélico, que assim tenta
explicar o passo 2Cr 21,12:
Elias já havia subido aos céus antes da entrega da sua carta (cf. 2Rs
3,11), que soaria como uma voz de condenação vinda do além. Elias talvez
profetizara os crimes de Jeorão, com os castigos que lhe sobreviriam, à sua
família e à sua nação. Elias, também, foi formidável oponente de Jezabel, mãe
de Atalia, e sogra de Jeorão. (Bíblia Shedd, p. 640) (grifo nosso).
A sua hipótese de que a carta “soaria como uma voz de condenação vinda do além” é,
para nós, algo inusitado saindo da boca de um evangélico.
Com apenas a informação de que “Elias já fora trasladado ao céu quando esta carta foi
entregue a Jeorão”. (Bíblia Anotada, p. 586), sem maiores considerações, para, talvez, não
terem que admitir o que Shedd coloca como uma possibilidade.
É em 2Rs 2,11 que se narra o suposto arrebatamento de Elias, fato que causa
divergência mesmo entre os teólogos; vejamos a opinião de uma equipe de tradutores
católicos e protestantes: “O texto não diz que Elias não morreu, mas facilmente se pode
chegar a essa conclusão” (Bíblia de Jerusalém, p. 509).
2 – No monte da transfiguração, quem apareceu foi Elias e não João Batista, como
era de se esperar se João fosse a última encarnação de Elias.
Se João Batista fosse a reencarnação de Elias, aquele que teria aparecido no
monte da transfiguração, deveria ser João Batista e não Elias (Mt 17,1-6). Pois
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de acordo com a doutrina espírita: a última pessoa reencarnada é que deve
aparecer.
Obviamente que, como um princípio geral, isso está certo; o que não se deve é
generalizar, pois, de acordo com a Doutrina Espírita, o que acontece é isso: “Os Espíritos que
se tornam visíveis se apresentam, quase sempre, sob as aparências que tinham quando
vivos, e que pode fazê-los reconhecer”. (KARDEC, 1993h, p. 108). A expressão “quase
sempre” retira o caráter genérico, abrindo a possibilidade de os espíritos apresentarem-se na
forma em que as pessoas, às quais se dirigem, possam reconhecê-los; assim, “Podendo tomar
todas as aparências, o Espírito se apresenta sob a que melhor o faça reconhecível, se tal é o
seu desejo”. (KARDEC, 2007b, p. 146). Dessa forma, se o espírito apresentou-se como Elias e
não como João Batista, é porque ele queria se fazer reconhecer como Elias e não como João;
foi isso o que aconteceu.
Portanto, pela Doutrina Espírita, há casos em que o espírito pode se manifestar com a
aparência de qualquer outra encarnação, desde que tenha evolução moral para isso. O
perispírito, como sendo o corpo espiritual, pode ser moldado à vontade do espírito, uma vez
que ele possui entre suas propriedades a da plasticidade, que, com o poder do pensamento,
permite ao espírito assumir uma outra aparência, mas sempre com a aparência de uma de
suas encarnações. É o que se pode, inclusive tirar dessa fala de Kardec:
É assim, por exemplo, que um Espírito se faz visível a um encarnado que
possua a vista psíquica, sob as aparências que tinha quando vivo na época
em que o segundo o conheceu, embora haja ele tido, depois dessa
época, muitas encarnações. Apresenta-se com o vestuário, os sinais
exteriores - enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. - que tinha
então. Um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não quer isso dizer que
haja conservado essas aparências, certo que não, porquanto, como Espírito, ele
não é coxo, nem maneta, nem zarolho, nem decapitado; o que se dá é que,
retrocedendo o seu pensamento à época em que tinha tais defeitos, seu
perispírito lhes toma instantaneamente as aparências, que deixam de
existir logo que o mesmo pensamento cessa de agir naquele sentido. Se, pois,
de uma vez ele foi negro e branco de outra, apresentar-se-á como branco ou
negro, conforme a encarnação a que se refira a sua evocação e à que se
transporte o seu pensamento. (KARDEC, 2007e, p. 323) (grifo nosso).
O perispírito, por ser totalmente maleável, terá a aparência que o espírito queira lhe
dar, pela força do seu pensamento, conforme, por aqui, se confirma:
[…] Mas a matéria sutil do perispírito não possui a tenacidade, nem a rigidez
da matéria compacta do corpo; é, se assim nos podemos exprimir, flexível
e expansível, donde resulta que a forma que toma, conquanto decalcada na do
corpo, não é absoluta, amolga-se à vontade do Espírito, que lhe pode dar a
aparência que entenda, ao passo que o invólucro sólido lhe oferece invencível
resistência.
Livre desse obstáculo que o comprimia, o perispírito se dilata ou contrai,
se transforma: presta-se, numa palavra, a todas as metamorfoses, de
acordo com a vontade que sobre ele atua. Por efeito dessa propriedade do
seu envoltório fluídico, é que o Espírito que quer dar-se a conhecer pode, em
sendo necessário, tomar a aparência exata que tinha quando vivo, até mesmo
com os acidentes corporais que possam constituir sinais para o reconhecerem.
(KARDEC, 2007b, p. 81-82) (grifo nosso).
Quanto mais evoluído for um espírito, mais facilmente conseguirá dirigir sua vontade
para moldar o perispírito na aparência que desejar. É o que Kardec nos explica:
[…] O Espiritismo nos faz compreender como podem os Espíritos achar-se
entre nós. Comparecem com seu corpo fluídico ou espiritual e sob a
aparência que nos levaria a reconhecê-los, se se tornassem visíveis.
Quanto mais elevados são na hierarquia espiritual, tanto maior é neles o
poder de irradiação. É assim que possuem o dom da ubiquidade e que podem
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estar simultaneamente em muitos lugares, bastando para isso que enviem a
cada um desses lugares um raio de suas mentes. (KARDEC, 2007c, p. 416)
(grifo nosso).
No caso de João Batista, Jesus disse que entre os nascidos de mulher ele era o maior,
assegurando, portanto, sua condição de espírito evoluído, embora Tiago tenha dito o contrário,
fato que já citamos.
3 - A Bíblia fala que João Batista teve um ministério parecido com o de Elias (Lc
1,17). Este versículo será completamente esclarecido se comparado com a história
de Elias e Eliseu (2Rs 2,9-15).
João Batista cumpriu funcional e profeticamente o ministério de Elias, pois
entendemos o texto da seguinte maneira: João Batista, deveria fazer o seu
ministério dentro do espírito ministerial de Elias (Ml 4,5-6; Lc 1,17).
Em relação ao versículo que diz que João Batista ia no espírito de Elias (Lc
1,17), a Bíblia não diz que João Batista ia com o espírito de Elias. Existe uma
grande diferença entre ir no espírito e ir com o espírito de Elias. A palavra no
significa no mesmo ímpeto, semelhante. Para provar essa colocação, vamos ver
como João Batista e Elias eram semelhantes.
JOÃO BATISTA
Perseguido
por
uma
mulher
(Herodias) e por um rei (Herodes).
(Mt 14,3-5 e Mc 6,18-20)
Usava uma capa de pelos. (Mt 3,4)
Era intrépido. (Lc 3,7)
Foi o último profeta. (Lc 16,16)
ELIAS
Foi perseguido por uma mulher (Jezabel) e
por um rei (Acabe). (1Rs 19,1-3 e 1Rs
21,20)
Usava também uma capa. (1Rs 19,19)
Também era intrépido. (1Rs 18,27)
Simboliza os profetas.
De doze livros bíblicos consultados [3], apenas quatro deles usam o “no”, o que, em
termos percentuais, representa apenas 33% do total. Consequentemente, na maioria consta o
termo “com”, e se nisto prevalecer a voz da maioria, então o argumento aqui enfocado cai por
terra.
Quanto à questão de ministério semelhante, é apenas uma tentativa inepta para que
não fique evidenciada a ideia da reencarnação, uma vez que não é isso o que consta da Bíblia
e nem mesmo poder-se-ia interpretar a passagem dessa maneira, uma vez que Jesus não
deixou dúvidas ao dizer que “João é Elias que devia vir”. Se a intenção da profecia fosse
mesmo indicar um “profeta semelhante”, bastaria a Malaquias usar a mesma expressão
empregada em Dt 18,18, onde se diz: “Suscitarei um profeta semelhante a ti”.
Por outro lado, se, às vezes, argumentam a não existência da reencarnação, pois essa
palavra não consta da Bíblia, pelo mesmo motivo podemos aplicar à palavra “ministério”, que
se usou na frase: “A Bíblia fala que João Batista teve um ministério parecido com o de Elias”.
Ademais os que usam desse argumento e acreditam na Trindade, apenas provam falta de
coerência ou, quiçá, excesso de esperteza em utilizar apenas de passagens que lhes convém.
Vejamos agora a mencionada história de Elias e Eliseu:
2Rs 2,9-15: “Depois que passaram o rio, Elias disse a Eliseu: ‘Peça o que você quiser,
antes que eu seja arrebatado da sua presença’. Eliseu pediu: ‘Deixe-me como herança
dupla porção do seu espírito’. Elias disse: ‘Você está pedindo uma coisa difícil. Em todo
caso, se você me enxergar quando eu for arrebatado da sua presença, isso que pede
lhe será concedido; caso contrário, não será concedido’. E, enquanto estavam andando
e conversando, apareceu um carro de fogo com cavalos de fogo, que os separou um do
outro. E Elias subiu ao céu no redemoinho. Eliseu olhava e gritava: ‘Meu pai! Meu pai!
Carro e cavalaria de Israel!’ Depois não o viu mais. Então Eliseu pegou sua própria
túnica e a rasgou em duas partes. Pegou o manto de Elias, que havia caído, e voltou
para a margem do Jordão. Segurando o manto de Elias, bateu com ele na água,
dizendo: ‘Onde está Javé, o Deus de Elias?’ Bateu na água, que se dividiu em duas
partes. E ele atravessou o rio. Ao vê-lo, os irmãos profetas, que estavam a certa
3
Ver relação nas referências bibliográficas
58
distância, comentaram: ‘O espírito de Elias repousa sobre Eliseu’. Então foram ao
seu encontro, se prostraram diante dele”.
Para o espírito de Elias repousar sobre Eliseu, há de ter havido a morte do tesbita. De
igual modo vemos, nos dias de hoje, ocorrendo com inúmeras pessoas, esse fenômeno de
espírito repousar, o que para nós não é outra coisa senão a influência de um espírito
desencarnado sobre um encarnado. Mas exigir que àquela época entendessem dessa forma é
pedir muito, com certeza.
A relação das semelhanças, entre os dois profetas, está mais para se confirmar que
João Batista é mesmo Elias do que para qualquer outra coisa.
Por outro lado, a profecia de Malaquias é clara quanto à promessa do envio de Elias,
pois o cita nominalmente, e não alguém semelhante a ele como mostramos, e nem Jesus disse
que João era semelhante a Elias, como querem os dogmáticos, justamente para fugir
sorrateiramente da ideia da reencarnação.
4 - João Batista disse claramente que não era Elias.
Em alguns passos parece haver uma
combatemos tal ideia com a passagem bíblica:
és, pois? És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu
1,21). Assim, é o próprio João Batista que nega
ideia de reencarnação, mas
“Então, lhe perguntaram: Quem
o profeta? Respondeu: Não”. (Jo
tal fato.
O que ocorre é que, quando o espírito passa a habitar um corpo físico, ele perde
temporariamente a lembrança de suas outras vidas; daí ser perfeitamente normal a resposta
negativa de João Batista à pergunta se ele era Elias. Por outro lado, aí ficaremos num dilema,
pois em quem devemos acreditar: em Jesus que afirmou categoricamente que João Batista era
Elias; ou no próprio João que disse não ser? De nossa parte estamos com Jesus, e pronto!
Mas a lembrança de outras vidas pode surgir de uma hora para outra, o que,
facilmente, poder-se-á confirmar lendo a obra do Dr. Ian Stevenson (1918-2007),
Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birth Marks and Birth Defects,
(Vol. I: Birthmarks, 1200 páginas e vol. II: Birth Defects and Other Anomalies, 1100 páginas)
e a sinopse desse livro, Where Reincarnation and Biology Intersects: A Synops. Nessa obra o
autor relata 225 casos de crianças que se lembraram de uma outra vida dos, nada menos,
2600 investigados por ele. A pesquisa do Dr. Stevenson, na opinião do pesquisador brasileiro,
Dr. Hernani de Guimarães Andrade (1913-2003):
Pessoalmente, consideramos essa obra do Dr. Stevenson como uma das mais
importantes e indiscutíveis evidências de apoio à ideia da reencarnação. É a
culminação das investigações acerca de casos de reencarnação, devido à qual
preconizamos vir a ocorrer dentro de poucos anos o total reconhecimento da
reencarnação como uma lei biológica da natureza. (ANDRADE, 2000, p.
74) (grifo do original).
Os que se apegam demais à negação, não se dão conta de que, se naquele tempo não
acreditassem que uma pessoa, que havia vivido, pudesse viver novamente num outro corpo,
não haveria sentido nessa pergunta feita a João Batista, fato que comprova que, àquela época,
se acreditava na reencarnação, um dos significados para a palavra ressurreição. E, para eles, o
fato de Elias ter que voltar, inclusive num novo corpo, incontestavelmente era coisa pacífica no
seio da população; isso porque, se assim não fosse, não teria havido razão para terem sido
enviados sacerdotes e levitas para fazerem esse tipo de pergunta; veja o leitor que o povo
tinha plena consciência da reencarnação, pois havia a certeza de que ele, João Batista, era a
reencarnação de outro profeta, embora não tivessem a certeza de qual dos profetas ele era a
reencarnação; daí a razão da pergunta, mandada a ele ser formulada: “Tu és Elias?”. (Jo
1,21).
Além disso, no Velho Testamento, temos um versículo que nos induz a concluir da
existência de nossas vidas passadas: Sb 8,19-20: “Eu era um jovem de boas qualidades e
tive a sorte de ter uma boa alma, ou melhor, sendo bom, vim a um corpo sem mancha”.
59
(Sb 8,19-20), quanto à lembrança iremos usar dos argumentos do amigo de Jó, que lhe disse:
“Somos de ontem, e nada sabemos” (Jó 8,9). E é óbvio que o contexto é outro, porém se
refere a um passado remoto. É com ele que se pode explicar o porquê de João Batista ter
negado ser Elias, pois não se lembrava de sua encarnação como o Tesbita. Entretanto, embora
ele não soubesse quem ele foi em encarnação anterior, tinha plena consciência da missão que
deveria cumprir (Jo, 1,23), ao afirmar que vinha realizar o que dissera Isaías (Is 40,3).
Se João Batista não for mesmo Elias, então os cristãos que assim acreditam deveriam
mudar de religião, já que é exatamente por esse motivo, ou seja, falta de cumprimento das
profecias, que, para os judeus, Jesus não é o Messias e, por conseguinte, o judaísmo é que
deveria ser a religião própria para abrigá-los. Já que, profeticamente, a vinda de Jesus teria
que ser precedida da vinda de Elias, para anunciar a vinda do Messias.
5 – A alegação de que Elias seja João Batista não procede, tanto pelo contexto das
Escrituras quanto pela pregação dele.
Quando o "Elias reencarnado" viu a Jesus, exclamou: “Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo”. Para ele, que viria restaurar todas as coisas,
é Jesus, e não nós através de sucessivas vidas, que pagamos o preço pelos
nossos pecados. A revelação completa que hoje está na Bíblia confere com o que
João Batista trouxe, hoje não precisamos mais oferecer cordeiros em expiação,
Cristo, o Cordeiro de Deus, hoje, é a nossa páscoa (1Cor 5,7). Como os
cordeiros do Velho Testamento expiavam os pecados?? Como eles deveriam
ser?? Pedro responde em sua carta: "Sabendo que não foi com coisas
corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de
viver, que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com precioso sangue,
como de um cordeiro sem defeito e sem mancha, o sangue de Cristo" (1Pe
18,19).
Apesar de João Batista ter dito “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo
1,29), o fato é que ele também disse que “Eu vos batizo com água, para arrependimento;
mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não
sou digno de levar”. (Mt 3,11). Portanto, em se considerando que o próprio João disse que
Jesus é mais poderoso que ele, não pode prevalecer sua opinião à de Jesus. Reputamos ao
Mestre a autoridade suprema para a qual devem convergir nossas atenções e prioridades.
Neste caso, como Jesus identifica, claramente e sem rodeios, a identidade espiritual de João
Batista, torna-se de importância secundária o que possa advir de seus discípulos, que venha a
contradizer a qualquer de seus ensinos, uma vez que: “Nenhum discípulo está acima do
mestre”. (Mt 10,24). Portanto, preferimos crer que a palavra final cabe a Jesus e não a
Pedro, Paulo, João Batista ou a qualquer outro, no sentido de João Batista ser mesmo Elias,
tanto pelo contexto das escrituras quanto pela pregação dele a seus discípulos, para os quais
ensinava claramente sobre os “mistérios do Reino de Deus”. Os mesmos que, por fim,
“compreenderam que Jesus lhes tinha falado a respeito de João Batista” (Mt 17,13).
Quanto à questão de que “o sangue de Jesus lavou nossos pecados”, trata-se de mais
uma opinião pessoal de autores bíblicos, contrária ao que Ele pregou. “A cada um segundo
suas obras” (Mt 16,27), a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do juízo final (Mt
25,31-46), são passagens que asseguram que, realmente, somos nós mesmos que nos
salvamos. Os discípulos apenas transferiam a Jesus o papel da vítima do holocausto das
práticas ritualísticas dos judeus, quando matavam um novilho, sem defeito, para a expiação
dos pecados do povo. Diremos como Paulo de Tarso: “se Jesus morreu pelos nossos pecados:
comamos e bebamos”, pois já estamos salvos. Entretanto, essa absurda ideia contém uma
contradição, uma vez que, pelo costume da época, os pecados perdoados eram os
anteriormente cometidos em relação ao momento do ritual. Não havia, portanto, nenhuma
relação para com os pecados futuros. Podemos confirmar isso em “... Sua morte aconteceu
para o resgate das transgressões cometidas no regime da primeira aliança; ...” (Hb 9,15) Por
conseguinte, a crer nessa expiação dos pecados por Jesus, haveremos de arrumar outro Cristo
para pagar pelos nossos, tomando-se como ponto de partida os ocorridos da sua morte até os
dias de hoje. Outra opção é, quem sabe, ficar aguardando a vinda de um próximo “cordeiro”?
E como fica o “não peques mais”? (Jo 5,14; 8,11).
60
6 – João não era Elias, mas “o” Elias, ou seja, alguém com as qualidades de Elias.
Ainda em nossos dias usamos esse estilo de expressão: "Nunca mais surgirá
um Rui Barbosa". "O Ronaldinho é um verdadeiro Pelé". São termos
comparativos. [Se acreditais na vinda de um Elias], "e, se quiserdes dar crédito,
ele é o Elias que havia de vir" (Mt 11.14).
Por suas mensagens vibrantes e seu corajoso desempenho diante de
situações difíceis, Elias tornou-se símbolo dos profetas. Moisés, por exemplo, era
símbolo da Lei (Lc 16.31). As profecias sobre a vinda de Elias não se
contradizem. Muito pelo contrário. Vejam: Malaquias 4.5: "Eis que eu vos envio
o profeta Elias, antes que venha o dia grande e terrível do Senhor; e converterei
o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais; para que eu não
venha e fira a terra com maldição". Lucas 1.15-17: "Porque será grande diante
do Senhor, e não beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do Espírito
Santo, já desde o ventre de sua mãe. E converterá muitos dos filhos de Israel
ao Senhor, seu Deus. E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para
converter o coração dos pais aos filhos e os rebeldes, à prudência dos justos,
com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto". Logo, as profecias da
vinda de Elias se cumpriram em João Batista. Portanto, Elias veio na pessoa de
João Batista. É esta a real interpretação de Mateus 11.14 e 17.10-13.
Os que assim argumentam se esquecem de mencionar que a frase "nunca mais surgirá
um Rui Barbosa" não é sinônima de "nunca mais surgirá o Rui Barbosa", da mesma forma que
correto é "Ronaldinho é um verdadeiro Pelé" e não "Ronaldinho é o verdadeiro Pelé". Por este
motivo não consideramos que seja de uma boa lógica concluir que a expressão "ele é o
Elias", seja o mesmo que dizer "ele é um Elias". Basta, para isso, observar atentamente
como Jesus se expressa, de modo a não deixar sobre isso a menor sombra de dúvida:
Mt 11,10: “É de João que a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro à
tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'“.
Mt 17,12: “Mas eu digo a vocês Elias já veio, e eles não o reconheceram”.
E, além disso, não adianta se apegar demais a esse pormenor, tendo em vista que a
expressão “é o Elias” (Mt 11,14) não consta de todas as traduções bíblicas como, por
exemplo: Bíblia Pastoral – Paulus e Escrituras Sagradas – Novo Mundo. Nas edições SBTB e
SBB já encontramos “é este o Elias”, e na Paulinas (1957, 1977 e 1980), na Bíblia Barsa,
Bíblia Anotada – Mundo Cristão e na Bíblia Shedd, já lemos “ele mesmo é o Elias”. Fica claro
que, na maioria delas, o entendimento é objetivo, quando se afirma, embora de maneira um
pouco diferente, que João Batistas é mesmo Elias, e não uma comparação, como querem os
antirreencarnacionistas.
Além das Bíblias que acabamos de citar, quanto ao fato de usarem o “ele mesmo é
Elias” (Mt 11,14), que insistentemente afirmamos ao longo deste estudo, ainda podemos
acrescentar a tradução de Louis-Isaac Le Maître de Sacy (1613-1684):
“Se quiserdes compreender o que vos digo, ele mesmo é o Elias que há de vir”.
Essa versão consta no Evangelho Segundo o Espiritismo (KARDEC, 2007c, p. 92), no
qual Kardec utilizou-se dos textos bíblicos da tradução francesa da Bíblia de Sacy (KARDEC,
2007c, p. 26).
Podemos ainda apresentar a tradução do professor Carlos Torres Pastorino (19101980), ex-sacerdote formado em Teologia e Filosofia, por um Seminário Católico em Roma,
catedrático em grego, hebraico e latim, em a Sabedoria do Evangelho, vol. 3, (1964c, p. 13),
que é a seguinte:
“E se quereis aceitar (isto), ele mesmo é Elias que estava destinado a vir”.
Pastorino, portanto, corrobora a tradução de Sacy, quanto ao uso do “ele mesmo”, que,
no texto bíblico, em se referindo a João, não deixa margem a mirabolantes exegese, para fugir
da realidade bíblica de que João Batista foi mesmo Elias reencarnado.
61
Tudo nos leva a crer que essa deve ser a tradução correta, que reflete o texto original
disponível, que foi mudado, justamente para escamotear a ideia da reencarnação, pois, com
ela, o fiel salva a si próprio; não precisa, via de consequência, de líder que venha abrir a
“porta do reino dos céus”, para que ele possa entrar. Essa simples suspeita tornou-se uma
convicção diante desta explicação:
A tradução do vers. 14 não coincide com as comuns. Mas o grego é
bem claro: kai (e) ei (se) thélete (quereis) decsásthai (aceitar, inf. pres. ) autós
(ele mesmo) estin (é) Hêlías (Elias) ho méllôn (part. presente de mellô,
destinado, "o que estava destinado") érchesthai (inf. pres.: a vir).
A Vulgata traduziu: "et si vultis recipere, ipse est Elias qui venturus est", em
que o particípio futuro na conjunção perifrástica dá o sentido de obrigação ou
destino do presente do particípio méllôn; acontece que o latim ligou num só
tempo de verbo (venturus est) o sentido dos dois verbos gregos (ho méllôn
érchesthai). Com essa tradução, porém, o sentido preciso do original
ficou algo "arranhado". Se a tradução fora literal, deveríamos ler, na Vulgata
(embora com um latim menos ortodoxo): "ipse est Elias debens venire", o que
corresponde exatamente à nossa tradução: "ele mesmo é Elias que
devia (estava destinado) a vir". Levados pela tradução da Vulgata, os
tradutores colocam o futuro do presente (que deverá vir), quando a ação é
nitidamente construída no futuro do pretérito. (PASTORINO, vol. 3, 1964c, p.
16) (grifo nosso).
A velha questão da tradução sempre se torna um problema para o entendimento do
texto bíblico, além de não termos certeza absoluta de que o que ali está escrito corresponde
de fato ao texto primitivo.
Por outro lado, colocar Elias como corajoso é, no mínimo, falta de conhecimento bíblico,
pois após ele degolar os profetas de Baal, foge, como se diz popularmente, com “o rabo entre
as pernas”, de Jezabel, mulher de Acab, sétimo rei de Israel (875-853), que promete matá-lo
por conta disso (1Rs 19,1-3). No máximo, no nosso entender, ele deveria ser considerado um
sanguinário covarde, face a sua atitude de matar e fugir.
Aliás, tomando das próprias palavras dos contraditores podemos dizer “Logo, as
profecias da vinda de Elias se cumpriram em João Batista. Portanto, Elias veio na pessoa de
João Batista”, uma vez que o espírito, que animava esses dois personagens, era o mesmo, ou
seja, João Batista era Elias em nova encarnação. Dessa forma a profecia de Malaquias, na qual
Deus prometeu enviar Elias, foi completamente cumprida. Aos que não acreditam nisso,
devem apresentar-nos uma boa desculpa para justificar que Deus não tenha enviado Elias
como prometeu, mas uma outra pessoa no lugar dele, tornando-O um enganador.
Há também algumas objeções genéricas que merecem ser comentadas:
1 - Os judeus não criam em reencarnação, e sim na ressurreição dos mortos (Mc
6,14-16 e Lc 9,7-8).
Será que é isso mesmo a verdade? Analisemos para constatar. Tomemos as passagens
citadas:
1ª) Mc 6,14-16: “O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome tinha-se tornado
famoso. Alguns diziam: ‘João Batista ressuscitou dos mortos. É por isso que os poderes
agem nesse homem’. Outros diziam: ‘É Elias’. Outros diziam ainda: ‘É um profeta como
os profetas antigos’. Ouvindo essas coisas, Herodes disse: ‘Ele é João Batista. Eu
mandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!’".
Interessante a argumentação de que Jesus fazia milagres pelos poderes de João Batista
que agia sobre Ele. Isso é ressurreição do corpo físico? Não! Mas, então, o que é? É o que
conhecemos por influência espiritual. Uma pessoa morre e, ressuscitada em espírito, passa a
influenciar uma pessoa encarnada. Portanto, a ideia de ressurreição, nesta passagem, nada
tem a ver com aquela ressurreição do final dos tempos, aceita pelos dogmáticos. Ressuscitar,
nesse passo, é voltar à condição espiritual.
62
2ª) Lc 9,7-9: “O governador Herodes ouviu falar de tudo o que estava acontecendo, e
ficou sem saber o que pensar, porque alguns diziam que João Batista tinha ressuscitado
dos mortos; outros diziam que Elias tinha aparecido; outros ainda, que um dos antigos
profetas tinha ressuscitado. Então Herodes disse: ‘Eu mandei degolar João. Quem é
esse homem, sobre quem ouço falar essas coisas?’ E queria ver Jesus”.
Nessa passagem é flagrante o uso da palavra ressurreição com o significado de
reencarnação. Se as pessoas acreditavam que Jesus poderia ser Elias, Jeremias (Mt 16,14) ou
um dos antigos profetas ressuscitado isso não é ressurreição, mas sim reencarnação, já que se
fosse Jesus um deles, estaria num novo corpo, o de Jesus, obviamente. Quem pensa assim,
acredita que alguém já morto poderia voltar num novo corpo como outra pessoa. É
exatamente isso o que definimos como reencarnação; portanto, provamos que na época se
acreditava em reencarnação, sim; só que para designá-la usavam a palavra ressurreição, que
também possuía, àquela época, outros significados.
Em uma certa oportunidade, Jesus pergunta aos discípulos: “Quem dizem os homens
que é o Filho do Homem?" Eles responderam: "Alguns dizem que é João Batista; outros, que é
Elias; outros ainda, que é Jeremias, ou algum dos profetas" (Mt 16,13-14). Isso confirma que
o povo acreditava na ressurreição em outro corpo, reencarnação para nós. Só que há algo
importante nessa passagem: é que Jesus não protestou contra essa crença popular, o que
significa que, tacitamente, a confirma. É como diz um velho provérbio: “quem cala consente”.
Alguém poderá perguntar: “Mas o que tem a ver ressurreição com reencarnação?” Ao
que responderemos: dependendo do contexto, muita coisa; aliás, são conceitos semelhantes.
Como?! Expliquemos, utilizando, para isso, esse passo citado (Mt 16,14) na versão de Lucas:
Lc 9,19: “Eles responderam: 'Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias;
mas outros acham que tu és algum dos antigos profetas que ressuscitou'".
Observar bem o que pensavam a respeito de quem era Jesus: “tu és algum dos antigos
profetas que ressuscitou”. O que se pode entender disso é que o verbo “ressuscitar”, utilizado
nessa frase, tem, indubitavelmente, a nítido significado de reencarnar. Se Jesus, segundo
suspeitavam, poderia ser qualquer um dos antigos profetas, isso só é possível acontecer pela
reencarnação.
Por outro lado, como, nessa oportunidade, Jesus não combateu a ideia de que alguém
poderia vir como uma outra pessoa, Ele, de certa maneira, sanciona a crença na reencarnação,
pois, se não fosse uma realidade, certamente, que ele teria negado de forma contundente, de
maneira a não deixar que as pessoas pensassem equivocadamente a respeito desse assunto.
Russell Norman Champlin (1933- ), renomado exegeta protestante, analisando a
passagem Mt 16,14, correlata a essa de Lucas (Lc 9,19), disse:
“Uns dizem: João Batista”. Mat. 14:1 demonstra que Herodes adotou essa
teoria: “Este é João Batista; ele ressuscitou dos mortos”. Provavelmente, então,
alguns dos herodianos também pensavam assim. Essa ideia circulava entre o
povo. Dificilmente podemos crer que muitos pensavam que João Batista
ressuscitara dos mortos, porque a maioria sabia que Jesus e João foram
contemporâneos. Tal teoria, portanto, reflete a doutrina da transmigração
da alma. É óbvio que essa crença exercia influência nas escolas dos
fariseus, e, ainda que nunca tivesse sido totalmente aceita por todo o povo,
muitos indivíduos (provavelmente a maioria) aceitavam-na como
verdadeira. Conforme tais ideias se tinham desenvolvido nas escolas dos
fariseus, dizia-se que ainda viviam as almas dos grandes profetas, e que em
tempo oportuno, em momentos de grande necessidade, como alguma crise
nacional, etc., tais almas poderiam tomar corpo novamente. No caso de João
Batista, não podemos afirmar que essa crença refletisse a ideia da
“reencarnação”, mas deve ser interpretada como “transmigração” ou
“possessão”. Porém, uma vez admitida a ideia que Jesus era Elias,
Jeremias, ou outro personagem do passado, então se pode afirmar que
essa crença era idêntica à “reencarnação”. O termo “transmigração” é
usado por muitas vezes como sinônimo de “reencarnação”. A identificação
de Jesus com João Batista, pelo menos, poderia preservar a identificação de
Jesus com a esperança messiânica, porque era crença geral, entre o povo,
63
que João era Elias reencarnado, e Elias seria o precursor do Messias. Mas
pode-se afirmar, à base dessa ideia, que tais pessoas não aceitavam que Jesus
fosse o Messias. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 443) (grifo nosso).
Esta aí uma prova de que os judeus acreditavam na reencarnação, que, para eles,
consistia em ressuscitar em outro corpo.
Mas, ainda vamos trazer outra fonte para comprovar essa questão. Nós buscaremos
esta informação no historiador daquela época chamado Flávio Josefo, que viveu entre 37 a 103
d.C. Suas obras históricas são: “Antiguidades Judaicas”, “Guerra dos Judeus” e “Resposta de
Flávio Josefo a Ápio”, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.
Josefo, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:
[...] Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um outro
mundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas ou
virtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida e que
outras voltam a esta. [...]” (JOSEFO, 2003, p. 416).
E, quando alguns soldados, derrotados na guerra contra os romanos, pensavam em
suicidarem-se, alerta-os dizendo:
[...] Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade daqueles,
que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas mãos, a vida,
que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas almas voam puras
para o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr dos séculos,
animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as almas dos
ímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são precipitados nas
trevas do inferno; [...] (JOSEFO, 2003, p. 600) (grifo nosso)
Assim, podemos dizer que os fariseus, grupo religioso que existia à época de Jesus,
acreditavam numa ressurreição em outro corpo. Ora, isso não é nada mais nada menos do que
aquilo que entendemos por reencarnação.
Esse argumento de que os judeus não acreditavam na reencarnação, é, quase sempre,
utilizado pelos fundamentalistas, porém, não contam a história toda. Vários autores afirmam
que acreditavam sim, como, por exemplo, Severino Celestino da Silva (1949- ), em Analisando
as Traduções Bíblicas, onde apresenta, para comprovação, esta frase do Rabino Arieh Karplan
(1934-1983): “Não é possível entender a Cabalá sem acreditar na eternidade da alma e suas
reencarnações” (SILVA, 2001, p. 158).
Mais a frente, Celestino cita a opinião de uma outra pessoa:
Sobre a Reencarnação, apresentamos, aqui, para ilustrar, o depoimento do
Rabino Shamai Ende, colaborador da Revista Judaica “Chabad News”,
publicação de Dez a Fev 1998. Vejamos o texto na íntegra: “O conceito de
Guilgul (Reencarnação) é originado no judaísmo, sendo que uma alma
deve voltar várias vezes até cumprir todas as mitsvot(1) da Torá. Além
disso, cada alma tem uma missão específica. Caso não tenha cumprido a
sua, a alma deve retornar a este mundo para preencher tal lacuna.
Somente pessoas especiais sabem exatamente qual é sua missão de
vida. [...]”.
______
(1) Mitsvot – plural de mitsvá que significa mandamento ou prática de boas obras –
caridade.
(SILVA, 2001, p. 161) (grifo do original).
O Rabino Philip S. Berg (1929- ), em Reencarnação as Rodas da Alma, afirma que:
A palavra hebraica para reencarnação é Guilgul Neshamot, que literalmente
quer dizer ‘roda da alma’. É para esta vasta roda metafísica, com sua coroa
64
constelada de almas, como estrelas nas bordas de uma galáxia, que devemos
dirigir nosso olhar, se desejamos ver além da aparência da inocência punida e da
maldade recompensada. Guilgul Neshamot é uma roda em constante
movimento e, ao girar, as almas vêm e vão diversas vezes, num ciclo de
nascimento, evolução e morte e novo nascimento. A mesma evolução
ocorre com o corpo no decorrer de uma única vida. Ocorre o nascimento, o
crescimento das células, a paternidade e a morte – novos corpos produzidos
pelos antigos, dando assim continuidade à forma física. É sempre um pai que
concede sua semente para que haja continuidade, num processo sem fim.
(BERG, 1998, p. 17-18) (grifo nosso).
Berg, quando desenvolve o tema dentro da ótica cabalista, diz a certa altura:
Entre todos os que aceitam a doutrina da reencarnação, talvez os
cabalistas sejam os únicos que acreditam que uma alma pode retornar num
nível inferior daquele que deixou em uma vida anterior. Efetivamente, se o peso
do tikun (correção) for suficientemente pesado, uma alma humana poderá se
encontrar reencarnada no corpo de um animal, de uma planta ou até mesmo de
uma pedra. (BERG, 1998, p. 29) (grifo nosso)
O conceito Espírita difere sobremaneira, porquanto não admitimos retrocesso, ou seja,
uma alma humana não reencarna nunca no corpo de um animal.
“A Cabala é o significado mais profundo e oculto da Torá, ou Bíblia”, diz Berg, o que
confirma que é um conhecimento do judaísmo místico, segundo suas próprias palavras.
2 - Fica claro que Jesus nunca ensinou a reencarnação.
Dizer que Jesus nunca ensinou a reencarnação é forçar a barra, ignorando que ele não
disse, em momento algum, que estavam em erro os que o supunham ser Elias, Jeremias, ou
algum dos antigos profetas. É recusar a ver o que disse a Nicodemos “é necessário nascer de
novo” (Jo 3,3). Certo é que em algumas Bíblias não é dito “nascer de novo”, mas “nascer do
alto”. Entretanto, podemos ponderar que a tradução da palavra grega anóthem, segundo
alguns estudiosos, tanto pode ser uma quanto a outra; daí, para não realçar a ideia da
reencarnação, foi melhor colocar aquela que não levasse as pessoas a entenderem como
reencarnação. Mas, pela dúvida de Nicodemos, fica claro que o sentido era nascer de novo
mesmo: “Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho? Poderá entrar outra vez
no ventre de sua mãe e nascer?” (Jo 3,4). Na sequência, Jesus não nega que seja sobre isso
que está dizendo, mas reforça com outras palavras: “Eu garanto a você: ninguém pode entrar
no reino de Deus, se não nascer da água e do Espírito” (Jo 3,5), donde devemos tomar a água
como símbolo da origem da matéria ou, como entendem alguns, uma analogia ao líquido
amniótico.
Por outro lado, mesmo que Jesus não a tivesse ensinado, isso não significa que ela não
exista, pois, convém lembrar que Ele disse: “Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora
vocês não seriam capazes de suportar” (Jo 16,12).
3 - A Bíblia combate tal ensinamento
Curioso é que os contrários não se cansam de nos afirmar que a Bíblia não fala, em
momento algum, em reencarnação; mas, quando o assunto é combatê-la, aí sim, nela se diz
algo. Parece brincadeira! Só que, quando apresentam as passagens para comprovar o que
alegam, verificamos que é pura interpretação equivocada, já que sempre as usam fora do seu
contexto. Vejamos algumas, normalmente citadas.
Hb 9,27: “[...] aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois disto o
Juízo”.
Essa é uma das mais interessantes, já que nem mesmo se sabe quem é o autor; daí é
singular que usem um autor completamente desconhecido para contestar o que Jesus afirmou:
“João é Elias que devia vir” (Mt 11,14). Poderia ser um argumento forte contra a reencarnação
se o autor tivesse dito: “aos homens está ordenado viverem uma só vez”.
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Lázaro, o filho da viúva de Naim e a filha de Jairo, entre outros que ressuscitaram,
morreram duas vezes, provando que, em se acreditando nisso, a “ordem” contida na
passagem é inconsistente. Mas, de qualquer forma, esse autor não está completamente
errado, pois fisicamente em cada vida só morremos uma vez mesmo e em definitivo, por sinal.
Ainda em relação a essa passagem: até o presente ninguém conseguiu nos esclarecer
se haverá dois julgamentos ou não. Se “depois disto o Juízo”, e em algumas Bíblias, está “logo
depois”, qual será a utilidade de mais um juízo no final dos tempos? Quem for condenado no
primeiro, poderá se salvar no segundo? Mas, se ficarmos apenas no que se diz nessa frase,
então ninguém ficará esperando a ressurreição no último dia para ser julgado.
4 – O homem não pode se salvar por si mesmo
“A Palavra de Deus, nos diz que é em Jesus que o homem consegue a
expiação dos seus pecados (Jo 8,24; 1Jo 1,7-9). O homem só é salvo pela graça
de Deus, sem nenhum esforço meritório (Ef 2,8-9; At 4,12; Rm 4,4-5)”.
Se isso for verdadeiro então o “Sede perfeitos como é perfeito o vosso pai celestial” (Mt
5,48) torna-se um ensinamento inoperante que Jesus nos passou, pois, certamente, numa
vida só, espírito algum conseguirá ser perfeito como o Pai o é. Perfeito no passo,
provavelmente tenha o mesmo significado de “[...] assim como é santo o Deus que os
chamou, também vocês tornem-se santos em todo o comportamento, porque a Escritura diz:
'sejam santos, porque eu sou santo'” (1Pe 1,16) (ver também Lv 11,45; 19,2; 20,7-8). Mas
ninguém disse que não conseguimos a salvação a não ser por Jesus; entretanto, ela não será
pela graça e nem será pelo seu sangue derramado na cruz; porém unicamente seguindo os
seus ensinamentos: “É pelo evangelho que vocês serão salvos” (1Cor 15,2) ou “Em Cristo,
também vocês ouviram a Palavra da verdade, o Evangelho que os salva” (Ef 1,13).
Certamente que, não fosse a graça de Deus em nos dar outra oportunidade, estaríamos
fritos; portanto, é pela graça de Deus mesmo que somos salvos. Entretanto, não é salvação
“de graça” como muitos pensam, pois haverá de ser “segundo a suas obras” (Mt 16,27), a
crermos no que Jesus disse.
Por outro lado, se a nossa salvação não estivesse em nossas mãos, então, Deus,
certamente, salvaria a todos, já que isso só dependeria da vontade dele.
Uma crença que se opõe à reencarnação é a do inferno eterno; mas não há como
explicá-lo diante disso: “O Senhor é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno.
Não repreende perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira. Não nos trata
segundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniquidades” (Sl
103,8-10).
Uma coisa que ainda estamos esperando é alguém nos provar que Deus tenha criado o
inferno, lugar destinado ao suplício eterno dos contraventores de Suas leis. Que nos mostrem
que a pena para os que não cumprem os Dez Mandamentos seja ir para o inferno, já que é
nesse momento que Deus deveria tê-lo, certamente, criado.
5 - A proposta de uma vida feliz através da reencarnação não é atestada pela Bíblia.
E nem poderia ser de outra forma, já que “Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas
agora vocês não seriam capazes de suportar” (Jo 16,12). Como, naquela época, não tinham
uma noção clara quanto a isso, não adiantaria explicar o que não eram capazes de entender.
O que assegura uma vida feliz é a vivência do Evangelho em toda a sua plenitude, e a
reencarnação é a oportunidade oferecida para todos aqueles que viveram e morreram, sem
haverem tido a chance de ouvir o Evangelho. A reencarnação pode até não garantir uma vida
feliz, mas garante a oportunidade de vivê-la. Em contrapartida, nossos críticos evitam dizer
que a proposta contrária, a de vida única, não dá essa mesma garantia para todos. Aliás, nem
mesmo os que se acham merecedores de uma vida futura feliz, apenas por pregarem o
Evangelho, sem o praticar, têm essa garantia.
Procuramos desenvolver esse estudo de forma a provar que essa questão de João
Batista ser Elias é muito clara no Evangelho; tão clara como a luz do Sol ao meio-dia, num
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“céu de brigadeiro”. Entretanto, percebemos que por interesses, que não nos cabe aqui citálos, as lideranças religiosas procuram esconder isso de seus fiéis, mantendo-os na ignorância.
Qualquer pessoa de bom senso, ou que não se encontra atrelada a dogmas, verá que isso é
ponto irrefutável. Só não vê quem não quer. Finalizando, repetimos essas palavras de Jesus:
“Quem tem ouvidos, ouça” (Mt 11,15).
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Eucaristia: Jesus a instituiu?
Para justificar a eucaristia pegam o momento em que Jesus, ceando com os seus
apóstolos, distribui o pão e o vinho. Fato acontecido, segundo alguns, na sexta-feira anterior à
da sua crucificação.
Vamos iniciar nossa análise comparando as passagens bíblicas que narram a ocasião
considerada como sendo a instituição da eucaristia para, com isso, termos uma visão do
assunto.
Mt 26,26-29: Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, o
partiu, distribuiu aos discípulos, e disse: "Tomem e comam, isto é o meu corpo." Em
seguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: "Bebam dele todos, pois
isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos,
para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não beberei desse fruto
da videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino do meu Pai."
Mc 14,22-25: Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,
o partiu, distribuiu a eles, e disse: "Tomem, isto é o meu corpo." Em seguida, tomou
um cálice, agradeceu e deu a eles. E todos eles beberam. E Jesus lhes disse: "Isto é o
meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos. Eu garanto
a vocês: nunca mais beberei do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo
no Reino de Deus."
Lc 22,14-20: Quando chegou a hora, Jesus se pôs à mesa com os apóstolos. E disse:
"Desejei muito comer com vocês esta ceia pascal, antes de sofrer. Pois eu lhes digo:
nunca mais a comerei, até que ela se realize no Reino de Deus." Então Jesus pegou o
cálice, agradeceu a Deus, e disse: "Tomem isto, e repartam entre vocês; pois eu lhes
digo que nunca mais beberei do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus." A
seguir, Jesus tomou um pão, agradeceu a Deus, o partiu e distribuiu a eles, dizendo:
"Isto é o meu corpo, que é dado por vocês. Façam isto em memória de mim."
Depois da ceia, Jesus fez o mesmo com o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliança
do meu sangue, que é derramado por vocês”.
Fato curioso é que João não fala absolutamente nada sobre essa distribuição de pão e
vinho, considerando que ele também encontrava-se presente no evento; inclusive, se foi ele o
discípulo a quem Jesus amava, certamente estaria a seu lado, pois é ele quem descreve com
maior número de pormenores tal acontecimento.
Se compararmos Mateus e Marcos, cujas narrativas são bem semelhantes, veremos
que, no primeiro, consta um acréscimo da expressão “para remissão dos pecados”, o que
poderá ser muito bem uma interpolação para justificar a ideia do sangue com poder para remir
os pecados, embora Jesus tenha dito “a cada um segundo as suas obras” (Mt 16,27).
Interessante é que nenhum dos dois evangelistas falou em “façam isto em memória de mim”,
expressão essa só escrita em Lucas. Aí é a questão de se perguntar: qual deles falou a
verdade? Logo, devemos entender o ato de comer e beber constante dessa passagem como
uma metáfora, sob pena de se estar aceitando a pregação de canibalismo. Se na eucaristia
está presente o corpo e o sangue de Jesus, não há alternativa a não ser entender tal prática
como um ato, mesmo que simbólico, de canibalismo; não é mesmo?
Mas o que devemos fazer, isto sim, é sair do nosso egoísmo para distribuir com os
necessitados o pão nosso de cada dia. Entre fazer isso e comer o corpo e beber do sangue de
Cristo, qual dos dois entendimentos está seguindo a orientação de “amar ao próximo como a si
mesmo”?
Por outro lado, é necessário decidir qual das três situações devemos aceitar, no que se
refere à nossa salvação, já que, simultaneamente, pregam estas três hipóteses...:
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a) que basta somente receber o perdão de Deus;
b) que já fomos perdoados pelo derramamento do sangue de Jesus; ou
c) que seremos salvos pela simples condição de crer e de ser batizado (Mc 16,16).
Vejamos o que Geza Vermes (1924- ) nos mostra, analisando essas palavras ditas por
Jesus durante a ceia:
Quatro relatos da Última Ceia sobreviveram no Novo Testamento. Eles
concordam entre si sobre vários pontos essenciais, mas também ostentam
variações substanciais. Também é notável que o Evangelho de João não
contenha qualquer relato da ceia de Páscoa compartilhada por Jesus e seus
discípulos. Isto se deve sem dúvida ao fato de a prisão e crucificação de Jesus
terem acontecido, segundo o Quarto Evangelho, um dia antes da festa, não
podendo consequentemente ser questão de qualquer participação de Jesus
numa ceia real de Páscoa. João especifica que os dignitários que entregaram
Jesus a Pilatos recusaram-se a entrar em seu palácio, no pretório, a fim de
permanecerem ritualmente puros “e poder comer a Páscoa” (ver João 18,28).
Há um consenso geral entre intérpretes do Novo Testamento de que a
narrativa da Última Ceia, com a sua exiguidade de detalhes concretos,
foi escrita acima de tudo para registrar o que desde o princípio a igreja
primitiva compreendeu como a instituição de um ritual religioso
significativo, a Eucaristia. Queira ou não, essa visão eclesial afeta
retrospectivamente o significado das palavras que presumidamente teriam vindo
dos lábios de Jesus. (VERMES, 2006a, p. 344-345) (grifo nosso).
O teólogo John Dominic Crossan (1934-), co-fundador do The Seminar Jesus, citado por
José Pinheiro de Souza (1938-), parece-nos ainda mais enfático, conforme se pode ver nestes
dois parágrafos:
Por conseguinte, a Ceia Eucarística não pode ter sido instituída pelo
Jesus Histórico. O renomado teólogo e ex-padre católico John Dominic
Crossan, em seu livro O Jesus Histórico, argumenta que a Ceia Eucarística,
interpretada literalmente, não é originária de Jesus histórico (cf. CROSSAN,
1994, p. 398-399).
Mais precisamente, ele mostra que a Ceia Eucarística, como referida num dos
livros mais antigos do cristianismo, o chamado Didaqué (ou “Instrução dos Doze
Apóstolos”), escrito por volta do final do Século I de nossa era (mas descoberto
somente no ano de 1883), nada tem a ver com os acréscimos posteriores
católicos a respeito da Ceia Eucarística, supostamente instituída por Jesus, e
sobre o suposto milagre da “transubstanciação”. Na Ceia Eucarística descrita no
livo Didaqué (capítulos 9 e 10), “não há qualquer menção de uma refeição
feita para comemorar a Páscoa, de uma última ceia, nem de alguma
conexão com a morte de Jesus ou sua celebração”. (CROSSAN, 1994, p.
400).
(SOUZA, 2011, p. 139) (grifo do original).
Na passagem de Mateus, em nota de rodapé, os tradutores da Bíblia de Jerusalém nos
explicam: “Estamos no meio da ceia pascal. É em gestos precisos e solenes do ritual judaico
(ações de graças a Iahweh pronunciadas sobre o pão e sobre o vinho) que Jesus enxerta os
ritos sacramentais do novo culto que instaura” (p. 1751). Apenas uma perguntinha: ou
enxertaram usando o nome de Jesus? Além do mais, isso se deu no primeiro dia dos pães
ázimos (Mt 26,17); portanto, é mesmo um ritual judaico realizado durante a celebração da
Páscoa. Essa ceia, com a distribuição de pão e vinho, fazia mesmo parte dos rituais judeus,
conforme explica Ernest Renan (1823-1892):
[...] Naquela refeição, assim como em muitas outras (48). Jesus praticou seu
rito misterioso da divisão do pão. Como se acreditou, desde os primeiros anos
da Igreja, que a refeição em questão tivesse acontecido no dia de Páscoa e
tivesse sido o banquete pascal, naturalmente veio a ideia de que a instituição
eucarística se fizera naquele momento supremo. Partindo da hipótese de que
Jesus sabia antecipadamente com precisão quando morreria, os discípulos
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deveriam ter sido levados a supor que ele reservara para aquelas últimas horas
uma enorme quantidade de atos importantes. Como, aliás, uma das ideias
fundamentais dos primeiros cristãos era a de que a morte de Jesus fora um
sacrifício, substituindo todos os da antiga Lei, a Ceia tornou-se o sacrifício por
excelência, o ato constitutivo da nova aliança, o sinal do sangue derramado para
a salvação de todos (49). O pão e o vinho, relacionados à própria morte, foram,
dessa forma, a imagem do Novo Testamento, que Jesus selara com seus
sofrimentos, a comemoração do sacrifício do Cristo até a sua vinda (50).
Muito cedo esse mistério se fixou num pequeno relato sacramental, que
possuímos em quatro versões (51) muito parecidas entre si. O quarto
evangelista, tão preocupado com ideias eucarísticas (52), que descreve
a última ceia com tanta prolixidade, que liga a ela tantas circunstâncias
e discursos(53), não conhece esse relato. Isso prova que não
considerava a instituição da Eucaristia como uma particularidade da
Ceia. Para o quarto evangelista, o rito da Ceia é a lavagem dos pés.
______
(48)
(49)
(50)
(51)
(52)
(53)
Luc., XXIV, 30-31, 35, representa a divisão do pão como um hábito de Jesus.
Luc., XXII, 20.
I Cor., XI, 26.
Mat. XXVI, 26-28; Marc., XI, 22-24; Luc., XXII,19-21; I Cor., XI, 23-25.
Cap. VI.
Cap. XIII-XVII.
(RENAN, 2004, p. 360-361) (Grifo nosso).
Seria interessante que aqui fôssemos ver essa passagem bíblica, citada por Renan, a
primeira da lista acima, na qual ele disse ser, a divisão do pão, um hábito de Jesus, que, para
um melhor entendimento, iremos começá-la num versículo anterior ao citado; então, leiamola:
Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais
adiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: "Fica conosco, pois já é tarde e a
noite vem chegando." Então Jesus entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa com
os dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dos
discípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente
deles. Então um disse ao outro: "Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos
falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?" Na mesma hora, eles se
levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os onze, reunidos com os
outros. E estes confirmaram: "Realmente, o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão!"
Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham
reconhecido Jesus quando ele partiu o pão. (Lc 24, 28-35).
Jesus, depois de ressuscitado, foi reconhecido pelos dois discípulos, que estavam se
dirigindo a Emaús, exatamente pelo ato de partir o pão. Dessa forma, a conclusão de Renan é
absolutamente correta, não sendo, portanto, o ritual de partir o pão e beber vinho a instituição
da eucaristia, rito sacramental praticado em determinadas correntes religiosas.
Estranhamos que tal fato ainda venha a acontecer, pois a nós, da forma que é
praticado, mais parece, voltamos a dizer, um ritual de canibalismo do que qualquer outra coisa.
Povos primitivos acreditavam que, ao se comer o corpo de um guerreiro que haviam matado, a
sua força e coragem, muito valorizadas por esses povos, passariam àquele que fizesse do
guerreiro vencido o seu “prato do dia”.
Qual será a razão para se justificar que os fiéis ainda “comam do corpo e bebam do
sangue” de Jesus, que creem presentes na hóstia, após ser consagrada pelo sacerdote? Para
nós é algo sem sentido, principalmente considerando que Jesus disse “não é o que entra pela
boca que torna o homem impuro” (Mt 15,11); da mesma forma podemos entender que o que
entra pela boca não torna o homem puro. Consequentemente podemos concluir que, mesmo
que se coma algo sagrado (hóstia), ninguém tornar-se-á um ser purificado por isso.
Pesquisando outras fontes sobre o assunto, encontramos o autor Bart D. Ehrman
(1955- ), considerado a maior autoridade sobre o Novo Testamento do mundo, dizendo:
[...] Em um de nossos mais antigos manuscritos gregos, assim como em
70
vários testemunhos latinos, temos:
E tomando o cálice, dando graças, ele disse: “Tomai-o, reparti-o entre vós,
pois eu vos digo que não beberei do fruto da vinha a partir de agora, até que
venha o reino de Deus”. E tomando o pão, dando graças, ele o partiu e o deu
a eles, dizendo: “Isto é o meu corpo... Mas vede que a mão daquele que me
trai está comigo nesta mesa” (Lucas 22,17-19).
Contudo, na maioria de nossos manuscritos, há um acréscimo ao texto,
que soará familiar a muitos leitores da Bíblia, visto que se assentou nas
traduções modernas. Ali, depois que Jesus diz: “Isto é meu corpo”, ele
continua dizendo as palavras: “'Que foi dado por vós; fazei isto em memória de
mim', e fez o mesmo com o cálice após a refeição, dizendo: 'Este cálice é a nova
aliança em meu sangue derramado por vós'”.
Estas são as palavras, muito familiares, da “instituição” da Ceia do Senhor,
registradas também sob uma forma muito similar na primeira carta de Paulo aos
Coríntios (1 Coríntios 11,23-25). A despeito do fato de serem tão
familiares, há boas razões para pensar que esses versículos não
estavam no original do Evangelho de Lucas, mas que foram
acrescentados para ressaltar que foram o corpo partido e o sangue
derramado de Jesus que trouxeram a salvação “para vós”. [...]
Além do mais, não se pode deixar de notar que os versículos, por mais
familiares que sejam, não representam a própria compreensão que
Lucas demonstra ter da morte de Jesus. É uma característica
surpreendentemente do retrato que Lucas faz da morte de Jesus – por mais
estranho que isso seja à primeira vista – que ele nunca, em nenhuma outra
passagem, indica que a morte em si seja o que traz a salvação do
pecado. Em nenhum outro lugar de toda a obra em dois volumes de Lucas
(Lucas e Atos dos Apóstolos), se diz que a morte de Jesus foi “por vós”. De fato,
nas duas ocasiões em que a fonte de Lucas (Marcos) indica que foi por meio da
morte de Jesus que veio a salvação (Marcos 10,45; 15,39), Lucas mudou a
disposição do texto (ou o eliminou). Em outros termos, Lucas tem uma
compreensão diferente da forma com que a morte de Jesus conduz à salvação,
diferente da de Marcos (da de Paulo e da de outros escritores cristãos antigos).
(EHRMAN, 2006, p. 175-176). (grifo nosso).
Assim, dentro da visão desse renomado autor, um dos textos a que se apegam para
justificar a eucaristia não é outra coisa senão uma adulteração dos originais bíblicos. E, pelo
visto, ele não está sozinho em sua tese. Vejamos também a opinião de David Flusser (19172000):
Jesus seguia a ordem essênia em suas refeições de festa e, em especial, na
última ceia, ou seguia a ordem não-sectária: vinho e pão? Segundo Mateus e
Marcos, Jesus primeiro abençoava o cálice e depois o pão, mas a situação em
Lucas é diferente. “Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os
apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta
páscoa, antes de meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até
que ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando um cálice, havendo dado
graças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois vos digo que de agora em diante
não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus. E,
tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é meu
corpo” (Lc 22:14-19). Aí termina o texto de Lucas, de acordo com o famoso
Codex Bezae, a antiga tradução latina, e dois antigos manuscritos siríacos.
Todos os leitores atentos reconhecerão com facilidade que o que se
segue em Lucas nos outros testemunhos é tirado de 1 Cor 11:23-26, de
modo que temos aqui a estranha situação de que no texto aceito aparecem dois
cálices, um no começo e o outro no final. Tanto a Versão Padrão Revista como a
Nova Bíblia Inglesa adotaram o ponto de vista correto, de que Lc 22:19b-20
não fazia parte do texto original de Lucas. Depois que Jesus disse do pão
partido ‘Isto é meu corpo” fazendo alusão a sua iminente morte violenta, ele
continuou e tornou-se mais explícito, dizendo: “Todavia a mão do traidor está
comigo à mesa” (Lc 22:21). (FLUSSER, 2000, p. 227) (grifo nosso).
Confirma-se, portanto, que o texto de Lucas (Lc 22,19b-20) foi um acréscimo posterior.
71
Geza Vermes, citado mais acima, nos informou que são registrados no Novo Testamento
quatro relatos da Última Ceia, já citamos e analisamos três deles - Mt 26,26-29; Mc 14,22-25
e Lc 22,14-20 -, falta-nos, portanto, o último, que será visto agora.
Apesar de aqui, neste estudo, aparecer cronologicamente posterior, na verdade, é o
primeiro relato bíblico, escrito por volta do ano 57 d.C., enquanto, que os outros foram
redigidos no período compreendido entre os anos de 65 a 80 d.C. (4) (BARRERA, 1999).
Corroborando essa questão da primazia do relato de Paulo, argumenta Geza Vermes:
Há uma terceira ocorrência que, embora considerada pertencente à tradição
oral pela maioria dos estudiosos, chama a minha atenção por sua peculiaridade.
Relaciona-se ao relato de Paulo sobre o estabelecimento da refeição
eucarística. Ele se queixou da divisão entre os membros da igreja de Corinto
ao compartilharem da ceia do Senhor. Em vez de partilharem uma refeição
comunal, os ricos e os pobres usavam provisões próprias, e o resultado
era que alguns ficavam com fome enquanto outros se embriagavam
(1Cor 11:20-21). Eles deveriam partilhar, ordenava Paulo, o mesmo pão,
simbolizando o corpo, e a mesma taça, simbolizando o sangue do Senhor,
fazendo-os contemplar a morte do Senhor até o seu retorno. A
eucaristia de Paulo é basicamente um lembrete alegórico ou místico do
fim violento de Jesus. Todavia, ele não se estende tão chocantemente quanto
João (ver acima p. 32, n. 7), e mesmo um pouco menos do que os Sinópticos
(Mt 26:26-9; Mc 14:22-5; Lc 22:15-20), na identificação real do pão e do vinho
com o corpo e o sangue a serem respectivamente, comido e bebido. Paulo tem
sua própria maneira de relatar o acontecimento tanto em 1Cor 11 quanto em
1Cor 10:16-7. Ele ensina que o propósito da união ou comunhão mística com o
corpo e o sangue de Cristo é aglutinar simbolicamente os muitos membros da
igreja num todo único.
É claro, é concebível que Paulo tenha reeditado a versão tradicional –
embora nem nos Evangelhos Sinópticos haja dois relatos iguais da
instituição da eucaristia – e que a última ceia de João nada tenha a ver
com a eucaristia. Mas parece-me que a fórmula introdutória de Paulo sugere
que ele quisesse dizer algo original, e não apenas reproduzir a história tão
amiúde repetida. Ao passar adiante a tradição da igreja e a ele transmitida por
agentes anônimos, como a morte, o sepultamento, a ressurreição e as aparições
posteriores de Jesus (1Cor 15:3-5), ele prefacia a sua declaração com
“Transmiti-vos... aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 15:3). No caso da
eucaristia, entretanto, está dito que a sua fonte é Jesus, implicando que lhe fora
diretamente revelada. “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos
transmiti” (1Cor 11:23). Se eu estiver certo na interpretação dessa passagem,
isto quereria dizer que a narrativa de Paulo separa-se da tradição
registrada nos Evangelhos Sinópticos por volta de quinze a quarenta e
cinco anos mais tarde, visto que a primeira Epístola aos coríntios foi
escrita em c. 55 d.C. Consequentemente, a redação de Paulo pode ter sido a
fonte primária da formulação no Novo Testamento do estabelecimento
da eucaristia. Em outras palavras, há grande chance de que a interpretação
eucarística da refeição comunal da igreja seja devida a Paulo, e que os editores
de Marcos, Mateus e especialmente de Lucas, que segue Paulo mais de perto, a
tenham introduzido nas suas respectivas narrativas nos Evangelhos Sinópticos.
(VERMES, 2006b, p. 86-87) (grifo nosso).
Vejamos o teor relativo ao trecho da primeira carta de Paulo aos coríntios:
1Cor 11,17-26: “Dito isso, não posso elogiar vocês, porque as suas assembleias, em
vez de ajudá-los a progredir, os prejudicam. Antes de tudo, ouço dizer que, quando
estão reunidos em assembleia, há divisões entre vocês. E, em parte, eu acredito nisso.
É preciso mesmo que haja divisões entre vocês, a fim de que se veja quem dentre
vocês resiste a essa prova. De fato, quando se reúnem, o que vocês fazem não é
comer a Ceia do Senhor, porque cada um se apressa em comer a sua própria
ceia. E, enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Será que vocês não têm suas
casas onde comer e beber? Ou desprezam a Igreja de Deus e querem envergonhar
aqueles que nada têm? O que vou dizer para vocês? Devo elogiá-los? Não! Nesse ponto
4
Marcos (anos 65-70), Mateus (anos 70/80) e Lucas (anos 70/80) (BARRERA, 1999, p. 287-289)
72
não os elogio. De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para
vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de
dar graças, o partiu e disse: 'Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto
em memória de mim'. Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice,
dizendo: 'Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que
vocês beberem dele, façam isso em memória de mim'. Portanto, todas as vezes
que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte
do Senhor, até que ele venha”.
Você, caro leitor, deve ter observado que Ehrman e Flusser fizeram menção a esse
passo, dando-o como sendo a origem do que consta em Lucas, exatamente, aquele que
recomenda “Façam isto em memória de mim”, destoando de Mateus e Marcos que nada falam
disso.
O versículo final esclarece o objetivo da ceia: “Portanto, todas as vezes que vocês
comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até
que ele venha”, o que difere, em muito, daquilo que Lucas disse.
Em James D. Tabor (1946- ), em A dinastia de Jesus: a história secreta das origens do
cristianismo, vamos encontrar outras explicações que são bem interessantes de se ver:
Ironicamente, os mais antigos relatos da última refeição na quarta-feira à
noite vêm de Paulo, e não de qualquer dos evangelhos. Em uma carta a seus
seguidores na cidade grega de Corinto, escrita por volta de 54 d.C., Paulo
passa adiante a tradição que dizia ter "recebido" de Jesus: "Jesus, na
noite em que foi traído, tomou um pão, e tendo dado graças, partiu-o e disse:
'Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isso em memória de mim: Do mesmo
modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: 'Este cálice é a nova Aliança no
meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim'” (1
Coríntios 11:23-25).
Essas palavras, tão familiares aos cristãos como parte da Eucaristia
da Missa, são repetidas com ligeiras variantes em Marcos, Mateus e
Lucas. Representam a síntese da fé cristã, o pilar do evangelho cristão: a
humanidade está salva dos pecados pelo sacrifício do corpo e do sangue de
Jesus. Qual é a probabilidade histórica de que essa tradição baseada
naquilo que Paulo disse ter "recebido" de Jesus represente o que Jesus
disse durante a última ceia? Tão surpreendente quanto possa parecer,
existem alguns problemas autênticos a considerar.
Em cada refeição judaica, o pão é partido, o vinho partilhado, e a
bênção dada - mas a ideia de comermos carne humana e bebermos
sangue, mesmo que simbolicamente, é de todo alheia ao judaísmo. A
Torá proíbe especificamente a ingestão de sangue, não só para os
israelitas, mas para todos. A Noé e a seus descendentes, como
representantes de toda a humanidade, já tinha sido proibido "ingerir sangue"
(Gênesis 9:4). Moisés tinha prevenido, "se qualquer homem da Casa de Israel
ou gentio, residente no meio deles, ingerir qualquer espécie de sangue, eu me
voltarei contra esse que ingere sangue e eliminá-lo-ei de seu povo" (Levítico
17:10). Em outra ocasião, Tiago, o irmão de Jesus, refere-se a isto como uma
"exigência”, para que os não judeus pudessem juntar-se à comunidade nazarena
- não ingerirão sangue (Atos 15:20). Essas restrições dizem respeito ao sangue
de animais. Ingerir carne e sangue humanos não era proibido, era
simplesmente inconcebível. Essa sensibilidade generalizada em relação à
mera ideia de "beber sangue" mostra a improbabilidade de Jesus ter usado tais
símbolos.
Como dissemos, a comunidade essênica, em Qumrã, descreveu, em um de
seus manuscritos, um futuro "banquete messiânico", no qual o Messias
Sacerdotal e o Messias da linhagem de Davi sentar-se-iam com os membros da
comunidade crente e abençoariam a sagrada refeição de pão e vinho como a
celebração do Reino de Deus. Teriam certamente ficado espantados com
qualquer simbolismo sugestivo de que o pão fosse a carne humana, e o vinho, o
sangue. (10) Tal ideia simplesmente não poderia ter partido de Jesus
como judeu.
Portanto, qual a origem dessa linguagem? Se aparece primeiramente com
Paulo, e ele não a recebeu de Jesus, então qual seria sua fonte? As maiores
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semelhanças encontram-se em alguns ritos mágicos greco-romanos.
Existe um papiro grego que registra um encantamento amoroso, no qual um
macho pronuncia certos feitiços sobre um cálice de vinho, que representa o
sangue que o deus egípcio Osíris tinha dado à sua consorte Ísis para que ela o
amasse. Quando sua amante bebe o vinho, ela simbolicamente se une a seu
amado pelo seu sangue. (11) Em outro texto, o vinho é transformado na carne
de Osíris. (12) Simbolicamente, comer a "carne" e beber o "vinho" era
parte de um rito mágico de união na cultura greco-romana.
Devemos considerar que Paulo cresceu imbuído da cultura grecoromana, na cidade de Tarso, na Ásia Menor, fora da terra de Israel. Ele nunca
conheceu ou falou com Jesus. A relação que ele pretendeu com Jesus é
"visionária”, e não com um Jesus de carne e osso, caminhando na terra.
Quando os Doze se reuniram para substituir Judas, depois da morte de Jesus,
colocaram como condição para fazer parte do grupo ter estado com Jesus desde
o tempo de João Batista até a crucificação (Atos 1:21-22). Ter visões e ouvir
vozes não eram qualificações suficientes para um apóstolo.
Em segundo lugar, e de forma ainda mais reveladora, o evangelho de João
narra os acontecimentos daquela última refeição na noite de quartafeira, mas nunca se refere às palavras de Jesus instituindo essa nova
cerimônia da Eucaristia. Se Jesus, na realidade, iniciou a prática de comer o
pão como sendo seu corpo, e beber o vinho como sendo seu sangue na sua
"última ceia" como poderia João tê-la omitido? O que João escreve, segundo
todas as indicações, é que Jesus sentou-se para participar de uma refeição
judaica comum. Após a ceia, ele se levantou, pegou uma bacia de água e um
pano, e começou a lavar os pés de seus discípulos, mostrando como o professor
e mestre deveria agir como criado - mesmo para seus discípulos. Jesus
começou, então, a descrever como iria ser traído, e João nos diz que Judas
abruptamente abandonou a ceia.
O evangelho de Marcos está muito próximo, em suas ideias
teológicas, àquele de Paulo. Parece possível que, em sua descrição da última
ceia, feita uma década depois da de Paulo, Marcos tenha inserido o
tradicional "coma o meu corpo" e "beba o meu sangue" em seu
evangelho, influenciado pelo que Paulo afirma ter recebido. Tanto Mateus
como Lucas baseiam inteiramente suas narrativas em Marcos, e Lucas é também
um convicto defensor de Paulo. Tudo parece levar a Paulo. Como veremos, não
há qualquer prova de que os primeiros seguidores judeus de Jesus,
conduzidos ao quartel-general em Jerusalém por Tiago, o irmão de
Jesus, tenham alguma vez praticado qualquer rito dessa natureza. Como
todos os judeus, eles santificavam o vinho e o pão como parte de uma refeição
sagrada, e provavelmente tinham presente a noite em que ele havia sido traído,
lembrando-se da última refeição com Jesus.
Na realidade, para resolver essa questão, precisamos de uma fonte
independente, cristã, que não tenha sido influenciada por Paulo, que possa
esclarecer a prática original dos seguidores de Jesus. Felizmente, em 1873, esse
texto foi encontrado em uma biblioteca em Constantinopla. É intitulado Didache,
e data do início do século II d.C. (13) Fora mencionado pelos primeiros autores
da igreja, mas desaparecera até ser descoberto acidentalmente por um
sacerdote grego, o Padre Bryennios, em um arquivo de manuscritos antigos.
Didache significa "Ensinamentos”, em grego, e seu título completo é "Os
Ensinamentos dos Doze Apóstolos”. Trata-se de um antigo "manual de
instruções", provavelmente escrito para ser utilizado por aspirantes ao batismo
cristão. Contém muitas instruções e exortações éticas, mas também capítulos
sobre o batismo e a Eucaristia - a sagrada refeição do pão e vinho. É aí que
entra a surpresa. Ele oferece as seguintes bênçãos para o pão e o vinho:
No que se refere à Eucaristia, darás graças da seguinte forma.
Em primeiro lugar, quanto ao cálice: "Damos-vos graças, Pai nosso, pela
santa vinha de Davi, vosso filho, que nos destes a conhecer através de Jesus,
vosso filho. Para vós a glória eterna". E quanto ao pão: Damos-vos graças,
Pai nosso, pela vida e sabedoria que nos comunicastes através de Jesus,
vosso filho. Para vós, glória eterna. (14)
Notem que não há menção ao vinho, representando o sangue, ou ao
pão, representando a carne. E, no entanto, é um registro da primeira refeição
da Eucaristia cristã! Este texto nos faz lembrar muito das descrições da sagrada
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refeição messiânica nos Manuscritos do Mar Morto. O que temos aqui é a
celebração messiânica de Jesus como o Messias da linhagem de Davi, e a vida e
a sabedoria que ele trouxe à comunidade. Evidentemente, essa comunidade de
seguidores de Jesus nada sabia da cerimônia proposta por Paulo. Se a prática de
Paulo viera realmente de Jesus, seguramente esse texto tê-la-ia incluído.
Existe mais um ponto importante a esse respeito. Na tradição judaica, é o
cálice de vinho que, primeiramente, é abençoado, depois o pão. Essa é a ordem
que encontramos na Didache. Mas no relato de Paulo da "Ceia do Senhor", Jesus
abençoa primeiro o pão, depois o cálice de vinho - justamente o oposto. Pode
parecer um detalhe insignificante até examinarmos o relato de Lucas sobre as
palavras de Jesus, durante a refeição. Embora ele siga basicamente a tradição
de Paulo, ao contrário deste, Lucas fala primeiro no cálice de vinho, depois no
pão e, em seguida, em outro cálice de vinho! O pão e o segundo cálice de vinho
ele interpreta como o "corpo" e o "sangue" de Jesus. Mas quanto ao primeiro
cálice - na ordem que se esperaria da tradição judaica - nada é dito que
represente "sangue". Ao contrário, Jesus diz, "Eu vos digo, doravante não
beberei da fruta da videira até a chegada do Reino de Deus" (Lucas 22:18). Essa
tradição do primeiro cálice, só encontrada em Lucas, é uma pista do que deveria
ter sido a tradição original antes de a versão Paulina ter sido inserida, agora
confirmada pela Didache.
Vista sob essa luz, essa última refeição tem sentido histórico. Jesus disse a
seus seguidores mais próximos, reunidos secretamente na Sala do Andar
Superior, que ele não partilharia com eles outra refeição até a chegada do Reino
de Deus. Ele sabe que Judas iniciará, naquela noite, os procedimentos que
culminarão com sua prisão. Suas esperança e prece são de que, da próxima vez
em que estiverem sentados juntos para comer, dando a tradicional bênção
judaica do vinho e do pão - o Reino de Deus já tenha chegado.
Uma vez que Jesus se reuniu só com seu Conselho dos Doze, nessa última
refeição privada, Tiago e os três outros irmãos de Jesus teriam estado
presentes. Isso foi confirmado em um texto perdido chamado Evangelho dos
Hebreus, que era usado por judeus-cristãos que rejeitavam os ensinamentos e a
autoridade de Paulo. Sobrevive apenas em algumas citações, preservadas por
autores cristãos, como Jerônimo. Uma das passagens nos diz que Tiago, o irmão
de Jesus, depois de ter bebido do cálice que Jesus fizera circular, afiançou que
também ele não comeria ou beberia até ver o Reino chegar." Portanto, temos
aqui a prova textual de uma tradição que recorda a presença de Tiago na última
refeição.
______
(10) Manuscritos do Mar Morto, The Messianic Rule (1QSa) 2.11-25.
(11) The Demotic Maginal Papyrus of London and Leiden 15.1-6, em The Greek Magical
Payri in Translation, incluing the Demotic Spells, ed. Hans Dieter Betz (Chicago: University
of Chicago Press, 1968).
(12) Papyri graecae magicae 7.643ff.
(13)Didache é promunciado como did-a-quei.
(14) Didache 9:1-3, em Bart Ehrman, trad. The Apostolic Fathers, Loeb Classical Library
24, vol. 1 (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2003), p. 431.
(TABOR, 2006, p. 215-219). (grifo nosso).
Realmente, a questão de comer carne e beber sangue para um judeu era algo
impensável; por isso, Jesus, que nasceu, viveu e morreu como judeu, jamais teria dito isso.
É bem possível que essa linguagem de Paulo, foi proposital para os gentios (=pagãos),
que, certamente, estavam acostumados esse tipo de coisa. Em José de Souza Pinheiro
(1938- ), encontramos apoio a essa hipótese:
Como nos esclarece o teólogo Franz Griese (cf. GRIESE, p. 174-175), no
tempo de Paulo, os pagãos e os judeus costumavam sacrificar animais
aos respectivos deuses. A carne desses animais sacrificados era consumida
nos mercados públicos, na qualidade de carne de Júpiter (o Senhor dos deuses),
carne de Minerva (deusa da sabedoria) etc., segundo as divindades a quem
haviam sido sacrificados os animais. Os consumidores escolhiam a carne
que mais lhes convinha, crendo que comendo essa carne recebiam uma
bênção especial da divindade respectiva, e até entrar em certa união
com ela, mediante aquela carne.
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É da maior importância ter presente essas crenças da antiguidade, para
compreender o sentido das palavras nos escritos daqueles que viviam naquela
época e estavam imbuídos de suas ideias.
Pois bem, o apóstolo Paulo, para induzir os novos cristãos, oriundos
dos povos pagãos, a não participarem dos sacrifícios pagãos e não
comerem a carne dos animais sacrificados aos ídolos, proíbe essa
prática, substituindo-a pela "Ceia do Senhor", dizendo que, como pela
carne dos ídolos, o homem participa dos "demônios", ou seja, dos "deuses
pagãos", do mesmo modo pelo consumo do pão e do vinho eucarísticos o cristão
participa do "Cristo da fé" (cf. GRIESE, p. 175).
Mas, como afirma Griese (ibid.), não há a menor dúvida de que Paulo não
acreditava numa participação literal da própria pessoa dos deuses pagãos,
mediante a carne dos ídolos e, portanto, tampouco na participação literal da
verdadeira pessoa de Cristo, mediante o pão e o vinho eucarísticos.
Os coríntios (como Paulo) também tinham um conceito simbólico muito
simples da eucaristia e, certamente, não tinham a convicção de que o pão seria
o verdadeiro corpo e o vinho o verdadeiro sangue de Cristo. Eles apenas
acreditavam que, ao comerem o pão e ao beberem o vinho, participavam do
Cristo da fé, do mesmo modo como os pagãos acreditavam que participavam
simbolicamente dos seus deuses comendo a carne dos animais sacrificados em
sua honra (cf. GRIESE, p. 179). (SOUZA, 2011, p. 134) (grifo nosso).
Recorreremos agora a Edward Carpenter (1844-1929) que nos traz algo bem curioso a
respeito da palavra eucaristia:
Eu já falei sobre várias das principais doutrinas do Cristianismo - ou
seja, do pecado, do sacrifício, da Eucaristia, do Salvador, do
Renascimento e da transfiguração - mostrando que eles não são únicos
em nossa religião, mas sim comuns a quase todas as religiões do mundo
antigo. A lista pode ser muito aumentada, mas não há necessidade de nos
atermos a um assunto que, de modo geral, já foi compreendido. Dedicarei, no
entanto, uma ou duas páginas para um exemplo, que eu julgo muito
interessante e cheio de sugestão profunda.
[...]
E, ainda, o fato extraordinário é que uma crença parecida existe em todas as
religiões antigas e pode nos remeter ao passado. A palavra hóstia, que é
usada na missa católica para representar o pão e o vinho no altar, símbolos do
corpo e do sangue de Cristo, vem do latim Hóstia, que no dicionário
significa "um animal morto em sacrifício, uma oferta para compensar
um pecado". Isso nos leva de volta ao estágio do totem, quando toda a tribo,
como eu já expliquei, coroava um touro, um urso ou um outro animal com flores
e prestavam-lhe honras com comida e adoração, sacrificavam a vítima para o
espírito do totem da tribo e o comiam em uma festa eucarística - e o curandeiro
ou sacerdote que dirigia o ritual vestia a pele desse animal como um sinal de
que ele representava o totem -, divindade, participando do sacrifício de "si
mesmo para si mesmo". Isso nos faz lembrar dos khonds em Bengal sacrificando
seus meriahs coroados e enfeitados como deuses e deusas; dos astecas fazendo
o mesmo; dos quetzalcoatl furando seus cotovelos e dedos para tirar sangue,
oferecido em seu próprio altar; ou de Odin sendo pendurado, por vontade
própria, em uma árvore. "Sei que fui pendurado em uma árvore que foi
balançada pelo vento por nove longas noites. Uma lança atravessou meu corpo,
fui levado a Odin. eu para mim”. E assim por diante. Os exemplos são infinitos.
"Sou a oblação". diz Krishna no Bhagavad Gita (22). "Sou o sacrifício, a oferenda
aos ancestrais". "No real conceito ortodoxo de sacrifício", diz Elie Reclus (23). "a
oferenda consagrada, seja ela um homem, uma mulher ou uma virgem, um
carneiro ou novilha, galo ou pombo, representa a divindade...
_______
(22) Cap. IX, V. 16.
(23) Primitive Folk, cap. VI.
(CARPENTER, 2008, p. 90-91) (grifo nosso).
Então, no fundo, temos que a eucaristia nada mais é que um ritual de origem pagã.
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É inacreditável que ainda se adotem, nos dias atuais, práticas religiosas tidas “como
bíblicas”, quando, na verdade, são, em sua esmagadora maioria, atos pagãos, para usar uma
expressão ao gosto dos teólogos. É o caso que estamos analisando, que é corroborado por
Holger Kersten (1952- ) e Elmar R. Gruber (1955- ), que, narrando o culto persa a Mitra,
dizem: “O serviço religioso semanal era realizado aos domingos, dia dedicado ao deus. A
cerimônia mais importante do culto era uma ceia que constava de vinho e pão – oferecido
na forma de hóstias consagradas que tinham o sinal da cruz”. (KERSTEN e GRUBER, p.
316). (grifo nosso).
Curiosa é a frase a seguir, atribuída a Mitra, que nos coloca diante de um fato, em
relação ao qual qualquer semelhança não é mera coincidência: "Aquele que não comer minha
carne e não beber meu sangue para ser um comigo, e eu um com ele, aquele não conhecerá a
salvação". (FREKE e GANDY, 2002, p. 11 e 52). Será que com a realização desses dois atos,
simultaneamente, não teremos exatamente o que se faz no ritual da santa missa?
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A conversa de Jesus com Nicodemos
O que temos observado, e que achamos muito interessante, é que as pessoas que não
acreditam na reencarnação fazem de tudo para retirar essa ideia da Bíblia, como se isso, por si
só, fosse resolver a questão. Estes indivíduos pressupõem, ingenuamente, que se a Bíblia não
disser nada sobre a reencarnação, esta não irá existir. Já falamos, e por várias vezes, que a
Bíblia não é um compêndio de Ciência e que, por isso, não podemos determinar a existência ou
não de qualquer uma das leis naturais com base em suas páginas. Para nós, a reencarnação
está no âmbito das leis naturais, não tendo nada a ver com religião, como a querem levar a
esse campo seus contraditores, para, daí, apresentarem a Bíblia como prova de sua não
existência. Nosso objetivo será exatamente o de provar o contrário.
Após retirarem, mudarem ou interpretarem de forma equivocada e tendenciosa
algumas passagens, arrematam categóricos: “não está lá”. Isso satisfaz, evidentemente, aos
que aceitam tudo sem questionar e aos que, subjugados pela liderança religiosa, não ousam
contestá-la, esquecendo-se de que somente “onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a
liberdade” (2Cor 3,17).
Vamos analisar uma das passagens, talvez a que causa maior polêmica entre os
antirreencarnacionistas de carteirinha, ou seja, os cristãos fundamentalistas, para extrair dela
o seu significado.
A passagem está em João capítulo 3, versículos de 1 a 12; leiamos:
1. Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um notável entre os
judeus. 2. à noite ele veio encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vens
da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus
não estiver com ele”. 3. Jesus lhe respondeu: "Em verdade, em verdade, te digo:
quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”. 4. Disse-lhe Nicodemos:
“Como pode um homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de
sua mãe e nascer?” 5. Respondeu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. 6. O que nasceu
da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. 7. Não te admires de eu te haver
dito: deveis nascer de novo. 8. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas
não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que
nasceu do Espírito”. 9. Perguntou-lhe Nicodemos: “Como isso pode acontecer?” 10.
Respondeu-lhe Jesus: “És mestre em Israel e ignoras essas coisas? 11. Em verdade,
em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos,
porém não acolheis o nosso testemunho. 12. Se não credes quando vos falo das coisas
da terra, como crereis quando vos falar das coisas do céu?” (Bíblia de Jerusalém).
O realce, em negrito, aos termos dos versículos 3 e 7, é nosso, já que devemos
destacá-los mais à frente.
a) A Teologia Católica
A polêmica instala-se por conta do termo grego anóthem, que, segundo os exegetas,
tanto pode ser entendido como “de novo” quanto “do alto”. Isso é um prato cheio para que os
teólogos tirem dessa passagem a ideia da reencarnação, para introduzirem a do batismo, para,
com isso, justificarem este ritual.
Uma das traduções que destacamos é a da Bíblia de Jerusalém, pelo motivo dela ter
sido elaborada por uma equipe de tradutores católicos e protestantes. Nela lemos a seguinte
explicação: “João emprega um termo grego, anóthem, que significa também ‘do alto’ (cf. 3,
7.31). Esse duplo sentido não existe na língua de Jesus e de Nicodemos”. (p. 1847).
Aqui vemos um golpe de morte naqueles que querem buscar nisso um pretexto para retirar
dessa passagem a ideia da reencarnação.
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Vejamos o que encontramos em outras Bíblias católicas:
Ave Maria: no v. 4 está dito “renascer”, e quanto ao v. 5 explicam que é uma alusão ao
batismo. (p. 1386).
Pastoral: apenas no v. 3 usaram “do alto”, buscam, também, relacionar essa passagem
ao rito do batismo. (p. 1356-1357).
Barsa: aplicaram ao v. 3 a expressão “renascer de novo”, no v. 5 “renascer” e no 7
“nascer outra vez”. Embora não falem nada sobre batismo, implicitamente querem levar a essa
ideia quando, no v. 5, ao invés de colocar “e do Espírito”, mudam para “e do Espírito Santo”.
Um detalhe importante dessa Bíblia é sua antiguidade; foi editada em 1965, do que
concluímos que nas edições mais recentes, a preocupação de retirar a ideia da reencarnação
fica mais evidente. (Novo Testamento, p. 79).
Santuário: Usam no v. 3 e 5 “de novo”; na explicação do v. 3 colocam:
O termo grego aqui empregado é ambíguo. Tanto se pode traduzir por ‘nascer
de novo’ como por ‘nascer do alto’. Nicodemos entende-o no primeiro
sentido, como se vê pelo contexto. Jesus, porém, reconduz a conversa ao
seu caminho: os que pertencem ao Reino, não são os que nasceram da carne e
do sangue (os descendentes de Abraão, como pensavam os judeus), mas os que
nasceram de Deus (cf. Jo 1,13). Tal nascimento realiza-se no batismo (Jo 3,5).
(p. 1574) (grifo nosso).
Do Peregrino: informam-nos que Nicodemos em grego quer dizer “vitória do povo”;
aliás, muito significativo para a ideia da reencarnação. (p. 2552).
Vozes: nos v. 3 e 7, aplicam o “do alto”, dando a seguinte explicação:
A expressão nascer do alto (v. 3) em grego pode ser entendida também
como nascer de novo, como faz Nicodemos (v. 4), no sentido de ser
concebido e dado à luz. Jesus, no entanto, fala de um novo nascimento de Deus,
da água e do Espírito Santo (v.5), numa referência direta ao rito do batismo (cf.
1,12s). (p. 1275) (grifo nosso).
Aqui temos a confirmação de que, pelo contexto, a expressão deverá ser entendida
como “nascer de novo”, pois foi assim que Nicodemos entendeu, conforme nos afirmam alguns
tradutores da Bíblia. Não adianta, para justificar o contrário, querer comparar o significado de
uma palavra colocada em textos diferentes, uma vez que ela poderia, muito bem, ter
significados distintos, o que somente o contexto em que cada uma está poderá dar a conhecêlos.
Quanto à questão do batismo, iremos falar mais à frente, noutro tópico.
b) A Teologia Protestante
Tanto a Novo Mundo, quanto a SBB e a Mundo Cristão, utilizam o “nascer de novo”.
Dessa última transcreveremos as explicações a seguir:
3:3 nascer de novo. Lit., de cima (como em 3:31; 19:11), embora a palavra
também signifique “outra vez”, “de novo” (Gl 4:9). O novo nascimento ou
regeneração (Tt 3:5) é o ato de Deus que concede vida eterna ao que crê em
Cristo. Como resultado, tal pessoa torna-se membro da família de Deus (1 Pe
1;23) com uma nova capacidade e um novo desejo de agradar a seu Pai celeste
(2 Co 5;17).
3:5 Quem não nascer da água e do Espírito. Várias interpretações têm sido
sugeridas para o termo água neste versículo: (1) Que ela se refere ao batismo
como condição para a salvação. Isto, porém, contradiz muitas outras passagens
do N.T. (Ef 2:8-9). (2) Representa o ato de arrependimento indicado pelo
batismo de João. (3) Refere-se ao nascimento físico; assim, o versículo diria:
“Quem não nascer a primeira vez da água e a segunda vez do Espírito”. (4)
Significa a palavra de Deus, como em Jo 15;3. (5) É um sinônimo para o Espírito
Santo, sendo esta a tradução: “da água, isto é, do Espírito”. Uma verdade é
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clara: o novo nascimento vem de Deus através do Espírito. (p. 1322).
Vez por outra, recorremos a um renomado filósofo do século XVII, Baruch de Espinosa
(1632-1677), já que, o que afirmou, ainda prevalece em nossos dias. Agora novamente o
faremos; assim leiamos:
Admira-me bastante, pois, a engenhosidade de pessoas, como aquelas de
quem já falei, que enxergam na Escritura mistérios tão profundos que se torna
impossível explicá-los em qualquer língua humana e que, além disso,
introduziram na religião tantas matérias de especulação filosófica que a Igreja
até parece uma academia e a religião uma ciência, ou melhor, uma controvérsia.
[...]. (ESPINOSA, 2003, p. 208).
O comum dos teólogos, todavia, entende que se devem interpretar
metaforicamente aquelas passagens em que se atribuem a Deus coisas que eles
conseguem ver pela luz natural serem incompatíveis com a natureza divina, ao
passo que tudo aquilo que escapa à sua capacidade de compreensão se deverá
aceitar à letra. Porém, se todas as passagens daquele gênero que se encontram
na Escritura tivessem obrigatoriamente de ser interpretadas e entendidas
metaforicamente, então a Bíblia não teria sido escrita para o povo e para o vulgo
ignorante, mas unicamente para os especialistas, designadamente os filósofos.
(ESPINOSA, 2003, p. 213).
Aqui é interessante notar que mais um tiro mortal é dado, dessa vez em relação à
questão de relacionar a passagem ao ritual do batismo como condição sine qua non para a
salvação, conforme ainda podemos perceber em alguns argumentos teológicos.
c) A Teologia Espírita
Vamos apresentar os argumentos de um escritor espírita sobre este assunto. No livro
“Analisando as Traduções Bíblicas”, o autor Severino Celestino da Silva (1949- ), no capítulo
XVII – A Reencarnação no Novo Testamento, ao se referir à passagem de João 3,1-12, diz-nos
o seguinte:
Este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que querem negar a
Reencarnação. No entanto, é o mais claro e contundente de todos, por isso,
existe um verdadeiro malabarismo por parte destes, no sentido de obscurecer o
verdadeiro e claro sentido desta passagem. Iniciamos pelo vocábulo “anóten”
que em grego pode significar “de novo” e “do alto”.
Nesta passagem, esse vocábulo significa realmente “de novo”, porém a
maioria dos exegetas emprega o termo “do alto” para justificar a sua
descrença na Reencarnação. Este malabarismo envolve também a questão
gramatical na tradução do texto, como veremos mais adiante. Colocaremos,
aqui, muitas observações e conceitos empregados, sobre este texto, feitos por
Torres Pastorino na sua obra “Sabedoria do Evangelho”, com relação ao texto
grego. Concordamos plenamente com todos os seus conceitos, razão por que o
usaremos para reforçar nossa exegese. A análise do texto hebraico é de autoria
e responsabilidade nossa.
Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: “AQUELE QUE NÃO
NASCER “DO ALTO”. Observe, no entanto, que a pergunta feita por Nicodemos,
em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente em nascer
“de novo” e não “do alto”: Como “pode o homem, depois de velho, entrar
pela segunda vez (duteron) no ventre materno?”.
Esta ambiguidade de entendimento só acontece na língua grega, porque no
hebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com Nicodemos,
este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode significar “do
alto”. Diz o seguinte: (“im lô iauled ish mimkôr 'al lô-iukal lirôt et-malkut
haelohim”) im=se, lô=não, iualed=incompleto do grau qal(1) do verbo
“nolad”=nascer, ish=um homem, mimikôr=palavra composta, formada por
mi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão hebraica
“Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da vida”. Observe que não existe nada
referente “ao alto”, no texto grego, como muitos querem se fazer entender.
Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem, no sentido de se
80
voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente, “não poderá” (lôiuchal=incompleto do verbo iachôl=poder) ver o reino de Deus (lirôt etmalkut haelohim).
Assim, no diálogo, a palavra grega “anóten” tem o sentido e significado de
'de novo', portanto, Jesus falava de retorno, ou seja, de Reencarnação mesmo,
como foi visto no texto hebraico.
Lembramos, ainda, que Nicodemos já era um cidadão de idade avançada e o
Cristo lhe fala da Reencarnação (Nascer de Novo), como uma esperança e
reconforto para ele, mostrando-lhe que a vida não termina com a morte, nem os
velhos devem temer a morte, pois podem renascer e começar tudo novamente.
Na sequencia, Cristo confirma que era isso mesmo que Ele queria dizer:
“Quem não nascer de água (materialmente, com o corpo denso, dado
que o nascimento físico é feito através da bolsa d’água do líquido
amniótico), veja o cap. VII deste livro, Salmo 23 e de espírito
(pneumatos), ou seja, que adquira nova personalidade no mundo
terreno, em cada nova existência, a fim de progredir). Se Nicodemos
entendeu ao pé da letra as palavras de Jesus, o Mestre as confirma ao
pé da letra e reforça o seu ensino. Com efeito, o espírito, ao reentrar na
vida física, pode ser considerado o mesmo espírito que reinicia suas
experiências, esquecido de todo passado”.
A questão gramatical: No texto em grego não há artigo diante das palavras
“água” (ek ydatos= de água) “e espírito” (kai pneumatos), portanto, o
texto fala em nascer “de água e de espírito”. Não é portanto, nascer da água
do batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da água) e de espírito
(pela Reencarnação do espírito).
O primeiro versículo do Gênesis (1:1) fala que no princípio criou Deus os
Céus e a terra. A palavra 'céus' em hebraico “Shamaim” (2) - significa:
“Carrega água”, “Ali existe água”; “fogo e água” que misturados um ao
outro, formaram os Céus.
Como podemos observar, tudo começou com as águas. Água é vida e essa
era a crença geral naquela época. É lógico que o Cristo não falava de batismo e
sim de retorno através da água. Lembramos ainda que 99% da constituição das
células reprodutoras são água.
Daí a explicação que segue: “o que nasce da carne (ek tês sarkos) com
artigo (tês) em grego, é carne”, isto é com corpo físico, com toda a
hereditariedade física herdada do corpo dos pais; “e o que nasce do
espírito (ek tou pneumatos) é espírito”, ou seja, o espírito que
reencarna provém do espírito da última encarnação com toda a
hereditariedade pessoal (cármica) que traz do passado.
E Jesus prossegue: “Por isso não te admires de eu te dizer: é-vos
necessário nascer de novo”. Observe a diferença de tratamento: “dizer-TE”
no singular, e “é-VOS” no plural, porque o renascimento é para todos, não
apenas para Nicodemos. E mais: “o espírito sopra (isto é, age, reencarna,
se manifesta onde quer), e não sabes de onde veio (ou seja, sua última
encarnação), nem para onde vai (qual será a próxima).
As palavras de Jesus foram de modo a embaraçar Nicodemos, que
indaga: “como pode ser isso?” E Jesus: “Tu que (entre nós dois) é
Mestre de Israel, te perturbas com estas coisas terrenas? Que te não
acontecerá então, se te falar das coisas celestiais (espirituais)?”.
Logicamente Jesus não podia esperar que Nicodemos entendesse as
interpretações mais profundas desse ensinamento, nem tão pouco estava
querendo ensinar-lhe o batismo, nesta passagem, como muitos querem
justificar
Se o Cristo falava realmente do batismo para Nicodemos, por que não o
convidou a se batizar? E por que o próprio Cristo não o batizou? Leia em João
4:2 que Cristo não batizava, quem batizava eram os discípulos. E por que diante
de tantas curas, milagres e encontros, como no da “Adúltera”, com “Zaqueu”,
com o “Centurião”, com a “Cananeia”, Cristo nunca falou em batismo? Não
seria uma oportunidade para este convite? No entanto, sua recomendação era
para a mudança interior: “vai e não peques mais para que coisa pior não
te venha acontecer”.
E Jesus conclui exemplificando: “como Moisés ergueu a serpente no
deserto, assim o Filho do Homem será erguido da Terra”. (Veja a história
81
da serpente erguida no deserto no Livro Números – vaicrá- 21:4-9).
Aqui o Cristo prevê o que aconteceria a Ele, ou seja, a sua morte na cruz
para que hoje seja erguido na terra como filho de Deus e dirigente de toda a
nação terrena.
Paulo, em sua epístola a Tito 3:4-5, interpreta bem esta citação do Cristo:
“Mas quando apareceu a vontade de Deus, nosso salvador, e o seu amor
para com os homens, não por obras da justiça que tivéssemos feito,
mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da
reencarnação, e pelo renascimento de um espírito santo”.
Aqui, Paulo deixa bem claro que Deus nos salvou não porque o tivéssemos
merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da reencarnação a qual é um
“lavatório” (de água) e um “renascimento do espírito”. A palavra grega do
texto a que se refere Paulo é παλιγγενεσίας “Palingenesia” – isto é,
“renascimento”, “Novo Nascimento”, REENCARNAÇÃO.
______
(1) Esclarece-nos o autor do livro, Dr. Severino que: O termo QAL ou qal é uma palavra
hebraica que significa "Fácil" que tem o sentido gramatical de "forma fácil" ou "simples" de
conjugação do verbo na língua hebraica. O verbo em hebraico possui sete graus de
conjugação (Qal, nif'al, piel, pual, hif'iil, haf'al e hitpa'el.) Nesse caso específico foi
colocado com relação ao verbo nascer (nolad-em hebraico). O incompleto que é o futuro
do verbo na forma QAL que é a mais simples das conjugações.
(2) Neste ponto é colocada a palavra em hebraico:
(SILVA, 2001, p. 238-242) (os grifos são do original).
Deixa-nos Severino Celestino, e com clareza meridiana, um posicionamento sereno e
equilibrado diante da passagem analisada, embora saibamos que não irá agradar aos
fundamentalistas. Mas como já o dissemos, não é este o nosso objetivo.
Como sempre argumentam que, naquela época, não existia a ideia conceitual da
reencarnação, devemos, por amor à verdade, apresentar as provas de que isso não tem
fundamento.
A primeira questão é que, se nós formos buscar a palavra “reencarnação” na Bíblia, não
a encontraremos. Entretanto, facilmente encontraremos uma outra terminologia que é usada
em algumas situações, com o conceito de reencarnação, e que é a palavra “ressurreição”.
Quatro são as ideias que eles tinham sobre ressurreição:
1ª - alguém voltar a viver na condição de espírito;
2ª - reviver no mesmo corpo físico;
3ª - voltar a viver num outro corpo físico; e
4ª - ressurgir em espírito e, nessa condição, influenciar uma pessoa.
Mais informações sobre essas quatro ideias poderão ser vistas no texto “Ressurreição, o
significado bíblico”, disponível no site www.paulosnetos.net
Para exemplificar a terceira ideia, podemos citar a narrativa de Lucas (9,18-20) sobre o
episódio em que Jesus pergunta aos seus discípulos o que o povo pensava dele, ao que lhe
responderam: "Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; mas outros acham
que tu és algum dos antigos profetas que ressuscitou". Pela resposta podemos perceber
que é exatamente a ideia da reencarnação, pois Jesus só poderia ser Elias, Jeremias, que é
citado em Mt 16,14, ou algum outro dos antigos profetas, se aceitassem essa possibilidade de
ressurreição no sentido de reencarnação, termo, inclusive, usado no texto. A prova que não
entendiam bem sobre a reencarnação, aqui com o nome de ressurreição, é pelo fato de terem
citado João Batista, que foi contemporâneo de Jesus.
Considerando que nos foi informado que Nicodemos era um fariseu, não podemos
deixar de falar dessa classe política e religiosa que existia àquela época. Nós buscaremos esta
informação num historiador que viveu naquele tempo, chamado Flávio Josefo (37-1-3 d.C.).
Suas obras históricas são: Antiguidades Judaicas, Guerra dos Judeus e Resposta de Flávio
Josefo a Ápio, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.
E a título de informação transcrevemos:
82
Quem foi Flávio Josefo? Foi ele um escritor e historiador judeu que viveu
entre 37 a 103 d.C. Seu pai foi sacerdote e sua mãe descendia da casa real
hasmoneana. Portanto, Josefo era de sangue real. Ele foi muito bem instruído na
vasta cultura judaica, bem como na grega. Falava perfeitamente o latim – o
idioma do Império Romano, e também o grego. Logo cedo na vida demonstrou
intenso zelo religioso, filiando-se ao grupo religioso dos fariseus. (...) (JOSEFO,
2003, p. 41).
Ele, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:
(...) Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um outro
mundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas ou
virtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida e
que outras voltam a esta. (...) (JOSEFO,2003, p. 416) (grifo nosso).
E quando alguns soldados, derrotados na guerra contra os romanos, pensavam em
suicidar-se, alerta-os dizendo:
(...) Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade daqueles,
que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas mãos, a vida,
que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas almas voam puras
para o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr dos séculos,
animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as almas dos
ímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são precipitados nas
trevas do inferno; (...) (JOSEFO, 2003, p. 600) (grifo nosso).
Assim, é justo dizer que os fariseus acreditavam numa ressurreição em outro corpo,
ainda que não se tenha dito quantas vezes. Ora, isso não é nada mais nada menos do que
aquilo que entendemos por reencarnação.
Podemos, ainda, para corroborar a afirmativa de que ela era crença no judaísmo, trazer
para comprovação os conhecimentos contidos na Cabala, que, segundo seus estudiosos, é o
significado mais profundo e oculto da Torá.
O Rabino Philip S. Berg (1929- ), em Reencarnação as Rodas da Alma, diz que:
A palavra hebraica para reencarnação é Guilgul Neshamot, que literalmente
quer dizer ‘roda da alma’. É para esta vasta roda metafísica, com sua coroa
constelada de almas, como estrelas nas bordas de uma galáxia, que devemos
dirigir nosso olhar, se desejamos ver além da aparência da inocência punida e da
maldade recompensada. Guilgul Neshamot é uma roda em constante movimento
e, ao girar, as almas vêm e vão diversas vezes, num ciclo de nascimento,
evolução e morte e novo nascimento. A mesma evolução ocorre com o corpo no
decorrer de uma única vida. Ocorre o nascimento, o crescimento das células, a
paternidade e a morte – novos corpos produzidos pelos antigos, dando assim
continuidade à forma física. É sempre um pai que concede sua semente para
que haja continuidade, num processo sem fim. (BERG, 1998, p. 17-18).
Severino Celestino, citando o Rabino Shamai Ende, diz:
Sobre a Reencarnação, apresentamos, aqui, para ilustrar, o depoimento do
Rabino Shamai Ende, colaborador da Revista Judaica “Chabad News”,
publicação de Dez a Fev 1998. Vejamos o texto na íntegra: “O conceito de
Guilgul (Reencarnação) é originado no judaísmo, sendo que uma alma
deve voltar várias vezes até cumprir todas as mitsvot(1) da Torá. Além
disso, cada alma tem uma missão específica. Caso não tenha cumprido a
sua, a alma deve retornar a este mundo para preencher tal lacuna.
Somente pessoas especiais sabem exatamente qual é sua missão de
vida. [...]”.
______
(1) Mitsvot – plural de mitsvá que significa mandamento ou prática de boas obras –
caridade.
83
(SILVA, 2001, p. 161) (grifo do original).
Disso podemos concluir que Nicodemos, sendo um fariseu, fatalmente acreditava que
alguém poderia voltar; entretanto, não sabia como isso poderia acontecer, razão daquelas suas
perguntas a Jesus.
Será que Jesus pregou o Batismo? Um fato incontestável é que Jesus nasceu, viveu e
morreu como judeu. Também não há como discutir que o batismo não era a prática ritualística
no judaísmo, que sabemos ser a da circuncisão, ato a que, segundo narrativa no Evangelho, o
próprio Jesus foi submetido.
Curioso é que, dos quatro evangelistas, somente João diz algo sobre o batismo.
Primeiro, ele afirma que Jesus batizava (Jo 3,22); entretanto, logo depois contradiz o que disse
antes dizendo que Jesus mesmo não batizava, mas sim os seus discípulos (Jo 4,2), o que nos
deixa desconfiados, pois sabemos que os Evangelhos foram escritos em grego, exceto o de
Mateus que foi em aramaico, e que João era iletrado, portanto, sem instrução (At 4,13); como,
então, poderia ter escrito o Evangelho que lhe é atribuído? Por isso, não é absurdo supor que,
na verdade, outra pessoa o escreveu, fato que nos coloca diante também da possibilidade de
que os textos poderiam ter sido “ajeitados” aos interesses dogmáticos daquela época. Todavia,
a contradição pode ser apenas aparente, já que o batismo de Jesus não era o mesmo batismo
de João Batista. Sobre isso, encontramos uma passagem que diz: “Eu, na verdade, vos batizo
em água, na base do arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que
eu, que nem sou digno de levar-lhe as alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e em
fogo.” (Mt 3,11).
Outrossim, considerando que Nicodemos “era membro do Conselho supremo chamado
Sinédrio” (Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 1386), portanto, entendedor das práticas ritualistas dos
judeus, não teria cabimento a pergunta (És mestre em Israel e ignoras essas coisas?) feita por
Jesus a ele. Se Jesus estivesse mesmo se referindo ao batismo, certamente, que para
Nicodemos, era muito fácil de entender. Se ele desconhecia é porque, na verdade, era sobre
outra coisa que Jesus lhe falava. Pelos seus questionamentos ao Mestre, fica claro que era algo
mais profundo do que um simples batismo, tinha, portanto, que ser de um assunto mais
complexo que esse. Com certeza, a reencarnação é algo assim, já que a maioria das pessoas
por “ignorar essas coisas”, não sabem exatamente sobre “como pode um homem velho voltar
a nascer de novo”; daí fazer a mesma pergunta que fez Nicodemos: “porventura irá entrar no
ventre de sua mãe para nascer pela segunda vez?” A esses responderemos igual a Jesus: “Não
te admires disso”.
Sobre o que Nicodemos entendeu, transcrevemos esse trecho da história na versão de
Huberto Rohden (1893-1981), renomado teólogo:
Então passa o Mestre a mostrar a seu novel discípulo que o principal não é
fazer algo, mas ser alguém.
– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não pode ver o
Reino de Deus.
Nascer de novo? Nicodemos logo pensa em reencarnação material e
replica:
– Como pode um homem velho nascer de novo?
E, um tanto irônico, acrescenta:
– Será que pode voltar ao ventre de sua mãe e nascer mais uma vez?
(ROHDEN, 2007, p. 73-74) (grifo nosso)
É importante esse entendimento de Rohden, porquanto mesmo sem aceitar a
reencarnação, como se poderá ver no desenrolar de sua versão da história, ele admite que
Nicodemos entendeu sim que o que Jesus falava era sobre reencarnação.
Não obstante tudo isso, se o batismo nas águas fosse mesmo uma prática recomendada
aos Cristãos, porque Paulo não deu ênfase a isso? Ele mesmo o responde:
“Para que ninguém diga que fostes batizados em meu nome. É verdade, batizei
também a família de Estéfanas, além destes, não sei se batizei algum outro. Porque
84
Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria
de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo”. (1Cor 1,15-17).
Kardec assim explicou o texto de João, em exame:
Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se
atente na significação do termo água que ali não fora empregado na
acepção que lhe é própria.
Muito imperfeitos eram os conhecimentos dos antigos sobre as ciências
físicas. Eles acreditavam que a Terra saíra das águas e, por isso, consideravam a
água como elemento gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: "O Espírito
de Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; - Que o
firmamento seja feito no meio das águas; - Que as águas que estão debaixo do
céu se reúnam em um só lugar e que apareça o elemento árido; - Que as águas
produzam animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra
e sob o firmamento."
Segundo essa crença, a água se tornara o símbolo da natureza
material, como o Espírito era o da natureza inteligente. Estas palavras:
"Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito",
significam pois: "Se o homem não renasce com seu corpo e sua alma." E nesse
sentido que a principio as compreenderam. Tal interpretação se justifica, aliás,
por estas outras palavras: O que é nascido da carne é carne e o que é nascido
do Espírito é Espírito. Jesus estabelece aí uma distinção positiva entre o Espírito
e o corpo. O que é nascido da carne é carne indica claramente que só o corpo
procede do corpo e que o Espírito independe deste. (KARDEC, 2007c, p. 91)
(grifo nosso).
Informa-nos, também o escritor L. Palhano Jr. (1946-2000):
(...) A água tinha grande simbolismo entre os hebreus; tanto o espírito como
as águas são fecundos (Is 32:15; 44:3; Ez 36:25-27); o espírito é coisa que
Deus envia e derrama, como água (Jl 3:1-2; Zc 12:10). Água era uma
expressão para indicar influências boas ou más, como no (Sl 1:3): “Pois será
como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na
estação própria, e cujas folhas não caem; e tudo quanto fizer prosperará”. (...)
(PALHANO JR, 2001, p. 403) (grifo do original)
Daí a necessidade de entendê-la pelo seu simbolismo e não no sentido literal como
querem se apegar os que não acreditam na reencarnação. Ademais, se compararmos os
versículos 5 e 6 e a respectiva conclusão no 7, veremos que não poderá ser mesmo do batismo
que Jesus falava. Existe uma evidente relação entre o versículo 5 e o 6, especificamente nas
expressões “nascer da água” com “nasceu da carne é carne” e “nasceu do Espírito” com
“nasceu do Espírito é espírito”. Essa relação nada tem a ver com batismo e nem mesmo com
renovação espiritual como acreditam muitos outros, já que Jesus finaliza taxativo: “Não te
admires de eu te haver dito: deveis nascer de novo” (v. 7), significando que o homem
fisicamente descende do homem, e o Espírito provém de Deus.
Por outro lado, sendo a reencarnação coisa da terra, explicaria, indubitavelmente, essa
fala final de Jesus a Nicodemos: “Se não credes quando vos falo das coisas da terra, como
crereis quando vos falar das coisas do céu?” (v. 12).
Uma outra questão para análise é: João Batista era Elias reencarnado?
Após tecer comentários sobre o diálogo entre Jesus e Nicodemos, Allan Kardec conclui:
Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S. João,
podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já não
acontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELE
MESMO é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem alegoria: é uma afirmação
positiva. [...] (KARDEC, 2007c, p. 92).
Igualmente julgamos oportuno abordar essa questão, já que é um dos argumentos que
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reforçam a reencarnação, pois aqui irá nos ajudar a fortalecer a convicção que essa ideia era,
de fato, não somente comum à época de Jesus, como também está presente no texto bíblico.
Primeiramente, citaremos a passagem em que Jesus faz o reconhecimento público da
identidade de João Batista, narrado em Mt 11,7-14:
“Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões a respeito de
João: ‘O que é que vocês foram ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? O que
vocês foram ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas aqueles que vestem
roupas finas moram em palácios de reis. Então, o que é que vocês foram ver? Um
profeta? Eu lhes afirmo que sim: alguém que é mais do que um profeta. É de João que
a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu
caminho diante de ti'. Eu garanto a vocês: de todos os homens que já nasceram,
nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céu é maior do
que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu sofre violência, e são
os violentos que procuram tomá-lo. De fato, todos os Profetas e a Lei profetizaram até
João. E se vocês o quiserem aceitar, João é Elias que devia vir. Quem tem ouvidos,
ouça’".
A profecia citada por Jesus é a de Malaquias (3,1), que, mais à frente (vv 23-24),
identifica quem será esse mensageiro:
“Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha o grandioso e
terrível Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais voltem para os filhos e o
coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei o país à
destruição total”.
Quando o anjo anuncia a Zacarias que sua esposa estava grávida, diz ele sobre o
menino:
“Ele reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus. Caminhará à frente
deles, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos
filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, preparando para o Senhor um povo bem
disposto". (Lc 1,16-17).
Além de fechar com a citação final da profecia de Malaquias, ressaltemos que ainda é
sintomática a expressão “com o espírito e o poder de Elias”, compreensível aos que acreditam
na reencarnação.
Aqui merecem destaque dois versículos dessa citação que estamos analisando.
O primeiro é aquele que diz “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do
que João Batista” (Mt 11,11). Analisando-o, chegamos à conclusão que, se não houver uma
etapa anterior em que as pessoas possam evoluir, João Batista foi um ser privilegiado, pois já
veio “maior que todos os homens”; quer dizer, mais evoluído que todos os homens, fato que
contraria o princípio de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). No entanto, é
plenamente coerente, quando se aceita a reencarnação como um fator de progresso do
Espírito. Por outro lado, completa Jesus: “No entanto o menor no reino dos céus é maior que
ele” (Mt 11,11), o que dentro de uma justiça divina, só poderá ocorrer se houver a todos nós a
possibilidade de evoluirmos em outras vidas.
O segundo é o que o segue, onde está dito: “Desde os dias de João Batista até agora, o
Reino do Céu sofre violência...” (Mt 11,12). Importante esta afirmativa, mas ela só caberia se
João Batista tivesse vivido antes, já que não há sentido algum dizer isso citando uma pessoa
contemporânea. Explicando melhor, poderíamos dizer que “desde o tempo em que João Batista
viveu como Elias, o Reino dos Céus sofre violência...”; dessa forma ficará perfeitamente lógica
a afirmativa, coisa que não acontecerá, se não aceitarmos que João Batista seja a
reencarnação do profeta Elias,como também ficará de acordo com a afirmativa de Jesus: “João
é Elias que devia vir” (Mt 11,14).
Jesus, prevendo a incredulidade de muitos, ainda alerta: “Ouça quem tem ouvidos de
ouvir” (Mt 11,15), ou seja, se quiser ouvir o que estou afirmando é exatamente isso: João
Batista é o Elias reencarnado.
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A outra passagem, é aquela em que Jesus sobe ao monte Tabor e se transfigura (Mt 17,
1-9), ocasião em que aparecem os espíritos de Moisés e Elias e conversam com Jesus. Na
sequencia (vv. 10-13) é narrada a dúvida dos discípulos, pois, ao verem Elias, ficaram
preocupados em relação à profecia a respeito de sua volta (Ml 3,1.23-24). Explica-lhes Jesus:
"Elias vem para colocar tudo em ordem. Mas eu digo a vocês: Elias já veio, e eles não o
reconheceram. Fizeram com ele tudo o que quiseram..." (v. 11-12). A essa explicação “os
discípulos compreenderam que Jesus falava de João Batista” (v. 13). Não precisa ser mais
óbvio.
Entretanto, algumas pessoas, dando mais crédito ao discípulo do que ao Mestre (Mt
10,24), alegam, contra a crença na reencarnação, que João Batista afirmou não ser Elias,
esquecendo-se de que o mais importante e a afirmação de Jesus que ele era.
Considerando que “Deus é Espírito” (Jo 4,24), “O espírito é que dá a vida a carne não
serve para nada” (Jo 6,63) e “a carne e o sangue não podem herdar o Reino dos céus” (1Cor
15,50), não podemos aceitar que Elias tenha sido arrebatado de corpo e alma ao céu.
Fatalmente, aconteceu a ele, como acontecerá a todos nós, o “e ao pó retornarás” (Gn 3,19).
Estamos adiantando aos que tentariam justificar que João Batista não poderia ser Elias
reencarnado, já que Elias não ultrapassou o portal da morte.
Ainda poderemos colocar que, para algumas situações que passamos nessa vida,
somente se acreditarmos na reencarnação é que encontraremos explicação satisfatória. Muitas
das nossas dores e sofrimentos são provenientes de erros pretéritos, fato não ignorado na
época de Jesus, já que supunham que uma pessoa poderia vir com certa deformidade em
virtude do passado delituoso. Essa crença é perfeitamente percebida quando, ao verem um
cego de nascença, os discípulos perguntam a Jesus: “Quem foi que pecou foi ele ou seus
pais?” (Jo 9,2).
Jesus faz uma relação clara entre nossos erros (pecados) e situações dolorosas, ao
dizer a um doente que acabara de curar: “não peques mais, para que te não aconteça coisa
pior” (Jo 5,14). Somente haverá sentido em se falar em carma, para nós espíritas Lei de ação
e reação, se houver a crença na reencarnação, já que ambos os conceitos estão intimamente
ligados.
Poderemos ainda acrescentar que é pela reencarnação que todos nós um dia estaremos
no reino dos Céus, uma vez que esse é o destino fatal de todos nós, já que é do desejo de
Deus que todos os homens sejam salvos (1Tm 2,4). Certa feita, Jesus disse aos chefes dos
sacerdotes e anciãos do povo “... Eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e as
prostitutas vão entrar antes de vocês no Reino dos Céus” (Mt 21,31), demonstrando
claramente que, apesar de tudo, eles um dia estariam no Reino dos Céus; apenas que os
detestáveis cobradores de impostos e as desprezadas prostitutas chegariam antes deles.
André Luiz, pela psicografia de Francisco Cândido Chico Xavier (1910-2002), disse, ao
comparar a encarnação do espírito num corpo físico, que é o mesmo que estarmos numa
prisão. Então, lembramo-nos de um final de uma fala de Jesus em que afirma: “... você irá
para a prisão. Eu garanto: daí você não sairá, enquanto não pagar até o último centavo" (Mt
5,25-26). Além do progresso, essa é também mais uma utilidade da reencarnação, ou seja,
por ela todos nós, quitamos os nossos débitos perante as leis divinas. Aliás, preferimos a isso
que irmos irremediavelmente para um inferno eterno, onde nunca conseguiremos pagar
nossos débitos, situação em que a Justiça humana seria muito melhor que a divina.
Concluímos seguramente, sem nenhum medo de estarmos errados, que realmente a
passagem analisada diz da reencarnação. O contexto histórico nos dá conta de que a
reencarnação era crença no judaísmo, embora com o nome de ressurreição. A grande
dificuldade é que encontramos essa palavra com vários sentidos; daí a grande confusão que
causa a alguns, principalmente àqueles que não querem, por razões dogmáticas, aceitar a
reencarnação como uma realidade.
Citaremos, para corroborar o que temos dito aqui, o que os pesquisadores Holger
Kersten (1951- ) e Elmar R. Gruber (1955- ) disseram no livro O Buda Jesus:
Analisando as teorias de Pitágoras, descobrimos que sua teoria da
reencarnação veio da Índia. Apesar de todos os expurgos, essa ideia
também é preservada em várias passagens do Novo Testamento, a ponto
87
de ter-se a impressão de que esse conceito não-cristão foi ensinado pelo próprio
Jesus. [...]
Pode-se portanto afirmar que, nessa época, a ideia do renascimento e da
transmigração da alma estava enraizada no sentimento popular dos judeus. Isso
pode ser demonstrado em várias passagens do Novo Testamento. Lembramonos da pergunta dos discípulos a Jesus sobre o homem que era cego de
nascença: “Quem pecou, ele ou os pais para que ele tenha nascido cego?” (João
9,20. A hipótese de que o próprio homem tivesse pecado pressupõe,
naturalmente, que o pecado tivesse sido cometido numa vida anterior,
constituindo uma aceitação da ideia do carma. [...]
Essa crença evidente no renascimento que encontramos no Novo Testamento
não era, de modo algum, familiar aos judeus dos primeiros tempos. Foi a
filosofia helênica que a disseminou por todas as regiões dentro de sua esfera de
influência. O conceito de renascimento (gilgul) só se tornou conhecido
nos círculos judaicos por volta do início do nosso milênio. Os talmudistas
acreditavam que Deus havia criado um número determinado de almas judias,
que renasciam constantemente. Como punição elas, retornavam no corpo de
animais. De acordo com essa ideia, o ser humano tinha que experimentar uma
longa transmigração da alma (gul-neschama) até alcançar a redenção (tikkun –
a harmonia). A ideia de que a redenção só ocorre quando é atingido o objetivo
do desenvolvimento terreno indica a origem hindu e budista do conceito e só
surgiu entre os judeus durante o período helênico.
A ideia da reencarnação sem dúvida ocupou um lugar de destaque na
visão que Jesus tinha da vida. Isso coloca duas possibilidades: ou Jesus era
um mestre da sabedoria helenista que adotou o conceito de renascimento como
uma abordagem filosófica, ou extraiu a ideia de fontes hindus. No entanto, a
maneira pela qual a ideia do renascimento é integrada à sua mensagem,
constituindo um componente fundamental de seu entendimento sobre a
redenção, torna a hipótese das raízes hindus muito plausível. Apenas na Índia a
reencarnação desfrutou de tal aceitação, e apenas na Índia ela esteve ligada a
uma moral semelhante à que Jesus divulgou na Palestina. É por isso que os
ensinamentos budistas de Jesus soavam tão estranho aos judeus.
O tema renascimento está presente em muitas passagens do Novo
Testamento15. Jesus fala de suas vidas passadas e de seu retorno,
assumindo desta forma uma clara defesa da ideia da reencarnação. Sua
referência mais explicita a uma existência anterior (“Antes que Abraão fosse, eu
sou” - João 8:58) encontra um paralelo no mais antigo relato sobre a vida de
Buda, o Nidanakartha, onde o Desperto é apresentado como um ser
preexistente desde o início dos tempos.
As passagens mais importantes do Novo Testamento em que Jesus
revela sua crença no renascimento estão no Evangelho segundo João
(João 3:1-4, 7:9-11). Infelizmente, elas têm sido enormemente
mutiladas por traduções incorretas. Graças ao cuidadoso trabalho de
Günther Schwarz, muitos desses erros foram corrigidos. Em diversas
publicações, esse teólogo conseguiu restabelecer o texto aramaico original dos
Evangelhos a partir das traduções gregas existentes, que usou então como base
para urna nova versão alemã. O resultado de todos esses anos de trabalho é a
obra Jesus-Evangelium16, na qual, com a ajuda de seu filho Jörn Schwarz, reuniu
os quatro Evangelhos canônicos e fontes não-bíblicas. Esse "Evangelho de Jesus"
será uma constante fonte de referência em nossa análise dos paralelos com o
budismo. As citações dessa obra serão abreviadas como "JeEv".
Na tradução correta, o verdadeiro significado das ideias de Jesus sobre o
renascimento se torna evidente. Uma noite, sabendo que Jesus "fora enviado
como mestre" (JeEv 5:11), Nicodemos, um fariseu, foi até ele. Na tradução
alemã usual, a conversa com Nicodemos é acompanhada por incompreensíveis
palavras de Jesus: "Se um homem não nascer do alto, não poderá ver o reino de
Deus" (João 3:3). A versão não autorizada é menos enigmática: "Se o homem
não nascer de novo, não poderá ver o reino de Deus". Nos séculos seguintes, a
Igreja empenhou-se em suprimir do Novo Testamento todas as
referências à reencarnação, sem contudo conseguir eliminá-las
totalmente. Nessa nova versão, corretamente traduzida, a intenção das
palavras de Jesus volta a se tornar clara. Nicodemos pergunta a Jesus: "O que
devo fazer para entrar no Reino de Deus?" Jesus responde: "Em verdade, em
verdade, vos digo: quem não nascer de novo e de novo, não poderá ser
(re)admitido no Reino de Deus". Nicodemos então pergunta: "Como pode um
88
homem nascer de novo e de novo se já é velho? Pode ele voltar ao ventre da
mãe e nascer de novo?" Ao que Jesus replica: "Não te admires do que eu disse,
é preciso nascer de novo e de novo".
O que está em questão é a readmissão no Reino de Deus como princípio e
fim da existência humana. Essa lição deve ser compreendida à luz das
passagens da Bíblia em que Jesus diz que João Batista é Elias que voltou à terra
(Mateus 11:13-15, 17:10-13; Marcos 9:11-13) e em que ele próprio é
considerado um Elias, um Jeremias ou um dos outros profetas renascido. Não
existe pois nenhuma dúvida de que Jesus estava falando de um
renascimento físico, no sentido hindu de reencarnação. Visto nesse
contexto, o erro de tradução de um famoso versículo de Mateus (18:3) deve ser
corrigido. Jesus supostamente teria dito: "Se não vos converterdes e não vos
fizerdes como crianças...", quando o surpreendente resultado da tradução
correta é: "Se não renascerdes, não entrareis no Reino dos Céus"17. (JeEv 5:1216).
________
15. Otto Flink (Schopenhauers Seelenwanderungslehre und ihre Quellen) menciona as
seguintes passagens: Mateus 14:1-2, 1Cor 15:35-55; Mateus 17:9-12; Lucas 9:7,8,19;
Marcos 9:9-13; Mateus 19:28-30; João 3,3 e 3:8. Ele acredita que a ideia de carma está
presente em João 9:2-3; Mateus 19:30; Mateus 5:4,26; Marcos 10:19-31; Lucas 18:2920.
16. Schwarz e Schwarz (1993).
17. Schwarz (1990), p. 46.
(KERSTEN e GRUBER, s/d, p. 129-132) (grifo nosso).
Acreditamos que, por motivos de interesses de poder e de dinheiro, a liderança religiosa
atual não faz a mínima questão de esclarecer essas dúvidas, pois estariam colocando em risco
esses seus interesses. Mas estamos confiantes em que, muito mais cedo do que querem
alguns, a ciência dará o veredicto definitivo, quando provar categoricamente a lei natural da
reencarnação, única coisa pela qual poderemos explicar inúmeros questionamentos humanos,
e é por ela que a justiça e a misericórdia de Deus se manifestam em plenitude.
89
O Ritual do Batismo
Sempre nos causou espécie ver passagens bíblicas mencionando o ritual do batismo,
em particular a que relata o batismo de Jesus, uma vez que esse rito, conforme sabemos, não
fazia parte das práticas religiosas dos hebreus. Assim, não descobrimos por qual motivo que,
de uma hora para outra, aparece, na Bíblia, alguém realizando o batismo, porquanto, naquela
época, a circuncisão (Lv 12,3) é que era o ritual praticado para a iniciação religiosa. Para nós
só existe uma explicação possível para isso. Embora saibamos que ela não irá agradar aos
fundamentalistas, mas, como buscamos a verdade, não nos resta senão a alternativa de
deduzir que tal episódio seja fruto de interpolação.
Mais ainda: ficamos convictos dessa possibilidade, quando os próprios textos bíblicos
nos levaram justamente a essa hipótese. É o que se verá no desenrolar desse estudo.
Cairbar Schutel (1868-1938), em O Batismo, assim relata:
Esta prática, que assinala períodos milenários, parece ter nascido na Grécia
Antiga, logo após a constituição de uma seita que cultuava a Deusa da Torpeza,
a quem denominavam Cotito e a quem os atenienses rendiam os seus louvores.
Esta seita, constituída de sacerdotes que tinham recebido o nome de baptas,
porque se banhavam e purificavam com perfumes antes da celebração das
cerimônias, deixou saliente nas páginas da História esse ato como símbolo da
purificação do Espírito. (SCHUTEL, 1986, p. 15).
Em Ademar Faria Júnior (1968- ) e Cláudio Bueno da Silva (1952- ), autores da obra
Algumas contradições Bíblicas, encontramos mais detalhes dessa história:
O batismo com a água tem origens remotas no seio de diferentes povos, mas
coube à influência grega sobre as estruturas romanas e hebraicas a adoção do
batismo do arrependimento utilizado por João Batista às margens do rio Jordão.
Na Grécia Antiga, havia os Baptas, que eram os sacerdotes da deusa Cotito.
Para se tornar um adorador da deusa, havia a necessidade de se apresentar no
templo e, dentro da piscina baptismal, se arrepender de todos os erros
cometidos até aquele momento. A partir daí, o indivíduo estava em condições de
ser mergulhado na piscina e se apresentar como um novo adorador da deusa. O
batismo, portanto, é uma cerimônia eminentemente pagã e que foi absorvida
pelas religiões tradicionais. (FARIA JÚNIOR E SILVA, 2013, p. 69)
Corroborando essa versão temos ainda o escritor Celso Martins (1942- ), que, em Nas
Fronteiras da Ciência, afirma:
[...] Batizando as criaturas nas águas do Rio Jordão como símbolo da
renovação espiritual de cada seguidor seu, João estava apenas lançando mão de
um rito que remontava à Grécia antiga, pois o batismo é uma prática pagã que
nos veio dos sacerdotes da deusa Cotito. Eles se banhavam antes de dedicar
suas oferendas à referida deusa da mitologia dos gregos. Como tais sacerdotes
se chamavam baptas, daí surgiu a etimologia da palavra batismo, banho em
água, no ritualismo de muitas seitas cristãs e também orientais. (MARTINS,
2001, p. 30) (grifo do original).
Em Jesus e sua Doutrina, A. Leterre (1862-1936), por sua vez, nos diz ser outra a sua
origem:
Os antigos persas apresentavam o recém-nascido ao padre, perante o Sol,
simbolizado pelo fogo. O padre pegava a criança e a colocava em uma bacia com
90
água, a fim de lhe purificar a alma. Nessa ocasião o pai dava nome ao filho. [...]
A cerimônia do batismo, no verdadeiro sentido de banho expiatório, já
havia, também, na Índia, milhares de anos antes de existir a Europa, tendo daí
passado para o Egito. Na Índia eram as águas do Gange, consideradas sagradas,
como ainda hoje, que possuíam esta propriedade purificadora, apesar de ser o
foco da cólera-morbo; do Gange passou-se para o Indus, igualmente sagrado,
de onde se propagou ao Nilo, do mesmo modo sagrado, para, finalmente,
terminar no Jordão, onde João as empregava com o mesmo fim e como simples
formalidade do seu rito. (LETERRE, 2004, p. 172-173) (grifo do original).
Seja lá qual for a origem, o que fica claro, pelo acima exposto, é que ela está
indubitavelmente ligada às práticas de povos ditos pagãos. Em Samuel Noah Kramer (18971990), vemos isso de forma mais clara:
Desde os dias do cativeiro em Babilônia, e daí em diante, o judaísmo
apresenta um enxame de místicos religiosos com visões apocalípticas
sobre o futuro do homem. Por meio desses visionários, diz o eminente
orientalista W. F. Albright, "elementos inumeráveis da fantasia pagã e até mitos
inteiros entraram na literatura do judaísmo e do cristianismo". Por exemplo, o
rito do batismo - diz ele - remonta às religiões da Mesopotâmia, como
também muitos dos elementos na história da vida de Cristo. Entre estes o
Dr. Albright inclui a sua concepção por uma virgem, o seu nascimento
relacionado com os astros, e os temas da prisão, da morte, descida aos infernos,
o desaparecimento por três dias e posterior ascensão aos céus. (KRAMER, 1983,
p. 169) (grifo nosso).
Foi por volta do ano 150 a.C., com a fundação da seita judaica dos essênios, que esse
ritual de iniciação, passou a ser praticado na Palestina, conforme se lê em Russell N. Champlin
(1933- ):
[…] Os manuscritos descobertos entre os Papiros do Mar Morto
ilustram fartamente que os essênios (com quem João evidentemente se
associou) eram uma seita que praticava o batismo, requerendo batismo
de arrependimento para os convertidos, além de praticarem outras
abluções entre eles. Os hinos de Qumran falam de batismo de fogo, tais como
um rio em chamas que engolfaria os "lançados fora": e alguns bons intérpretes
reputam esse batismo de fogo como algo que se refere ao juízo. Parece bem
certo, porém, a despeito do conhecimento de João sobre tais ideias, que ele usa
da ideia como algo benéfico, que visava o remanescente arrependido e não os
incrédulos. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 288) (grifo nosso).
Sobre essa seita, explicam-nos Russell N. Champlin (1933- ) e J. M. Bentes: (1932- ):
ESSÊNIOS
Eles formavam uma ordem monástica judaica, que parece ter surgido
no século II A.C. Eles eram exemplos de uma incomum grandeza moral e
pureza espiritual (embora houvesse alguns abusos e distorções). Provavelmente
foi a primeira sociedade humana a condenar a escravatura, tanto como principio
quanto como uma prática. Era uma sociedade comunal, esotérica e
extremamente ascética. Procurava lugares isolados a fim de ali viverem e
porem em prática a sua fé. Uma das regiões escolhidas era aquela em redor do
mar Morto. Alguns estudiosos têm associado um ramo dessa seita com os
Manuscritos do Mar Morto. Os essênios eram uma das três principais seitas
judaicas, as outras duas eram os fariseus e os saduceus. (CHAMPLIN e
BENTES, vol. 2, 1995b, p. 522) (grifo nosso).
Completando suas explicações, informam-nos:
A Teologia dos Essênios
Grande parte do que os essênios acreditavam já foi descrita - nas seções
91
anteriores - deste artigo. Afastando-se do judaísmo comum, eles rejeitavam a
guerra (pois eram pacifistas); demonstravam uma veneração especial pelo sol,
embora não saibamos dizer até que ponto isso os conduzia. Eram comunistas
religiosos. Proibiam juramentos. Se excluirmos essas coisas, contudo, suas
crenças eram parecidas com as do judaísmo em geral. No entanto, eles
eram um movimento restaurador exclusivista, que pensava que o antigo
judaísmo apostatara, e que eles eram o verdadeiro Israel. Também é
digno de menção o fato de que eles eram deterministas estritos. Eles criam na
preexistência e imortalidade da alma, assumindo uma espécie de ponto de vista
platônico-filônico sobre a alma. Também acreditavam na reencarnação. A
alma, a princípio, habitava na pureza; mas então, ao unir-se com o corpo
material, ficou aprisionada, e foi assim que a corrupção da alma teve início. Eles
supunham que as almas boas iriam para a bem-aventurança, ao passo que as
almas más seriam punidas eternamente. As influências religiosas a que estavam
sujeitos, e que explicam em parte algumas de suas doutrinas e práticas,
parecem ter vindo do judaísmo, especialmente do farisaísmo, do parseísmo, do
paganismo sírio, do pitagoreanismo e do neoplatonismo.
Como uma seita distinta, os essênios desapareceram após a
destruição de Jerusalém (ano 70 D.C.). Nunca são mencionados no Novo
Testamento, embora haja alusões às suas crenças quanto ao celibato, aos
juramentos e ao ascetismo. Ver Mat. 5:34ss, 19:11,12 e Col. 2:8,18,23. A
referência na epístola aos Colossenses, porém, quase certamente é ao
gnosticismo. (CHAMPLIN e BENTES, vol. 2, 1995b, p. 524) (grifo nosso).
Ao se afirmar que “suas crenças eram parecidas com as do judaísmo em geral”, não há
como não pensar que “quem parece” não é; assim, não se poderia dizer que praticavam o
judaísmo, embora, cressem nisso.
O estudioso Geza Vermes (1924- ), considerado um dos maiores especialistas dos
manuscritos do Mar Morto, assim explica esse ritual:
A primeira imagem do batismo, originalmente um rito judaico de
imersão, aponta para a purificação, tanto física como espiritual. Era uma
prática comum, geralmente repetível e repetida. Era prescrita para a
purificação ritual de judeus, sacerdotes e levitas e leigos israelitas, a
fim de que eles pudessem entrar no santuário de Jerusalém e participar
no culto do Templo. Em um nível mais prático, o banho cerimonial combinava
higiene com a purificação alegórica que se voltava contra formas de impureza.
Era imposto para marcar o fim de certas doenças contagiosas, como
enfermidades dermatológicas ou genitais designadas por termos genéricos como
“lepra” e “corrimento”. Um banho ritual também restaurava o estado de pureza
após contatos com um corpo morto, após relações sexuais para ambos os sexos,
e após a menstruação e o parto para as mulheres.
Algumas formas específicas de batismo judeu só eram praticadas
uma vez. Este é o caso do batismo de penitência pregado por João Batista, que
visava eliminar a impureza do pecado e indicar a mudança na direção de uma
via pia conducente ao Reino de Deus. Parece que os essênios de Qumrã
submetiam-se a um banho ritual especial, dedicado à renovação
espiritual durante a cerimônia de entrada no pacto sectário (1QS 5:1214). Fiando-se num costume que provavelmente remontava ao primeiro século
d.C., o judaísmo rabínico também obrigava homens e mulheres gentios
que desejassem se converter ao judaísmo a passar pelo batismo
prosélito, além da circuncisão no caso do homem. Entretanto, seja reiterado ou
único, o batismo judeus sempre conservou o seu simbolismo primário de banho
ou purificação pela água.
Em geral, Paulo não mostra interesse pelo ritual judaico e, se usa a noção de
impureza, é sempre no sentido moral. Para ele, o batismo é dotado de um
significado alegórico que nada tem a ver com banho. O tanque em que o
batismo tinha lugar simboliza acima de tudo a tumba da qual Jesus levantou-se
na Páscoa. Assim, quando os que passavam pela cerimônia de iniciação no
mistério cristão eram imersos (isto é, enterrados) na água batismal, eles
estavam abraçando alegoricamente a morte do Cristo ao juntar-se a ele em seu
túmulo; e quando era reerguidos, estavam reencenando e comungando
misticamente com a ressurreição de Cristo. Dali em diante, eles lhe pertenciam.
92
O drama é delineado por Paulo em poucas e pungentes palavras: “Ou não sabeis
que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, é na sua morte que fomos
batizados? Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para
que, como Cristo foi ressuscitado detre os mortos pela glória do Pai, assim
também nós vivamos vida nova” (Rm 6:3-4) Reinterpretando deste modo a
imagem original do rito batismal, Paulo ofereceu aos cristãos um meio para
se apropriarem da virtude tanto da cruz como da ressurreição. Não é necessário
dizer que, com a introdução generalizada da aspersão infantil em substituição à
imersão na administração do sacramento, que originalmente era reservado
apenas aos adultos iniciados e realizado na Páscoa, o poderoso simbolismo
paulino foi morto de vez. (VERMES, 2006a, p. 111-112) (grifo nosso).
Vê-se, que, na opinião de Vermes, o ritual do batismo tem origem no ritual de
purificação que os judeus eram obrigados a fazer para entrarem no Tempo e para algumas
outras situações específicas.
Como o ritual de iniciação religiosa dos judeus era a circuncisão, certamente, por isso,
não encontramos o batismo em nenhum passo do Antigo Testamento.
A primeira vez em que ele aparece, na Bíblia, é no Novo Testamento, quando João, o
batista, às margens do rio Jordão, batizava, para o perdão dos pecados, aqueles que
confessavam publicamente os seus (Mt 3,6). Jesus vai a seu encontro para ser batizado, mas
João reconhecendo que o Mestre é maior que ele Lhe diz: “Eu é que preciso ser batizado por
ti, e tu vens a mim?” (Mt 3,14); entretanto, por insistência do Messias, batiza–O.
Imediatamente após o batismo, uma voz, vinda do céu, afirma: “Este é o meu filho amado,
que muito me agrada” (Mt 3,17).
É-nos estranha essa atitude de Jesus, porquanto João Batista somente batizava os que
vinham a seu encontro para confessar os seus pecados (Mt 3,5-6), o que, segundo Marcos,
significava que fazia o batismo de conversão para o perdão dos pecados (Mc 1,4-5). Seria o
caso de se perguntar: Jesus, então, tinha pecados? Estaria ele se convertendo naquele
momento? Fica-nos difícil aceitar isso...
Observamos que João Batista identificou Jesus como o Messias, fato confirmado pelo
plano espiritual (a voz que vinha do céu); diante disso, concluímos que não haveria a mínima
possibilidade de dúvida por parte da “voz que clama no deserto” de quem Ele era. Entretanto,
isso não é um fato, pois, algum tempo depois, logo após ser preso, João Batista manda alguns
de seus discípulos perguntarem a Jesus: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar
outro?" (Mt 11,2-3). Falta coerência nisso, já que, conforme relatado, João sabia perfeitamente
quem era Jesus, e se, porventura, houvesse alguma dúvida de sua parte, ela teria sido
completamente sanada pela manifestação espiritual ocorrida após o batismo, que apresenta
Jesus como o Messias. Assim, a dúvida é de nossa parte para saber qual das duas situações
realmente ocorreu, já que uma é contraditória à outra.
Então, não é de todo improvável que a passagem, que relata o batismo de Jesus, é que
não espelhe a realidade, que pode muito bem ter sido criada para validar e justificar o ritual do
batismo realizado pelas igrejas ditas cristãs, pois, o que nos é claro é que elas, na verdade,
praticam mesmo é o batismo de João. Tal prática ritualística vem, a nosso ver, contrariar o que
o próprio João Batista afirmou: “Eu batizo vocês com água para a conversão. Mas aquele que
vem depois de mim é mais forte do que eu. E eu não sou digno nem de tirar-lhe as sandálias.
Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3,11); o que é uma
evidente demonstração de que o batismo que ele praticava era um ritual que, após a vinda do
Messias, deveria deixar de ser ministrado. Ele colocava, isto sim, o batismo do “Espírito Santo
e com fogo” como aquele a que todos deveriam se submeter, argumento esse que, também,
se pode confirmar de uma ordem de Jesus aos apóstolos: “Não se afastem de Jerusalém.
Esperem que se realize a promessa do Pai, da qual vocês ouviram falar: 'João batizou com
água; vocês, porém, dentro de poucos dias, serão batizados com o Espírito Santo'"
(At 1,4-5). Por isso, concluímos que o relato do batismo aplicado em Jesus é bem provável que
seja mesmo uma interpolação, visto que o batismo que Jesus promete é o “com o Espirito
Santo”, e não o “com água”. Assim, devemos ver que “O símbolo do batismo do Espírito (fogo)
e o caráter e os resultados desse batismo mostram a superioridade do ministério de Jesus, em
contraste com o de João” (CHAMPLIN, vol. 1, 1995a, p. 287-288). Não devemos desconsiderar
que a figura do fogo e do vento são símbolos bíblicos que representam a presença divina
93
(CHAMPLIN e BENTES, 2005b).
Interessante é que os fariseus e os saduceus também queriam ser batizados (Mt 3,7);
entretanto, foram prontamente rechaçados, já que João não via neles nenhuma postura de
arrependimento. Essa atitude dele nos induz a acreditar que não era mesmo sua intenção
colocar o batismo como um ritual, pois, se assim o fosse, ele teria batizado aquela “raça de
víboras”. João Batista deixou claro o motivo mais importante pelo qual estava batizando ao
dizer: "... para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando com
água" e "... o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que
vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo" (Jo
1,31-33). Ou seja, foi apenas para ele identificar o Messias. Mas, uma vez cumprido esse
propósito, já que a Lei e os profetas vigoraram até João (Mt 11,13 e Lc 16,16), deixa de ser
necessário o batismo de água praticado por João, passando a vigorar, daí em diante, o batismo
verdadeiro, o de Jesus. Este, sim, é o autêntico batismo cristão: com Espírito Santo e com
fogo. Com o primeiro simbolicamente se limpa por fora; já com o segundo se transforma por
dentro.
Há uma curiosidade nessa passagem de João; vejamo-la a partir do versículo 29 ao 34,
deixando em separado o que queremos ressaltar:
“No dia seguinte, João viu Jesus, que se aproximava dele. E disse: "Eis o Cordeiro de
Deus, aquele que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu falei: 'Depois de
mim vem um homem que passou na minha frente, porque existia antes de mim'.
31. Eu também não o conhecia. Mas vim batizar com água, a fim de que ele se
manifeste a Israel." 32. E João testemunhou: "Eu vi o Espírito descer do céu,
como uma pomba, e pousar sobre ele.
33. Eu também não o conhecia. Aquele que me enviou para batizar com água, foi
ele quem me disse: 'Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e pousar, esse é
quem batiza com o Espírito Santo'. 34. E eu vi, e dou testemunho de que este é
o Filho de Deus." (Jo 1,29-34)
Essa duplicidade de informações dos versículos 31-32 com 33-34 (observar os
destaques em negrito), parecem-nos algo sem sentido, “soando” mais como uma tentativa de
modificar o texto anterior, que pode até não ter sido o original, já que os originais foram
totalmente “perdidos”, ao longo do tempo.
Ademais, observemos que, embora Mateus, Marcos e Lucas afirmassem que Jesus
tenha sido batizado, João, o evangelista, um dos discípulos bem próximo a Jesus, nada diz
sobre isso. É singular este fato, para algo que dizem ser muito importante. E se o batismo
fosse tão imprescindível como alguns afirmam, então, por que Jesus não atendeu a João
Batista, que Lhe disse “eu é que devo ser batizado por ti” (Mt 3,14)? Sem contar que os
apóstolos não foram batizados em água, mas o foram no Espírito Santo (At 1,4-5; 2,4).
Exatamente por isso é que podemos reafirmar que, a nosso ver, o batismo em água não possui
sustentação bíblica para a sua aplicação, pois estaria contrariando a determinação de Jesus,
citada em At 1,4-5, cujo teor veremos mais adiante, que é o mesmo que foi revelado a João
Batista (Jo 1,33).
Vejamos que Paulo, o apóstolo dos gentios, percebe claramente essa diferença:
“... Paulo... chegou a Éfeso e, achando ali alguns discípulos, perguntou-lhes:
Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes? Responderam-lhe eles: Não, nem
sequer ouvimos que haja Espírito Santo. Tornou-lhes ele: Em que fostes batizados
então? E eles disseram: No batismo de João. Mas Paulo respondeu: João
administrou o batismo do arrependimento, dizendo ao povo que cresse naquele que
após ele havia de vir, isto é, em Jesus. Quando ouviram isso, foram batizados em
nome do Senhor Jesus. Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o
Espírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam” (At 19,1-6).
Com isso fica claro que o batismo de João, ou seja, o de água, não tinha valor; caso
contrário, Paulo teria deixado as coisas como estavam, uma vez que já haviam sido
submetidos ao batismo de João e não teria ministrado o batismo em nome do Senhor Jesus,
94
que fica claro ser pela imposição das mãos. E quanto ao fato de se batizar “em nome de Jesus”
e não “em nome da Trindade” queremos, neste momento, caro leitor, apenas chamar a sua
atenção, pois iremos falar sobre isso um pouco mais à frente.
Em outra oportunidade Paulo disse enfático: “De fato, Cristo não me enviou para
batizar, mas para anunciar o Evangelho...” (1Cor 1,17), do que podemos ver claramente que,
na sua convicção, fundamentada na orientação de Cristo, o batismo não era importante para
salvação de ninguém. Além disso, parece-nos bastante inusitado que Jesus não tenha enviado
Paulo, o “vaso escolhido” (At 9,15), para batizar, quando supostamente teria instruído os seus
discípulos, quanto a essa prática. Aliás, é sabido que a expansão do cristianismo se deve
exatamente a ele. Que Jesus tenha realmente orientado os discípulos sobre isso, é, para nós,
algo controverso; porém, a instrução “ide e pregai a todas as nações” (Mt 28,19) confirma
essa instrução a Paulo para anunciar o Evangelho, porquanto, trata-se da mesma coisa com
palavras diferentes.
O curioso é que Paulo vai ainda mais longe: também era contrário ao ritual que
praticavam naquela época, no caso, a circuncisão. Senão vejamos:
“De resto, cada um continue vivendo na condição em que o Senhor o colocou, tal como
vivia quando foi chamado. É o que ordeno em todas as igrejas. Alguém foi chamado à
fé quando já era circuncidado? Não procure disfarçar a sua circuncisão. Alguém não era
circuncidado quando foi chamado à fé? Não se faça circuncidar” (1Cor 7,17-18).
Evidentemente, não deixou de questionar tal ritual dizendo: “Qual é a utilidade da
circuncisão” (Rm 3,1)? Ele, Paulo, responde demonstrando que isso não faz a menor diferença:
”Não tem nenhuma importância estar ou não estar circuncidado. O que importa é
observar os mandamentos de Deus” (1Cor 7,19). Justificando o seu entendimento: “Então,
será que Deus é Deus somente dos judeus? Não será também Deus dos pagãos? Sim, ele é
Deus também dos pagãos. De fato, há um só Deus que justifica, pela fé, tanto os
circuncidados como os não circuncidados” (Rm 3,29-30).
Usando dos mesmos argumentos de Paulo, em relação ao batismo de água, diríamos:
“não tem nenhuma importância estar ou não estar batizado, já que o que importa é observar
os mandamentos de Deus”.
Oportuno registrarmos estas considerações de Champlin a respeito de Paulo:
Dando prosseguimento às definições expostas pelo apóstolo Paulo, devemos
também observar que em nenhuma de suas passagens dogmáticas acerca da
salvação ele vincula o batismo em água com a mesma. Os capítulos primeiro a
quinto de sua epístola aos Romanos, onde ele considera cuidadosamente toda a
questão da justificação e com minúcias, devem ser objeto de nosso exame. Não
há ali qualquer alusão ao batismo em água. Chegando ao sexto capítulo dessa
mesma epístola, onde o batismo em água é símbolo de nossa união vital e
essencial com Cristo, em sua morte e ressurreição - a morte ao pecado, a
ressurreição à vida que conduz à salvação - é impossível pensarmos, por
esse trecho, que o batismo em água ocupasse a elevada posição, no
cristianismo primitivo, que o mesmo ocupa dentro do esquema falso da
regeneração batismal. Ora, Paulo jamais teria ignorado a posição do batismo em
água, em suas passagens dogmáticas sobre a salvação, se esse fizesse parte
integrante da salvação. É muito árduo para a fé de quem quer que seja pensar
que Paulo tenha defendido qualquer doutrina que se assemelhasse, ainda que
remotamente, à regeneração pelo batismo, se por batismo, estivéssemos nos
referindo ao ato externo de sermos batizados em água, mediante aspersão,
derramamento, imersão ou qualquer outro modo. (CHAMPLIN, vol. 3, 2005c, p.
67) (grifo nosso).
Portanto, fica clara a posição do batismo em água no cristianismo nascente.
Para análise e melhor entendimento desse assunto, podemos dividir os acontecimentos
em dois períodos: o primeiro é relacionado aos que sucederam durante a vida de Jesus,
enquanto que o segundo se refere aos ocorridos depois de sua morte. Isso é importante para
separar o joio do trigo; mas, para tanto, devemos, primeiramente, questionar: Jesus batizou
alguém? Orientou a seus discípulos a fazê-lo? Teriam sido eles batizados? Se Jesus falou de
95
algum batismo, devemos procurar saber qual. Vejamos o que podemos encontrar no primeiro
período dos acontecimentos.
Quanto a saber se Jesus batizou alguém, só no Evangelho de João é que vamos
encontrar algo a esse respeito. Em determinado momento ele diz que sim, ou seja, que Jesus
batizava; porém depois desmentiu e disse que não; mas quem batizava eram seus discípulos
(Jo 4,1-2). Em relação a seus discípulos é fato curioso, pois nenhum dos outros evangelistas
afirmou isso; somente em João é que consta essa história, que mais parece ser “história”
mesmo. Isso é incomum, pois não vemos, em momento algum, Jesus orientando a seus
discípulos para que realizassem tal prática, o que podemos comprovar com o seguinte passo:
“Então Jesus chamou seus discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos
maus, e para curar qualquer tipo de doença e enfermidade... Jesus enviou os Doze
com estas recomendações:... ‘Curem os doentes, ressuscitem os mortos,
purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça, deem
também de graça!...’” (Mt 10,1-8, ver tb Mc 3,14-15 e Lc 9,1-2).
Por outro lado, mesmo que seja verdadeira a hipótese dos discípulos de Jesus estarem
batizando, isso não significa que praticavam o batismo em água, porquanto, o texto de João
(Jo 4,1-1) não especifica qual tipo de ritual eles estariam adotando.
De outra feita, Jesus faz várias recomendações a setenta e dois discípulos (Lc 10,1) não
estando, também, entre elas o batismo. Assim, observamos que Jesus, quando vivo, passou
várias orientações aos discípulos, mas não há nenhuma relacionada ao batismo. Será que
depois de morto teria mudado de ideia, uma vez que tal recomendação só aparece após este
fato? É o que veremos agora.
Entrando agora no segundo período, perguntamos: depois de sua morte, o que
aconteceu? Encontramos no evangelho apenas duas passagens em que, supostamente, Jesus
teria orientado o batismo. Falamos supostamente, pois demonstraremos que uma delas é
interpolação grosseira e a outra um reconhecido acréscimo ao texto primitivo.
Analisemos a primeira passagem em que aparecem as orientações de Jesus ressurreto
aos discípulos (ver tb Mc 16,14-18):
Mt 28,16-20: ”Os onze discípulos foram para a Galileia,... Então Jesus se aproximou, e
falou: '... Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus
discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, e
ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês...'”.
Essa passagem é o que, por último, encontramos em Mateus, fechando, vamos assim
dizer, o seu evangelho; porém, é somente nele que se vê a recomendação de se batizar “em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”; ou seja, em toda a Bíblia é o único passo que diz
isso. Chama-nos a atenção o fato de que, naquela época, não se acreditava na Trindade,
provando que isso é uma vergonhosa interpolação para justificar a reimplantação de práticas
ritualistas pagãs, posteriormente à morte de Jesus. Agiram dessa forma para transparecer que
era coisa comum no período em que Ele ainda vivia entre os discípulos.
Léon Denis (1846-1927), em Cristianismo e Espiritismo, disse:
Depois da proclamação da divindade de Cristo, no século IV, depois da
introdução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século VII, muitas
passagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que exprimissem as
novas doutrinas (Ver João I, 5,7). “Vimos, diz Leblois (145), na Biblioteca
Nacional, na de Santa Genoveva, na do mosteiro de Saint-Gall, manuscritos em
que o dogma da Trindade está apenas acrescentado à margem. Mais tarde
foi intercalado no texto, onde se encontra ainda”.
______
(145) “As bíblias e os iniciadores religiosos da humanidade”, por Leblois, pastor de
Strasburgo.
(DENIS, 1987, p. 272) (grifo nosso).
Grifamos apenas para ressaltar que a origem dessa informação foi tirada da fala de um
96
pastor; isto é importante para demonstrar a imparcialidade de quem dá a notícia.
Entretanto, para nossa própria e grata surpresa, conseguimos também perceber essa
interpolação, ao lermos Orígenes (185-254), considerado como um dos “Pais da Igreja”, que
viveu na Antiguidade cristã. Na sua obra apologética intitulada Contra Celso (cerca de 248),
ele, refutando as críticas deste filósofo pagão contra os cristãos, transcreve, em seu discurso,
muitas passagens bíblicas, e, entre elas, cita Mt 28,19 com o seguinte teor: “Ide, portanto, e
fazei que todas as nações se tornem discípulos” (ORÍGENES, 2004, p. 154), o que atesta que a
expressão “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” foi mesmo um
acréscimo posterior, para, certamente, com ele se justificar o dogma da Trindade.
O historiador e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, David Flusser (19172000), que lecionou no Departamento de Religião Comparada por mais de 50 anos, nascido na
Áustria, foi estudioso da literatura clássica e talmúdica, conhecia 26 idiomas, informa que:
De acordo com os manuscritos de Mateus que foram preservados, o Jesus
ressuscitado ordenou aos seus discípulos batizar todas as nações “em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”. A fórmula trinitária franca, aqui, é de fato
notável, mas já foi mostrado que a ordem para batizar e a fórmula trinitária
faltam em todas as citações das passagens de Mateus nos escritos de
Eusébio anteriores ao Concílio de Niceia. O texto de Eusébio de Mt 28:19-20
antes de Niceia era o seguinte: “Ide e tornai todas as nações discípulas em meu
nome, ensinando-as a observar tudo o que vos ordenei”. Parece que Eusébio
encontrou essa forma do texto nos códices da famosa biblioteca cristã em
Cesareia.75 Esse texto mais curto está completo e coerente. Seu sentido é claro
e tem seus méritos óbvios: diz que o Jesus ressuscitado ordenou que seus
discípulos instruíssem todas as nações em seu nome, o que significa que os
discípulos deveriam ensinar a doutrina de seu mestre, depois de sua morte, tal
como a receberam dele. (FLUSSER, 2001, p. 156) (grifo nosso).
O “ide e tornai todas as nações discípulas em meu nome, ensinando-as a observar tudo
o que vos ordenei”, aqui citado, é algo que não se pode desprezar, porquanto, Eusébio de
Cesareia (c. 265-339), defendendo a divindade de Cristo, em História Eclesiástica, nada
advogou a favor da Trindade, que é justamente o que se quer fazer crer existir no texto de
Mateus (28,19-20).
É importante, também, transcrevermos a nota 75 em que Flusser menciona a sua base
de informação:
Ver D. Flusser, "The Conclusion of Matthew in a New Jewish Christian
Source", Annual of the Swedish Theological lnstitute, vol. V, 1967, Leiden, 1967,
pp. 110-20; Benjamin J. Hubbard, “The Matthean Redaction of a Primitive
Apostolic Commissioning", SBL, Dissertation Series 19, Montana, 1974. Mais
testemunho da conclusão não-trinitária de Mateus está preservado num
texto copta (ver E. Budge, Miscelleaneous Coptic Texts, Londres, 1915, pp. 58
e seguintes, 628 e 636), onde é descrita uma controvérsia entre Cirilo de
Jerusalém e um monge herético. "E o patriarca Cirilo disse ao monge: 'Quem te
mandou pregar essas coisas?' E o monge lhe disse: 'O Cristo disse: Ide a todo o
mundo e pregai a todas as nações em Meu nome em cada lugar". O texto é
citado por Morcon Smith, Clement of Alexandria and a Secret Cospel of Mark,
Harvard University Press, Cambridge, Mass, 1973, p. 342-6. (FLUSSER, 2001, p.
170) (grifo nosso).
Na sequência, Flusser diz que...
“um testemunho adicional das versões mais curtas de Mt 28:19-20a
foi descoberto há pouco tempo numa fonte judeu-cristã...” (FLUSSER,
2001, p. 156), citando como fonte: “Sh. Pinès, 'The Jewish Christians of the
Early Centuries of Christianity According to a New Source', The Israel Academy
of Sciences and Humanities Proceedings, vol. II, nº 13, Jerusalém, 1966, p. 25”.
(FLUSSER, 2001, p. 170) (grifo nosso).
97
Apresentamos o jornalista espanhol Pepe Rodríguez (1953- ), que abordando esse
assunto, na obra Mentiras fundamentais da Igreja Católica, afirma o seguinte:
[…] a Igreja, ao basear-se em Mt 28,19, para afirmar que é católica, “porque
a missão que lhe foi atribuída por Cristo se refere à totalidade do género
humano”, comete dois atropelos. Por um lado, baseia-se num versículo que é
uma interpolação, dado tratar-se de um versículo que foi
posteriormente acrescentado ao texto original de Mateus. […]
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 210) (grifo nosso).
Para corroborar tudo isso, iremos apresentar a opinião de Geza Vermes, um dos
maiores especialistas sobre a história do cristianismo, que, falando sobre esse passo, disse:
[...] Nos programas missionários anteriores, não houve questão quanto ao
batismo, e menos ainda quanto a batizar nações inteiras. Além disso, o batismo
administrado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo não tem
precedente não só nos Evangelhos, mas também em qualquer lugar de
todo o Novo Testamento. A fórmula que ocorre em Atos dos Apóstolos é
batismo “em nome de” Jesus (At 2,38; 8,16; 10,48; 19,5) e, em Paulo, batismo
“em Cristo” (Rm 6,3; Gl 3,27). Fora de Mateus, a fórmula trinitária, Pai, Filho e
Espírito Santo ocorre pela primeira vez no manual litúrgico da igreja primitiva
intitulado Didaqué ou Instrução dos Doze Apóstolos, que é datado da primeira
metade do século II d.C. Tudo isso aponta para uma origem tardia de Mt
28,18-20. [...] (VERMES, 2006b, p. 377-378) (grifo nosso).
Com base nessa citação de Vermes, podemos colocar dois argumentos para contradizer
essa passagem de Mateus: 1º) é que Jesus, quando vivo, não recomendou o batismo de água,
mas um outro, o que veremos mais à frente; 2º) em Atos (2,38; 8,16; 10,48 e 19,5) temos a
prova de que se batizava somente “em nome de Jesus”, evidenciando falta grave de quem fez
a interpolação por não ter percebido esse pequeno detalhe. Eh!... Não há mesmo crime
perfeito!
Mas esse fato não passou despercebido pelos tradutores da Bíblia de Jerusalém, que o
minimizam dizendo:
É possível que, em sua forma precisa, essa fórmula reflita influência do uso
litúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva. Sabe-se que o livro dos
Atos fala em batizar “no nome de Jesus” (cf. At 1,5+; 2,38+). Mais tarde deve
ter-se estabelecido a associação do batizado às três pessoas da Trindade.
Quaisquer que tenham sido as variações nesse ponto, a realidade profunda
permanece a mesma. O batismo une à pessoa de Jesus Salvador; ora, toda a
sua obra salvífica procede do amor do Pai e se completa pela efusão do Espírito.
(explicação para Mt 28,19, p. 1758) (grifo nosso).
A segunda passagem, em que se supõe Jesus ter dito algo sobre o batismo, é essa:
Mc 16,14-16: “Por fim, Jesus apareceu aos onze discípulos... disse-lhes: ’Vão pelo
mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade. Quem
acreditar e for batizado, será salvo. Quem não acreditar, será condenado’".
Aqui se percebe claramente que atribuíram essas palavras a Jesus, fato tão óbvio que
se torna difícil negar, especialmente se verificarmos dois pormenores na frase: “quem não
acreditar, será condenado”. O primeiro é que para ela ser coerente com a afirmativa
antecedente de “quem acreditar e for batizado, será salvo”, teria que ser uma sentença
negativa da seguinte forma: “Quem não acreditar e não for batizado, será condenado”. No
segundo, temos que se Jesus só pregou o amor, e sempre admitiu o livre-arbítrio (quem tem
ouvidos ouça), jamais imporia um castigo condenando alguém a alguma coisa. Vale relembrar
o que falou à mulher surpreendida em adultério, que Lhe foi apresentada para que dissesse o
que fazer: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais”. (Jo 8,1-11). Podemos até
sugerir que se faça um teste de veracidade desse passo, recomendando o que se diz sobre os
98
sinais que seguirão aos que creem. O teste é simples: basta que peguem em serpentes e
bebam algum veneno mortífero, pois, na sequência imediata, o texto afirma que nada disso
lhes fará mal (Mc 16,17-18). Essa, pagamos para ver...
Além disso, se compararmos essa passagem com o que encontramos em Atos, veremos
que não era esse o pensamento corrente, já que nessa outra nem se fala em batismo;
vejamos: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e tua casa” (At 16,31). Desconcertante é
que, nesse versículo, se diz que apenas “um da família” precisa crer para que sua casa, quer
dizer, toda sua família, seja salva. Já no verso de Marcos a norma é outra, uma vez que não só
nada foi dito dos familiares, mas, também, porque afirma que a regra para todos é: "quem
crer e for batizado...", levando-nos a uma certeza de ser interpolação mal feita.
Mais complexa fica essa questão da salvação, já que também está dito: “... o Evangelho
que vos preguei,... por ele sereis salvos,...” (1Cor 15,1-2), deixando-nos completamente
perdidos quanto a saber o que efetivamente irá nos salvar; fora o que foi afirmado por Jesus:
“a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27).
Entretanto, para não dar a impressão de que isto é só opinião nossa, vamos apresentar
o que disseram os tradutores da Bíblia de Jerusalém. Leiamos suas observações relativas a
Marcos, capítulo 16, versículos de 9 a 20:
O trecho final de Mc (vv. 9-20) faz parte das Escrituras inspiradas; é tido
como canônico. Isso não significa necessariamente que foi escrito por Mc.
De fato, põe-se em dúvida que este trecho pertença à redação do
segundo evangelho. – As dificuldades começam na tradição manuscrita.
Muitos mss, entre eles o do Vat. e o Sin., omitem o final atual... A tradição
patrística dá também testemunho de certa hesitação. – Acrescentemos que,
entre os vv. 8 e 9, existe, nessa narrativa, solução de continuidade. Além
disso, é difícil admitir que o segundo evangelho, na sua primeira redação,
terminasse bruscamente no v. 8. Donde a suposição de que o final primitivo
desapareceu por alguma causa por nós desconhecida e de que o atual
fecho foi escrito para preencher a lacuna. Apresenta-se como um breve
resumo das aparições do Cristo ressuscitado, cuja redação é sensivelmente
diversa da que Marcos habitualmente usa, concreta e pitoresca. Contudo, o final
que hoje possuímos era conhecido, já no séc. II por Taciano e santo Ireneu, e
teve guarida na imensa maioria dos mss gregos e outros. Se não se pode provar
ter sido Mc o seu autor, permanece o fato de que ele constitui, nas palavras de
Swete, “uma autêntica relíquia da primeira geração cristã”. (Bíblia de Jerusalém,
p. 1785) (grifo nosso).
Apesar desses argumentos, é certo que ainda encontraremos pessoas que continuarão
a aceitar a frase como verdadeira. Mesmo que fosse, por coerência, é muito improvável que
Jesus tivesse falado do batismo de João. O mais certo é que tivesse se referido ao batismo
"com Espírito Santo e com fogo", pois é o que sucede a todo aquele que crê em suas palavras
e pratica seus ensinos.
Concordamos plenamente com a afirmativa de que no texto existe solução de
continuidade (Houaiss: divisão, interrupção, hiato), fácil de se perceber. Nos versículos 1 a 7,
conta que, juntamente com Maria, mãe de Tiago e Salomé, Maria Madalena foi ao sepulcro
bem cedo no primeiro dia da semana. Entraram no túmulo - o verbo no plural implica que
foram as três -, porém nele encontraram somente um jovem que disse que Jesus havia
ressuscitado e que era para elas darem essa notícia aos discípulos, orientando-os para irem
para a Galileia onde o veriam. E aí seguem os versículos 8 a 11, que transcrevemos:
“8. Então as mulheres saíram do túmulo correndo, porque estavam com medo e
assustadas. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo.
9. Depois de ressuscitar na madrugada do primeiro dia após o sábado, Jesus apareceu
primeiro a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.
10. Ela foi anunciar isso aos seguidores de Jesus, que estavam de luto e chorando.
11. Quando ouviram que ele estava vivo e fora visto por ela, não quiseram acreditar”.
Percebe-se que realmente falta algo para completar o versículo 8, pois a interrupção
abrupta é evidente. Entretanto, isso não faz dos versículos 9 a 20 o complemento correto
99
desse capítulo. Aliás, o que constatamos aqui foram três incoerências:
1ª) se foram ao túmulo também Maria, mãe de Tiago e Salomé, por que Jesus somente
apareceu a Maria Madalena se essas três mulheres estavam juntas, até mesmo quando
entraram no túmulo?;
2ª) se foi afirmado que encontraram no túmulo um jovem e não a Jesus, então, Ele, de
fato, até aí, não aparecera a ninguém;
3ª) como o versículo 9 trata do mesmo fato dos versículos anteriores (1 a 7) e vemos
no versículo 8 que as mulheres saíram correndo do túmulo, sem que Jesus tivesse aparecido a
elas, mas apenas um jovem (anjo), como, na sequência (versículo 9), é dito ter Jesus
aparecido a Maria Madalena, e só a ela? Ora, como foi o anjo que apareceu, Jesus só poderia
ter aparecido após o anjo, hipótese em que elas já não estariam mais no túmulo, pois, de
acordo com o versículo 8, elas saíram correndo; logo, igual às outras mulheres, ela já não
estava mais lá; além disso, Madalena não estava sozinha...
Que essa passagem de Marcos não deveria ser usada para sustentar o batismo que
praticam é um fato. Inclusive é o que podemos comprovar pela opinião do tradutor da Bíblia
Anotada que, em relação a Mc 16,9-20, diz: “... A discutível genuinidade dos vv. 9-20 torna
pouco sábio construir uma doutrina ou basear uma experiência sobre eles
(especialmente os vv. 16-18)” (Bíblia Anotada, p. 1265) (grifo nosso). E, especificamente,
quanto ao versículo 16, ele explica: “Esta pode ser uma referência ao batismo do Espírito
Santo (1Cor 12:13). O batismo com água não salva (veja as notas sobre At. 2:38; 1Pe
3:21)” (Bíblia Anotada, p. 1265) (grifo nosso).
Entretanto, sabemos existir corrente religiosa que se apoia nela para não batizar as
crianças, mas somente os adultos. Argumentam que é necessário “crer primeiro” para então
ser batizado; e como uma criancinha não tem condições de crer em nada, não tem sentido
batizá-la, só fazendo isso mais tarde, na época em que já tenha adquirido a capacidade de
decidir por si mesma a sua crença em Jesus. Aliás, como Ele também não foi batizado em
criança, tomam disso um outro argumento para não realizar o batismo naqueles que ainda
estão se alimentando do leite materno. Seria até um bom argumento desde que não estivesse
baseado nessa passagem.
Mais outras opiniões sobre essa parte do evangelho de Marcos:
Mc 16,9-20: Este trecho difere muito do livro até aqui; por isso é
considerado obra de outro autor. Os cristãos da primeira geração
provavelmente quiseram completar o livro de Marcos com um resumo das
aparições de Jesus e uma apresentação global da missão da Igreja. Parece que
se inspiraram no último capítulo de Mateus (28,18-20), em Lucas (24,10-53),
em João (20,11-23) e no início do livro dos Atos dos Apóstolos (1,4-14). (Bíblia
Sagrada, Edição Pastoral, p. 1307) (grifo nosso).
Mc 16,1-8: A conclusão original do evangelho de Marcos é surpreendente e
desconcertante, a ponto de os escritores posteriores terem acrescentado
um epílogo, respaldado como canônico pela autoridade da Igreja... (Bíblia do
Peregrino, p. 2446) (grifo nosso).
Mc 16,9: A passagem 9-20 falta nos manuscritos mais antigos. Não é
provavelmente de Marcos. (Bíblia Sagrada Editora Ave Maria, p. 1344) (grifo
nosso).
Mc 16:9-20: Estes versículos não aparecem em dois dos principais
manuscritos do Novo Testamento, embora estejam presentes num grande
número de outros manuscritos e versões. Se eles não forem parte genuína do
texto de Marcos, o final abrupto do v. 8 deve-se, provavelmente, à perda
dos versículos que formavam a conclusão original. […] (Bíblia Anotada, p.
1265) (grifo nosso).
Seguindo em nossa análise, veremos que, pelo evangelho de Lucas (cap. 24), nada foi
recomendado aos discípulos com relação a esse nosso assunto. Mas, como Lucas, segundo os
exegetas, é o autor do livro Atos dos Apóstolos, é nele que encontramos as recomendações de
Jesus, na versão desse evangelista:
100
At 1,1-5: “... Jesus começou a fazer e ensinar, desde o princípio, até o dia em que foi
levado para o céu. Antes disso, ele deu instruções aos apóstolos que escolhera, movido
pelo Espírito Santo... Estando com os apóstolos numa refeição, Jesus deu-lhes esta
ordem: ‘Não se afastem de Jerusalém. Esperem que se realize a promessa do Pai, da
qual vocês ouviram falar: 'João batizou com água; vocês, porém, dentro de
poucos dias, serão batizados com o Espírito Santo’...”.
Conforme já dissemos anteriormente, Jesus pregou, sim, um batismo, mas o batismo
do Espírito Santo e não o da água. E aqui, dessa passagem, não consta que devemos ser
batizados “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, como está em Mateus, evidenciando,
mais uma vez, que isso é mesmo uma interpolação. E, em relação aos discípulos, o batismo do
Espírito Santo, foi o único ao qual eles se submeteram; o que nos leva a concluir que, caso
houvesse necessidade de batismo, esse é o que deveria ter sido feito. O cotejo entre “João
batizou com água” e “vocês, porém,... serão batizados com o Espírito Santo” demonstra, de
forma cristalina, ser este último o que deve prevalecer, conforme já o dissemos.
Sobre esse passo, vejamos como Champlin o aborda:
Na história da interpretação desse batismo do Espírito Santo, originalmente
se entendia que era algo separado e distinto do batismo em água; mas,
finalmente, veio a ficar ligado a essa ordenança externa, especialmente
naquelas porções da igreja cristã onde eram exageradas a importância e as
bênçãos decorrentes do batismo em água. Porém, essa associação do batismo
do Espírito Santo e sua operação, com o batismo em água, labora em erro
patente, porque se trata de duas coisas inteiramente separadas,
porquanto em sentido algum o batismo em água pode realizar o que o
batismo do Espírito Santo visa fazer no crente. Alguns intérpretes procuram
mostrar que o batismo em água confere ao indivíduo aquilo que o batismo do
Espírito Santo promete fazer, e usam o trecho de Atos 19:1-6 na tentativa de
demonstrá-lo. Porém, apesar de ser verdade que o batismo cristão em água é
exaltado nessa passagem do batismo de João, contudo, o sexto versículo, que
descreve a imposição de mãos por parte dos apóstolos, que conferiu aos
indivíduos envolvidos no relato o batismo ou plenitude do Espírito, aparece como
algo separado e distinto, isto é, uma ação distinta do batismo em água, que
aparece no quinto versículo daquele mesmo capítulo, sendo evidente que as
duas coisas não têm por intuito ser entendidas como se fossem a mesma coisa,
partes integrantes de uma mesma ação e bênção. As interpretações
sacramentais do batismo em água, entretanto, têm exagerado e
obscurecido o seu sentido, o qual, apesar de importante, não é mesmo
atribuído ao batismo do Espírito Santo. (CHAMPLIN, vol. 3, 2005c, p. 25)
(grifo nosso).
Podemos, ainda nesse ponto, colocar o que Pedro disse: “Foi então que me lembrei da
declaração do Senhor, quando disse: ‘É verdade que João batizou com água, mas vós
sereis batizados no Espírito Santo’” (At 11,16). Essa passagem confirma a citada
anteriormente, na qual se encontra o que Lucas disse.
E, por fim, vejamos a narrativa de João.
Jo 20,19-23: “Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadas
as portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dos
judeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: ‘A paz esteja com vocês’. ‘... Assim
como o Pai me enviou, eu também envio vocês’. Tendo falado isso, Jesus soprou
sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que
vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não
perdoarem, não serão perdoados’".
Em João não encontramos Jesus recomendando diretamente nenhum tipo de batismo.
Mas, por outras passagens, já citadas, podemos entender que “ao soprar sobre os discípulos”
Jesus estava realizando o batismo do Espírito Santo, aquele que tinha prometido a eles.
Inclusive, era esse o praticado pelos discípulos; senão vejamos:
At 2,38: “Pedro lhes respondeu: ‘Convertei-vos e cada um peça o batismo em nome
101
de Jesus Cristo, para conseguir perdão dos pecados. Assim recebereis o dom do
Espírito Santo’”.
At 10,44-48: “Pedro ainda falava, quando o Espírito Santo desceu sobre todos os
que escutavam seu discurso. Os fiéis de origem judaica, que tinham ido de Jope com
Pedro, ficaram admirados por verem que o dom do Espírito Santo tinha sido
derramado também sobre os não-judeus. De fato, eles os ouviam falar em diversas
línguas e glorificar a Deus. Então Pedro disse: ‘Quem poderá recusar a água do
batismo a esses, que receberam o Espírito Santo da mesma forma que nós?’ E decidiu
que fossem batizados em nome de Jesus Cristo...”.
Observe, caro leitor, que uma parte do passo de Atos 10,44-48 tem tudo para ter
sofrido uma interpolação; talvez por quererem justificar o batismo com água. Vejamos o
trecho para análise: “Então Pedro disse: ‘Quem poderá recusar a água do batismo a esses,
que receberam o Espírito Santo da mesma forma que nós?’”. Se dele retirarmos a expressão
“a água do batismo” o texto estaria mais coerente em sua estrutura e significado; senão
vejamos: “Quem poderá recusar a esses, que receberam o Espírito Santo da mesma forma
que nós?” Assim, percebemos que a expressão “a água do batismo” não tem nada a ver com o
assunto abordado por Pedro, que, certamente, questionava se essas pessoas iriam ser
recusadas, mesmo depois de terem recebido o “dom do Espírito Santo”. Isso pode ser
facilmente confirmado na sequência de Atos, quando narra Pedro tentando explicar o
acontecido aos fiéis de origem judaica:
At 11,15-18: “Logo que comecei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles, da
mesma forma que desceu sobre nós no princípio. Então eu me lembrei do que o
Senhor havia dito: 'João batizou com água, mas vocês serão batizados no Espírito
Santo'. Deus concedeu a eles o mesmo dom que deu a nós por termos acreditado
no Senhor Jesus Cristo. Quem seria eu para me opor à ação de Deus?' Ao ouvir isso, os
fiéis de origem judaica se acalmaram e glorificaram a Deus, dizendo: 'Também aos
pagãos Deus concedeu a conversão que leva para a vida!'.
Diante disso, a questão da expressão “a água do batismo”, em At 10,47, nos remete a
uma interpolação, visando justificar a instituição do ritual do batismo de água.
Ressaltamos, também, a questão falada anteriormente, quando comentamos At 19,1-6,
sobre a fórmula do batismo, que, ao invés de “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”,
batizavam somente “em nome de Jesus”. Aliás, com relação a essa última expressão, podemos
encontrar dez outras passagens [5] nas quais se diz para fazer algo “em nome de Jesus”,
enquanto que nenhuma em relação à primeira, pois a única encontrada provou-se ser uma
interpolação. Mesmo que se aceite o batismo de água, vê-se que a decisão de Pedro em At
10,48 foi a de batizar em nome de Jesus e não no da “santíssima” trindade.
Em meio ao que conseguimos levantar nos Atos dos Apóstolos, encontramos duas
passagens interessantes; uma confirma tudo a respeito do batismo do Espírito Santo,
enquanto a outra estabelece um certo conflito com isso; vejamo-las:
At 8,15-18: “Ao chegarem, Pedro e João rezaram pelos samaritanos, a fim de que eles
recebessem o Espírito Santo. De fato, o Espírito ainda não viera sobre nenhum deles; e
os samaritanos tinham apenas recebido o batismo em nome do Senhor Jesus.
Então Pedro e João impuseram as mãos sobre os samaritanos, e eles receberam o
Espírito Santo. Simão viu que o Espírito Santo era comunicado através da imposição
das mãos...”
At 19,3-6: “Paulo perguntou: 'Que batismo vocês receberam?' Eles responderam: 'O
batismo de João'. Então Paulo explicou: 'João batizava como sinal de arrependimento e
pedia que o povo acreditasse naquele que devia vir depois dele, isto é, em Jesus'. Ao
ouvir isso, eles se fizeram batizar em nome do Senhor Jesus. Logo que Paulo lhes
impôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles, e começaram a falar em línguas e a
profetizar”.
5
Mt 18,5; 18,20; 24,5; Mc 9,39; 9,41; 16,17; Jo 14,13-14; 14,26; 15,26; 16,23-24.26.
102
Na primeira, a impressão que se tem é que havia um batismo em nome de Jesus, talvez
se referindo ao batismo em água, e um outro no qual receberam o Espírito Santo; enquanto
que, na segunda, o batizar em nome de Jesus se liga ao batismo do Espírito Santo, realizado
pela imposição de mãos. Então surge a natural dúvida: haverá dois batismos? Bom; quem irá
nos responder essa questão é Paulo, que, taxativo, disse aos efésios: “há um só Senhor, uma
só fé, um só batismo“ (Ef 4,5).
Há ainda uma outra passagem bíblica em que, apesar de não se relacionar ao batismo,
querem os teólogos, com suas interpretações dogmáticas, atribuir-lhe tal sentido. É a
passagem que narra o diálogo de Jesus com Nicodemos, conforme o evangelho de João:
Jo 3,1-12: “[...] Jesus lhe respondeu: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não
nascer de novo não pode ver o Reino de Deus’. Disse-lhe Nicodemos: ‘Como pode um
homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e nascer?’
Respondeu-lhe Jesus: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e
do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o que
nasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: deveis nascer de
novo. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde ele vem
nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito’.
Perguntou-lhe Nicodemos: ‘Como isso pode acontecer?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘És
mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em verdade, te digo: falamos do
que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém, não acolheis o nosso
testemunho. Se não credes quando vos falo das coisas da terra, como crereis quando
vos falar das coisas do céu?’”
Sobre esse assunto, o primeiro ponto, inclusive, já poderíamos ter falado antes, quando
citamos trechos do evangelho de João. É que nos parece muito estranho atribuir a autoria
desse evangelho a ele, porquanto sabemos que foi escrito em grego - por volta de 100 d.C. - e
que, como Pedro, João era iletrado e sem instrução (At 4,13), ficando-nos uma enorme
suspeita de que “falaram” por ele; ou, então, isso veio por uma provável psicografia. O
segundo é em relação ao fato de que Jesus não batizou nem recomendou batismo de água a
ninguém, conforme estamos constatando neste estudo.
Quanto ao conteúdo deste texto, não há explicação para que Nicodemos “ignorasse
essas coisas”, sendo ele um membro do Sinédrio, especialmente se Jesus estivesse se
referindo ao batismo, pois, se fosse isso mesmo, certamente ele O teria entendido. Se
ignorava, é porque, na verdade, era sobre outra coisa que Jesus lhe falava. Pelos seus
questionamentos a Jesus, fica claro que era algo muito mais profundo do que um simples
ritual, como o do batismo; portanto, seria um assunto mais complexo que esse. Com certeza,
a reencarnação é algo assim, já que a maioria das pessoas, por “ignorar essas coisas”, não
sabe exatamente como pode “um homem velho voltar a nascer de novo; porventura, irá
entrar no seio de sua mãe e nascer”? A esses, Jesus replicaria, como já o fizera antes: “Não te
admires disso”.
Para justificarem o batismo nessa passagem concentram seus argumentos no trecho
“quem não nascer da água”, pretendendo jogar por terra todo o simbolismo que, naquele
tempo, se via nisso:
[...] A água tinha grande simbolismo entre os hebreus: tanto o espírito como
as águas são fecundos (Is 32:15; 44,3; Ez 36:25-27); o espírito é coisa que
Deus envia e derrama, como água (Jl 3,1-2; Zc 12;10). Água era uma expressão
para indicar influências boas ou más, como no (Sl 1,3): “Pois será como a árvore
plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, e
cujas folhas não caem; e tudo quanto fizer prosperará”. [...] (PALHANO, 2001,
p. 403).
Então, concluímos que Jesus, após sua ressurreição, manteve-se coerente com o que
pensava sobre o batismo aquoso antes de sua morte; a mudança ocorreu por conta de
interpolações e acréscimos. Ainda bem!
A justificativa de alguns para o ritual do batismo, é porque todos, ao nascermos,
trazemos como herança (genética?) o pecado original. De fato, é bastante “original” o pecado
103
de Adão e Eva; apenas isso, pois, ao imputarem-no a todos nós, além de cometerem a maior
das injustiças, é contrário ao que determina “a palavra de Deus”, para usar da linguagem dos
dogmáticos:
Dt 24.16: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos
pais. Cada um será executado por causa de seu próprio crime”; ou
Ez 19,20: “O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca será
responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho”.
Mas, se tal coisa é verdadeira, se devemos ser batizados por conta do pecado original,
então como justificar o batismo de Jesus, já que todos nós acreditamos que Ele tenha nascido
puro? Por que Jesus nunca disse: Vá, seja batizado e será salvo? Evidentemente é porque
Jesus nunca pregou o batismo de João, apesar de, conforme já o dissemos, encontrarmos uma
passagem bíblica (Mc 16,14-16), sobre a qual já comentamos, colocando isso como se fossem
palavras de Jesus.
Por outro lado, entre o ritual do batismo praticado por João Batista e o realizado hoje
em dia, há grande diferença, pois o anterior era o batismo do arrependimento que só era
realizado após a pessoa confessar seus pecados, o que não acontece quando, por exemplo, se
batiza uma criança recém-nascida. De fato, o batismo nos primeiros tempos do cristianismo
era tido como sendo um ritual que conferia uma espécie de selo ao novo cristão, ao novo
convertido, ou seja, o ritual não era uma causa, mas uma consequência da conversão. E hoje,
mesmo no caso de pessoas adultas, que fizeram "estudo bíblico" para se batizarem, elas não
confessam seus pecados nem antes, nem durante, nem após a cerimônia. Além disso, o ritual
era o de submersão (mergulho); mas vemos que, nas práticas atuais, nem sempre o fazem
dessa forma, já que, em determinadas correntes religiosas, apenas se esparge água sobre o
crente, enquanto que em outras se derrama água sobre a sua cabeça. Com isso, ratificamos o
que dissemos anteriormente sobre as igrejas cristãs praticarem mesmo é só o batismo de
João.
Mas, quem tem razão? Qual dos “Espíritos Santos” lhes está inspirando o batismo
correto? E como saber se a pessoa, que está batizando, está mesmo inspirada por um espírito
santo?
Uma outra questão: as mulheres eram batizadas? Segundo narrativa bíblica, sim (At
8,12); mas isso é inusitado já que, pela cultura da época, as mulheres não tinham o menor
valor; inclusive, parece-nos que nem mesmo participavam dos rituais religiosos (1Cor 14,3435), só admitidos aos homens. Convém relembrar ainda que o ritual de iniciação judaica era a
circuncisão; obviamente, feita somente aos do sexo masculino. Sabendo-se que as mulheres
estão salvas “por dar à luz filhos” (1Tm 2,15), não haveria necessidade de batizá-las visandolhes a salvação por esse ritual; não é mesmo? E como fica o pecado cometido por Eva, o
famoso pecado original?
Justificam alguns que, pelo fato de Jesus ter sido batizado, nós também devemos sê-lo.
Embora já tenhamos demonstrado por que Jesus foi batizado (Jo 1,31.33), afirmamos que, se
o simples fato dele ter sido batizado nos obriga a isso, então, por questão de coerência e de
lógica, devemos manter o ritual da circuncisão, já que Jesus também se submeteu a tal
prática. Ah! Só mais um lembrete: Jesus também foi crucificado... Quem se habilita?
Outros mais, talvez, apresentem alguma passagem bíblica para corroborar o batismo,
por puro apego a rituais, dos quais não querem largar mão; por isso não buscam uma visão do
conjunto e se dão por satisfeitos com a primeira passagem que encontram. Muitos desses,
provavelmente, irão querer contestar esse nosso texto; mas, se não pesquisam sobre o
assunto e ainda ficam presos às interpretações dogmáticas, o que poderemos fazer?... A esses
apenas apresentamos esta passagem:
Hb 5,11-14: “Temos muito a dizer sobre este assunto, mas é difícil explicar, porque
vocês se tornaram lentos para compreender. Depois de tanto tempo, vocês já deviam
ser mestres; no entanto, ainda estão precisando de alguém que lhes ensine as coisas
mais elementares das palavras de Deus. Em vez de alimento sólido, vocês ainda estão
precisando de leite. Ora, quem precisa de leite ainda é criança, e não tem experiência
para distinguir o certo do errado. E o alimento sólido é para os adultos que, pela
104
prática, estão preparados para distinguir o que é bom e o que é mau”.
Certamente, que, também, não poderemos desconsiderar os que, tentando justificar o
batismo, virão a nós apresentando um documento, no qual dizem estar algumas
recomendações de Jesus a seus discípulos, intitulado Didaquê, ou Ensino dos Doze Apóstolos.
O escritor e tradutor Henry Bettenson (1910-1979), em Documentos da Igreja Cristã,
cita essa obra informando que ela foi descoberta em Constantinopla no ano de 1875, com data
incerta e autor desconhecido, procedência e importância controvertidas. (BETTENSON, 1967,
p. 100). Vejamos, a transcrição:
VII. Quanto ao batismo, batizareis na forma seguinte: tendo como
antecipadamente disposto todas as coisas, batizai em o nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, em água viva; se não tiverdes água viva, batizai em
outra água; se não puderdes em água fria, fazei em água quente. Se não
tiverdes nem uma nem outra, derramai água na cabeça três vezes em o nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, jejuem, além de outros
que o possam, o batizante e o postulante. A este último mande-se jejuar um ou
dois dias antes.
…..........................................................................................
IX. No tocante à eucaristia, dareis graças desta maneira: primeiramente
sobre o cálice: “Damos-te graças, Pai nosso, pela santa vinha de Davi, teu
servo, que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu Servo. A ti seja glória
eternamente!”. Em seguida, sobre o pão partido: “Damos-te graças, Pai nosso,
pela vida e pelo conhecimento que nos manifestaste mediante Jesus, teu Servo.
A ti seja a glória eternamente! Como este pão achava-se disperso sobre os
montes e, reunido, se fez um, assim, desde os confins da terra, seja congregada
tua Igreja no teu Reino. Pois tua é a glória e o poder, por Jesus Cristo,
eternamente”. Que ninguém coma nem beba da eucaristia, exceto os
batizados em nome do Senhor, pois sobre ela disse o Senhor: “Não deis o
que é santo aos cachorros”. (BETTENSON, 1967, p. 101) (grifo nosso).
Poder-se-ia nela encontrar uma boa justificativa para se “legalizar” o batismo;
entretanto, fora os problemas de sua data e procedência, mencionada por Bettenson, vemos,
pelo menos, dois outros:
1º) há uma forte incoerência entre o que se diz no item VII e no IX; pois, se no
primeiro recomenda-se “batizar em o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, no último, é
mencionado “os batizados em nome do Senhor”, exatamente a fórmula do batismo em Atos
dos Apóstolos, que, seguramente, o “Senhor” se trata de Jesus, uma vez que a frase citada –
“Não deis o que é santo aos cachorros” - é dele e consta em Mt 7,6;
2º) a determinação de que o postulante ao batismo também jejuasse, por um ou dois
dias, não a vimos em nenhum outro lugar, razão pela qual, até se justifica, já que nenhuma
igreja recomenda que se faça o jejum; consequentemente, isso implica em que tacitamente
não a têm como verdadeira.
Dessa questão do jejum, ainda podemos tira a conclusão de que, na verdade, somente
se batizavam pessoas adultas, colocando a atitude dos que batizam crianças recém-nascidas
em completo desacordo com as práticas que dizem decorrer da Bíblia.
Um argumento bem interessante encontramos em Iakov Abramovitch Lentsman (19081967), que, em A Origem do Cristianismo, disse:
Os outros dogmas maiores do cristianismo brilham igualmente pela ausência
no Apocalipse. Nada é dito aí sobre o batismo, por exemplo. “Não faças o mal
à terra, lê-se no capítulo VII, versículos 3-4, nem ao mar, nem às árvores, até
que tenhamos marcado com o selo a fronte dos servidores do nosso Deus. E
ouvi o número daqueles que tinham sido marcados com o selo, cento e quarenta
e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel”. Ao enumerar essas doze
tribos, o autor acrescenta para cada uma delas: doze mil “marcados com o selo”.
Ele teria dito “batizados”, incontestavelmente, se o sacramento do batismo já
existisse no seu tempo. Há no Apocalipse uma dezena de passagens em
que se poderia esperar encontrar alusões ao batismo, mas nada há
105
sobre ele. (LENTSMAN, 1963, p. 114) (grifo nosso).
Sua conclusão, para nós, é um argumento excelente, que fica difícil ser refutado.
Mas cabe-nos um esclarecimento final a respeito do batismo, aquele que era o praticado
naquela época; para isso vamos recorrer a L. Palhano Jr. (1946-2000), que explica:
Batismo. (Do grego: bapto, mergulhar). Ritual de purificação. João Batista
administrava um batismo de arrependimento para a remissão de pecados
(Marcos 1,4), antecipando o batismo no espírito e em fogo (verdade) que o
Messias exerceria (Mateus 3,10). O batismo cristão está arraigado na ação
redentora de Jesus e o ato d'Ele, quando se submeteu ao batismo de João
(Marcos 1,9), demonstrou e efetivou sua solidariedade com os homens. Na
igreja primitiva, o batismo não era com água, mas com a imposição das mãos
sobre aquele que se convertia e objetivava o chamado 'dom do espírito santo',
isto é, sensibilizar aquele que era batizado para que ganhasse percepção
espiritual ou mediúnica (Atos 19,6). O batismo com água é um mero ritual sem
nenhum valor moral e os espíritas não devem se preocupar com isso. Trata-se
de um sacramento dogmático que afirma ter ação salvadora um ato externo,
ritualístico, mais uma obrigação religiosa que descaracteriza a obrigação do
esforço próprio, para o merecimento da paz e da felicidade. O batismo de
criancinhas, para apagar o 'pecado original', é o resultado da ação judaizante
sofrida pelos cristãos, pois nada mais é do que a substituição do sinal da
circuncisão ao oitavo dia de nascido para o filho varão. O espiritismo preconiza a
inutilidade de qualquer culto, ritual, sacramento, paramento, sinal, para as
coisas religiosas, visto que os verdadeiros adoradores de Deus o adoram em
espírito e verdade (João 4,23). (PALHANO JR, 1999, p. 173).
Esperamos, caro leitor, que esse estudo lhe possa ser útil em alguma coisa, se não que,
pelo menos, encontre algo para que reflita sobre a “verdade que liberta”.
106
A traição de Judas – uma história mal contada
É interessante como alguns temas bíblicos não resistem a uma análise mais profunda.
Vários deles, que já tratamos em outros textos, nos proporcionam a certeza de que muitas
narrativas constantes da Bíblia são uma deliberada e sutil montagem para se chegar a um
objetivo previamente definido. Daí porque muitas delas foram amoldadas a esse propósito,
passando por cima da verdade histórica que tais escritos deveriam conter.
Muitas pessoas se chocam com atitudes como essa nossa: a de uma análise crítica.
Entretanto, não abrimos mão de fazer uso da inteligência com a qual nos dotou o Criador. Nós,
seres humanos racionais, temos que usar esse dom, pois, não usá-lo é abdicar da única
faculdade que nos difere dos animais, ditos irracionais; por isso, acreditamos que só
ofendemos mesmo a Deus, quando não utilizamos a nossa inteligência plenamente.
Reconhecemos, entretanto, ser muito difícil a inúmeras pessoas, principalmente as que
não pesquisam, abandonar conhecimentos adquiridos, especialmente quando foram passados
como verdades divinas, sob coação ideológica. Ou seja, o simples questionamento da
veracidade das mesmas já é, por si só, considerado como grave ofensa à divindade. Essa
possibilidade de heresia acaba gerando um bloqueio mental, em função do medo de crer-se
num consequente castigo por esse tipo de “pecado”. Assim, somos “levados” a aceitar, sem o
mínimo questionamento, o que nos tem sido imposto como verdade absoluta. Com o tempo,
passamos ao despautério de defender ideias, que nunca analisamos ou criticamos, como se
nossas fossem.
O assunto que trataremos, desta vez, está relacionado a uma suposta traição a Jesus,
que teria sido realizada por Judas Iscariotes, um de seus discípulos. Inclusive, tudo que consta
na Bíblia sobre ele está somente nas passagens que iremos ver a seguir. Dizemos suposta,
porquanto, particularmente, acreditamos que o Sinédrio tinha poderes de vida e morte sobre
as pessoas, não precisava, portanto, de ninguém para delatar Jesus. O Sanhedrin ou o Grande
Conselho dos Anciãos de Israel, com 71 homens sobre a presidência do sumo sacerdote,
“podia decretar sentença de morte contra os judeus da Judeia por motivo de ofensa religiosa,
mas não executá-la antes de confirmação do poder civil”. (DURANT, 1957, p. 211).
Em Lucas 22,3-6, está escrito que, após satanás ter entrado em Judas, este foi procurar
os sacerdotes para ver de que maneira os entregaria Jesus. Os sacerdotes ficaram tão
satisfeitos com isso que combinaram em lhe dar dinheiro, uma vez que eles desejavam, de há
muito, eliminar “o herético”. Tal acontecimento se deu, na versão desse evangelista, antes da
festa dos Ázimos; evidentemente, antes da ceia de páscoa, cujo prato principal eram os
cordeiros mortos especificamente para essa finalidade. No entanto, segundo João, esse fato se
deu após a ceia (Jo 13,26-27), apesar de um pouco antes, ele ter dito: “Enquanto ceavam,
tendo já o diabo posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, que o traísse” (Jo 13,2),
sendo, por conseguinte, omisso sobre qualquer combinação anterior entre Judas e os
sacerdotes. Portanto, podemos verificar que há evidente conflito entre as narrativas.
Merece ser ressaltado que se a morte de Jesus foi para remissão de nossos pecados,
como comumente se pensa, então, Judas não poderia, por coerência, ser considerado um
traidor, porquanto devemos admitir que a missão dele, embora espinhosa, era a de entregar
Jesus. Entretanto...
Nada disso faz muito sentido. Mesmo a solução religiosa mais comum – de
que, embora Judas esteja efetivamente cumprindo a vontade de Deus,
ele é culpado porque se rendeu a Satanás – não leva em consideração as
contradições. Até o autor parece ter dificuldade ao tentar explicar a falta de
lógica – como a questão dos discípulos se perguntando se Judas teria ido fazer
compras tarde da noite. Não, isso não faz sentido. (CHURTON, 2009, p. 219,
grifo nosso).
107
Concordamos plenamente com Tobias Churton (1960- ), não faz mesmo sentido algum.
Quanto à questão dessa combinação com os sacerdotes, Mateus diz que Judas pediu
dinheiro para lhes entregar Jesus (Mt 26,15), enquanto que Marcos (14,11) e Lucas (22,5)
afirmam que foram os sacerdotes que tomaram a iniciativa de retribuir ao discípulo, dando-lhe
dinheiro como recompensa pelo seu ato ignominioso. Um bom observador perceberá que,
pelas suas narrativas, Mateus teve uma evidente preocupação, qual seja, a de relacionar Jesus
com as profecias, inclusive, muito mais que os outros evangelistas. Daí ser ele o único que diz
sobre o quanto Judas teria recebido, dando como certa a importância de trinta moedas de
prata (Mt 26,15; 27,3). Essas duas passagens que falam disso são, geralmente, relacionadas a
Zc 11,12-13, no pressuposto de que ela seja uma profecia; entretanto, os fatos ali narrados se
referem ao próprio profeta Zacarias; não é, por conseguinte, uma revelação sobre algo que
fosse ocorrer no futuro.
Ainda sobre essa questão das moedas, é oportuno colocarmos o que, em O beijo da
morte, nos informa Churton:
[…] A quantia de 30 peças de prata não era um preço convencional ou
troca, mas um número profético, simbólico – foi o preço pago por um povo
ingrato pelos serviços de Deus. Na profecia, a quantia é uma ninharia, não
uma fortuna.
Uma simples barganha de informações em troca de dinheiro dificilmente
envolveria esses símbolos. Se Judas pensou que estava traindo “Deus”, era
quase certo que ele estava louco, e, portanto, merecia compaixão, ou pelo
menos uma cura.
É opinião geral dos estudiosos que o relato da troca pela prata foi
simplesmente extraído dos escritos proféticos e usado como uma
história de “cumprimento”, para preencher uma falta de conhecimento
do que aconteceu. Se esse for o caso, essa troca não pode ter um peso
significativo na alegada culpa de Judas. (CHURTON, 2009, p. 234, grifo nosso).
Como se diz “vendeu barato”, portanto, até o valor, supostamente combinado, deixanos realmente na dúvida se tal troca, de fato, aconteceu.
Ao narrar os acontecimentos durante a ceia, Mateus relata: “Enquanto comiam, Jesus
disse: 'Eu lhes garanto: um de vocês vai me trair'. Eles ficaram muito tristes e, um por um,
começaram a lhe perguntar: 'Senhor, será que sou eu?' (Mt 26,21-22). Achamos bem
interessante é que todos eles não confiavam e si mesmo, pois ao dizerem “Senhor será que
sou eu?” estavam demonstrando que intimamente tinham “potencial” para praticar tal ato ou
“Será que todos eles estavam preocupados, pois todos tinham sido tentados a trai-lo – e suas
negativas são expressões de culpa?” (CHURTON, 2009, p. 198). E Jesus, ao responder essa
indagação de cada um dos discípulos sobre quem o trairia, teria dito: “Quem vai me trair, é
aquele que comigo põe a mão no prato. O Filho do Homem vai morrer, conforme a Escritura
fala a respeito dele..." (Mt 26,23-24). Passagem que é relacionada ao Sl 41,10, onde Davi
reclama sobre um amigo que o trai. O que nos leva a concluir que tal passagem não é uma
profecia; assim, não poderia estar relacionada a Jesus, como querem os que buscam, nas
Escrituras, apoio para seus dogmas. Davi foi traído por um amigo, seu próprio conselheiro, de
nome Aquitofel, conforme narrativa em 2Sm 15,12.31. O final trágico da vida desse “amigo da
onça” foi enforcar-se (2Sm17,23); com isso, querem, igualmente, atribuir esse mesmo destino
a Judas, como iremos ver mais à frente.
Outra coisa que nos parece sem nenhum sentido, principalmente pela maneira com a
qual Jesus agia para com os outros, é que Ele tenha, com efeito, se preocupado em delatar o
seu traidor, conforme narrado em Jo 13,26, quando, para identificar quem o trairia, diz aos que
o acompanhavam, naquela ceia, que seria a quem desse um pão molhado; dito isso,
imediatamente, molha um pão e o entrega a Judas, delatando o pobre coitado. Talvez a
preocupação aqui seja buscar mais uma forma de relacionar tal episódio a uma profecia sobre
esse acontecimento, que sabemos não existir.
Mateus (26,48) e Marcos (14,44) dizem que Judas havia combinado com os sacerdotes
um sinal – o beijo – para que pudessem identificar quem era Jesus, e, obviamente, o colocam
fazendo isso (Mt 26,49; Mc 14,45). Lucas, apesar de não relatar absolutamente nada sobre
108
esse sinal, diz que Judas se aproximando de Jesus o saúda com um beijo (Lc 22,47). Enquanto
que João não fala de ter havido uma combinação de sinal, nem que Jesus teria dito algo a
respeito, e nem mesmo coloca Judas beijando a Jesus, já que, para ele, foi o Mestre que se
adiantou, aos guardas acompanhados de Judas, se identificando a eles como sendo Jesus, o
Nazareno, a quem procuravam (Jo 18,3-5). Fatos novamente conflitantes.
Nenhum outro evangelista, a não ser João, coloca Judas como sendo aquele que, entre
os discípulos, cuidava da “bolsa”; vai ainda mais longe acusando-o de ladrão (Jo 12,6). Como
uma acusação grave dessa não foi feita por mais ninguém? Aí ficamos com a dúvida de
Churton que disse “O Evangelho de João nos informa – não sabemos com que justificação
histórica – que Judas tomava conta da bolsa (do dinheiro)” (CHURTON, 2009, p. 192). Se
Judas, realmente, fosse um gatuno, por que motivo o deixaram tomando conta do dinheiro?
Alguém colocaria um ladrão como seu administrador financeiro? Não seria, evidentemente,
para colocar a honra desse discípulo em jogo, fórmula encontrada para se justificar que, por
ser assim, ele não teria também nenhum escrúpulo em trair o seu próprio Mestre? Essa
hipótese, para nós, é a mais viável.
Não bastassem os que já encontramos, aparecem-nos agora mais dois evidentes
conflitos.
O primeiro está relacionado à forma pela qual Judas deu cabo à sua vida, movido,
segundo relata Mateus, por profundo remorso. Estranhamente ele é o único evangelista que
fala disso; nenhum outro apresenta uma linha sequer sobre Judas ter se arrependido.
Continuando seu relato, Mateus diz que Judas se enforcou (27,5); entretanto, em Atos (1,18)
está se afirmando que ele “precipitando-se, caiu prostrado e arrebentou pelo meio, e todas as
suas entranhas se derramaram”, mudando, desta maneira, a versão anterior a respeito de sua
morte. Encontramos a seguinte explicação para esse passo: “Possivelmente a narração da
morte de Judas enforcando-se, está inspirada na história da morte de Aquitofel (cf. 2Sm
17,23)” (Bíblia Sagrada Santuário, p. 1463). Conforme citamos anteriormente Aquitofel
enforcou-se, mas querer, daí, apenas por inspiração, atribuir a Judas uma morte semelhante é
lamentável, pois esse fato bíblico deveria ter sido relatado fielmente como ocorrido, aliás, não
só esse, mas todos os outros; não como o autor quer que tenha acontecido, o que nos coloca
diante de uma mera suposição.
Quem sabe se não houve uma outra justificativa para Judas se enforcar? É o que nos
propõe Churton:
Quando o arqueólogo israelense Yigael Yadin escavou a fortaleza e o palácio
de Massada, o mundo todo descobriu que no ano de 74 d.C. zelotes devotos, em
sua determinação de manter sua religião livre da contaminação romana,
estavam prontos a cometer suicídio em massa em vez de se render aos
romanos. “Nunca novamente!” Talvez Judas tenha se enforcado para não se
entregar aos soldados romanos. O cenário político mais detalhado que
surgiu dessa pesquisa arqueológica deu outra direção à ideia do suicídio
de Judas. […] (CHURTON, 2009, p. 190, grifo nosso).
Já tivemos a oportunidade de ver algumas pessoas tentando conciliar os dois tipos de
morte de Judas, dizendo várias coisas como, por exemplo, que no seu enforcamento ele teria
caído num precipício. Mas será que isso pode ser levado em conta? O estudioso Bart D.
Ehrman (1955- ), ex-evangélico, falando a respeito disso, afirmou:
Ao longo dos anos os leitores tentaram conciliar esses dois relatos da
morte de Judas. Como ele podia se enforcar e cair “de cabeça para baixo”,
para que sua barriga se abrisse e seus intestinos se espalhassem pelo solo?
Interpretes engenhosos, querendo fundir os dois relatos em uma só
narrativa verdadeira, tiveram grande dificuldade com isso. Talvez Judas
tivesse se encorcado, a corda arrebentado e ele caído no chão de cabeça, se
partido ao meio. Ou talvez tivesse se enforcado, e como isso não tivesse dado
certo, então subiu em uma rocha alta e se jogou de cabeça n o campo. Ou
talvez... bem, talvez alguma outra coisa.
O importante, contudo, é que os dois relatos oferecem versões diferentes
sobre como judas morreu. Por mais misterioso que seja dizer que caiu de cabeça
109
e se rasgou, pelo menos isso não é se “enfocar”. […] (EHRMAN, 2010, p. 60-61,
grifo nosso).
Ao pesquisarmos, para obtermos outras explicações, para nossa própria surpresa,
deparamo-nos também com uma outra versão sobre sua morte; leiamos:
[…] a maneira como ele morreu. Existem essencialmente três tradições
diversas sobre a questão:
1. A narrativa do livro de Atos parece indicar que a morte de Judas Iscariotes
foi violenta, produzida por alguma espécie de queda incontrolável,
evidentemente por algum precipício abaixo.
2. Há também a narrativa de Mat. 27:3-10, segundo a qual Judas Iscariotes
enforcou-se.
3. Por semelhante modo, há uma história, preservada por Papias,
discípulo do apóstolo João (ou do “presbítero”) de que Judas Iscariotes foi
atacado por alguma enfermidade asquerosa, que causou uma excessiva
inchação de seu corpo e que, estando ele nessas condições físicas, foi
esmagado por uma carroça, em um lugar de estreita passagem, por onde
ordinariamente poderia ter passado com sucesso, se não tivesse inchado
tanto. (Ver J.A. Cramer, Catanae in Evangelia, S. Matthaei et S. Marci,
Oxford: Typographeo Academico, 1884, sobre o vigésimo sétimo capítulo do
evangelho de Mateus). Alguns intérpretes têm sugerido que essa história,
preservada por Papias, na realidade é a mesma que aparece historiada nas
páginas do livro de Atos e que a tradução que aqui aparece como
“precipitando-se” (comum, de resto, a todas as traduções), traduz um termo
médico obscuro (no grego prestheis), que indicava inchação excessiva. (Essa
teoria é exposta na obra “The Beginnings of Christianity”, editores F.J. Foakes
Jackson e Kirsopp Lake: Londres, The Macmillan Co. 1933, V. págs. 22-30).
Além das ideias acima expostas, várias outras interpretações têm aparecido,
ou de natureza inteiramente apócrifa, ou como variações das tradições já
existentes. Alguns intérpretes têm asseverado que as palavras “...foi enforcarse...”, da passagem de Mat. 27:5, na realidade deveriam ser traduzidas por
sufocou-se, deixando um tanto vago o modo real de sua morte. Outros
estudiosos têm pensado que essas palavras significam que ele foi consumido
pelo remorso de consciência. Mui provavelmente essas explicações vieram a
lume na tentativa de reconciliar a narrativa do livro de Atos com o relato do
evangelho de Mateus, posto que, mediante tais interpretações, nenhum modo
especifico de morte pode ser atribuído à narrativa de Mateus. Tais tentativas,
não obstante, não são bem fundadas, e nem têm sido bem recebidas pelos
estudiosos em geral.
Uma outra tentativa de reconciliação entre essas duas narrativas, é aquela
que diz que as narrativas do evangelho de Mateus e do livro de Atos são
descrições de várias etapas da morte de Judas. - A ideia é que Judas pendurouse por uma corda ou em um ramo, o qual ter-se-ia partido, precipitando-o para
baixo e propiciando as condições descritas em Atos. Essa interpretação tem
deixado a vários estudiosos satisfeitos; mas outros têm-na considerado
como mera tentativa de harmonizar os relatos bíblicos a qualquer custo,
até mesmo ao preço da honestidade.
É justo dizermos que o problema permaneceu praticamente sem solução nos
tempos antigos; e para muitos intérpretes, é nesse ponto de insolubilidade que o
problema se encontra até hoje. Mas todas as narrativas, até mesmo as
lendárias, concordam sobre o ponto de que Judas Iscariotes sofreu alguma
forma de morte violenta e horrenda. […] (CHAMPLIN e BENTES, 1995, p. 622,
grifo nosso).
O segundo diz respeito ao destino dado às moedas. Mateus menciona que Judas as teria
devolvido, atirando-as dentro do santuário, que, recolhidas pelos sacerdotes, foram, por
deliberação deles, destinadas à compra do campo do oleiro, para servir de cemitério aos
estrangeiros (Mt 27,3-10), citando que isso aconteceu para se cumprir o que dissera o profeta
Jeremias. Mas essa história nos parece mal contada, pois em Atos se diz que o próprio Judas
teria comprado um campo (At 1,18), que até poderia ser esse do oleiro; mas, de qualquer
forma, está em conflito com a versão anterior.
110
Na maioria das Bíblias em que consultamos, dizem que as profecias relacionadas a Mt
27,9: “Cumpriu-se, então, o que foi dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de
prata, preço do que foi avaliado, a quem certos filhos de Israel avaliaram e deram-nas pelo
campo do oleiro, assim como me ordenou o Senhor”, seriam os passos: Zc 11,12-13 e Jr 32,516, ou Jr 18,1-4 e 19,1-3 (Bíblia Anotada, p. 1229). Há, portanto, sérias dúvidas quanto à
identificação da profecia específica relacionada ao episódio. Como já falamos sobre a citação
de Zacarias, fica-nos, por conseguinte, apenas as de Jeremias para dizermos alguma coisa. Em
notas explicativas sobre elas encontramos que: “A citação é uma combinação artificial de Jr
32,6-9 e Zc 11,12-12” (Bíblia do Peregrino, p. 2386); isso nos deixa diante da realidade de
que, por se admitir que seja “uma combinação artificial”, estamos, certamente, diante de mais
uma tentativa de se relacionar acontecimentos no Novo Testamento com ocorrências
registradas no Antigo Testamento, tidas como se fossem verdadeiras profecias.
Quem tiver a curiosidade de consultar a passagem citada de Zacarias não encontrará
nela algo no qual se possa qualificá-la como profecia; são apenas fatos relacionados àquele
momento vivido por esse profeta. E quanto a Jeremias, não se encontra absolutamente nada
que ele tenha comprado alguma coisa por trinta moedas. Sobre a compra de um terreno, sim,
como podemos ver em 32,6-12; mas uma situação circunstancial, explicada da seguinte
forma:
À primeira vista se trata de um incidente: a compra e venda de um terreno
segundo as normas e o procedimento da legislação judaica. O narrador se
compraz em registrar todos os detalhes, mostrando que a lei foi estritamente
cumprida e que o ato é juridicamente válido. O surpreendente dessa compra-evenda é que se realiza às vésperas da catástrofe inevitável. Que sentido tem
nesse momento comprar um terreno para que fique em poder da família? Tudo
já está perdido. Mas o absurdo do ato é a chave do seu sentido. Para efeitos
legais imediatos, a compra nada servirá; para efeitos proféticos, é admirável ato
de esperança no futuro. É um oráculo em ação, Jeremias profetiza ao vivo: não
só palavras, nem ação simbólica, mas ato real jurídico. Esse ato significa o
futuro que ele antecipa: a jarra de barro onde se guarda o contrato é um penhor
que Deus concede. Apesar do que está para acontecer, a terra continua sendo
propriedade dos judaítas: a terra prometida aos patriarcas e possuída durante
séculos... (Bíblia do Peregrino, p. 1928).
Podemos ainda confirmar isso com a seguinte explicação: “A citação [Mt 27,9] é tirada
na realidade de Zacarias (11,12-13). Mas, ele lembra também diversos versículos de Jeremias
onde se faz menção do campo e do oleiro (32,6-6; 18,2-12)”. (Bíblia Ave-Maria, p. 1319).
Ressaltamos que a expressão “ela lembra”, é uma afirmativa que depõe contra o próprio texto
que, positivamente, diz ser de Jeremias essa profecia.
Percebemos que as narrativas possuem diversos fatos conflitantes entre si, deixandonos na convicção que tudo não passa, na melhor das hipóteses, de um ajuste dos textos para
se chegar a um objetivo pré-determinado, conforme já falávamos, desde o início. Para se ter
uma ideia mais exata sobre isso, colocaremos a passagem Mt 27,1-26, que, para tornar a
explicação mais fácil de ser entendida, iremos dividi-la em três partes:
I) 1-2: De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo
convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles o amarraram
e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador.
II) 3-10: Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi
devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos, dizendo:
“Pequei, entregando à morte sangue inocente”. Eles responderam: "E o que temos nós
com isso? O problema é seu". Judas jogou as moedas no santuário, saiu, e foi enforcarse. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: "É contra a Lei colocálas no tesouro do Templo, porque é preço de sangue". Então discutiram em conselho, e
as deram em troca pelo Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros. É
por isso que esse campo até hoje é chamado de “Campo de Sangue”. Assim se cumpriu
o que tinha dito o profeta Jeremias: “Eles pegaram as trinta moedas de prata - preço
com que os israelitas o avaliaram - e as deram em troca pelo Campo do Oleiro,
conforme o Senhor me ordenou”.
111
III) 11-26: Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: “Tu és o rei dos
judeus?” Jesus declarou: “É você que está dizendo isso”. E nada respondeu quando foi
acusado pelos chefes dos sacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou: “Não estás
ouvindo de quanta coisa eles te acusam?” Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e
o governador ficou vivamente impressionado. Na festa da Páscoa, o governador
costumava soltar o prisioneiro que a multidão quisesse...”.
Para o que queremos colocar não é necessário citar toda a narrativa; assim, omitimos o
restante da sequencia dessa última (vv. 16-26), pois até aqui, no versículo 15, já encontramos
o suficiente para entendermos e percebermos que os versículos de 3-10 nada têm a ver com o
contexto geral daquilo relatado na passagem. Inclusive, no versículo 3 está dito que Judas viu
que Jesus havia sido condenado, quando, no desenrolar do texto, esse fato ainda não havia
acontecido, que só veio acontecer mais à frente. A quebra brusca na sequencia dessa
narrativa, não deixou de ser percebida pelo tradutor da Bíblia do Peregrino, conforme nos
explica:
O episódio da morte de Judas interrompe estranhamente o curso do relato,
como se a entrega de Jesus ao governador ultrapassasse suas previsões.
Sabemos que a figura de Judas alimentou desde cedo fantasias legendárias.
Lucas dá versão diferente (At 1,18-20). A morte violenta do perseguidor ou
culpado é tema literário conhecido (p. ex. Absalão, 2Sm 18: Antíoco Epífanes,
2Mc9; em versão poética vários oráculos proféticos, p.ex. Is 14; Ez 28). Antes
de morrer, Judas acrescenta seu testemunho sobre a inocência de Jesus.
Confessa o pecado, mas desespera do perdão... (Bíblia do Peregrino, p. 23852386).
Isso vem confirmar todas as nossas suspeitas de que tudo foi um calculado “arranjo”
visando ajustar os textos às conveniências dos interessados para que eles tivessem referências
às suas idiossincrasias. E, em relação ao assunto tratado, temos fortes suspeitas de que vários
outros trechos foram intercalados às narrativas bíblicas, para amoldá-los a um propósito
determinado. Podemos citar, como exemplo, Mt 26,14-16; 21-25; 28,11-15; Mc 10,10-12;
14,18-21; Lc 22,3-6, 21-23; Jo 1,33; 11,12-16, para que você, caro leitor, faça uma análise
mais aprofundada.
Podemos ainda recorrer a Ernest Renan (1823-1892), que disse:
Quanto ao desgraçado Judas de Cariote, lendas terríveis correram sobre
sua morte. Disseram que, com o prêmio de sua perfídia, comprara umas terras
nos arredores de Jerusalém. Havia, justamente, ao sul do monte Sião, um local
chamado Hakeldama (campo de sangue)(8). Pensou-se que era a propriedade
adquirida pelo traidor(9). Segundo uma tradição, ele se matou(10). Segundo
uma outra, ele levou um tombo na sua propriedade e, como consequência, suas
entranhas se espalharam pelo chão(11). Segundo outras, ele morreu de uma
espécie de hidropsia, acompanhada de circunstâncias repugnantes que foram
tomadas como castigo do céu(12). O desejo de comparar Judas a
Achitofel(13) e de mostrar nele o cumprimento das ameaças que o
Salmista pronunciou contra o amigo pérfido(14) pode ter dado ensejo a
essas lendas.
______
8. São Jerônimo, De situ et nom. Loc. hebr., para a palavra Acheldama. Eusébio (ibid.) diz
ao norte. Mas os itinerários confirmam a lição de São Jerônimo. A tradição que nomeia
Haceldama à necrópole situada no fundo do vale de Hinon remonta pelo menos à época de
Constantino.
9. Atos, I, 18-19. Mateus, ou melhor, seu interlocutor, deu aqui um tom menos satisfatório
à tradição, a fim de ligar a isso a circunstância de um cemitério para estrangeiros, que se
achava perto dali, e de encontrar uma pretensa confirmação em Zacarias, XI,12-13.
10. Mat. XXVII, 5.
11. Atos, l.c.; Pápias, em Ecumenius, Enarr, in Act. Apost., II e em Fr. Münter, Fragm.
Patrum graec. (Hafniae, 1788, fasc. I, p. 17 e seg.; Teofilacto, em Mat., XXVII, 5.
12. Pápias, em Münter, l.c., Teofilacto, l.c.
13. II Sam., XVII,23.
14. Salmos LXIX e CIX.
(RENAN, 2004, p. 397, grifo nosso).
112
Ficamos a pensar como se sentiu e como ainda pode estar se sentindo Judas sobre tudo
quanto lhe imputam como procedimento. O pobre coitado ainda é julgado e condenado, anos
após anos, pelos ditos “cristãos”, que, com certeza, não cumprem o: “Não julgueis os outros
para não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes, sereis julgados e com
a medida que medirdes sereis medidos” (Mt 7,1-2). Não bastasse isso, ainda é humilhado,
malhado e, ao final, é espetacularmente “detonado”. Infelizmente esse nos parece ser o seu
destino cruel, que se perpetua anualmente nas comemorações da Semana Santa realizadas
por determinadas religiões cristãs tradicionais.
Reabrimos esse “processo”, pois temos em mãos a revista Discovery Magazine de
março/2005, com uma interessante reportagem intitulada Últimos momentos de Jesus,
assinada pelo jornalista Walter Falceta Jr. (1971[?]- ), da qual transcrevemos os seguintes
trechos:
(...) Mas pesquisas mais recentes lançam novos olhares especialmente sobre
o odiado Judas – aquela figura que, vestida em boneco de trapos, mobiliza os
malhadores nos Sábados de Aleluia.
Ao contrário da tradição, os estudos modernos são mais complacentes com o
discípulo dissidente, tido no imaginário popular como um homem ambicioso e
sem caráter. O magistrado israelense Haim Cohn, ex-juiz da Suprema Corte de
Israel, autor de O Julgamento e a Morte de Jesus, defende que, à época da
Paixão, Jesus já era conhecido em Jerusalém e sabia-se de seu costume de
meditar no Monte das Oliveiras. “Não seria necessário, portanto, que
alguém indicasse seu refúgio”, diz Cohn. Dessa forma, o episódio do “beijo
da traição”, que teria sido protagonizado por Judas para indicar aos
soldados romanos o momento adequado da captura de Jesus,
pertenceria ao campo da lenda e não da realidade...
Para outros especialistas, o perfil de Judas foi moldado para representar os
arquétipos da maldade. De acordo com o bispo da Igreja Anglicana John Spong,
de Newark (EUA), até o nome de Judas teria sido escolhido para remeter o
inconsciente coletivo ao termo “judaísmo”, numa estratégia para marcar
negativamente a imagem dos primeiros opositores do cristianismo.
FICÇÃO NOS EVANGELHOS
Na década passada, o padre Raymond Brown, ex-professor do Seminário
Teológico União, de Nova York, produziu o mais detalhado estudo sobre o que
aconteceu nos últimos dias da vida de Cristo. Um calhamaço de 1.600 páginas, o
livro The Death of J. B. Howell the Messiah (“A morte do Messias”, ainda não
editado no Brasil) compara os argumentos de vários intérpretes da Bíblia, os
chamados exegetas, à luz de dados históricos. Em seus textos, Brown dá crédito
aos escritos oficiais e estimula uma leitura conservadora das Escrituras. Mesmo
assim, admite que o objetivo dos autores dos textos sagrados era evangelizar e
não reconstituir fatos históricos. Segundo ele, é natural que tenham recorrido à
ficção para expor suas ideias. Brown considera, por exemplo, que a história das
30 moedas que, segundo a Bíblia, Judas recebeu dos sacerdotes do Sinédrio
para entregar Cristo passou a simbolizar o suposto gosto dos judeus pelo
dinheiro. (FALCETA JÚNIOR, p. 28-33, grifo nosso).
Isso vem, de certa forma, em apoio ao que deduzimos de nossos estudos bíblicos; sinal
que não estamos sendo heréticos sozinhos, embora isso não nos preocupe, pois para nós o
que é mais importante é que se restabeleça a verdade.
Vejamos, agora, o que Geza Vermes (1924- ), renomado exegeta, diz sobre o trecho de
Mateus, que cita Judas (Mt 27,3-10):
Mateus insere uma breve passagem sobre Judas entre o julgamento de Jesus
pelo Sinédrio e a transferência do caso para Pilatos. Ele faz o traidor arrependerse e devolver o suborno. Os evangelistas são inocentes das especulações
modernas sobre motivos elevados de Judas, tal como o seu desejo de forçar
Jesus a revelar seu messianismo oculto. Não é dada nenhuma hora exata.
Segundo Mateus, o julgamento de Jesus ocorre na casa de Caifás, mas o
encontro de Judas com os chefes dos sacerdotes e os anciãos é situado no
113
Templo, local diferente sem dúvida numa ocasião diferente. Como as
autoridades sacerdotais se recusaram a aceitar o dinheiro de volta, Judas o
jogou fora e, desesperado, enforcou-se. O restante da história tem toda a
aparência de um conto folclórico artificialmente combinado com uma
citação escritural para transformar o acontecimento em cumprimento de
uma profecia. Deixados diante de um dilema – o que fazer com o dinheiro de
sangue devolvido, impróprio para o tesouro do Templo –, os chefes dos
sacerdotes decidem usá-lo para comprar um campo para o sepultamento de
estrangeiros. Havia um terreno em Jerusalém conhecido como "Campo de
Sangue", e uma tradição cristã primitiva o associava à desventura de Judas. O
aspecto profético do incidente é amplamente produzido por Mateus. Diz-se que
a citação é de Jeremias, mas trata-se de uma invenção ou, mais
exatamente, de uma mistura adulterada de Zacarias 11,12-13 e
Jeremias 18,2-3; 36,6-15. É impossível discernir nos extratos bíblicos sequer
uma remota ligação com o episódio de Judas. Aqui, como em muitos outros
lugares, Mateus empenha-se em retratar a história da Paixão, perturbadora
para crentes e pouco atraente para supostos convertidos, como uma sequência
de
eventos
profeticamente
previstos
e
providencialmente
predestinados. (VERMES, 2007, p. 53-54, grifo nosso).
Esse empenho de Mateus em relacionar Jesus a várias profecias, foi também percebido
por nós, inclusive, objeto de um estudo à parte, com o título de “Será que os profetas
previram a vinda de Jesus?”, que poder ser visto em www.paulosnetos.net.
Fechamos com Churton, que disse: “Temos a liberdade de suspeitar que os autores dos
Evangelhos realmente não sabiam o que aconteceu”. (CHURTON, 2009, p. 236).
114
A questão do bom ladrão
A passagem de Lucas a respeito do “bom ladrão” é, muitas vezes, utilizada,
principalmente pelos nossos detratores de plantão, para sustentar a ideia de que não existe a
reencarnação. Não querendo entrar detalhadamente neste assunto, apenas gostaríamos de
dizer para aqueles que não a aceitam, que vejam como ela é obvia nas seguintes passagens:
Mt 17,12: “Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe
tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem”.
Mt 11,14-15: “E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça”.
Jo 3,3: “Jesus respondeu, e disse-lhe: 'Na verdade, na verdade te digo que aquele que
não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus'”.
Jo 3,7: “Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo”.
Vemos que, infelizmente, muitos ainda não “têm ouvidos de ouvir”. Não
compreendemos como podem conceber uma Justiça Divina sem a reencarnação. Já que, para
nós, a reencarnação é o único meio de “sermos perfeitos como o Pai Celestial” (Mt 5,48),
conforme nos recomenda Jesus, a não ser que Ele nos tenha ensinado algo que não
pudéssemos fazer, o que seria um absurdo.
Voltando ao que nos propomos, achamos por bem fazer uma análise desse episódio,
para que possamos encontrar a verdade. Vamos, então, às narrativas bíblicas sobre tal
acontecimento, tiradas da Bíblia Anotada, Editora Mundo Cristão:
Mt 27,44: “E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que haviam
sido crucificados com ele”.
Mc 15,32: “Também os que com ele foram crucificados o insultavam”.
Lc 23,39-43: “Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele, dizendo:
'Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também'. Respondendo-lhe, porém, o
outro repreendeu-o dizendo: 'Nem ao menos temes a Deus, estando sob igual
sentença? Nós na verdade com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos
merecem; mas este nenhum mal fez'. E acrescentou: 'Jesus, lembra-te de mim quando
vieres no teu reino'. Jesus lhes respondeu: 'Em verdade te digo que hoje estarás
comigo no paraíso'”.
Jo 19,18: “Onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado, e Jesus no
meio”.
Ressaltamos que se a Bíblia, segundo dizem, é totalmente inspirada por Deus por que
não narram os Evangelistas os mesmos fatos? Ora, se a fonte de inspiração é de uma mesma
origem, Deus, deveriam ser tais narrativas completamente iguais, pelo menos quanto ao
fundo. Poderemos até aceitar palavras diferentes, mas não com divergências quanto ao fato
ocorrido; e aqui ele é narrado de forma diferente, conforme iremos observar a seguir:
1 – Quanto ao diálogo:
Mateus, Marcos e João nada relatam de qualquer diálogo entre os três crucificados.
2 – Quanto à atitude:
Mateus e Marcos dizem que os ladrões estavam, isto sim, entre os que escarneciam de
Jesus. Só Lucas diz que Jesus teria dito para um deles que “hoje estarás comigo no Paraíso”.
115
3 – Quanto à testemunha:
João que estava ao pé da cruz, ou seja, a testemunha ocular, nada diz sobre este
diálogo de Jesus com um dos ladrões.
Por curiosidade, vamos ver como essa frase aparece nas Bíblias de outras editoras:
Mundo Cristão: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”.
Vozes: “Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso”.
Pastoral: “Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo no paraíso”.
Ave Maria: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso”.
Barsa: “Em verdade te digo: que hoje serás comigo no paraíso”.
Loyola: “Eu te asseguro: hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Perguntaríamos, então, qual delas é a frase mais verdadeira? Enquanto algumas dizem
“em verdade”, outras dizem “eu garanto” e “eu te asseguro”, apesar dessas Bíblias terem como
origem o mesmo segmento religioso.
Um detalhe que julgamos importante é que essa afirmação, atribuída a Jesus, pode ser
encontrada nos documentos apócrifos: Evangelho de Nicodemos (TRICCA, vol. I, 1992a, p.
238), Descida de Cristo ao inferno (TRICCA, vol. I, 1992a, p. 261) e o denominado Declaração
de José de Arimateia”, nesse, inclusive, é citado o nome dele como sendo Dimas (TRICCA, vol.
II, 1992b, p. 285). Transcrevemos um trecho da fala do “bom ladrão”:
E enquanto ele pendia na cruz, ao ver os prodígios que se sucederam,
acreditei nele e roguei a ele dizendo: “Senhor, quando reinares, não te esqueças
de mim”. E ele logo disse-me: “Em verdade em verdade te digo, hoje
mesmo estarás comigo no paraíso”. (TRICCA, vol. I, 1992a, p. 261) (grifo
nosso).
Observe, caro leitor, que a fala encontrada no apócrifo Descida de Cristo ao inferno é a
mesma que se encontra no Evangelho de Lucas. Assim, ficamos na dúvida se a passagem de
Lucas, a respeito do “bom ladrão”, não teria sido tomada exatamente desse e dos outros dois
documentos, cuja autenticidade não foi reconhecida pela Igreja Católica, uma vez que ele
mesmo declara que escreveu “após acurada investigação de tudo deste o início”, o que
constata que ele não foi inspirado.
Por outro lado, vários outros autores confirmam o que Severino Celestino da Silva
(l1949- ) disse em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas:
Sabemos que os manuscritos originais do Novo Testamento não possuíam
pontuação, e em face do fato de o grego clássico (incluindo o grego koiné, no
qual foi escrito o Novo Testamento) gozar de ampla liberdade no tocante à
ordem das palavras, é impossível, à base do próprio texto grego, provar um lado
ou outro dessas ideias contraditórias. (SILVA, 2001, p. 309-310)
Assim, não fica difícil entender que nas traduções colocaram a pontuação conforme a
conveniência de cada tradutor.
Analisando, especificamente essa frase, e, se admitirmos que isso realmente tenha
acontecido, teremos uma contradição de Jesus, pois Ele mesmo disse: a cada um segundo
suas obras. (Mt 16,27). E, quando do episódio com Madalena, após sua ressurreição, disse
Ele a esta mulher: “Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus
irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo
20,17). Ora, se Jesus, três dias após sua morte, ainda não tinha subido ao Pai, como Ele
poderia ter afirmado ao “bom ladrão”, que hoje estarás comigo, ou seja, justamente no dia de
sua morte na cruz?
Outros questionamentos temos para apresentar: se muitos acreditam que, segundo as
escrituras, os mortos ficam dormindo, como admitir a entrada dele direto ao paraíso? E como
fica o tão falado dia do Juízo final, não haverá mais esse juízo?
116
Por outro lado, o “bom ladrão”, ao reconhecer que “nós na verdade com justiça, porque
recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez”, ele está
aceitando a justiça dos homens, e por mais forte razão, aceitaria a Justiça de Deus que lhe
daria uma pena merecida. Assim, podemos concluir também que ele não estava pedindo uma
recompensa por algo que não tivesse feito, mas, apenas que Jesus se lembrasse dele quando
voltasse; certamente visando o perdão dos seus pecados, não é mesmo?
Além disso, o dito “bom ladrão” (e, diga-se de passagem, é o único ladrão bom da
história da humanidade) somente reconheceu que ele e o outro tinham motivos para morrerem
crucificados, e que Jesus era um inocente sendo condenado; assim, já que não houve nem
mesmo um simples arrependimento, por parte dele, por que o prêmio? Se for verdadeira essa
regra, então, qual a vantagem de ser correto durante toda uma vida se podemos ir para o céu
apenas por um arrependimento de última hora?
Narra Mateus (20,20-23) que a mãe dos filhos de Zebedeu chega a Jesus com o
seguinte pedido: “Ordena que estes meus dois filhos se sentem um à tua direita e outro à tua
esquerda, no teu reino”. Não vemos Jesus atendendo ao pedido desta abnegada mãe; ao
contrário, disse-lhe: “Mas quanto a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não
me cabe concedê-lo, porque estes lugares são destinados àqueles para os quais meu Pai os
reservou”. Ora, se aqui Jesus afirma que não cabe a Ele conceder um lugar no Paraíso ou reino
dos céus, como, então, promete um lugar ao “bom ladrão”? Será que Ele estaria
contradizendo-se? Acreditamos que não, pois tanto nesse caso, quanto no outro, teria que agir
sem conceder qualquer tipo de privilegio, ou seja, “a cada um segundo suas obras”.(Mt 16,27).
Não bastassem os fatos acima, uma análise cuidadosa da cena do Calvário revela que o
ladrão pode não ter morrido naquele mesmo dia, pois João (19,31-33) nos diz: "Os
judeus, pois, para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, visto como era a Preparação
(pois era grande o dia de Sábado), rogaram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas, e que
fossem tirados. Foram, pois, os soldados e, na verdade, quebraram as pernas do primeiro, e
ao outro que com ele fora crucificado; mas, vindo a Jesus, e vendo-O já morto, não Lhe
quebraram as pernas".
Arnaldo B. Christianini (? - ) aborda a questão do costume de quebrar as pernas em seu
livro Subtilezas do Erro, de onde transcrevemos:
Por que "quebrar as pernas" dos justiçados? Porque o crucificado não morria
no mesmo dia. Cristo foi caso excepcional e sabemos que não morreu dos
ferimentos ou da hemorragia, mas de quebrantamento do coração. Morreu de
dor moral por suportar os pecados do mundo. Mas os outros, não, e as crônicas
descrevem o condenado esvaindo-se lentamente durante dias.
Diz, por exemplo o comentário de J. B. Howell:
"O crucificado permanecia pendurado na cruz até que, exausto pela dor, pelo
enfraquecimento, pela fome e a sede, sobreviesse a morte. Duravam os
padecimentos geralmente três dias, e às vezes, sete." (1)
É óbvio que os homens de maior robustez física duravam até sete dias na
cruz. No caso em tela, os judeus, não permitiram que se conservasse um
criminoso na cruz no dia de sábado, pois consideravam um desrespeito à
santidade do dia de repouso.
"De acordo com o costume, quebravam as pernas dos criminosos depois de
os haverem removido da cruz, deixando-os estendidos no chão, até que o
sábado passasse. Depois do sábado haver passado, sem dúvida esses dois
corpos foram outra vez amarrados na cruz, e lá ficaram diversos dias, até
morrerem..."
Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do pôr-dosol, é porque não haviam, morrido ainda. Na pior das hipóteses viveram ainda,
pelo menos, um dia a mais que o Mestre. Como podia, um deles, estar no
mesmo dia junto de Jesus?
______
(1) E. Howell, Comentário a S. Mateus, pág. 500.
(CHRISTIANINI, 1965, p. 274-275).
117
Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do pôr-do-sol, é porque
não haviam morrido ainda. Na pior das hipóteses, viveram ainda pelo menos um dia a mais
que o Mestre. Como podia, um deles, estar no mesmo dia junto de Jesus?
Já falamos, várias vezes, mas não custa repetir. Coloquemos a frase do seguinte modo:
Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso. Veja como uma simples vírgula muda
completamente o sentido do texto... Desta forma, é muito mais condizente com a Justiça
Divina, pois um indivíduo somente irá para o Paraíso, quando tiver realizado as obras que
justifiquem merecê-lo, não importando quanto tempo levará para isso.
Também não estaria em conflito com o texto: “Ora, se invocais como Pai aquele que,
sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, portai-vos com temor durante o
tempo da vossa peregrinação, ...” (1Pd 1,17). E, para reforçar que Deus não faz mesmo
acepção de pessoas, pedimos para consultar: Dt 10,17; 2Cr 19,7; Jó 34,19; At 10,34; 15,9;
Rm 2,11; Ef 6,9 e Cl 3,25.
118
Espíritos em Prisão
Reza o credo católico que Jesus “[...] padeceu sob o poder Pôncio Pilatos, foi
crucificado, morto e sepultado. Desceu aos infernos e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos;
subiu aos céus e está sentado à mão direita de Deus-Pai, todo-Poderoso, de onde há de vir
julgar os vivos e os mortos. [...]”.
A pergunta é: o que Jesus teria ido fazer nos infernos? De onde tiraram essa ideia?
Bom, parece-nos que isso foi retirado da primeira carta de Pedro (3,19-20), onde se diz que
Jesus pregou “aos espíritos em prisão”, acrescentando que esses espíritos são os que foram
desobedientes nos dias de Noé, ou seja, até antes do dilúvio.
Disso se pode concluir que, pela Bíblia, a palavra espírito significa um ser humano
desencarnado e que os espíritos exercem influência sobre os encarnados. É o que se verifica
por várias passagens bíblicas, onde encontramos os espíritos (imundos ou impuros) exercendo
domínio sobre uma pessoa (o possesso de Gerasa, em Mt 8,28-34; Mc 5,1-20 e Lc 8,26-39; o
possesso de Cafarnaum, em Mc 1,21-28 e Lc 4,31-37, e o menino mudo e epilético, em Mt
17,14-21; Mc 9,14-29 e Lc 9,37-43). Os seres aos quais se denominam demônios são, sem
sombra de dúvidas, os espíritos, tendo em vista que, pelas passagens citadas, as narrativas
ora dizem demônio ora espírito impuro, demonstrando, portanto, que são palavras sinônimas.
Mas, voltando à questão inicial, o que teria Jesus pregado a esses espíritos em prisão?
A resposta ainda se encontra na primeira carta de Pedro (4,6), onde ele diz que “o Evangelho
foi pregado também a mortos”. Resumindo: Jesus desceu aos infernos para pregar o
Evangelho aos espíritos dos que haviam morrido até o dilúvio.
Três questões nos surgem agora: a primeira, por que só pregou para os que viveram
até Noé, e os que morreram após o dilúvio até o início de sua pregação não tiveram a
oportunidade de receber essa pregação? Então onde fica “Deus não faz acepção de pessoas”
(Rm 2,11)? A segunda, é que se Jesus foi pregar aos mortos, que se encontravam nos infernos
(em prisão), é pelo fato de que esses condenados poderiam ser recuperados? Em função dessa
possibilidade de recuperação, na qual acreditamos, podemos afirmar que na hipótese do
inferno existir mesmo, ele não poderá ser eterno. Até mesmo porque somente se fica na prisão
até que seja pago o último centavo da dívida (Mt 5,26). Terceira, se Jesus foi aos infernos
pregar aos mortos concluímos que os mortos foram julgados; daí, haveria alguma explicação
racional para o tal juízo final, onde serão julgados os vivos e os mortos?
Vejamos agora o que dizem os teólogos.
Os protestantes, nos explicam a expressão “pregou aos espíritos em prisão”, dizendo:
Alguns pensam que esta frase significa que Cristo, entre Sua morte e
ressurreição, desceu ao Hades e ofereceu aos que viveram antes de Noé (v. 20)
uma segunda oportunidade de salvação, uma doutrina que não tem
apoio escriturístico. Outros pensam que foi apenas uma proclamação de Sua
vitória sobre o pecado aos que estavam no Hades, sem o oferecimento de uma
segunda chance. É Mais provável que este versículo seja uma referência ao
Cristo pré-encarnado pregando através de Noé àqueles que, por terem rejeitado
Sua mensagem, agora são ‘espíritos em prisão’. (Bíblia Anotada, p. 1566). (grifo
nosso).
Já com relação à pregação do Evangelho a mortos, dizem:
a mortos, I.e., cristãos já falecidos O evangelho foi pregado àqueles
mártires agora mortos. Eles foram julgados na carne e condenados ao martírio
segundo padrões humanos de justiça, mas estão vivos espiritualmente depois da
morte. Outra interpretação deste versículo relaciona esta pregação àquela
119
mencionada em 3:19. (Bíblia Anotada, p. 1566). (grifo nosso).
Diremos que o apoio escriturístico para a pregação de Jesus aos espíritos que estavam
na prisão é confirmado pela própria passagem questionada, como também em 1Pe 4,6; mas
em nota nessa passagem, dizem que Jesus teria ido pregar aos cristãos já falecidos. Essa
hipótese é completamente sem sentido, para não dizer absurda, pois os que seguiam Jesus só
foram chamados de cristãos mais tarde (At 11,26), por volta do ano 37 d.C., época da
fundação da Igreja de Antioquia; isso, considerando que a morte de Jesus se deu na Páscoa de
30, nos dá aproximadamente 7 anos depois da morte de Cristo. Resta-nos portanto, a
alternativa de que realmente Jesus foi pregar aos espíritos em prisão.
Os católicos, por sua vez, explicam:
Provável alusão à descida de Cristo ao limbo. Quem sejam os espíritos aos
quais Jesus foi pregar, é controverso. Há quem afirme que se trata dos espíritos
maus, aos quais Cristo anunciou a derrota e a sujeição; outros, ao contrário,
veem neles os incrédulos dos tempos de Noé; mas provavelmente são os justos
do A. T. que haviam esperado no Cristo. (Bíblia Sagrada Paulinas, p. 1329-1330)
E, em relação aos mortos dizem:
Quanto a esses mortos, cfe 3,19. São os justos que morreram pelo dilúvio,
entre os quais houve os que se arrependeram de seus pecados, embora esse
arrependimento tardio, tendo salvo a alma, não serviu para salvar o corpo da
morte. Há quem sustente tratar-se de mortos espirituais. (Bíblia Sagrada
Paulinas, p. 1330).
A atitude de Jesus descer aos infernos apenas para anunciar aos espíritos maus a sua
derrota e sujeição, não condiz com tudo que Ele pregou e exemplificou. Isso seria apenas uma
demonstração de superioridade com consequente humilhação daqueles aos quais estaria se
dirigindo; portanto, fora de propósito. Seriam os justos como sugerem? Se os justos estavam
na prisão é porque mereceram castigo; ora, só pelo fato de se merecer castigo é uma
consequência de não ser justo, pois justo merece prêmio, não castigo.
Limbo? Ora, na Bíblia não encontramos nada a respeito. Afinal o que é isso? Segundo o
Dicionário da Bíblia Barsa seria:
“residência das almas das crianças mortas sem terem sido batizadas, ...quem
não tiver cometido pecado mortal não será castigado com o inferno e de que só
os que tiverem tido o pecado original apagado pelo Batismo (de água, sangue
ou desejo) é que entrarão no céu” (Dicionário Barsa, p. 159).
Ah! O que esses teólogos não inventam para justificarem seus dogmas?! Veja bem;
criam um lugar que não existe, estabelecendo as condições para os que para lá irão; tudo sem
nenhum apoio bíblico; apenas como justificativa a seus dogmas. Essa, por exemplo, do pecado
original não condiz com: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela
culpa dos pais: cada um será morto pelo seu próprio pecado” (Dt 24,16).
Mas afinal, a quem Jesus teria pregado? Teria pregado a todos ou somente aos que
morreram do dilúvio para trás? Já que todos podem dar a sua opinião, diremos que
“provavelmente” Jesus tenha pregado a todos os espíritos que estavam “presos”, até mesmo
porque Deus trata todos de igual modo. Mas presos onde? Acreditamos que no “umbral”, onde
todos os espíritos, que ainda não possuem evolução suficiente para se desvincularem do
planeta Terra, ficam presos nessa faixa em volta dela. Assim, não admitimos que o “inferno”
seja eterno, nem que os “mortos” ficam dormindo à espera do juízo final. O grande problema
que surgirá se aceitarem isso, é que vai para o beleléu a fortuna que fazem usando o dízimo
não é mesmo?
Alguém poderá dizer: Mas o credo que conheço não fala em “infernos”, cita “mansão
dos mortos”. É fato; entretanto, ao que tudo indica mudou-se a forma de rezar o credo para
fugir dos inevitáveis questionamentos. Estão querendo, como se diz popularmente, “tapar o
120
Sol com a peneira” apenas isso. Não adianta, pois um dia a verdade haverá de aparecer.
121
A morte de Agripa
A ingenuidade de muitos em acreditar piamente em todas as narrativas bíblicas, como
se fossem verdades irrefutáveis, é digna de pena. A grande maioria dessas pessoas, se nem
mesmo ousa admitir uma simples dúvida, que dirá contestar aquilo que se encontra relatado
na Bíblia, já que pressupõem que tudo que ali está é plena verdade proveniente de Deus.
Ainda não perceberam que, por conta da esperteza da liderança religiosa da antiguidade,
tacitamente incorporada pela atual, foi o que transformou a Bíblia num livro cujo conteúdo
passou a ser supostamente a palavra de Deus. Foi a forma fácil e prática que se encontrou
para manter sob seu domínio os fiéis: ovelhas que não berram.
Leiamos esse acontecimento conforme a narrativa bíblica:
Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e Sidônia. Estes fizeram um
acordo entre si e se apresentaram diante de Herodes, depois de conquistarem as
graças de Blasto, o camareiro real. Eles pediam a paz, já que seu país recebia
mantimentos do território do rei. No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajes
reais, tomou seu lugar na tribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial. O povo começou a
clamar: "É a voz de um deus, e não de um homem!" Mas, imediatamente, o anjo do
Senhor feriu Herodes, porque ele não tinha dado glória a Deus. E Herodes
expirou, carcomido por vermes. (At 12,20-23) (grifo nosso).
Segundo os tradutores da Bíblia Anotada, esse personagem é “Herodes Agripa I, neto
de Herodes, o Grande, que reinara ao tempo do nascimento de Cristo. Agripa, pelo menos
exteriormente, era um zeloso praticante dos rituais judaicos e era um patriota em questões
religiosas” (p. 1378). E, em relação à sua morte, completam: “Josefo afirma que Herodes
adoeceu subitamente durante seu discurso e, depois de cinco dias de sofrimento, morreu (44
A.D.)” (p. 1379).
Vejamos então, para conferir, o que Josefo (37 a 103 d.C.), o historiador hebreu, fala a
respeito desse assunto. A versão de Josefo, parece-nos ser bem diferente dessa que acabamos
de citar. Vamos iniciar seu relato após Agripa ter sido preso, acusado por um liberto de nome
Eutico, de desejara morte do imperador Tibério, para que seu amigo Caio o substituísse no
poder:
Um dia, quando Agripa estava com outros prisioneiros diante do palácio, a
fraqueza, que lhe causava a tristeza, fez que ele se apoiasse a uma árvore
sobre a qual uma coruja veio pousar. Um alemão, que era do número desses
prisioneiros, tendo-o notado, perguntou a um soldado que o olhava e que estava
acorrentado com ele, quem era aquele homem; tendo sabido que era Agripa, o
mais notável de todos os judeus pela glória de sua origem, rogou-lhe que se
aproximasse dele, a fim de que pudesse ouvir de sua boca alguma coisa sobre
os costumes de seu país. O soldado assim fez; o alemão, então, disse a Agripa,
por meio de um intérprete: “Bem vejo que uma mudança tão grande e tão
repentina de vossa sorte vos aflige, e que dificilmente acreditaríeis que a divina
providência vos dará a liberdade, muito em breve. Mas eu tomo os deuses como
testemunhas, os deuses que eu adoro e os que são reverenciados neste país,
que me puseram nestas cadeias, de que, o que eu vos tenho a dizer, não é para
vos dar uma vã consolação, sabendo, como eu sei, que quando as predições
favoráveis não são seguidas de seus efeitos só servem para aumentar a nossa
tristeza. Quero pois dizer-vos, embora com perigo, o que essa ave que acaba
de voar sobre vossa cabeça vos pressagia. Estareis bem depressa em
liberdade e elevado a tão grande poder, que sereis invejado por aqueles que
agora têm compaixão de vossa infelicidade. Sereis feliz durante todo o resto de
vossa vida e deixareis filhos que sucederão à vossa felicidade. Mas quando
virdes aparecer de novo essa mesma ave, sabei que somente vos
restarão cinco dias de vida. Eis o que os deuses vos pressagiam e como
122
eu tenho conhecimento disso, julguei dever dar-vos essa alegria, para amenizar
vossos males presentes, com esperança de tantos bens futuros. Quando vos
encontrardes em tão grande prosperidade não nos esqueçais, eu vos rogo, e
trabalhai para nos tirar da miséria em que nos encontramos”. A predição desse
alemão pareceu tão ridícula a Agripa, que provocou nele, naquele instante, uma
gargalhada, tão forte que depois causou-lhe a ele mesmo, espanto e admiração.
(JOSEFO, 2003, p. 425-426) (grifo nosso).
Será que essa profecia foi cumprida? Para sabermos o que aconteceu, continuemos o
relato de Josefo um pouco mais à frente, cujo tempo decorrido é cerca de seis meses depois:
Trouxeram nesse mesmo tempo duas cartas de Caio; uma endereçada ao
senado, com a qual lhe dava o anúncio da morte de Tibério e de que ele o havia
escolhido para substituí-lo no império; a outra, a Pisão, governador da cidade,
que dizia a mesma coisa, ordenando-lhe tirar Agripa da prisão e permitir-lhe
voltar à sua casa. Assim ele se viu livre de todo temor: e embora estivesse
ainda guardado, vivia no resto, como queria. Pouco depois, Caio veio a Roma
para onde fez trazer o corpo de Tibério, mandando fazer-lhe, segundo o costume
dos romanos, soberbos funerais. Ele quis pôr Agripa em liberdade, no mesmo
dia, mas Antônia aconselhou-o a diferir, não, porque não sentisse afeto por ele,
mas porque julgava que aquela precipitação iria contra o decoro, porque não se
podia apressar tanto a liberdade daquele a quem Tibério conservava preso, sem
manifestar ódio por sua memória. No entanto, alguns dias depois, Caio
mandou chamá-lo e não se contentou em dizer-lhe que mandasse cortar os
cabelos, mas lhe pôs a coroa na cabeça; depois fê-lo rei da tetrarquia que
Felipe havia possuído e acrescentou-lhe ainda a de Lisânias. Quis também como
sinal de seu afeto dar-lhe uma cadeia de ouro do mesmo peso da de ferro que
ele havia usado e mandou em seguida Marullhe, como governador da Judeia.
(JOSEFO, 2003, p. 427) (grifo nosso).
Então se a primeira parte da profecia, dita pelo alemão, foi cumprida, fica provado que
os deuses, que lhe passaram a informação, estavam certos. Mas, e quanto à segunda parte da
profecia, a que dizia a respeito de sua morte? Será que Agripa ouviu a coruja piar novamente?
Voltemos à Josefo e leiamos:
No terceiro ano do seu reinado ele celebrou na cidade de Cesareia, que
antigamente era chamada a Torre de Estratão, jogos solenes em honra do
imperador. Todos os grandes e toda a nobreza da província, reuniram-se nessa
festa; no segundo dia dos espetáculos Agripa veio bem cedo, pela manhã, ao
teatro, com uma veste cujo forro era de prata trabalhada com tanta arte, que
quando o sol o iluminava com seus raios, desprendiam-se reflexos tão vivos de
luz, que não se podia olhar para ele sem se sentir tomado de um respeito, misto
de temor. Mesquinhos bajuladores, então, com palavras melífluas que destilam
veneno mortal no coração dos príncipes, começaram a dizer que até então
haviam considerado seu rei, como um simples homem, mas que agora viam que
o deviam reverenciar como um deus, rogando-lhe que se lhes mostrasse
favorável, pois parecia que ele não era como os demais, de condição mortal.
Agripa tolerou essa impiedade, que deveria ter castigado mui rigorosamente.
Mas, logo levantando os olhos, viu uma coruja, por sobre sua cabeça,
pousada numa corda estendida no ar e lembrou-se de que aquela ave era um
presságio de sua infelicidade como outrora tinha sido de sua prosperidade.
Soltou, então, um profundo suspiro e sentiu, ao mesmo tempo, as entranhas
roídas por uma dor horrível. Voltou-se para seus amigos e disse-lhes: “Aquele
que quereis fazer acreditar que é imortal, está prestes a morrer e essa
necessidade inevitável não podia ser uma mais pronta convicção de vossa
mentira. Mas é preciso querer tudo o que Deus quer. Eu era muito feliz e não
havia príncipe de quem eu devesse invejar a felicidade”. Dizendo estas palavras,
sentiu que as dores cresciam cada vez mais; levaram-no ao palácio e a notícia
espalhou-se imediatamente, de que ele estava prestes a exalar o último suspiro.
Logo todo o povo, com a cabeça coberta de um saco, segundo costume de
nossos pais, fez oração a Deus pela saúde e todo o ar ressoou com gritos e
lamentações. O príncipe que estava no quarto mais alto do palácio, vendo-os de
lá, prostrados por terra, não pôde reter as lágrimas; as dores, porém,
continuaram por cinco dias a fio e o levaram, aos cinquenta e quatro
123
anos de sua vida, sétimo do seu reinado, pois reinara quatro sob o imperador
Caio, nos três primeiros dos quais ele só tinha a tetrarquia, que fora de Filipe, e
no quarto, acrescentaram-lhe a de Herodes; nos três anos em que reinou sob
Cláudio, esse imperador deu-lhe também a Judeia, a Samaria e Cesareia. Mas,
embora suas rendas [*] fossem muito grandes, ele era liberal e tão magnânimo
que era obrigado ainda a pedir emprestado.
______
[*] O grego diz: Mil e duzentas vezes dez mil, sem nada mais especificar.
(JOSEFO, 2003, p. 453). (grifo nosso).
Interessantíssimo é que as duas previsões, constantes da profecia, que foram ditas pelo
alemão a Agripa, se cumpriram. Ora, ele mesmo afirmou a ter recebido dos deuses, o que
então prova que não era somente o Deus dos hebreus que tinha profetas aqui na terra. Será
que havia um acordo entre os deuses de ambos – o do alemão e o dos hebreus?
Provavelmente; haja vista o cumprimento integral da profecia.
Vejamos, agora, os pontos que foram aumentados:
Lucas: Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e Sidônia. Estes fizeram
um acordo entre si e se apresentaram diante de Herodes, depois de conquistarem as graças de
Blasto, o camareiro real. Eles pediam a paz, já que seu país recebia mantimentos do território
do rei.
Josefo: Nada fala desse assunto. Coloca o evento quando do acontecimento de jogos
solenes oferecidos por Agripa em honra ao imperador, ocasião em que se reuniram vários
príncipes e toda a nobreza para essa majestosa festa.
Lucas: No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajes reais, tomou seu lugar na
tribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial
Josefo: Fala que Agripa chegou ao local dos jogos de manhã usando “uma veste cujo
forro era de prata trabalhada com tanta arte, que quando o sol o iluminava com seus raios,
desprendiam-se reflexos tão vivos de luz, que não se podia olhar para ele sem se sentir
tomado de um respeito, misto de temor.” Não diz absolutamente nada de que Agripa tenha
feito, da tribuna, algum tipo de discurso oficial.
Lucas: O povo começou a clamar: "É a voz de um deus, e não de um homem!"
Josefo: O motivo para que alguns o elevaram à categoria de um deus, foi justamente a
roupa brilhante citada anteriormente. Condição não contestada por Agripa, que ainda, segundo
Josefo, deveria tê-los castigados. E quem disse alguma coisa foram os mesquinhos
bajuladores, o que pode não significar necessariamente que teria sido o povo, que dá uma
ideia de que todos, ou pelo menos, a maioria dos que ali estavam.
Lucas: Mas, imediatamente, o anjo do Senhor feriu Herodes, porque ele não tinha dado
glória a Deus. E Herodes expirou, carcomido por vermes.
Josefo: Após o episódio acima, Agripa vê uma coruja o que o faz lembrar-se da
profecia que ouvira do alemão; daí sim é que ele fala ao povo contestando a sua condição de
deus, assumindo sua condição de mortal e dizendo-lhes que brevemente estaria morto. O fato
imediato é que ele começou a passar mal, sentindo muitas dores. Nesse estado, Agripa
permaneceu por cinco dias, quando finalmente dá o seu último suspiro. Embora Josefo não fale
nada sobre o enterro de Agripa, é de se presumir que aconteceu, pois, se tivesse ocorrido algo
em contrário, seria ponto de destaque que não passaria despercebido por um historiador.
Assim, Agripa não foi imediatamente carcomido por vermes, fato que, para salvar o texto
bíblico, devemos considerar como épico. E mais: o motivo da morte de Agripa nada tem a ver
com ele não ter dado glória a Deus.
Por aqui provamos que, no presente caso, quem contou o conto, aumentou não foi um
só ponto, mas vários. Os relatos históricos não podem ser preteridos às narrativas bíblicas,
cujos autores não se preocuparam nem com a verdade histórica, nem mesmo com a ordem
cronológica dos acontecimentos, a eles só interessavam os seus heróis enaltecidos.
Sempre estamos ouvindo dogmáticos querendo salvar a veracidade dos textos bíblicos,
relegando os fatos históricos, arqueológicos e mesmo científicos, na doce ilusão de que “tá na
Bíblia é verdade”. Coitados, pois ainda acham que conseguirão tapar o Sol com uma peneira!
124
O antigo testamento foi revogado por Jesus?
Neste texto estudaremos algumas passagens do Evangelho buscando compreender as
palavras de Jesus, visando deixar o mais claro possível o que Ele pensava, de modo que
também você, leitor, tenha elementos suficientes para tirar sua própria conclusão.
Mt 5,17-18: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar,
vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: 'Até que o céu e a terra passem, nem
um 'i' ou um 'til' jamais passará da lei, até que tudo se cumpra'”.
Essa é a passagem em que se apoiam para concluir que Jesus estaria confirmando toda
a Bíblia. Mas, com essa fala, Ele estava apenas querendo dizer que devia se cumprir tudo que
Dele está escrito na Lei e nos profetas, dizendo que nem um “i” ou nem um “til” do que ali
consta deixaria de ser cumprido; isso ficará bem claro, no desenrolar desse estudo.
Lc 10,25-28: “E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com intuito de por
Jesus em provas, e disse-lhe: 'Mestre, que farei para herdar a vida eterna?' Então Jesus
lhe perguntou: 'Que está escrito na lei? Como interpretas?' A isto ele respondeu:
'Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas
forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo'. Então
Jesus lhe disse: 'Respondeste corretamente; faze isto, e viverás'”.
Se Jesus, quando disse a respeito da Lei (Mt 5,17-18), estivesse mesmo se referindo a
todo o Pentateuco mosaico, estaria em contradição com esta passagem, pois considerou como
correta a resposta do intérprete, que somente disse que está escrito o: “Amarás o Senhor teu
Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ora, na legislação de Moisés
existem muitas outras coisas para se cumprirem além dessas, que, segundo os exegetas, são,
ao todo, 613 normas.
Lc 16,16-17: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendo
anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele. E é
mais fácil passar o céu e a terra, do que cair um til sequer da lei”.
Se a Lei e os profetas vigoraram até João é porque depois de João está vigorando algo
diferente, uma nova legislação. Ela não é nada mais nada menos que o Evangelho, ou seja, o
Novo Testamento. A questão de “cair um til sequer da lei” se refere a tudo que há nela com
relação às profecias sobre a vinda de Jesus. Assim, os acontecimentos que iriam ocorrer com
Ele é que seriam cumpridos e não, como querem alguns, que todas as ordenações contidas lá,
devam ser rigorosamente seguidas. Até mesmo porque, como iremos ver mais adiante,
especificamente algumas delas Ele as alterou profundamente, como é o caso, por exemplo, da
questão do “olho por olho”.
Lc 24,25-27: “Ele então lhes disse: 'Ó homens sem inteligência, como é lento o
vosso coração para crer no que os profetas anunciaram! Não era preciso que Cristo
sofresse essas coisas para entrar na glória?' E partindo de Moisés começou a
percorrer todos os profetas, explicando em todas as Escrituras, o que dizia
respeito a ele mesmo”.
Após ressuscitar, Jesus caminha com dois discípulos que estavam indo para a aldeia de
Emaús, e lhes explica o que constava nas Escrituras a respeito dele. Iniciando por Moisés,
percorre todos os profetas, ou seja, esclarece-lhes somente o que era importante e que
deveria ser cumprido nesse contexto. Portanto, confirma o que estamos dizendo desde o início,
quer dizer, que Ele não veio revogar ou abolir as profecias a Seu respeito. Se tudo nas
Escrituras fosse mesmo importante, não iria restringir-se a só explicar o que nelas diziam
125
sobre Ele. E para provar que não estamos distorcendo os fatos, vejamos a passagem seguinte:
Lc 24,44-45: “A seguir Jesus lhes disse: 'São estas palavras que eu vos falei,
estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de mim está
escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos'. Então lhes abriu o
entendimento para compreenderem as Escrituras”.
Veja você, caro leitor, que é perfeitamente claro o que Jesus quis dizer quanto ao
cumprimento das Escrituras. Não era, portanto, tudo quanto existia nelas, mas somente
importava que se cumprisse tudo o que dele estava escrito nela, ou seja, sua origem da
casa de Davi, sua missão, todo o seu padecimento que culminou com sua morte na cruz e sua
gloriosa ressurreição. Assim, não há como entender de outra forma, a não ser que as palavras
de Jesus não sirvam para nada ou que as queiramos distorcer.
Jo 1,17: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram
por Jesus Cristo”.
Aqui temos uma nítida demonstração de que a Lei de Moisés não é de suma
importância para os cristãos, já que a VERDADE veio por Jesus Cristo, e é a Ele que nós
procuramos seguir, e não a Moisés. Não poderemos dizer que a Lei de Moisés não teve o seu
valor; é claro que teve; entretanto, como diz Jesus, somente até João (Lc 16,16). Isso porque,
para um povo atrasado, ela foi um fator de desenvolvimento.
Jo 1,45: “Filipe encontrou Natanael e lhe falou: 'Achamos aquele de quem
escreveram Moisés na Lei e os Profetas, Jesus, filho de José de Nazaré'”.
Passagem que vem confirmar que as profecias a respeito do Messias estavam se
cumprindo no momento em que Jesus inicia a sua vida pública. E era justamente nisso que os
hebreus esperavam, ansiosamente, que se cumprissem as Escrituras.
Jo 7,23: “Se um homem recebe a circuncisão no sábado, para cumprir a Lei de
Moisés, por que vos irritais contra mim porque curei totalmente um homem no
sábado?”.
Jo 8,5-7: “Na Lei, Moisés nos manda apedrejar as adúlteras; mas tu o que dizes? [...]
Jesus [...] lhes disse: ‘Aquele de vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira
pedra'”.
Se, realmente, as leis que Moisés passou ao povo hebreu fossem todas provenientes do
Criador, por que nestas duas passagens não se diz: cumprir a Lei de Deus e Na lei, Deus
nos manda, respectivamente? Porque eram leis de Moisés e não provenientes da divindade.
Tanto é que, na questão da adúltera, Jesus não disse ao povo para cumprir a Lei; antes, ao
contrário, revoga-a, inclusive, demonstrando uma inteligência que Lhe era peculiar. Deus
também nunca diria: “Não cobiçar a mulher do próximo”, mandamento que realça ser,
obviamente, um produto da cultura de uma sociedade machista daquela época; nada mais que
isso, sendo, portanto, da forma que está expressa, lei dos homens e não de Deus.
Paulo, em carta aos romanos, disse-lhes o seguinte:
Rm 7,5: “Enquanto viviam segundo a carne, as paixões pecaminosas, estimuladas
pela Lei, produziam fruto para a morte em nossos membros”.
Podemos deduzir desta passagem, que a Lei estimulava paixões pecaminosas? Se for
isto mesmo, é porque ela, a Lei, não era a VERDADE, que veio somente com Jesus. E no
versículo seguinte continua:
Rm 7,6: “Mas agora, livres da Lei, estamos mortos para aquilo que nos conservava
prisioneiros, de sorte, que podemos servir a Deus conforme um espírito novo e
não segundo a letra antiga”.
Livres da Lei, ou seja, que não estamos mais submissos a ela. Não é claro isso? Se
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podemos servir a Deus conforme um espírito novo, qual seja, os ensinamentos de Jesus, por
que ficar ainda apegados a Moisés (letra antiga)? O Antigo Testamento foi revogado, ou ainda
queremos permanecer na dúvida?
Mt 5,19-20: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores,
e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele,
porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e
fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”.
Nosso quadro é: Jesus na passagem evangélica do Sermão do Monte, onde inicia
dizendo os novos ensinamentos que deveremos cumprir. São as verdades que Ele passa a
todos nós como roteiro de vida. São apenas os mandamentos que disse para que não os
violássemos. A partir dali, também, é que altera e revoga a legislação de Moisés; confirmamos
isso com as passagens relativas ao capítulo 5 de Mateus, que serão colocadas logo a seguir.
Mt 5,21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não matarás; e: Quem matar estará
sujeito a julgamento'. Eu, porém, vos digo que todo aquele que (sem motivo) se irar
contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão
estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao
inferno de fogo”.
Moisés: Não matarás. Jesus: que não devemos nem mesmo irar contra ou insultar ao
nosso irmão.
Mt 5,27-28: “Ouvistes que foi dito: 'Não adulterarás'. Eu, porém, vos digo: Qualquer
um que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela.
Moisés: Não adulterarás. Jesus: só o fato de olhar para uma mulher com intenção
impura, já cometemos adultério.
Mt 5,31-32: “Também foi dito: 'Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de
divórcio'. Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de
relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a
repudiada comete adultério.
Moisés: poder-se-ia repudiar a mulher. Jesus: se a repudiares estás expondo a mulher
ao adultério.
Mt 5,33-37: “Também ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não jurarás falso, mas
cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos'. Eu, porém, vos digo:
De modo algum jureis: Nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser
estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pela
tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tua
palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno”.
Moisés: Não jurarás falso. Jesus: De modo algum jureis.
Mt 5,38-42: “Ouvistes que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente'. Eu, porém, vos
digo: Não resistais ao perverso; mas a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe
também a outra; e ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também
a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede,
e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes”.
Moisés: Olho por olho, dente por dente. Jesus: Quem te ferir na face direita, volta-lhe
também a outra.
Mt 5,43-48: “Ouvistes que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'. Eu,
porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que
vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e
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bons, e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que
recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardes
somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o
mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”.
Moisés: Odiarás o teu inimigo. Jesus: Amai os vossos inimigos.
Encontramos apoio ao nosso pensamento no exegeta Bart D. Ehrman (1955- ), que em
sua obra O que Jesus disse? O que Jesus não disse?; quem mudou a Bíblia e por quê, assim se
expressou:
Contudo, logo depois, os cristãos passaram a aceitar outros escritos ao lado
das Escrituras judaicas. Essa aceitação pode ter tido origem no ensino
autorizado do próprio Jesus, à medida que seus seguidores tomaram a sua
interpretação das escrituras como dotada da mesma autoridade conferida às
palavras das próprias escrituras. Jesus pode ter estimulado essa compreensão
pelo modo como parafraseava alguns de seus ensinamentos. No Sermão da
Montanha, por exemplo, vê-se Jesus expondo leis dadas por Deus a
Moisés e depois dando sua própria e mais radical interpretação delas,
indicando que a sua interpretação é a autorizada. (EHRMAN, 2006, p. 4041) (grifo nosso).
Reputamos a opinião de Ehrman como de grande importância, pois ele é considerado o
maior especialista em Novo Testamento da atualidade.
E, objetivamente, quanto à questão da revogação do Antigo Testamento, vejamos o que
encontramos de apoio a essa tese no Novo Testamento:
1Cor 15,2: “É pelo evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem de
modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.
Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a palavra da verdade, o Evangelho que
os salva”.
Paulo deixa claro que é pelo Evangelho que seremos salvos; em outras palavras, ele
não aceita o Antigo Testamento como algo com que possamos nos salvar.
Hb 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de
sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa alguma) e, por outro
lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. E, visto que não
é sem prestar juramento (porque aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, mas
este, com juramento, por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá;
Tu és sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de
superior aliança”.
Hb 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente,
quanto é ele também mediador de superior aliança instituída com base em
superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem
defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E, de
fato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança
com a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada a
primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido, está prestes a
desaparecer”.
Hb 10,9: “... Desse modo, Cristo suprime o primeiro culto para estabelecer o
segundo”.
Se até aqui ainda poderia existir alguma pequena sombra de dúvida, agora foi
definitivamente dissipada por estas narrativas da carta aos Hebreus. Poderíamos até dizer:
“quem tem ouvidos que ouça”, mas diremos quem tem olhos veja: a aliança anterior é
fraca, inútil e com defeito, enquanto que a nova é superior a ela. Quanto ao “está
prestes a desaparecer”, só não desapareceu ainda por causa da insistência de alguns que
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querem, a todo custo, manter viva a legislação de Moisés contida no Antigo Testamento.
Repetindo: Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneira
alguma estaria sendo buscado lugar para segunda.
Corroboramos nossa ideia com Ehrman:
Já mencionei que esta é a visão apresentada na epístola dos Hebreus, do
Novo Testamento, livro que tenta mostrar que a religião baseada em
Jesus é superior à religião do judaísmo, em todos os sentidos. Para o
autor de Hebreus, Jesus é superior a Moisés, que deu a Lei aos judeus
(Hb 3); ele é superior a Josué, que conquistou a terra prometida (Hb 3); ele é
superior aos sacerdotes que oferecem sacrifícios no templo (Hb 4-5); e, o mais
marcante, ele é superior aos próprios sacrifícios (Hb 9-10). […]. (ERMAN, 2008,
p. 78) (grifo nosso).
Clara, então, fica a questão de Jesus ser superior a Moisés.
Mc 2,18-22: “Como os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando, foram lhe
perguntar: 'Por que é que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e
os teus não?' Jesus lhes respondeu: 'Por acaso ficaria bem que os convidados para um
casamento fizessem jejum, enquanto o esposo está com eles? Enquanto está, não
convém. Mas virá um tempo em que o esposo lhes será tirado. Então sim, eles vão
jejuar. Ninguém costura um remendo de pano novo em roupa velha. Do contrário
o remendo novo, pelo fato de encolher, estraga a roupa velha e o rasgão fica pior.
Ninguém põe vinho novo em velhos recipientes de couro. Caso contrário, o vinho
arrebentaria os recipientes. Ficariam perdidos os recipientes e também o vinho. Para
vinho novo, recipientes novos!'”.
Seria o mesmo que Jesus dizer: Se vocês ficarem apegados aos ensinamentos de
Moisés, não conseguirão suportar nem compreender o que agora vos trago. Onde se falava
sobre os jejuns? Não é no Velho Testamento, que, tanto os fariseus e quanto os discípulos de
João Batista, tiravam o que seguiam? Lembremo-nos de que “a Lei e os Profetas vigoraram
até João” (Lc 16,16). Assim, não fica claro sua revogação por Jesus? Só não o é para os que
ainda insistem em seguir Moisés. Mais claro fica quando tomamos da nota de rodapé constante
do Novo Testamento, Edições Loyola, o seguinte: “Tanto o pano novo como o vinho novo são
símbolos duma nova era (cf. At 10,11; Hbr 1,11; Gên 49,11-12); os cristãos devem estar
animados dum espírito novo, incompatível com antigas prescrições do judaísmo já
ultrapassadas” (p. 57).
Há um episódio na vida de Jesus que nos levou a formar uma forte convicção que seus
ensinamentos eram superiores aos de Moisés. É a passagem em que João narra, o que se
supõe como sendo, o primeiro milagre de Jesus. Apesar de termos refletido muito sobre ela,
ainda não tínhamos nenhuma explicação que justificasse a atitude de Jesus em transformar
água em vinho, para embebedar os convidados da festa de que participava.
Vejamos o episódio:
Jo 2,1-11: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a
mãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de
casamento, junto com seus discípulos. Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse: 'Eles
não têm mais vinho!' Jesus respondeu: 'Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda
não chegou'. A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo: 'Façam o que ele
mandar'. Havia aí seis potes de pedra de uns cem litros cada um, que serviam para os
ritos de purificação dos judeus. Jesus disse aos que serviam: 'Encham de água esses
potes'. Eles encheram os potes até a boca. Depois Jesus disse: 'Agora tirem e levem ao
mestre-sala'. Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água transformada em
vinho, sem saber de onde vinha. Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles que
tiraram a água. Então o mestre-sala chamou o noivo e disse: 'Todos servem primeiro o
vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém,
guardou o vinho bom até agora'. Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou
129
seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele”.
Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o encontraremos naquilo que a
pessoa encarregada da festa disse para o noivo: “Todos servem primeiro o vinho bom e,
quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até
agora”. Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua missão, podemos
dizer que o “vinho bom guardado até agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aos
recebidos anteriormente, por meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de pior
qualidade, até mesmo porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época não
estava preparada para receber vinho (ensinamento) de melhor qualidade, se assim podemos
nos expressar.
Tudo o que já dissemos anteriormente sobre os ensinos de Jesus, vale para corroborar
essa nossa opinião. Mas podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em comparação com esta
imensa glória, o esplendor do ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2Cor
3,10), e “Dessa maneira é que se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de sua
fraqueza e inutilidade – a Lei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi introduzida uma
esperança melhor pela qual nos aproximamos de Deus” (Hb 7,18-19).
Concluímos que Jesus não se restringiu a só revogar os rituais e sacrifícios como alguns
pensam, para nós, foi muito mais além disso. Comprovamos também que não distorcemos as
narrativas da Bíblia à nossa conveniência, de que tanto nos acusam. São elas, exatamente,
que nos dão uma base sólida para afirmar com absoluta certeza que:
1 – O cumprimento da lei e dos profetas a que Jesus se refere no Evangelho é apenas
com relação às profecias contidas nas Escrituras sobre Ele mesmo;
2 – Que somente tem que ser cumprido da Lei: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a ti mesmo.
3 – Que nunca disse para seguirmos toda a Lei, aqui entendida como todo o
Pentateuco.
É muito comum recorrerem aos apologistas do cristianismo primitivo para justificar esse
ou aquele ponto, entretanto, quando é algo contrário à crença vigente passam por cima, como
se não tivessem visto. Vejamos, por exemplo, o que encontramos em Justino de Roma.
A opinião de Justino de Roma (c. 100-165 d.C.), tido como o melhor apologista do
século II, é bem clara no debate que manteve com um sábio judeu, Trifão, que alguns
estudiosos identificam como sendo o célebre rabino Tarfão, morto em 155, uma vez que Trifão
seria a forma grega do hebraico Tarfão. (JUSTINO, 1995, p. 107). Desse debate, intitulado
Diálogo com Trifão, que durou dois dias, transcrevemos:
[…] Contudo, nós não a [confiança] depositamos por meio de Moisés ou da
Lei, pois nesse caso estaríamos fazendo o mesmo que vós. Com efeito, ó Trifão,
eu li que deveria vir uma lei perfeita e uma aliança soberana em relação às
outras, que agora devem ser guardadas por todos os homens que desejam a
herança de Deus. A Lei dada sobre o monte Horeb já está velha e pertence
apenas a vós. A outra, porém, pertence a todos. Uma lei colocada contra
outra lei anula a primeira; uma aliança feita posteriormente também
deixa sem efeito a primeira. Cristo nos foi dado como lei eterna e
definitiva e como aliança fiel, depois da qual não há mais nem lei, nem
ordem, nem mandamento. […] (JUSTINO, 1995, p. 127) (grifo nosso).
Mais claro que isso é querer muito; não é mesmo?
Agora, podemos responder ao questionamento inicial: O Antigo Testamento foi
revogado por Jesus? Sim; sem nenhuma sombra de dúvida. E é por isso que não nos sentimos
na obrigação de cumprir nada do que consta nele, até mesmo para sermos coerentes com o
que pensamos e por acreditar nessa fala de Jesus: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Por que Ele se colocou como sendo o caminho
que conduz ao Pai e não a Moisés? É porque somente os seus ensinos é que devem ser
seguidos.
Esse é o entendimento a que chegamos. Entretanto, não há como obrigar ninguém a
130
pensar como nós. A única coisa que pedimos é para que as pessoas deixem de se apegar em
demasia aos velhos ensinamentos, como se eles fossem verdadeiros. A Terra já não é mais o
centro do Universo, visto que o homem, percebendo a ignorância de tal afirmativa, finalmente,
aceitou a voz da Ciência. Além de que, muitas coisas não foram mudadas pelas cúpulas
religiosas, justamente para que elas conservassem, a todo custo, o domínio que têm sobre o
povo e, também, para que pudessem mantê-lo a todo custo. Ainda hoje encontramos as que
buscam incutir a validade dos ensinamentos do Antigo Testamento não se dando conta de que
“rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da graça” (Gl 5,4).
Sabemos que não fazem isso por ignorância, mas por esperteza visando dominar seus “fiéis”, a
fim de conseguir e manter o “poder” e o “dinheiro” na base do que podemos chamar de
terrorismo religioso.
131
Jesus ficava calado?
Vez por outra, ouvimos a afirmativa de que não devemos responder a isso ou quilo, pois
Jesus não respondeu a ninguém, sempre permanecia calado. Interessante como certas coisas
facilmente são transformadas em mito. O mito, como sabemos, é algo que prolifera e mesmo
que seja o maior erro, torna-se uma verdade para muitos. Isso acontece, pois, normalmente,
não somos dados a questionamentos, preferindo seguir pela “trilha do bezerro” que abrir novo
caminho pela mata.
Recebemos recentemente um e-mail em que uma leitora nos propunha uma reflexão
sobre nossa atitude de sempre defender a Doutrina Espírita dos ataques gratuitos feitos pelos
detratores de plantão, nos sugerindo que, talvez, fosse melhor que ficássemos calados
seguindo o exemplo do Mestre.
Sinceramente, até então não tínhamos pensado mais seriamente sobre isso mas dessa
vez, não sabemos o porquê, resolvemos ir à fonte para conhecer como exatamente as coisas
se deram. Assim, caro leitor, apresentamos agora o fruto de nosso estudo sobre esse assunto.
Iremos analisar várias passagens bíblicas a fim de podermos saber como era realmente
o comportamento de Jesus: ficava mesmo calado? Não! Quem tiver curiosidade de ler mais
detidamente o Evangelho verá que a liderança religiosa da época – escribas, fariseus,
saduceus, sacerdotes e anciãos do povo - não deram tréguas a Jesus. Entretanto, as narrativas
nos dão conta de que o Mestre jamais ficou calado, sempre os respondeu à altura e nem
mesmo os poupou de, por várias vezes, chamá-los de hipócritas e em uma oportunidade os
comparou a sepulcros caiados, brancos por fora e podres por dentro. Isso a nosso ver não é
ficar calado.
Ao reler essas passagens foi que nos demos conta disso. Veja, se temos ou não razão:
Mt 5,20: “Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar a dos
doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu".
Percebe-se por aqui que Jesus, em relação aos escribas e fariseus, já os tomava a conta
de pessoas às quais não devíamos seguir o exemplo, cuja justiça não deveria ser imitada.
Mt 12,1-8: “Naquele tempo, Jesus passou por uns campos de trigo, num dia de sábado.
Seus discípulos ficaram com fome, e começaram a apanhar espigas para comer. Vendo
isso, os fariseus disseram: 'Eis que os teus discípulos estão fazendo o que não é
permitido fazer em dia de sábado!' Jesus perguntou aos fariseus: 'Vocês nunca leram o
que Davi e seus companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Como ele
entrou na casa de Deus, e eles comeram os pães oferecidos a Deus? Ora, nem para
Davi, nem para os que estavam com ele, era permitido comer os pães reservados
apenas aos sacerdotes. Ou vocês não leram também, na Lei, que em dia de sábado, no
Templo, os sacerdotes violam o sábado, sem cometer falta?. Pois eu digo a vocês: aqui
está quem é maior do que o Templo. Se vocês tivessem compreendido o que significa:
'Quero a misericórdia e não o sacrifício', vocês não teriam condenado estes homens que
não estão em falta. Portanto, o Filho do Homem é senhor do sábado'”.
Essa questão de fazer algo no sábado era para eles um ponto de honra daí não perdiam
oportunidade de importunar Jesus, quando ele fazia algo nesse dia. Ao ser questionado, sobre
a atitude de seus discípulos em providenciar alimentação num dia de sábado, Jesus respondeulhes à altura não deixando passar batido, como se diria popularmente.
Mt 12,9-14: “Jesus saiu desse lugar, e foi para a sinagoga deles. Aí havia um homem
com uma das mãos paralisada. E, para poderem acusar Jesus, os fariseus
perguntaram: 'É permitido fazer cura em dia de sábado?' Jesus respondeu: 'Suponham
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que um de vocês tem uma só ovelha, e ela cai num buraco em dia de sábado. Será que
ele não a pegaria e não a tiraria de lá? Ora, um homem vale muito mais do que uma
ovelha! Logo, é permitido fazer uma boa ação em dia de sábado'. Então Jesus disse ao
homem: 'Estenda a mão'. O homem estendeu a mão, e ela ficou boa e sadia como a
outra. Logo depois, os fariseus saíram e fizeram um plano para matar Jesus”.
Na continuação da narrativa anterior vemos Jesus curando num dia de sábado mas,
nem numa situação de estar praticando o bem, os intolerantes de sua época achavam certa
essa atitude. Vemos, hoje em dia, os fundamentalistas agindo quase que da mesma forma. Os
tempos mudam, mas, para muitos, é como se isso não ocorresse, já que ficam apegados ao
passado.
Mt 12,22-37: “Então levaram a Jesus um endemoninhado cego e mudo. Jesus o curou,
de modo que ele falava e enxergava. E todas as multidões ficaram admiradas, e
perguntavam: 'Será que ele não é o filho de Davi?' Os fariseus ouviram isso, e
disseram: 'Ele expulsa os demônios através de Belzebu, o príncipe dos demônios!'
Sabendo o que eles estavam pensando, Jesus disse: 'Todo reino dividido em grupos
que lutam entre si, será arruinado. E toda cidade ou família dividida em grupos que
brigam entre si, não poderá durar. E se Satanás expulsa Satanás, ele está dividido
contra si mesmo. Como, então, o seu reino poderá sobreviver? Se é através de Belzebu
que eu expulso os demônios, através de quem os filhos de vocês expulsam os
demônios? Por isso, serão eles mesmos que julgarão vocês. Mas se é através do
Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus chegou para
vocês. Ainda: como alguém pode entrar na casa de um homem forte, e se apoderar de
suas coisas, se antes não amarrar o homem forte? Só depois poderá roubar a sua casa.
Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, espalha. É por
isso que eu digo a vocês: todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens; mas a
blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Quem disser alguma coisa contra o Filho
do Homem, será perdoado. Mas quem disser algo contra o Espírito Santo, nunca será
perdoado, nem neste mundo, nem no mundo que há de vir. Se vocês plantarem uma
árvore boa, o fruto dela será bom; mas se vocês plantarem uma árvore má, também o
fruto dela será mau, porque é pelo fruto que se conhece a árvore. Raça de cobras
venenosas! Se vocês são maus, como podem dizer coisas boas? Pois a boca fala aquilo
de que o coração está cheio. O homem bom tira coisas boas do seu bom tesouro, e o
homem mau tira coisas más do seu mau tesouro. Eu digo a vocês: no dia do
julgamento, todos devem prestar contas de cada palavra inútil que tiverem falado.
Porque você será justificado por suas próprias palavras, e será condenado por suas
próprias palavras'".
Nem ainda saímos do capítulo doze e já encontramos mais uma outra situação em que
a liderança religiosa, cega no seu saber, questiona a Jesus, quando o Mestre liberta uma
criatura endemoninhada. Para seus adversários ele fazia isso porque era o príncipe dos
demônios ao que Jesus lhes responde com maestria. E, destacamos, ao final ainda os chama
de raça de cobras venenosas, atiçando a ira deles. Daqui percebemos que também a liderança
religiosa nos dias atuais faz exatamente a mesma coisa em relação ao Espiritismo, que, apesar
de libertar muitas pessoas das influências espirituais inferiores, é taxado de “obra do
demônio”. Deveríamos repetir Jesus dizendo-lhes: raça de víboras?
Mt 12,38-42: “Então alguns doutores da Lei e fariseus disseram a Jesus: 'Mestre,
queremos ver um sinal realizado por ti'. Jesus respondeu: 'Uma geração má e adúltera
busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal do profeta Jonas.
De fato, assim como Jonas passou três dias e três noites no ventre da baleia, assim
também o Filho do Homem passará três dias e três noites no seio da terra. No dia do
julgamento, os homens da cidade de Nínive ficarão de pé contra esta geração, e a
condenarão. Porque eles fizeram penitência quando ouviram Jonas pregar. E aqui está
quem é maior do que Jonas. No dia do julgamento, a rainha do Sul se levantará contra
esta geração, e a condenará. Porque ela veio de uma terra distante para ouvir a
sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão'"
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Aos doutores da Lei e fariseus que queriam um sinal como prova de que Jesus era
mesmo o Messias resposta de Jesus não se fez esperar; tanto que, nessa ocasião, os chama de
geração má e adúltera.
Mt 15,1-14: “Alguns fariseus e diversos doutores da Lei, de Jerusalém, se aproximaram
de Jesus, e perguntaram: 'Por que os teus discípulos desobedecem à tradição dos
antigos? De fato, comem pão sem lavar as mãos!' Jesus respondeu: 'Por que é que
vocês também desobedecem ao mandamento de Deus em nome da tradição de vocês?
Pois Deus disse: 'Honre seu pai e sua mãe'. E ainda: 'Quem amaldiçoa o pai ou a mãe,
deve morrer'. E no entanto vocês ensinam que alguém pode dizer ao seu pai e à sua
mãe: 'O sustento que vocês poderiam receber de mim é consagrado a Deus'. E essa
pessoa fica dispensada de honrar seu pai ou sua mãe. Assim vocês esvaziaram a
palavra de Deus com a tradição de vocês. Hipócritas! Isaías profetizou muito bem sobre
vocês, quando disse: 'Esse povo me honra com os lábios, mas o coração deles está
longe de mim. Não adianta nada eles me prestarem culto, porque ensinam preceitos
humanos.' Em seguida, Jesus chamou a multidão para perto dele, e disse: 'Escutem e
compreendam. Não é o que entra na boca que torna o homem impuro, mas o que sai
da boca, isso torna o homem impuro'. Então os discípulos se aproximaram, e disseram
a Jesus: 'Sabes que os fariseus ficaram escandalizados com o que disseste?' Jesus
respondeu: 'Toda planta que não foi plantada pelo meu Pai celeste será arrancada. Não
se preocupem com eles. São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, os
dois cairão num buraco'”.
A liderança religiosa tinha um apego exagerado à tradição, fazia dela uma questão
religiosa daí se espantarem quando os discípulos não lavaram as mãos antes de comerem.
Novamente recebem de Jesus uma resposta à altura, que os chama de hipócritas e guias
cegos.
Mt 16,5-12: “Quando atravessaram para o outro lado do mar, os discípulos se
esqueceram de levar pães. Então Jesus disse: 'Prestem atenção, e tomem cuidado com
o fermento dos fariseus e dos saduceus'. Os discípulos pensavam consigo mesmos: 'É
porque não trouxemos pães'. Mas Jesus percebeu, e perguntou: 'Por que vocês estão
pensando na falta de pães, homens de pouca fé? Vocês ainda não compreendem, nem
mesmo se lembram dos cinco pães para cinco mil homens, e de quantos cestos vocês
recolheram? Nem dos sete pães para quatro mil homens, e quantos cestos vocês
recolheram? Como é que não compreendem que eu não estava falando de pão com
vocês? Tomem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus'. Então eles
perceberam que Jesus não tinha falado para tomar cuidado com o fermento de pão,
mas com o ensinamento dos fariseus e saduceus”.
Aqui Jesus recomenda aos discípulos para não seguirem o ensinamento dos fariseus e
saduceus. Ficamos a pensar se Jesus não manteria esse discurso à liderança religiosa atual!
Assim, com essa atitude, Jesus deixa claro que os ensinamentos deles não são de cunho
divino, mas apenas fruto de seus próprios interesses, tal e qual está acontecendo nos dias
atuais.
Mt 19,1-12: “Quando Jesus acabou de dizer essas palavras, ele partiu da Galileia, e foi
para o território da Judeia, no outro lado do rio Jordão. Numerosas multidões o
seguiram, e Jesus aí as curou. Alguns fariseus se aproximaram de Jesus, e
perguntaram, para o tentar: 'É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher por
qualquer motivo?' Jesus respondeu: 'Vocês nunca leram que o Criador, desde o início,
os fez homem e mulher? E que ele disse: 'Por isso, o homem deixará seu pai e sua
mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne'? Portanto, eles já não são
dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar'. Os
fariseus perguntaram: 'Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio ao
despedir a mulher?' Jesus respondeu: 'Moisés permitiu o divórcio, porque vocês são
duros de coração. Mas não foi assim desde o início. Eu, por isso, digo a vocês: quem se
divorciar de sua mulher, a não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra,
comete adultério'. Os discípulos disseram a Jesus: 'Se a situação do homem com a
mulher é assim, então é melhor não se casar'. Jesus respondeu: 'Nem todos entendem
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isso, a não ser aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados, porque
nasceram assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros, ainda, se
castraram por causa do Reino do Céu. Quem puder entender, entenda'".
Obviamente, que nesse episódio, os fariseus não estavam querendo se instruir, mas
queriam colocar Jesus em situação difícil, ou seja, tudo que dissesse seria usado contra ele.
Esse episódio é semelhante ao que nos acontece agora, quando algum fundamentalista emite
perguntas capciosas, intentando colocar-nos contra a “palavra de Deus”.
Mt 21,23-27: “Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os chefes dos sacerdotes e
os anciãos do povo se aproximaram, e perguntaram: 'Com que autoridade fazes tais
coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?' Jesus respondeu: 'Eu também vou fazer
uma pergunta para vocês. Se responderem, eu também direi a vocês com que
autoridade faço isso. De onde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?' Mas eles
raciocinavam, pensando: 'Se respondemos que vinha do céu, ele vai dizer: 'Então, por
que vocês não acreditaram em João?' Se respondemos que vinha dos homens, temos
medo da multidão, pois todos consideram João como um profeta'. Eles então
responderam a Jesus: 'Não sabemos'. E Jesus disse a eles: 'Pois eu também não vou
dizer a vocês com que autoridade faço essas coisas'”.
A todo momento Jesus era questionado quanto à sua autoridade, ao que sempre
respondia altura dos seus interlocutores, de forma que os deixava acuados perante suas
próprias colocações. Diríamos, popularmente: “perderam uma ótima ocasião de ficar calados”.
Mt 21,33-46: "Escutem essa outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha,
cercou-a, fez um tanque para pisar a uva, e construiu uma torre de guarda. Depois
arrendou a vinha para alguns agricultores, e viajou para o estrangeiro. Quando chegou
o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos agricultores para
receber os frutos. Os agricultores, porém, agarraram os empregados, bateram num,
mataram outro, e apedrejaram o terceiro. O proprietário mandou de novo outros
empregados, em maior número que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma
forma. Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu próprio filho, pensando: 'Eles vão
respeitar o meu filho'. Os agricultores, porém, ao verem o filho, pensaram: 'Esse é o
herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e tomar posse da sua herança'. Então agarraram o
filho, o jogaram para fora da vinha, e o mataram. Pois bem: quando o dono da vinha
voltar, o que irá fazer com esses agricultores?' Os chefes dos sacerdotes e os anciãos
do povo responderam: 'É claro que mandará matar de modo violento esses perversos,
e arrendará a vinha a outros agricultores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo'.
Então Jesus disse a eles: 'Vocês nunca leram na Escritura: 'A pedra que os construtores
deixaram de lado tornou-se a pedra mais importante; isso foi feito pelo Senhor, e é
admirável aos nossos olhos'? Por isso eu lhes afirmo: o Reino de Deus será tirado de
vocês, e será entregue a uma nação que produzirá seus frutos. Quem cair sobre essa
pedra, ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair, será esmagado'. Os chefes dos
sacerdotes e os fariseus ouviram as parábolas de Jesus, e compreenderam que estava
falando deles. Procuraram prender Jesus, mas ficaram com medo das multidões, pois
elas consideravam Jesus um profeta”.
Constata-se, também, que Jesus não deixava por menos quando se defrontava com
essa “raça de cobras venenosas”. Aqui, percebe-se, claramente, que a parábola é dirigida a
eles tal fato, nitidamente percebido por todos, lhes aumentava a raiva que nutriam por Jesus.
Aguardavam, assim, o momento propício para lhe darem o venenoso bote.
Mt 22,15-22: “Então os fariseus se retiraram, e fizeram um plano para apanhar Jesus
em alguma palavra. Mandaram os seus discípulos, junto com alguns partidários de
Herodes, para dizerem a Jesus: 'Mestre, sabemos que tu és verdadeiro, e que ensinas
de fato o caminho de Deus. Tu não dás preferência a ninguém, porque não levas em
conta as aparências. Dize-nos, então, o que pensas: É lícito ou não é, pagar imposto a
César?' Jesus percebeu a maldade deles, e disse: 'Hipócritas! Por que vocês me
tentam? Mostrem-me a moeda do imposto'. Levaram então a ele a moeda. E Jesus
perguntou: 'De quem é a figura e inscrição nesta moeda?' Eles responderam: 'É de
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César'. Então Jesus disse: 'Pois deem a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus'. Ouvindo isso, eles ficaram admirados. Deixaram Jesus, e foram embora”.
Nunca perderam uma oportunidade de colocar Jesus numa situação difícil, sendo isso
cabalmente denotado nessa situação. Percebendo a segunda intenção deles, Jesus, sem meias
palavras, disse-lhes: “hipócritas!” Não poucas vezes os chamou desse modo, apontando-lhes a
falsidade.
Mt 22,23-33: “Os saduceus afirmam que não existe ressurreição. Alguns deles se
aproximaram de Jesus, e lhe propuseram este caso: 'Mestre, Moisés disse: 'Se alguém
morrer sem ter filhos, o irmão desse homem deve casar-se com a viúva, a fim de que
possam ter filhos em nome do irmão que morreu'. Pois bem, havia entre nós sete
irmãos. O primeiro casou-se, e morreu sem ter filhos, deixando a mulher para seu
irmão. Do mesmo modo aconteceu com o segundo e o terceiro, e assim com os sete.
Depois de todos eles, morreu também a mulher. Na ressurreição, de qual dos sete ela
será mulher? De fato, todos a tiveram'. Jesus respondeu: 'Vocês estão enganados,
porque não conhecem as Escrituras, nem o poder de Deus. De fato, na ressurreição, os
homens e as mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu. E, quanto à
ressurreição, será que não leram o que Deus disse a vocês: 'Eu sou o Deus de Abraão,
o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. Ora, ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos'.
Ouvindo isso, as multidões ficaram impressionadas com o ensinamento de Jesus”.
A pergunta dos saduceus não tinha por objetivo esclarecerem-se sobre o assunto, mas,
tão somente, constatar se Jesus possuía a capacidade de se explicar, já que, intimamente,
acreditavam que não por conseguinte, adveio o desejo de pegá-lo com suas próprias palavras.
Mt 22,34-40: “Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito os saduceus se calarem.
Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus para o tentar: 'Mestre,
qual é o maior mandamento da Lei?' Jesus respondeu: 'Ame ao Senhor seu Deus com
todo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o
maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo
como a si mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos'”.
Nem bem deixou os saduceus acuados, aparecem-lhe os fariseus, que, no íntimo,
pensavam serem mais capazes que os primeiros. Assim, fizeram um novo questionamento a
Jesus. Com certeza orgulhosos que eram, pensavam, intimamente, conduzirem Jesus àquilo
que obstinadamente queriam: usar as palavras do Mestre para obterem um bom motivo de o
matarem ou, na pior das hipóteses, confrontá-lo com o político.
Mt 22,41-46: “Os fariseus estavam reunidos, e Jesus lhes perguntou: 'O que é que
vocês acham do Messias? Ele é filho de quem?' Os fariseus responderam: 'De Davi'.
Então Jesus disse: 'Como é que Davi, pelo Espírito, o chama Senhor, quando afirma: 'O
Senhor disse ao meu Senhor: sente-se à minha direita, até que eu ponha os seus
inimigos debaixo dos seus pés'? Se o próprio Davi o chama de Senhor, como ele pode
ser seu filho?' E ninguém podia responder a Jesus uma só palavra. Desse dia em
diante, ninguém mais se arriscou a fazer perguntas a Jesus”.
Nessa passagem, verifica-se que Jesus é quem os indaga. Agindo sabiamente, os coloca
em uma situação embaraçosa. O feitiço virou contra o feiticeiro, diríamos. Enfrenta-os
destemido, mesmo conhecendo suas reais intenções mas não os deixava sem respostas às
suas indagações, por mais difíceis que fossem.
Mt 23,1-12: “Jesus falou às multidões e aos seus discípulos: 'Os doutores da Lei e os
fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, vocês devem fazer e
observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles falam e não
praticam. Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles
mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. Fazem todas as
suas ações só para serem vistos pelos outros. Vejam como eles usam faixas largas na
testa e nos braços, e como põem na roupa longas franjas, com trechos da Escritura.
Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas;
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gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, e de que as pessoas os chamem
mestre. Quanto a vocês, nunca se deixem chamar mestre, pois um só é o Mestre de
vocês, e todos vocês são irmãos. Na terra, não chamem a ninguém Pai, pois um só é o
Pai de vocês, aquele que está no céu. Não deixem que os outros chamem vocês líderes,
pois um só é o Líder de vocês: o Messias. Pelo contrário, o maior de vocês deve ser
aquele que serve a vocês. Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será
elevado'”.
Ao recomendar a todos que não agissem como os doutores da lei e fariseus,
implicitamente, estava chamando-os, indubitavelmente, de hipócritas. Jesus vai mais longe
quando menciona que gostavam de serem vistos, dos primeiros lugares, de serem destacados
na multidão, deixando a descoberto todo orgulho que acalentavam em seus corações. Podemos
acrescentar que usavam a religião para esse fim, fato comum, também, nos dias de hoje,
quando essa liderança religiosa, que se vê por aí, busca na religião um veículo de satisfação de
seu próprio interesse, ao invés de se preocupar, efetivamente, com a salvação dos fiéis.
Mt 23,13-36: "Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reino
do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam.
Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês exploram as viúvas, e roubam
suas casas e, para disfarçar, fazem longas orações! Por isso, vocês vão receber uma
condenação mais severa. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês
percorrem o mar e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornam
merecedor do inferno duas vezes mais do que vocês. Ai de vocês, guias cegos! Vocês
dizem: 'Se alguém jura pelo Templo, não fica obrigado, mas se alguém jura pelo ouro
do Templo, fica obrigado'. Irresponsáveis e cegos! O que vale mais: o ouro ou o Templo
que santifica o ouro? Vocês dizem também: 'Se alguém jura pelo altar, não fica
obrigado, mas se alguém jura pela oferta que está sobre o altar, esse fica obrigado'.
Cegos! O que vale mais: a oferta ou o altar que santifica a oferta? De fato, quem jura
pelo altar, jura por ele e por tudo o que está sobre ele. E quem jura pelo Templo, jura
por ele e por Deus que habita no Templo. E quem jura pelo céu, jura pelo trono de
Deus e por aquele que nele está sentado. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus
hipócritas! Vocês pagam o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, e deixam de
lado os ensinamentos mais importantes da Lei, como a justiça, a misericórdia e a
fidelidade. Vocês deveriam praticar isso, sem deixar aquilo. Guias cegos! Vocês coam
um mosquito, mas engolem um camelo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus
hipócritas! Vocês limpam o copo e o prato por fora, mas por dentro vocês estão cheios
de desejos de roubo e cobiça. Fariseu cego! Limpe primeiro o copo por dentro, e assim
o lado de fora também ficará limpo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas!
Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão
cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora, parecem justos
diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça. Ai de vocês,
doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês constroem sepulcros para os profetas, e
enfeitam os túmulos dos justos, e dizem: 'Se tivéssemos vivido no tempo de nossos
pais, não teríamos sido cúmplices na morte dos profetas'. Com isso, vocês confessam
que são filhos daqueles que mataram os profetas. Pois bem: acabem de encher a
medida dos pais de vocês! Serpentes, raça de cobras venenosas! Como é que vocês
poderiam escapar da condenação do inferno? É por isso que eu envio a vocês profetas,
sábios e doutores: a uns vocês matarão e crucificarão, a outros torturarão nas
sinagogas de vocês, e os perseguirão de cidade em cidade. Desse modo, virá sobre
vocês todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo,
até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vocês assassinaram entre o santuário
e o altar. Eu garanto a vocês: tudo isso acontecerá a essa geração".
Essa é, talvez, a passagem em que mais Jesus chamou a liderança religiosa de
hipócrita. Aqui, desnudou aqueles falsos líderes, demonstrando que realmente preocupavamse tão somente com aquilo que pudesse satisfazer seus desejos, explorando, para isso, a fé do
povo. Infelizmente, tal forma de proceder está presente nos “lideres” contemporâneos.
Mc 2,1-12: “Alguns dias depois, Jesus entrou de novo na cidade de Cafarnaum. Logo se
espalhou a notícia de que Jesus estava em casa. E tanta gente se reuniu aí que já não
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havia lugar nem na frente da casa. E Jesus anunciava a palavra. Levaram então um
paralítico, carregado por quatro homens. Mas eles não conseguiam chegar até Jesus,
por causa da multidão. Então fizeram um buraco no teto, bem em cima do lugar onde
Jesus estava, e pela abertura desceram a cama em que o paralítico estava deitado.
Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: 'Filho, os seus pecados estão
perdoados'. Ora, alguns doutores da Lei estavam aí sentados, e começaram a pensar:
'Por que este homem fala assim? Ele está blasfemando! Ninguém pode perdoar
pecados, porque só Deus tem poder para isso!' Jesus logo percebeu o que eles estavam
pensando no seu íntimo, e disse: 'Por que vocês pensam assim? O que é mais fácil
dizer ao paralítico: 'Os seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se, pegue a
sua cama e ande?' Pois bem, para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder
na terra para perdoar pecados, - disse Jesus ao paralítico eu ordeno a você: Levantese, pegue a sua cama e vá para casa'. O paralítico então se levantou e, carregando a
sua cama, saiu diante de todos. E todos ficaram muito admirados e louvaram a Deus
dizendo: 'Nunca vimos uma coisa assim!'".
Algumas vezes esses críticos não tinham coragem de externar suas ideias mas, mesmo
assim, no íntimo, o faziam. Jesus, conhecendo-lhes o pensamento, rebate essa crítica “mental”
para não perder mais essa oportunidade de provar-lhes a incoerência de suas atitudes.
Mc 2,15-17: “Mais tarde, Jesus estava comendo na casa de Levi. Havia vários
cobradores de impostos e pecadores na mesa com Jesus e seus discípulos; com efeito,
eram muitos os que o seguiam. Alguns doutores da Lei, que eram fariseus, viram que
Jesus estava comendo com pecadores e cobradores de impostos. Então eles
perguntaram aos discípulos: 'Por que Jesus come e bebe junto com cobradores de
impostos e pecadores?' Jesus ouviu e respondeu: 'As pessoas que têm saúde não
precisam de médico, mas só as que estão doentes. Eu não vim para chamar justos, e
sim pecadores'".
Mas não havia nada que Jesus fizesse que agradasse essa liderança religiosa... Tudo
quanto fazia era motivo de críticas. Será que é mera coincidência o que está acontecendo nos
dias atuais em relação ao Espiritismo, ou será que os líderes religiosos de hoje são os
saduceus e fariseus de antanho em nova reencarnação?
Mc 2,18-22: “Os discípulos de João Batista e os fariseus estavam fazendo jejum. Então
alguns perguntaram a Jesus: 'Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus
fazem jejum e os teus discípulos não fazem?' Jesus respondeu: 'Vocês acham que os
convidados de um casamento podem fazer jejum enquanto o noivo está com eles?
Enquanto o noivo está presente, os convidados não podem fazer jejum. Mas vão chegar
dias em que o noivo será tirado do meio deles. Nesse dia eles vão jejuar. Ninguém põe
um remendo de pano novo em roupa velha; porque o remendo novo repuxa o pano e o
rasgo fica maior ainda. Ninguém coloca vinho novo em barris velhos; porque o vinho
novo arrebenta os barris velhos, e o vinho e os barris se perdem. Por isso, vinho novo
deve ser colocado em barris novos'".
O apego às determinações de Moisés também era um dos motivos pelos quais eles não
deixavam de criticar as atitudes de Jesus, já que o Mestre não parecia muito disposto a seguir
ao pé da letra tais recomendações. Analisando a sua resposta podemos entender que Jesus
claramente sobrepõe seus ensinamentos aos de Moisés; todavia, apesar disso ser tão óbvio, a
liderança religiosa finge não ver. Para ela é interessante manter também a legislação anterior,
pois é desta a premissa de que só se salvará aquele fiel que, pontualmente, pagar o dízimo.
Lc 16,14-15: “Os fariseus, que são amigos do dinheiro, ouviam tudo isso, e caçoavam
de Jesus. Então Jesus disse para eles: 'Vocês gostam de parecer justos diante dos
homens, mas Deus conhece os corações de vocês. De fato, o que é importante para os
homens, é detestável para Deus'”.
Mais uma vez, Jesus ressalta a hipocrisia dos fariseus. Assim como ocorria àquela
época, a liderança religiosa atual caçoa daqueles que vêm justamente tentar restaurar os
verdadeiros ensinamentos de Jesus mediante o Espiritismo.
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Lc 19,37-40: “Quando Jesus estava junto à descida do monte das Oliveiras, toda a
multidão de discípulos começaram, alegres, a louvar a Deus em voz alta, por todos os
milagres que tinham visto. E dizia: 'Bendito seja aquele que vem como Rei, em nome
do Senhor! Paz no céu e glória no mais alto do céu'. No meio da multidão, alguns
fariseus disseram a Jesus: 'Mestre, manda que teus discípulos se calem'. Jesus
respondeu: 'Eu digo a vocês: se eles se calarem, as pedras gritarão'”.
Nota-se que até mesmo o fato de Jesus ter sido aclamado pelos seus discípulos,
incomodava os fariseus. Mas não ficaram sem resposta, já que esse é o estilo do Mestre, que
perfeitamente estamos identificando ao longo desse estudo.
Aqui, terminamos as passagens em que Jesus responde a todas as críticas dos seus
opositores, dando, a todas elas, a devida resposta. Não os poupou ao chamá-los de hipócritas,
raça de víboras, entre outras denominações. Entretanto, agora vamos apresentar uma atitude
ainda mais enérgica de Jesus, a qual demonstra, perfeitamente, que ele não agia como um
manso cordeirinho, conforme querem que pensemos. Vejamos:
Mt 21,12-13: “Jesus entrou no Templo, e expulsou todos os que vendiam e compravam
no Templo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de
pombas. E disse: 'Está nas Escrituras: 'Minha casa será chamada casa de oração'. No
entanto, vocês fizeram dela uma toca de ladrões'”.
Nesse ponto, mais energicamente ainda, agiu Jesus ao expulsar do Templo os cambistas
e todos que estavam ali a vender, levando-nos a concluir que ele não era tão manso assim
como querem pintá-lo. Acaba por insinuar que eram todos eles ladrões na toca.
Bom; até agora somente apontamos passagens demonstrando que Jesus não cultivava
o silêncio. Alguém poderia nos perguntar: “será que você não está distorcendo os fatos,
considerando que, possivelmente, em algum momento, ele tenha mesmo silenciado?” A
resposta é negativa: a verdade joga por terra toda essa ideia que tentam nos passar, ou seja,
de um Mestre sem personalidade, pois, para nós, quem age tão mansamente assim é
desprovido dessa característica. Vejamos então esta passagem:
Mt 27,1-2.11-14: “De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do
povo convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles o
amarraram e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador. Jesus foi posto diante
do governador, e este o interrogou: 'Tu és o rei dos judeus?' Jesus declarou: 'É você
que está dizendo isso'. E nada respondeu quando foi acusado pelos chefes dos
sacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou: 'Não estás ouvindo de quanta coisa eles
te acusam?' Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou vivamente
impressionado”.
Está aí a única passagem em que Jesus nada respondeu. Foi exatamente aquela em que
os chefes dos sacerdotes e anciões o acusaram diante de Pilatos. Mas isso se justifica, pois
consciente de seu destino, em relação à sua missão, simplesmente entregou-se a ele.
Pensamos que, se tivesse resistido, teria sido solto, obviamente, assim, se sua missão era
morrer na cruz, esse fato não deveria ocorrer, se ele se defendesse a sua missão não teria sido
cumprida.
A conclusão obtida nesse estudo é a seguinte: devemos sim, contestar todas as críticas
e acusações que fazem ao Espiritismo, atitude perfeitamente compatível com a de Jesus, a
quem devemos seguir incondicionalmente.
Mas, para que não fiquemos adstritos apenas à nossa opinião pessoal, vejamos o que o
confrade Divaldo Pereira Franco (1927- ), disse há tempos, especificamente em 17/06/2001,
quando, ao comparecer no programa “Espiritismo Via Satélite”, pela Rede Visão, lhe fizemos
esta pergunta:
Caro Divaldo, considerando que Kardec no Projeto 1868, sugere que entre as
atribuições da Comissão Central, a ser criada para coordenar o movimento espírita,
estaria a refutação dos ataques ao Espiritismo resumimos que os Espíritos Superiores
concordaram com essa recomendação de Kardec. Assim lhe perguntamos: será que
hoje os Espíritos não concordam com isso, ou seja, que não devemos refutar os ataques
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à Doutrina Espírita ou isso é coisa dos Espíritas? A sua resposta foi:
Naturalmente devemos refutar. Mas refutar numa linguagem nobre. O difícil é
encontrar as pessoas que possuam condições para enfrentar esses debates sem
descerem aos níveis infelizes dos agressores. A nossa imprensa Espírita, na
medida do possível, através de homens e mulheres admiráveis, tem refutado as
agressões que o Espiritismo vem sofrendo.
Ainda há pouco lemos aqui, na Internet, a Rede Visão refutando agressões
muito dolorosas, desonestas e não autenticas veiculadas por uma revista
protestante que a espalhou por todo o mundo. Espíritas de diferentes países
receberam essa revista, inclusive na Bélgica e na Itália, na qual está exarado um
ataque muito grosseiro à reencarnação, sem qualquer fundamento, porque toda
a documentação é adulterada e direcionada e, no entanto, aqui a Rede Visão,
através da Internet como pode ser lida, está enfrentando. E o vem fazendo com
muita assiduidade. Nós devemos, sim, refutar todas as agressões à Doutrina
nobre, mas nunca descermos ao baixo nível dos nossos agressores.
Apenas a título de informação: o que Divaldo cita que leu na Internet, são, por
coincidência, textos de nossa autoria que estavam publicados no site da Rede Visão.
O e-mail, do qual falamos no início, foi providencial e sinceramente já agradecemos ao
autor por nos tê-lo enviado, pois ele foi motivo de estudo e reflexão de nossa parte. Se, antes,
tínhamos alguma dúvida em relação à defesa da Doutrina Espírita, embora saibamos que o
próprio Kardec não deixou por menos, fato que parece ser ignorado pela maioria dos Espíritas,
agora não temos mais, pois enganam-se os que pensam que Jesus ficou o tempo todo calado;
e é por ele que nos esforçamos, tentando seguir o seu exemplo.
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Ressurreição da Carne?
Não é de hoje que este assunto é encarado, pelos fiéis das inúmeras correntes
religiosas cristãs, como uma coisa líquida e certa. Entretanto, a ciência vem afirmar que o
nosso corpo físico, no processo de sua decomposição, restitui à natureza os elementos carbono, hidrogênio, azoto, oxigênio, etc. - de quem tomou emprestado.
Este é mais um dos muitos motivos pelo qual não se concilia a Ciência com a religião,
mas numa análise mais profunda, sem preconceito e nem dogmatismo, vimos que,
biblicamente falando, a ressurreição nunca foi a da carne, como se apregoa por aí.
Parece-nos que, pela análise de algumas passagens bíblicas, o que encontramos foi
justamente o contrário. Vejamos:
Mt 22,30: “De fato, na ressurreição, os homens e as mulheres não se casarão, pois
serão como os anjos do céu”.
Todos nós acreditamos que, indiscutivelmente, os anjos não possuem corpo físico. Jesus
afirma que na ressurreição os homens e mulheres serão como os anjos do céu, por isso não se
casarão, Ele nos remete à questão da ressurreição espiritual.
Jo 4,24: “Deus é Espírito”.
Aqui temos um paradoxo, pois a nós, segundo a crença dogmática, caberia viver no
plano espiritual na mesma condição de vida que tínhamos aqui no plano físico, enquanto Deus,
nesse mesmo plano para o qual iremos, vive puramente na condição espiritual. Absurdo
teológico incompatível com a lógica, pois o plano espiritual está para o corpo espiritual, como o
plano terreno está para o corpo físico.
Para a manutenção da vida do nosso invólucro carnal é necessário, dentre inúmeras
coisas, oxigênio, água e alimentação. Será que haverá tudo isso no lugar para onde dizem que
iremos após a morte? O pior é que todas essas coisas deverão existir tanto no céu quanto no
inferno, já que muitos correm o risco de terem como destino o lago de fogo. Quem sabe um
milagre resolva essa questão?...
Jo 6,63: “... o espírito é que dá vida a carne de nada serve”.
Será que os teólogos nunca leram essa passagem? Se a carne de nada serve, então
qual a sua utilidade no plano espiritual?
Lc 16,19-23: “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava
banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava
caído à porta do rico... Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para junto
de Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No inferno, em meio aos tormentos,
o rico levantou os olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a seu lado”.
Considerando-se que o rico foi enterrado, pode-se concluir que foi isso o que ocorreu
também a Lázaro. Tendo acontecido isso, forçosamente somos obrigados a aceitar que esses
dois personagens não foram para o outro lado da vida, se encontravam, conforme a narrativa,
na condição de espíritos.
Lc 23,43: “Jesus respondeu: ‘Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo no
Paraíso’".
Se essa afirmativa atribuída a Jesus for verdadeira, então a condição em que o “bom
ladrão” transportou-se ao “paraíso” foi na condição espiritual, pois seu corpo deve, segundo o
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costume da época, ter servido de repasto aos urubus, já que os corpos dos executados, nessas
condições, ficavam expostos para impressionar os transeuntes.
Lc 23,46: “Pai em tuas mãos entrego o meu Espírito”.
Acaso Jesus tivesse dito, pelo menos, “Pai, em tuas mãos entrego-me”, poderia haver
alguma dúvida quanto ao fato. Entretanto, Ele entrega o seu espírito, já que sabia que a carne
de nada serve, conforme já houvera afirmado.
1Cor 15,44-50: “... é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe
um corpo animal, também existe um corpo espiritual,... a carne e o sangue não
poderão herdar o reino de Deus”.
Paulo, sempre usado para sustentar algumas interpretações de conveniência, é quem
também podemos usar para contestar, por mais uma vez, a crença na ressurreição da carne.
Observe que o apóstolo dos gentios diz taxativamente que ressuscita o corpo espiritual e
arremata, como que para não deixar dúvidas, dizendo que o corpo físico não pode herdar o
reino de Deus.
Esses textos, aqui relacionados, são suficientes para reconhecermos que iremos
ressuscitar no corpo espiritual e não no corpo físico, como ainda é aceito e defendido por
muitos.
Mas alguém poderia objetar dizendo que Jesus teria ressuscitado em corpo físico, fato
que confirmaria a ressurreição da carne.
Pelos relatos bíblicos Jesus foi crucificado às nove horas da manhã tempo insuficiente
para que, às primeiras horas do dia, ocorresse primeiro a reunião do Sinédrio, depois, em
relação a Jesus, sua prisão, as torturas que sofreu, sua condução a Pilatos, a Herodes, e a
Pilatos novamente, para que caminhasse até o Gólgota carregando a cruz, deixando-nos em
dúvida quanto aos fatos descritos como ocorridos.
Uma coisa que poucas pessoas sabem é que a morte por crucificação não era imediata
levava-se, segundo alguns estudiosos, de dois a três dias outros estendem esse tempo a até
cinco dias.
[…] Jesus sabia muito bem como os romanos tratavam os líderes rebeldes.
Herodes podia usar a espada, mas o método romano, aperfeiçoado ao longo de
duzentos anos de história, era a crucificação. Chegava-se a demorar três dias
para morrer, a agonia era insuportável, e as vítimas nuas serviam como
exemplos infames e aterradores para o populacho. […] (TABOR, 2006, p. 193194).
A morte por crucificação era um processo lento. Podia demorar dois
ou três dias. (TABOR, 2006, p. 234) (grifo nosso).
Como não quebraram seus ossos, o que faziam para apressar a morte do condenado, e
considerando o tempo entre a crucificação e a morte foi de apenas seis horas, resta-nos a
dúvida, por não termos elementos seguros para acreditar no relatado.
É tão evidente que o tempo foi curto que até Pilatos, quando foram reclamar-lhe o
corpo, se surpreende de que Jesus há havia morrido (Mc 15,44).
Como o dogmatismo não manda mais ninguém para a fogueira, querendo demonstrar
previamente como os ímpios irão arder no fogo do inferno, pensadores têm surgido
questionando até mesmo a veracidade dos próprios textos bíblicos, quanto à realidade da
morte de Jesus na cruz. Essas dificuldades que acabamos de colocar, podem nos remeter a
essa hipótese.
Para se ver, por exemplo, que os relatos não são tão mais inquestionáveis assim,
transcrevemos do capítulo “Jesus não morreu na cruz” constante do livro A Sociedade Secreta
de Jesus, de autoria de Roméro da Costa Machado (1948- ), o seguinte trecho:
Ao raiar do dia, no sábado, vendo o sepulcro aberto e tendo o corpo de Jesus
142
sumido, os guardas, com medo de Pilatos, vão até os sacerdotes saduceus e
contam-lhes a história do desaparecimento do corpo de Jesus. No que os
sacerdotes saduceus tranquilizam os guardas e garantem que, caso a história
chegue aos ouvidos de Pilatos, eles (os sacerdotes) iriam convencer Pilatos a
não punir os guardas, deixando-os em paz, pois era sabido que os discípulos de
Jesus iriam mesmo tentar roubar o corpo.
Esta história está parcialmente contada em Mateus (28:11-15) Entretanto,
como o cadáver de Jesus jamais apareceu e isto desmoronaria a tese da
ressurreição, pois ninguém ressuscita sem morrer e para morrer tem que haver
um cadáver; este corpo de Jesus morto jamais apareceu. E Mateus, novamente,
conta exatamente esta história do roubo do corpo, mas depois diz que é
mentira.
Para os próprios cristãos, segundo evidências claras na Bíblia, Jesus não
morreu na cruz. Senão vejamos:
João (20:11-17) - Dois essênios de branco (confundidos como anjos) são
vistos no sepulcro e Jesus – depois de "morto" - diz para Madalena, dentro do
sepulcro, que ainda não havia morrido.
“Jesus disse-lhe: - Não Me detenhas porque ainda não subi para Meu Pai".
Lucas (24:4-5) - Dois essênios de branco, resplandecentes, estão no sepulcro
vazio e falam para Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago: - “Por que buscais
entre os mortos Aquele que vive?"
Mateus (28:3) - Um essênio, vestido de branco, estava no sepulcro e fala às
mulheres sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. (Aqui uma questão
simples: Se Jesus tivesse morrido (matéria) e ressuscitado (espírito)... onde foi
parar o corpo? Tinha de haver um corpo. Tinha de haver a matéria).
Marcos (16:5) - Um jovem essênio, vestido de branco, guardava o túmulo de
Jesus e fala com Madalena, Salomé e Maria Mãe de Tiago. - Aqui sai Joana e
entra Salomé, mas tudo bem - (Novamente a mesma questão simples: Se Jesus
tivesse morrido e ressuscitado... onde foi parar o corpo?)
João (20:5-7) - Pedro entra no sepulcro e encontra ataduras de curativos e
ligaduras espalhadas por toda parte. (Se Jesus havia morrido na cruz... por que
colocaram ataduras, remédios, unguentos e ligaduras num "morto", como as
que Pedro encontrou no sepulcro? Coloca-se atadura e remédio em morto?)
Lucas (24:36-43) - Diante do espanto dos discípulos que imaginavam estar
vendo um espírito, Jesus confessa aos discípulos, com todas as palavras que Ele
não havia morrido na cruz. E para provar que era Ele mesmo, Jesus diz: - "Vede
as Minhas mãos e os Meus pés?; Sou Eu mesmo!". E para provar que não era
espírito e sim carne, complementa:- "Apalpai-me e olhai que um espírito não
tem carne, nem ossos, como verificais que eu tenho!"
E para encerrar de vez a discussão sobre espírito e matéria, Jesus pede
comida aos discípulos ainda assombrados: - "Tendes aí alguma coisa que se
coma?". Deram-lhe então uma posta de peixe assado e, tomando-a, comeu
diante deles".
Pode um relato ser mais claro? Ou seja, nem mesmo os cristãos, mais
cegamente fiéis seguidores da Bíblia, podem acreditar na morte de Jesus na
cruz, pois o relato de Lucas (24:26-43) é claro demais, cristalino demais,
insofismável, resistente até ao mais insano dos exegetas de bicicleta. Jesus diz
claramente que não havia morrido na cruz ("não ascendi ao pai"), que não era
espírito e sim carne (e para provar que não era espírito e sim carne,
complementa: Apalpa-me e olhai que espírito não tem carne nem ossos como
verificais que eu tenho") e para finalizar Jesus pede comida e bebida, e de fato
come peixe assado e bebe com os discípulos. (MACHADO, 2004, p. 297-300).
Argumentos que não encontramos meios de como rebatê-los ainda mais pelo fato de
encontrarmos essa mesma informação em outra fonte. Vejamos:
Quando se refere à crucificação, o Alcorão diz o seguinte: ‘Eles não o
mataram, não o crucificaram, mas isso lhes pareceu (Alcorão 4,156). ... Certos
muçulmanos do Paquistão... para eles, Jesus foi de fato pregado à cruz, mas,
quando o retiraram de lá, Ele ainda vivia. Então, livre da cruz, ele se curou e
partiu para a Índia. (Revista Grandes Líderes da História, p. 29).
143
Tudo isso de certa forma poderia vir a corroborar o que está escrito em At 1,3: “Foi aos
apóstolos que Jesus, com numerosas provas, se mostrou vivo depois da sua paixão: durante
quarenta dias depois apareceu a eles,...”. Lucas, “... após fazer um estudo cuidadoso de tudo
o que aconteceu desde o princípio,...” (Lc 1,3), afirma que Jesus se mostrou vivo, o que
confirmaria aquilo que encontramos em outras fontes. É aqui que ficamos em dúvida, pois se
Jesus se apresentou fisicamente, então a tese, que apresentamos para uma reflexão, de que
ele na verdade não morreu na cruz, seria uma possibilidade que deveria ser mais bem
analisada.
Todavia, alguém dirá: "Como é que os mortos ressuscitam? Com que corpo voltarão?"
Insensato! Aquilo que você semeia não volta à vida, a não ser que morra. E o que você semeia
não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas simples grão de trigo ou de qualquer
outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer: ele dá a cada uma das sementes o
corpo que lhe é próprio. Nenhuma carne é igual às outras: a carne dos homens é de um tipo, a
dos animais é de outro, e de outro a dos pássaros e de outro ainda a dos peixes. Há corpos
celestes e há corpos terrestres. O brilho dos celestes, porém, é diferente do brilho dos
terrestres. Uma coisa é o brilho do sol, outra o brilho da lua, e outra o brilho das estrelas. E
até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo acontece com a ressurreição dos
mortos: o corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; é semeado desprezível,
mas ressuscita glorioso; é semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força; é semeado
corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe um corpo animal, também existe um
corpo espiritual.
Calma, não somos nós que está dizendo isso é um outro Paulo, o de Tarso (1Cor 15,3544). Sua afirmação da existência do corpo espiritual é de tamanha clareza que não deveria
deixar margem a dúvidas, nem tampouco o surgimento de interpretações equivocadas.
Mas isso ainda não é tudo, pois quando, um pouco mais à frente, ele arremata a sua
argumentação, a coisa fica ainda mais clara veja: “Eu lhes digo, irmãos, que a carne e o
sangue não podem receber em herança o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a
incorruptibilidade”. (1Cor 15,50).
Há uma passagem muito elucidativa em que os saduceus, que afirmavam não existir
ressurreição, perguntaram a Jesus sobre a situação de uma mulher que havia se casado com
sete irmãos (para cumprir a lei do Levirato) queriam saber, quando da ressurreição, de qual
dos sete ela seria mulher; que Jesus responde: “De fato, na ressurreição, os homens e as
mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu” (Mt 22,30). Ora, todos nós
aceitamos que os anjos são seres espirituais; daí, se seremos iguais a eles, então,
consequentemente, também seremos seres espirituais, condição em que ressuscitaremos. A
afirmação de “seres espirituais” implica necessariamente na existência de um corpo espiritual.
Na sequência, ainda afirma Jesus: “Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que
Deus vos declarou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó?’ Ora, ele não
é Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mt 22,32-33). Veja bem se Deus é Deus de vivos, e os
aqui citados foram Abraão, Isaac e Jacó, que já haviam morrido, concluímos que eles viviam
na condição espiritual. Os que acham que a ressurreição será no final dos tempos, devem ficar
desconcertados diante dessa passagem, pois, apesar do final dos tempos ainda não ter
chegado, Jesus sugere que esses três personagens já estavam ressurretos e, portanto, vivos.
A visão de Pedro sobre a morte e ressurreição de Cristo, também não deixa margem à
ressurreição da carne. Segundo ele, o que aconteceu foi que Jesus “... Morto na carne, foi
vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão,” (1Pe 3,18-19).
Assim, diante disso e de tudo o que já colocamos anteriormente, como ainda advogar a
ressurreição da carne? Ela, a ressurreição da carne, falando à maneira do gosto de muitos
teólogos, não possui respaldo bíblico.
Terminamos o estudo sobre esse assunto, esperando contribuir para o esclarecimento
dessa questão; mas, obviamente, não passa por nossa cabeça a unanimidade em relação ao
que expomos, já que muitas pessoas, infelizmente, possuem a mente fechada para qualquer
coisa que vá de encontro ao seu pensamento original, mesmo sendo este completamente
contraditório. Pior ainda são os adeptos do: “creio, ainda que absurdo!”.
Percebemos em algumas pessoas, um certo medo de questionar o que a teologia
tradicional lhes passou: isso é fruto de um terrorismo religioso, pois quem está com a verdade
144
não teme absolutamente nada. Entretanto, os que são frágeis na convicção e os que sabem
que suas ideias não são realmente verdadeiras, farão de tudo para contestar aquilo que possa
contrariar seus interesses. Mas devemos lembrar Jesus que dizia: “conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Encerramos ressaltando que: “... onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a
liberdade” (2Cor 3,17), do que é fácil concluir que, onde não há liberdade, o Espírito do Senhor
não se encontra.
145
O que efetivamente nos salva?
Vamos iniciar contando uma historinha fictícia e que não alcança, necessariamente,
toda a justificativa que os evangélicos dariam para explicar a sua crença na salvação, tratamola de forma bem simples apenar para ter um ponto de partida.
Apreensivo, chega o fervoroso crente, junto ao seu líder religioso, e pergunta: “Pastor,
saberia me dizer o que acontecerá agora com meu pai, que acaba de morrer: ele irá para o
céu ou para o inferno? O Sr. sabe, ele era um criminoso de mão cheia, tendo, em sua vida,
cometido vários crimes. Gostaria de saber qual é o destino dele, pois, apesar de tudo o que
fez, acreditava em Jesus, tinha uma fé inabalável e nem mesmo o dízimo omitiu em pagá-lo.”.
O Pastor pensou um pouco, procurando “acessar” em sua memória a “pasta” contendo os seus
conhecimentos bíblicos, para dar uma explicação plausível. Passados alguns minutos,
respondeu: “Meu caríssimo irmão, a Bíblia diz: 'Porque pela graça sois salvos, por meio da fé;
e isto não vem de vós, é dom de Deus. (Ef 2,8)'”. Portanto, pela palavra de Deus, ele irá para
o céu, pois tinha fé e a fé é o que nos basta para salvar-nos”. “Amém Pastor!”, respondeu o
consulente, já mais tranquilo e certo que seu pai estaria no céu.
Para o profeta Isaías, a questão seria bem mais complexa:
“[...] Quando vossos juízos se exercem sobre a terra, os habitantes do mundo
aprendem a justiça. Porém, se se perdoar o ímpio, ele não aprenderá a justiça, na
terra da retidão ele se entregará ao mal e não verá a majestade do Senhor” (Is 26,9-10
– Bíblia Sagrada Ave Maria).
O pensamento de que se deve exercer o juízo, ou seja, julgar e aplicar a devida pena,
como forma de levar o criminoso a arrepender-se é tão claro, que ficamos sem saber o porquê
das pessoas não o entenderem e daí ficarem buscando outras alternativas para a salvação.
Procuramos essa mesma passagem em outras Bíblias: foi por aí que começamos a
entender, o porquê de muitas das divergentes nas interpretações dos textos bíblicos. Vejamola na versão da SBB, cuja tradução é a normalmente adotada por algumas correntes
protestantes:
“[...] porque, havendo os teus juízos na terra, os moradores do mundo
aprendem justiça. Ainda que se mostre favor ao ímpio, nem por isso aprende a
justiça; até na terra da retidão ele pratica a iniquidade, e não atenta para a majestade
do SENHOR”. (Is 26,9-10)
Aqui, ter o entendimento igual ao que encontramos na tradução anterior, é, realmente,
mais difícil, pois o fundo do pensamento está subentendido. Mas, embora varie na forma, a
essência é a mesma.
Se Deus, por algum motivo, deixasse de “castigar” um criminoso, estaria pervertendo o
juízo. Ora, isso é algo que Ele não poderá deixar de fazer, sem que conflite com o teor deste
passo: “Porque, segundo a obra do homem, ele lhe paga; e faz a cada um segundo o seu
caminho. Também, na verdade, Deus não procede impiamente; nem o Todo-Poderoso
perverte o juízo”. (Jó 34,11-12).
Ainda não conseguimos entender porque as pessoas divergem tanto em relação à nossa
salvação, considerando-se que todos, supostamente, trabalham com a mesma fonte: os
Evangelhos. Para uns, basta ter fé; para outros, é necessário praticar as boas obras. Isso deixa
muitas pessoas em dúvida para saber qual é mesmo a base da nossa salvação.
Paulo de Tarso é o autor bíblico mais utilizado para sustentar a questão da fé, como
forma de salvar-se. Sabemos que ele não foi discípulo de Jesus; inclusive, no início do
cristianismo, perseguia os cristãos, até que um dia, na estrada de Damasco, teve um encontro
146
com o espírito de Jesus, que o questiona: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” (At 9,4). A
partir deste episódio, passa a dedicar-se, de corpo e alma, à propagação da doutrina do
Mestre, conforme os relatos bíblicos.
A sua missão foi, segundo entendemos, a de divulgar o Evangelho entre os pagãos; daí
o chamarem de “Apóstolo dos gentios”. Fez diversas viagens para propagar a Boa Nova. São
dele as principais cartas contidas no Novo Testamento, nas quais iremos buscar o seu
pensamento a respeito desse assunto.
Depois, iremos ver o que outras pessoas, daquela época, também pensavam,
especialmente Tiago, Pedro, João e, decisivamente, aquele a quem nenhum ensino poderá
contradizer: JESUS.
Vejamos o pensamento de Paulo. Devemos confessar, de antemão, que não é nada fácil
entender Paulo, pois, às vezes, parece contraditório, já que em algumas oportunidades levanos a crer que a fé é que salva, ao passo que em outras dá-nos a ideia que são as obras;
enfim, as coisas ficam realmente muito confusas. Até Pedro reclamava isso de Paulo; veja: “É
o que, aliás, ele ensina em todas as suas cartas. Nelas existem passagens de difícil
compreensão; e existem pessoas ignorantes e inconstantes que lhes deformam o sentido,
como aliás o fazem com outras partes das Escrituras, para a sua própria ruína” (2Pe 3,16).
Pedro está, absolutamente, correto em seu pensamento; inclusive, poderemos,
tranquilamente, aplicá-lo a inúmeros líderes religiosos dos dias de hoje, já que os vemos
“deformando o sentido das Escrituras”.
De início, é oportuno colocarmos a seguinte explicação:
O próprio Paulo não conheceu pessoalmente Jesus. O que ele fez foi a
experiência do Cristo ressuscitado. Portanto, ao anunciar o Evangelho aos
pagãos, foi preciso adaptá-lo à mentalidade dos ouvintes, respondendo às
preocupações que eles tinham, conservado o que era essencial e deixando de
lado o que não era importante. (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 1438). (grifo nosso).
É importante ter isso em mente, já que o apóstolo dos gentios usava linguagem
adequada aos ouvintes, o que, em algumas situações, pode levar a crer-se numa aparente
contradição no que fala.
Vejamos alguns trechos de Paulo, que colocaremos não na ordem em que aparecem na
Bíblia; mas na cronológica aceita pelos exegetas:
1Ts 1,2-3: “Sempre damos graças a Deus por vós todos, fazendo menção de vós em
nossas orações, lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho do
amor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nosso
Deus e Pai”.
Nesta primeira passagem, que analisamos, observamos Paulo dar graças a Deus porque
todos praticavam “obra da fé, do trabalho do amor”, já nos deixando mais seguro, quanto ao
seu pensamento a respeito do que irá salvar-nos.
1Cor 13,1-13: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não
tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que
tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda
que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse
amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos
pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o
amor não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não
busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça,
mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor
nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte, conhecemos, e em parte
profetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será
aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria
147
como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora
conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois,
permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”.
Fica claro que Paulo prega o amor acima de tudo. Explicam-nos: “À diferença do amor
passional e egoísta, a caridade (agápe) é um amor de dileção, que quer o bem do próximo.
[...]” (Bíblia de Jerusalém, p. 2009). Ainda encontramos, mais esta: “Amor. A palavra grega é
agape. [...] Agape é mais que afeição mútua; expressa a valorização altruísta no objeto
amado. [...]” (Bíblia Anotada, p. 1449). Verificamos que há divergência quanto à acentuação
dessa palavra.
Nessa passagem, está óbvio que o amor (caridade) é maior que a fé, embora não
implique dizer que não necessitamos da fé; pelo contrário, é por exatamente termos muita fé
que praticamos a caridade.
1Cor 15,1-2: “Irmãos, lembro a vocês o Evangelho que lhes anunciei, que vocês
receberam e no qual permanecem firmes. É pelo Evangelho que vocês serão
salvos, contanto que o guardem do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês
terão acreditado em vão”.
Esta é, talvez, a passagem mais clara, onde o pensamento de Paulo não deixa nenhuma
margem a qualquer tipo de dúvida; nem mesmo com interpretações destorcidas consegue-se
mudá-lo. Se é pelo Evangelho que seremos salvos, então nossa salvação está na aplicação, no
nosso dia a dia, das leis divinas, ensinadas por Jesus, ou seja, é a prática do amor ao próximo.
1Cor 15,28: “E quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio
Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em
todos“.
Para que “Deus seja tudo em todos”, é necessário que todos estejam no mesmo nível
de moralidade, onde o amor possa ser a virtude por excelência, que deverá espelhar-se,
diuturnamente, na ação de cada um de nós. Isso, não se consegue com penas eternas, nem
com salvação de uns poucos privilegiados. Fica aí a questão: então o que é que consegue levar
todos para o mesmo nível, para que “Deus seja tudo em todos”?
2Cor 5,10: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que
cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal”.
O Apóstolo Paulo volta, novamente, a falar sobre o “a cada um segundo suas obras”,
reafirmando o seu pensamento. Se não estivermos extrapolando-o, acreditamos que aqui ele
dá uma ideia de que temos algo além do corpo físico.
Gl 2,16: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé
em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela
fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma
carne será justificada”.
Vejamos o que Paulo quer dizer com “não ser justificado pelas obras da lei”; afinal, de
que obras ele falava? Certamente, que se referia às obras da Lei, ou seja, da Lei de Moisés,
que, depois do advento de Jesus, não deve servir como base para a salvação aos que se dizem
cristãos. Seremos justificados pelos nossos atos, ou seja, tornaremos justos pela fé em Cristo.
Mas, voltamos a dizer, não fé passiva, só pela fé operante. Também João percebeu isso:
“Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17).
Esta passagem merece ser completada pelo estudo que L. Palhano Jr. (1946-2000) faz
em seu livro Aos Gálatas – A Carta da Redenção. Diz Palhano:
Para compreendermos melhor o texto acima, é preciso meditar e entrar no
verdadeiro significado das expressões: “justificado”, “obras da lei”, “fé” e
“carne”. É o que pretendemos fazer a seguir. O verbo empregado na epístola
148
para justificado é dikaicó, característico de Paulo e tão empregado por ele, que é
preciso entendê-lo de modo correto. Na margem da Revised Standard Version of
Bible, o termo é traduzido como “tido por justo”, isto é, considerado justo ou
aprovado aos olhos de Deus; e o ponto a ser decidido era a maneira pela qual o
indivíduo alcançaria uma posição aceitável diante de Deus (Guthrie). (38)
Vamos agora à expressão “obras da lei”. Talvez devêssemos fazer aqui um
parêntese para um estudo pormenorizado sobre essa expressão, mas não o
faremos; acrescentá-lo-emos mais tarde ou em um apêndice. Por ora, vamos
apenas destacar, sem mais delongas, o seu significado correto. A expressão
grega ex ergon nomou tem sido traduzida para o português como “pelas obras
da lei”, contudo pela proposta de Tenney (39), uma tradução mais exata seria
“por obras legais”, isso porque a palavra “lei” foi usada sem o artigo definido,
principalmente em certas frases escolhidas que transmitem significações
especializadas. A ausência do artigo usualmente significa que a qualidade do
conceito escolhido é salientado, em lugar da sua identidade, embora em Gálatas
e em outras epístolas, Paulo se refira à “lei mosaica” como a principal
concretização do conceito. Em Robertson (40) podemos ler claramente que, “em
geral, quando nomos é indefinido em Paulo, refere-se à lei mosaica”, por
consequente, “lei”, nessas instâncias, é um termo que se refere ao sistema de
pensamento ou ao código de ação envolvido, em lugar de qualquer documento
particular. É evidente então que Paulo estava se referindo não a que o
indivíduo “não seria justificado por suas obras, mas sim, não seria
justificado pelas obras da legalidade religiosa”, isto é, pelo
cumprimento das formalidades preconizadas por códigos religiosos
como “rituais”, “festas”, “cerimoniais”, “dogmas”, ou quaisquer
exigências tais como “dízimos”, guardar os “sábados”, coisas deste tipo,
mas que seria justificado “pela fé em Jesus Cristo”.
Para um conceito mais científico de fé, podemos dizer que ela é a capacidade
de sintonizar-se com Deus (Jesus Cristo, no caso, o representa) e, para isso, é
preciso reconhecer a sua paternidade divina, amando-o sobre todas as coisas
(Mt 22,37) e realizar a sua vontade, amando o próximo como a si mesmo (Mt
22,39). Como ensinou Jesus, aí estão toda a lei e os profetas. É óbvio que essa
fé tem que vir acompanhada de obras que a testifiquem; ter fé só por ter de
nada adianta. Dizer que crê em Cristo não salva ninguém, mesmo batendo no
peito, porquanto:
... a quem pensar que a fé por si só é suficiente, sou levado a dizer:
Acreditais na existência de Deus? No inferno, os demônios também acreditam
e, no entanto, estremecem. Porventura ainda não vê, ó homem sem
percepção, que a fé sem obras é inútil e morta? (Tg 2, 19 e 20).
[...]
Quanto à expressão “carne” (grego sarx), ela quer dizer “ninguém, nenhuma
pessoa viva”, será justificado “pelas obras da lei”. Trata-se de uma sinédoque,
uma figura de linguagem comum da vida diária, como “cérebros” em lugar de
eruditos, “cabeças” em lugar de gado e “vapor” em lugar de navio. Temos assim
as chaves da interpretação do versículo 2,16. Ele é muito importante para o
entendimento da proposta de Paulo, não entendida ou distorcida pelos ditos
“doutos das igrejas”. Vamos concluir o estudo desse versículo, traduzindo-o para
uma linguagem mais atual, que nos mostra como ele deve ser entendido:
Sabemos que o homem não é considerado justo nem aprovado por Deus
pelo seu desempenho nas formalidades prescritas na lei, mas pela fé
operante em Jesus Cristo. Nós próprios somos reconhecidos justos pela nossa
fé e não pela obediência ao estipulado como lei, por reconhecermos que
ninguém pode salvar-se apenas por praticar liturgias (obras da lei).
______
38. Guthrie, D. Gálatas, introdução e comentários, São Paulo, Vida Nova, 1984, p. 107.
39. Tenney, M. C. Galatian: the charter of christiam liberty. Michigan, Eerdmans
Publishing, 1950, p. 194.
40. Roberton, A. T. A grammar of the greek new Testament in the light of historical
research, 3ª edição. New York, George H. Doran Co. 1919, p. 796.
(PALHANO JR., 1999, p. 76-79). (grifo nosso)
Exatamente a linha de raciocínio que adotamos.
149
Gl 5,4-6: “Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça
tendes caído, Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque
em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé
que opera pelo amor”.
Se querem seguir a lei mosaica, tudo bem, porém, considerem-se “separados do
Cristo”. No fundo, a questão é bem simples: ou você segue Jesus e pode-se dizer cristão, ou
segue Moisés, e assuma sua condição de judeu. Na atualidade, o que vemos é o somatório dos
dois: cristão-judeu, dizem seguir Cristo, mas não abrem mão de Moisés.
Paulo, não tinha a Lei mosaica como norma, inclusive, questiona a validade da
circuncisão, contida nela; para ele, sendo “obras da lei” não mais tinha valor algum,
porquanto, o que deveria prevalecer é o que Jesus pregou e ensinou.
A expressão “a fé que opera pelo amor”, dá-nos a verdadeira ideia de Paulo a respeito
do amor. Conforme dissemos anteriormente, é o amor que faz a fé ser operante; não é,
portanto, uma fé no sentido de somente se crer.
Gl 5,14: “Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo”.
Não foi isso exatamente o que Jesus disse? Entretanto, ao Jesus acrescentar que toda a
Lei e os profetas se achavam contidos nesse mandamento, disse, em outras palavras, que da
lei mosaica isso era o que poder-se-ia, realmente, considerar como lei divina.
Gl 6,2: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”.
“Levar as cargas uns dos outros” não é a ação na caridade, por amor ao próximo? Não
é assim, que, conforme Paulo, estaremos cumprindo a lei do Cristo? Não são, portanto, as
obras da lei que fala, mas dessas obras – levar as cargas uns dos outros –, que são a
expressão do ensinamento do Cristo. Com isso, fica impróprio argumentar, que é a fé que
salva; não é mesmo?
Gl 6,7-9: “Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem
semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará a
corrupção; mas o que semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna. E não nos
cansemos de fazer bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos
desfalecido”.
É o que chamamos de Lei de Ação e Reação, vulgarmente denominada de Carma. Não
há como se iludir diante de alguma outra opção sedutora; tudo o que fizermos voltará contra
nós ou a nosso favor. Se semearmos ódio, colheremos exatamente o ódio; se, ao contrário,
plantarmos amor, ceifaremos amor. Por isso, Paulo adverte para não nos cansarmos de fazer o
bem, pois na época da colheita é isso que iremos colher.
Rm 2,5-8: “Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para
ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus; o qual recompensará cada
um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em
fazer bem, procuram glória, honra e incorrupção; mas a indignação e a ira aos que são
contenciosos, desobedientes à verdade e obedientes à iniquidade;”.
Nessa passagem não existe dúvida alguma no que diz Paulo sobre o juízo de Deus, que:
“recompensará cada um segundo as suas obras”. Aqui não contradiz o que Jesus colocou,
conforme iremos verificar mais à frente, e a justiça, como a entendemos, exige isso.
Rm 2,9-11: “Tribulação e angústia sobre toda a alma do homem que faz o mal;
primeiramente do judeu e também do grego; glória, porém, e honra e paz a
qualquer que pratica o bem; primeiramente ao judeu e também ao grego; porque,
para com Deus, não há acepção de pessoas”.
A consequência é tribulação e angústia, para quem faz o mal; glória, honra e paz para
quem pratica o bem. Ora, isso só pode ocorrer pela ação do homem, ou seja, por suas próprias
150
obras (=ações), o que podemos confirmar pela passagem imediatamente anterior. E para os
que dizem ser os únicos salvos, ou os que se julgam na “religião eleita”, podemos acrescentar,
usando Paulo, que: “Deus não faz acepção de pessoas”. Assim, perguntamos: de onde tiram a
ideia absurda de que Deus estabelece algum tipo de privilégio?
Rm 2,12-13: “Portanto, todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e
todos aqueles que pecaram com Lei, pela Lei serão julgados. Porque os que ouvem a lei
não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados”.
Novamente estamos diante de um pensamento que não deixa margem a qualquer tipo
de dúvida; os que praticam as recomendações divinas são os que serão justificados, não os
que somente as ouvem, mas permanecem de braços cruzados. A prática é mais importante
que a fé. Como praticar a lei? Fazendo o bem ao próximo.
Rm 3,21-28: “Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o
testemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo
para todos e sobre todos os que creem; porque não há diferença. Porque todos
pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela
sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação
pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes
cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo
presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está
logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.
Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”.
Paulo, veementemente, combatia os judaizantes, que eram os cristãos hebreus, que
queriam de qualquer forma fazer com que os novos convertidos ao Evangelho, que ele chama
de “fé em Jesus Cristo”, praticassem as exigências da Lei, ou seja, obras da lei moisaica. A
circuncisão, por exemplo, foi motivo de grandes controvérsias no cristianismo primitivo. Alguns
queriam que os neófitos fossem circuncidados, conforme determinava a Lei de Moisés;
entretanto, outros como Paulo, achavam que não havia a mínima necessidade, já que a
“graça” de Deus, por meio de Jesus, era superior às leis mosaicas. Assim, ao dizer que o
homem é justificado pela fé sem as obras da lei, está querendo dizer que o homem tornar-seia justo ao aderir ao Evangelho de Jesus, não sendo mais necessário cumprir as “obras da Lei”,
ou seja, a legislação mosaica. Deixando bem claro, que não está pregando a fé inoperante
como supõem alguns, mas, repetimos, a fé demonstrada pelas ações a favor do próximo. Visto
dessa forma não contraria nada do que, por ele, foi dito e que já analisamos em itens
anteriores.
Rm 8,28-30: “E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.
Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos
que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também
justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”.
Encontramos a seguinte explicação:
O projeto eterno de Deus é predestinar, chamar, tornar justo e glorificar a
cada um e a todos os homens, fazendo com que todos se tornem imagem
do seu Filho e reúnam como a grande família de Deus. O projeto não
exclui ninguém. Mas o homem é livre: pode aceitar ou recusar tal projeto, pode
escolher a vida ou a morte, salvar-se ou condenar-se. (Bíblia Sagrada Pastoral,
p. 1450). (grifo nosso).
Veja bem, a questão da predestinação para sermos TODOS à imagem de Jesus. O que
poderíamos dizer em outras palavras: pela vontade de Deus todos nós estaremos um dia na
mesma evolução que Jesus. Seremos justificados em Jesus, quando aplicarmos, no dia a dia,
os seus ensinamentos, sintetizados no amor incondicional. Portanto, a predestinação não é o
“já se possuir um lugar garantido”, sem ter que fazer absolutamente nada; mas é algo que
151
iremos chegar com nosso próprio esforço e pelas nossas próprias ações, nada de ser “de
graça”.
Rm 10,4-13: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê. Ora,
Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisas
viverá por elas. Mas a justiça que é pela fé diz assim: Não digas em teu coração: Quem
subirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a Cristo.) ou: Quem descerá ao abismo? (isto é,
a tornar a trazer dentre os mortos a Cristo.) Mas que diz? A palavra está junto de ti, na
tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se com a
tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou
dentre os mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a
boca se faz confissão para a salvação. Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crer
não será confundido. Porquanto não há diferença entre judeu e grego; porque um
mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque todo aquele
que invocar o nome do SENHOR será salvo”.
Se perdermos de vista, o que, anteriormente, disse Paulo, poderemos concluir que
agora ele prega a fé. Mas, ainda aqui, ele trata da questão de Deus não fazer acepção das
pessoas, que todo aquele que invocar o nome de Jesus será salvo. Quem crê realmente em
Jesus deve praticar o que ele ensinou; caso contrário, a crença é completamente inútil: “Nem
todo aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no reino do céu” (Mt 7,21). Talvez pelo público
alvo, Paulo não quis dizer mais a fim de completar o que realmente pensava. Para eles, o fato
extraordinário de Jesus ter ressuscitado dos mortos, era mais uma certeza de que Deus não
estava abandonando o seu povo. Jesus iria continuar orientando, como ainda o faz, a todas as
criaturas para que, na prática do Evangelho, todos possam salvar-se. Iremos ver
posteriormente a salvação segundo Jesus, para não termos mais dúvidas sobre o que nos
salva.
Rm 13,8-11: “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis
uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Com efeito: Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e
se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o
cumprimento da lei é o amor. E isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora de
despertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do
que quando aceitamos a fé”.
Agora, Paulo está completamente, ou será melhor dizer explicitamente, de acordo com
os ensinamentos de Jesus. E observe a afirmativa de que o cumprimento da lei é o amor.
Amor a todos e de tal forma e intensidade que não conseguiremos ficar inertes ao vermos um
irmão necessitado sem, imediatamente, entrarmos em ação, e o ajudarmos naquilo que ele
precisar. Tal como Jesus, ele, Paulo, resume a lei mosaica a “amarás ao teu próximo como a ti
mesmo”. E se Paulo pregasse que somente a fé é que salva, não teria dito: “a nossa salvação
está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé”. Aceitar a fé é pouco; necessário
é praticá-la, pois só assim demonstraremos que amamos o próximo como a nós mesmos.
Ef 1,3-4: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu
nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis
diante dele em amor”.
Tornar santo e irrepreensível diante de Cristo em amor é, segundo a máxima que nos
deixou, o que devemos fazer, que não é outra coisa senão o “amar ao próximo como a nós
mesmos”. Ora, quem ama ao próximo, certamente, presta-lhe auxílio todas as vezes que for
necessário. Esse ato de caridade é realizado porque se tem muito amor.
Ef 2,8-9: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom
de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie”.
Chegamos na passagem citada em nossa história, no início deste estudo. É comum
vermos essa citação somente até o versículo nove, sem que coloquem a conclusão de Paulo
152
(v.10,) que é importante para entender o seu pensamente de forma correta; Ei-lo: “Porque
somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para
que andássemos nelas” (Ef 2,10).
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé”, ou seja, o amor de Deus faz com que
sejamos salvos. Na visão Espírita isso é mais claro, pois o amor de Deus nos arrasta a Ele,
vamos assim dizer, de tal sorte que a única escolha que nós temos é se iremos devagar ou
depressa. “Salvos por meio da fé” é fazermos o que determina Jesus em seu Evangelho,
principalmente o “amar ao próximo como a nós mesmos”. Isso é um dom de Deus, porque,
por sua exclusiva vontade, Ele quer que sigamos os exemplos do Mestre, uma vez que, Ele nos
foi enviado, justamente, para servir-nos de modelo e guia.
Se somos criados em Jesus Cristo é porque é o desejo de Deus que andemos nas boas
obras, amando indistintamente a todos os que estão nessa caminhada conosco, já que nos
predestinou exatamente para isso. Não foram as boas obras o que ele praticou o tempo todo
em que esteve aqui na Terra encarnado?
Cl 3,12-14: “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas
de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade; suportandovos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa
contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. E, sobre
tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição”.
Paulo entendeu muito bem, o ensinamento de Jesus, deixando-o mais claro ainda,
aquele em que diz: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”.
(Mt 5,48). Amor operante. Nada de só crer e achar que com isso está tudo bem. O amor
incondicional é aquilo que nos ligará à perfeição, nada mais justo, pois “Quem não ama não
conhece a Deus, porque Deus é amor. Deus é amor.” (1Jo 4,8).
Cl 3,15-17: “E a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo,
domine em vossos corações; e sede agradecidos. A palavra de Cristo habite em vós
abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos
outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao SENHOR com graça em
vosso coração. E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em
nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”.
Colocamos essa passagem para completar o pensamento de Paulo dito na anterior.
A expressão “para a qual também fostes chamados em um corpo”, estaria implícita a
preexistência do espírito? Particularmente pensamos que sim, pois, se fomos chamados em um
corpo, é porque estávamos vivendo sem ele.
Deseja Paulo que a palavra de Cristo habitasse em nós abundantemente, em toda a
sabedoria, ou seja, que possamos entender tudo o que ele nos ensinou, demostrando isso na
prática do dia a dia. A plenitude do amor em nós é a completa aplicação dos ensinamentos de
Jesus, que tornar-se-ia, então, o “vínculo da perfeição”.
1Tm 2,1-4: “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações,
intercessões, e ações de graças, por todos os homens; pelos reis, e por todos os que
estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a
piedade e honestidade; porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso
Salvador, que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento
da verdade”.
Paulo exorta a Timóteo a praticar boas obras a favor de todos: amor altruísta!
Perguntamos: Se Deus quer que todos os homens se salvem, quem poderá ser contra a
vontade de Deus?
Seria interessante também vermos o pensamento de Tiago (irmão do Senhor). Foi
Tiago quem dirigiu a Igreja de Jerusalém. No chamado Concílio de Jerusalém, ano 49 d.C., foi
a sua decisão prevaleceu na primeira divergência entre os cristãos na polêmica questão da
circuncisão. Ele exercia uma forte liderança, muito maior que a de Pedro, tido como o primeiro
Papa. As correntes religiosas se divergem quanto ao grau de parentesco de Tiago com Jesus.
153
Os católicos colocam-no como primo, já que o termo irmão, segundo eles, servia para designar
também primo. Os protestantes já o têm como meio irmão de Jesus. Entretanto ao usarem
desse mesmo termo para designar alguns dos discípulos que eram irmãos, não dizem que
eram primos.
Mateus narra: “Não é este o filho do carpinteiro? e não se chama sua mãe Maria, e seus
irmãos Tiago, e José, e Simão, e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs? De onde
lhe veio, pois, tudo isto?” (Mt 13,55-56). Não temos dúvida que eram mesmo irmãos
consanguíneos de Jesus, até mesmo, porque a cultura da época exigia da mulher muitos
filhos; caso contrário não seria uma boa esposa. Se isso estiver correto, é mais uma forte
razão, para vermos que o pensamento de Tiago condiz com o de Jesus.
Tg 1,22-27: “E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos
com falsos discursos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é
semelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque se
contempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era. Aquele, porém, que
atenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinte
esquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito. Se
alguém entre vós cuida ser religioso, e não refreia a sua língua, antes engana o seu
coração, a religião desse é vã. A religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é
esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da
corrupção do mundo”.
Prática das obras ou fé? Não deixa margem para alguma dúvida: “cumpridores da
palavra”. Essa colocação de Tiago é muito interessante: “A religião pura e imaculada para com
Deus é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do
mundo”, ou seja, prática do amor ao próximo pela realização dos atos de caridade.
Tg 2,8: “Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu
próximo como a ti mesmo, bem fazeis”.
Este pensamento é igual ao de Paulo, e corresponde, também, ao que Jesus ensinou.
Onde está dito alguma coisa sobre fé? Aliás, até mesmo Moisés chegou a recomendar isso (Lv
19,18).
Tg 2,14-18: “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as
obras? Porventura a fé pode salvá-lo? E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem
falta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos,
e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá
daí? Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma. Mas dirá
alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu
te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”.
Ao terminar dizendo que mostrarei a minha fé pelas minhas obras, Tiago traz o conceito
que falamos anteriormente, quando falávamos do pensamento de Paulo de ser uma fé
operante. Quem tem fé deve mostrá-la com as obras que realiza. Que adianta ter fé se o irmão
a seu lado passa fome? É o questionamento incontestável de Tiago para os que dizem que
apenas a fé é que salva.
Tg 2,21-23: “Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando
ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé cooperou com as suas
obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E
creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de
Deus”.
Para provar que são as obras a base para a justificação, Tiago nos dá o exemplo de
Abraão. Mostra que a fé é aperfeiçoada pelas obras.
Tg 2,26: “Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé
sem obras é morta”.
154
Não há o que contestar a clareza desse pensamento. É tão claro e objetivo, que
continuamos não entendemos porque as pessoas ainda têm a coragem de dizer que é somente
a fé que salva.
Não podemos deixar de citar o pensamento de Pedro, que foi um dos discípulos de
Jesus, inclusive, aceito por alguns como sendo o primeiro Papa, por isso devia conhecer mais
profundamente os ensinamentos do Mestre.
At 10,34-35: “Então Pedro, tomando a palavra, disse: Na verdade reconheço que Deus
não faz acepção de pessoas;mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação,
o teme e pratica o que é justo”.
1Pe 1,17: “E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga
segundo a obra de cada um, andai em temor, durante o tempo da vossa
peregrinação”.
Encontramos novamente a expressão que o julgamento será “segundo a obra de cada
um”, reafirmando o pensamento de todos no cristianismo primitivo. Os homens, infelizmente,
deturparam os ensinamentos de Jesus, para sua própria perdição. Também confirma que Deus
não faz acepção de pessoas, ou seja, não há privilégios junto a justiça divina.
1Pe 3,8-12: “E, finalmente, sede todos de um mesmo sentimento, compassivos,
amando os irmãos, entranhavelmente misericordiosos e afáveis. Não tornando
mal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo; sabendo que
para isto fostes chamados, para que por herança alcanceis a bênção. Porque quem
quer amar a vida, e ver os dias bons, refreie a sua língua do mal, e os seus lábios não
falem engano. Aparte-se do mal, e faça o bem; busque a paz, e siga-a. Porque os olhos
do Senhor estão sobre os justos, E os seus ouvidos atentos às suas orações; Mas o
rosto do Senhor é contra os que fazem o mal”.
Recomendações que já ouvimos, só que com outras palavras, de Paulo e Tiago. Tudo
isso também condiz com os ensinamentos de Jesus.
1Pe 4,8-11: “Mas, sobretudo, tende ardente amor uns para com os outros;
porque o amor cobrirá a multidão de pecados. Sendo hospitaleiros uns para com os
outros, sem murmurações, cada um administre aos outros o dom como o recebeu,
como bons despenseiros da multiforme graça de Deus. Se alguém falar, fale segundo
as palavras de Deus; se alguém administrar, administre segundo o poder que Deus dá;
para que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo, a quem pertence a glória e
poder para todo o sempre. Amém”.
Agora fica mais clara a questão do amor corresponder ao sentimento de caridade para
com o próximo. Fechando: “A caridade cobre uma multidão de pecados”; é por isso que a
máxima no Espiritismo é: “Fora da caridade não há salvação”, que, inclusive, é algo que todos
podem fazer, independentemente de religião ou crença, ou seja, tem um caráter totalmente
universalista.
2Pe 1,2-10: “Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de
Jesus nosso Senhor; visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à
vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude;
pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas
fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela
concupiscência há no mundo. E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência,
acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência a
temperança, e à temperança a paciência, e à paciência a piedade, e à piedade
o amor fraternal, e ao amor fraternal a caridade. Porque, se em vós houver e
abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento de
nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, nada
vendo ao longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados.
Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque,
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fazendo isto, nunca jamais tropeçareis”.
Acompanhando o raciocínio de Pedro veremos que ele coloca a caridade entre as coisas
importantes, que devemos acrescentar à nossa fé. Dizendo, ao final, que quem não possui
essas coisas é cego, ou seja, não entendeu nada do ensinamento de Cristo e que, portanto,
são “ociosos e estéreis no conhecimento de Cristo”, fechando magistralmente seu pensamento.
João, o discípulo a quem Jesus mais amava, conhecia, portanto, seus ensinamentos.
1Jo 3,17-18: “Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe
cerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus? Meus filhinhos, não
amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade”.
Nem precisamos dizer mais nada, tão óbvio que fica a questão do amor expresso em obras.
E aqui temos de uma das visões de João, registrada no Apocalipse, o seguinte:
Ap 20,11-12: “[...] Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono. E
foram abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortos
foram julgados de acordo com sua conduta, conforme o que estava escrito nos
livros”.
Particularmente não gostamos muito de citar o livro Apocalipse, por achá-lo muito cheio
de metáforas e com isso abre-se sua interpretação a milhares de possibilidades. Apesar disso,
no passo em questão é clara o critério de separação das almas, foram “julgadas de acordo com
sua conduta”, conforme o que estava escrito nos livros, ou seja, nossas ações são “registradas”
para que todas elas sejam medidas e pesadas.
Da maneira de viver que os cristãos primitivos tinham, poderemos intuir sobre qual foi
a mensagem que entenderam como norma de conduta para salvarem-se.
At 2,42-47: “Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão
fraterna, no partir do pão e nas orações. Em todos eles havia temor, por causa dos
numerosos prodígios e sinais que os apóstolos realizavam. Todos os que abraçaram
a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas
propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a
necessidade de cada um. Diariamente, todos juntos frequentavam o Templo e nas
casas partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração.
Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a cada dia o Senhor
acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação”.
Aceitavam a salvação e por isso agiram como se todos fossem verdadeiramente irmãos,
ajudando uns aos outros. Chegaram ao ponto de vender os seus próprios bens para repartir o
dinheiro, no fundo, estavam demonstrando o amor ao próximo como a si mesmos, única
“chave” que abre a porta que nos conduzirá à salvação.
Veremos agora o pensamento de Jesus e não devemos nos esquecer que o discípulo
não pode ser superior ao mestre, conforme nos alertara: “Na verdade, na verdade vos digo
que não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o
enviou” (Jo 13,16).
Mt 5,3: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos
céus”.
Mt 5,5: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra”.
Mt 5,8: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”.
Será que Jesus não foi tão claro assim, quanto à questão do que devemos fazer para
salvar-nos? Não se refere ele a coisas ligadas à nossa moralização, que cabe a cada um
esforçar-se para fazer? E considerando o atual estado da humanidade, quando é que os
mansos herdarão a Terra? Bem, pode ser que Deus mande outro dilúvio e resolva esta
questão. É mais um questionamento, que fica sem resposta, levando-se em conta que “Deus
não faz acepção de pessoas” e que tem em grau infinito a sua misericórdia e justiça.
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Mt 5,48 “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial”.
Sendo a perfeição a nossa meta, como atribuir uma outra coisa como um fator que nos
salvará? Se somente o crer em Jesus fosse o suficiente, por que motivo manda-nos ser
perfeito, como perfeito é o Pai celestial? Mas que perfeição é essa que nos recomenda buscar?
Nada mais que a perfeição do amor, uma vez que Deus é a expressão máxima do amor.
Mt 5,17-20: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas
cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo
nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Qualquer,
pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar
aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os
cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Pois eu vos digo que, se a
vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino
dos céus”.
Se os que violarem um destes mandamentos será o menor no reino dos céus, sinal que
todos irão para lá, caso seja um lugar circunscrito. Portanto, a salvação é para todos, porém,
condicionada a cumprir os mandamentos, mesmo que leve séculos para se conseguir isso.
Mt 7,11-14: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos,
quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhas
pedirem? Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho
também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas. Entrai pela porta estreita;
porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os
que entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduz
à vida, e poucos são os que a encontram”.
Se dar o inferno eterno para a grande maioria das pessoas é coisa boa? Então,
podemos crer que houve uma inversão de valores. A coisa é bem simples: se nós que somos
maus fazemos de tudo para dar somente coisas boas para nossos filhos, com muito mais razão
Deus nos dará, pois o seu amor é infinitamente maior que o de um pai humano. Portanto, a
hipótese de inferno eterno é fruto da ignorância humana, não é uma criação de Deus.
A regra de ouro aqui estabelecida – fazer os outros o que queremos que os outros nos
façam – é relacionada a atitude, que se todos nós aplicássemos, o mundo seria completamente
outro. É na aplicação plena dessa lei, que iremos merecer estar junto com Deus, caso
contrário, estaremos tomando uma direção errada, que nunca nos levará ao nosso objetivo.
Porta larga e porta estreita simboliza os vícios e as virtudes, são eles que abrirão ou
não as “portas” do “céu”. Assim, tudo, que aqui nesse passo expõe-se, tem a ver com reforma
interior, agir no bem, nada de salvação “de graça” para ninguém, mas com esforço pessoal no
sentido de domar suas más paixões, de forma, que a meta de amar ao próximo como a si
mesmo seja atingida.
Mt 7,21-27: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele
dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não
expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes
direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniquidade. Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica,
assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; e desceu a
chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e não caiu,
porque estava edificada sobre a rocha. E aquele que ouve estas minhas palavras, e
não as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a sua casa sobre
a areia; e desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela
casa, e caiu, e foi grande a sua queda”.
Muitos religiosos ainda dizem que as pessoas estão salvas por pertencerem a uma
determinada Igreja ou por apenas ter fé, ou por só crer em Jesus como salvador, etc.;
entretanto, parecem que fazem vistas grossas a essa passagem da Bíblia. Quem não praticar
os ensinos de Jesus, não receberá recompensa alguma. É bem simples!
157
Mt 16,27: “Porque o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e
então dará a cada um segundo as suas obras”.
Como já prevíamos anteriormente a salvação para Jesus está nas obras, já que cada
um será julgado pelas suas obras e não por crer, pertencer a alguma denominação religiosa,
em muito, menos porque Jesus morreu na cruz. E ainda existem pessoas querendo contradizer
Jesus, dizendo que são estas outras coisas que salvam, embora muitos deles, na prática diária,
fazem do dízimo o instrumento de “sua própria salvação”: a financeira.
Mt 18,1-4: “Naquela hora chegaram-se a Jesus os discípulos e perguntaram: Quem é o
maior no reino dos céus? Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e
disse: Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como
crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, quem se tornar
humilde como esta criança, esse é o maior no reino dos céus”.
Fazer-se como crianças, significa deixar de lado as paixões, vícios, preconceitos, rixas,
ódios, maledicência, intolerância, desejo de vingança, pois tudo isso representa inferioridade
moral, que, certamente, é obstáculo para estarmos junto a Deus, por ser Ele a perfeição plena.
E todo que nos afasta dela, consequentemente, também, nos afasta de Deus.
Mt 18,23-35: “Por isso o reino dos céus é comparado a um rei que quis tomar
contas a seus servos; e, tendo começado a tomá-las, foi-lhe apresentado um que lhe
devia dez mil talentos; mas não tendo ele com que pagar, ordenou seu senhor que
fossem vendidos, ele, sua mulher, seus filhos, e tudo o que tinha, e que se pagasse a
dívida. Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, tem
paciência comigo, que tudo te pagarei. O senhor daquele servo, pois, movido de
compaixão, soltou-o, e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou
um dos seus conservos, que lhe devia cem denários; e, segurando-o, o sufocava,
dizendo: Paga o que me deves. Então o seu companheiro, caindo-lhe aos pés, rogavalhe, dizendo: Tem paciência comigo, que te pagarei. Ele, porém, não quis; antes foi
encerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida. Vendo, pois, os seus conservos o que
acontecera, contristaram-se grandemente, e foram revelar tudo isso ao seu senhor.
Então o seu senhor, chamando-o á sua presença, disse-lhe: Servo malvado, perdoei-te
toda aquela dívida, porque me suplicaste; não devias tu também ter compaixão do teu
companheiro, assim como eu tive compaixão de ti? E, indignado, o seu senhor o
entregou aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia. Assim vos fará meu
Pai celestial, se de coração não perdoardes, cada um a seu irmão”.
A moral da história é que ao devedor foi dado um prazo para pagar a dívida, portanto,
tinha obrigação de fazer o mesmo com aquele que lhe devia. Ainda podemos tirar disso que a
dívida há que ser paga, não é perdoada da forma como acreditam. O perdão de Deus existe
quando ele nos dá oportunidades de reparar o mal praticado. Acontecerá de igual forma
conosco, quando infligirmos as leis divinas, pois será necessária a reparação, única forma de
harmonizarmos com elas. Ao que não “pagarem” suas dívidas serão metidos na prisão da
carne, até que pagem.
Mt 19,16-23: “E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: 'Bom Mestre,
que bem farei para conseguir a vida eterna?' E ele disse-lhe: 'Por que me chamas
bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda
os mandamentos'. Disse-lhe ele: 'Quais?' E Jesus disse: 'Não matarás, não cometerás
adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe, e amarás
o teu próximo como a ti mesmo'. Disse-lhe o jovem: 'Tudo isso tenho guardado desde a
minha mocidade; que me falta ainda?' Disse-lhe Jesus: 'Se queres ser perfeito, vai,
vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e
segue-me'. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas
propriedades. Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícil
entrar um rico no reino dos céus”.
Nessa passagem fica nítida a questão da prática da caridade. O jovem rico tinha fé e
cumpria todas as outras determinações religiosas; entretanto não se preocupava com os
158
necessitados, porquanto, ainda não os amavam como a si mesmo. Daí Jesus recomendar-lhe
vender tudo e doar aos pobres para ter um tesouro no céu. Apegado demais aos bens
terrenos, o jovem foi-se embora triste.
Mt 20,1-16: “Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário,
que saiu de madrugada a contratar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou com
os trabalhadores o salário de um denário por dia, e mandou-os para a sua vinha. Cerca
da hora terceira saiu, e viu que estavam outros, ociosos, na praça, e disse-lhes: Ide
também vós para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Outra vez saiu,
cerca da hora sexta e da nona, e fez o mesmo. Igualmente, cerca da hora undécima,
saiu e achou outros que lá estavam, e perguntou-lhes: Por que estais aqui ociosos o dia
todo? Responderam-lhe eles: Porque ninguém nos contratou. Disse-lhes ele: Ide
também vós para a vinha. Ao anoitecer, disse o senhor da vinha ao seu mordomo:
Chama os trabalhadores, e paga-lhes o salário, começando pelos últimos até
os primeiros. Chegando, pois, os que tinham ido cerca da hora undécima, receberam
um denário cada um. Vindo, então, os primeiros, pensaram que haviam de receber
mais; mas do mesmo modo receberam um denário cada um. E ao recebê-lo,
murmuravam contra o proprietário, dizendo: Estes últimos trabalharam somente uma
hora, e os igualastes a nós, que suportamos a fadiga do dia inteiro e o forte calor. Mas
ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça; não ajustaste comigo
um denário? Toma o que é teu, e vai-te; eu quero dar a este último tanto como a
ti. Não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou
bom? Assim os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos”.
Pelo trabalho todos receberam o mesmo pagamento, ainda que alguns tenham sido
retardatários. É o que acontecerá conosco, todos fomos chamados, os que prontamente
atenderam ao pedido, receberão mais cedo a sua recompensa, mas será exatamente a mesma
que será dada aos que demorarem a atender ao chamado. Justiça é dar para todos a mesma
recompensa, quando o esforço ou o trabalho for o mesmo, o tempo para realizar não é a
medida, mas a capacidade de cada um fazer a tarefa, que lhe foi designada.
Mt 21,31-32: “Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram eles: O segundo. Disselhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram
adiante de vós no reino de Deus. Pois João veio a vós no caminho da justiça, e não
lhe deste crédito, mas os publicanos e as meretrizes lho deram; vós, porém, vendo
isto, nem depois vos arrependestes para crerdes nele”.
Essa resposta que Jesus deu aos sacerdotes e anciãos do povo é muito interessante,
porquanto, ele sabia que essa “turba” fazia tudo levá-lo à morte, e mesmo assim ele diz que
irão para o “reino do Deus”; porém, os publicanos e as meretrizes, ou seja, aquelas pessoas
que eles consideravam gente de má vida, chegariam na frente deles. Inclusive, Jesus acusa-os
de não terem arrependido e nem acreditado em João Batista. Ora, se isso não aconteceu como
é que iram merecer o “reino de Deus”, certamente, haverá outras oportunidades para que eles
também possar arrependerem-se. Portanto, o reino de Deus é “para todos”, ninguém ficará de
fora.
Mt 25,31-46: “E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos
com ele, então se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas
diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; e
porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que
estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que
vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e destes-me de
comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes
ver-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com
fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos
estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou
na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que
quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então dirá
também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o
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fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; porque tive fome, e não me
destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo estrangeiro, não
me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me
visitastes. Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos
com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te
servimos? Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um
destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim. E irão estes para o tormento
eterno, mas os justos para a vida eterna”.
Essa passagem simboliza o dia do juízo, dia em que todos devemos prestar contas a
Deus de tudo o que fizemos. Quem foi para a direita de Deus (bom lugar) foram os de fé ou os
que fizeram obras? As obras exemplificadas são: dar de comer aos famintos, vestir os nus, dar
água a quem tem sede, hospedar os viajantes, visitar os doentes e os prisioneiros, tudo isso
representa atos de amor ao próximo.
No simbolismo, a separação dos bons dos maus é pela fé de cada um? Pela religião? Ou
pelas obras praticadas a favor do próximo? Repetimos: “FORA DA CARIDADE NÃO HÁ
SALVAÇÃO”.
Mc 16,14-16: “Por último, então, apareceu aos onze... disse-lhes: ’Ide por todo o
mundo, e pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado será
salvo; mas quem não crer será condenado’".
É de conhecimento de todos nós que os versículos 16 a 20, do capítulo 16 do Evangelho
de Marcos não fazem parte de alguns manuscritos antigos (Vat. E Sin.,) (Bíblia de Jerusalém,
p. 1785), portanto, trata-se de um acréscimo por conta de um autor piedoso e desconhecido.
Sua redação é tão conflitante que salta aos olhos; vejamos a frase: “quem não crer será
condenado”. Para ela ser coerente com o que se afirmou antes, ou seja, “quem crer e for
batizado será salvo”, haveria de ser uma sentença negativa da seguinte forma: “Quem não
crer e não for batizado será condenado”. A expressão “não for batizado” ficou faltando, na
“inspiração” da frase bíblica.
Lc 10,25-37: “E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo:
'Mestre, que farei para herdar a vida eterna?' E ele lhe disse: 'Que está escrito na
lei? Como lês?' E, respondendo ele, disse: 'Amarás ao Senhor teu Deus de todo o
teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo'. E disse-lhe: 'Respondeste
bem; faze isso, e viverás'. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a
Jesus: E' quem é o meu próximo?' E, respondendo Jesus, disse: 'Descia um homem de
Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e
espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo
mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo
também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um
samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima
compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e,
pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; e,
partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida
dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três
te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?' E ele disse: 'O
que usou de misericórdia para com ele'. Disse, pois, Jesus: 'Vai, e faze da mesma
maneira'”.
Essa parábola do Bom Samaritano é por demais conhecida de todos. Somente por ela já
poderíamos saber o que, realmente, irá salvar-nos. O sacerdote representa todos os líderes
religiosos preocupados consigo mesmo, sem nenhum sentimento de amor ao próximo. Pelo
levita poderemos identificar todas as pessoas ligadas a uma determinada religião, que, apesar
de possuírem alguém que os ensinem o que fazer, não fazem absolutamente nada a favor do
próximo. São ambos, sacerdote e levita, egoístas como muitos dos crentes nos dias de hoje.
O samaritano era considerado herege pelos dois religiosos que passaram, a passos
largos, diante do homem caído à beira da estrada; entretanto, é o exemplo dele que Jesus
160
recomenda seguir. Foi justamente este bondoso herege que, com obras, provou que tinha mais
fé que os outros dois. Ele deveria ser um ponto de referência para determinadas pessoas que
vivem a criticar a crença dos outros. Fiquem certos, de uma vez por todas, que, para Deus,
somente será justificado quem praticar a lei de amor; lembrem-se: “A Deus ninguém engana”
(Gl 6,7).
Lc 19,1-10: “Tendo Jesus entrado em Jericó, ia atravessando a cidade. Havia ali um
homem chamado Zaqueu, o qual era chefe de publicanos e era rico. Este procurava
ver quem era Jesus, e não podia, por causa da multidão, porque era de pequena
estatura. E correndo adiante, subiu a um sicômoro a fim de vê-lo, porque havia de
passar por ali. Quando Jesus chegou àquele lugar, olhou para cima e disse-lhe: Zaqueu,
desce depressa; porque importa que eu fique hoje em tua casa. Desceu, pois, a toda a
pressa, e o recebeu com alegria. Ao verem isso, todos murmuravam, dizendo: Entrou
para ser hóspede de um homem pecador. Zaqueu, porém, levantando-se, disse ao
Senhor: Eis aqui, Senhor, dou aos pobres metade dos meus bens; e se em
alguma coisa tenho defraudado alguém, eu lho restituo quadruplicado. Disselhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, porquanto também este é filho de
Abraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”.
Aqui, nesse passo, temos o tiro mortal na ideia da salvação ”de graça”. A fala de Jesus
“hoje veio a salvação a esta casa”, é significativa, pois foi a mudança de atitude por parte de
Zaqueu, que levou a essa consequência, nada, portanto, de salvar-se somente por crer em
Jesus. Crer em Jesus ele, Zaqueu, creu, porém, foi pela sua nova postura diante da vida que a
salvação chegou à sua casa. É dentro deste conceito, que “o filho do homem veio buscar e
salvar o que se havia perdido”, muito diferente da salvação “de graça”, pregada por aí.
Jo 13,34-35: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim
como eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros. Se vocês tiverem amor
uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos".
Se o critério para a salvação fosse outro não havia nem sentido Jesus mandar seus
discípulos amarem uns ao outros, como ele os havia amando.
Muitas pessoas insistem em pegar frases soltas da Bíblia para tentarem justificar seus
pensamentos. Ora, não há como afastar a frase do seu contexto imediato, e de todo o
conjunto da Bíblia. E o que é mais curioso é que sempre dizem que somos nós é que fazemos
isso.
Aos que querem isolar passagens, em Dt 28,30 temos uma que servirá como um bom
exemplo: “Desposar-te-ás com uma mulher, porém outro homem dormirá com ela; edificarás
uma casa, porém não morarás nela; plantarás uma vinha, porém não aproveitarás o seu
fruto”. Veja que ela, fora do contexto, é uma coisa absurda que Deus propõe a fazer.
Entretanto, dentro do contexto é apenas uma ameaça que Deus está fazendo; vejamos no
versículo 15 o início da narrativa: “Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do SENHOR
teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus estatutos, que
hoje te ordeno, então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão”.
O que vemos então? É pura e simplesmente “Deus” dizendo ao povo hebreu que, se não
guardasse os seus mandamentos, Ele iria aplicar várias maldições, entre elas a do versículo
30, que escolhemos para exemplo.
Essa narrativa, diga-se de passagem, está confirmando que não existe inferno, pois, se
ele fosse real como querem alguns, “Deus” teria dito: “se não cumprirem meus mandamentos
irão para o fogo do inferno”. Até mesmo porque: “Assim, também, não é vontade de vosso Pai,
que está nos céus, que um destes pequeninos se perca” (Mt 18,14). Se é vontade de Deus que
ninguém se perca; ninguém se perderá e pronto!
Quanto à questão da justiça divina, que muitas vezes falamos, podemos ter um bom
exemplo na legislação brasileira, provavelmente a de muitos outros países, que assegura a
todos os filhos (herdeiros) partes iguais na herança de seus pais, quando estes morrerem. Isso
todos nós consideramos como um avanço da sociedade, pelo motivo de que, anteriormente,
alguns pais davam cotas maiores, ou às vezes até tudo, para um dos filhos, em detrimento do
restante. Ora, não acreditamos que a legislação divina seja pior que a humana para dar o reino
161
do céu, caso seja um lugar circunscrito, a alguns privilegiados em detrimento de quase a
totalidade das pessoas que formam a humanidade terrena. É inconcebível isso!
Parece-nos que os evangélicos tomam de João e de Paulo a sua crença sobre a
salvação, por isso achamos oportuno trazer ao nosso estudo as considerações que a nossa
amiga Lúcia da Silveira Sardinha Pinto Souza (1966- ), ex-evangélica, fez a respeito da
“salvação pela fé” a um evangélico:
A doutrina teológica central das igrejas evangélicas ensina a salvação pela fé
através da graça, por acreditar que Jesus morreu na cruz por nossos pecados.
Entretanto, esta forma de salvação NÃO é ensinada em Mateus, Marcos e Lucas
(Evangelhos Sinóticos), que são os Evangelhos mais antigos, embora se tratem
de cópias de cópias, conforme já falamos. O Evangelho de Marcos é considerado
o mais antigo, seguido pelo de Mateus e Lucas, e então pelo de João (escrito
cerca de 90 anos d.C.). A doutrina da salvação pela fé e redenção vem do livro
de João, o último Evangelho a ser escrito. Nos Evangelhos Sinóticos, NÃO HÁ
UMA ÚNICA PALAVRA sobre ter que acreditar em Jesus a fim de ir para o céu.
Com exceção de Marcos 16:16, que é considerado pela maioria dos estudiosos
bíblicos como uma interpolação, ou uma falsificação, considerando que muitos
dos primeiros manuscritos do Evangelho de Marcos não contêm este versículo,
Marcos nunca escreveu nada sobre ter que acreditar que Jesus morreu por você
ou sobre "salvação pela fé". Os Evangelhos Sinóticos começaram a ser escritos
por volta de 50 anos depois de Cristo. Se "ter que crer em Jesus para ser salvo"
fosse a doutrina máxima do Cristianismo daquele tempo, por que é que Mateus,
Marcos e Lucas não falam nada a respeito disso? Teriam omitido algo tão
importante?
De fato, Jesus disse que tudo o que você tem que fazer para Deus perdoar os
seus pecados é isto:
Mateus 6:14 "Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, também
vosso Pai celeste vos perdoará".
Quando alguém pergunta a Jesus diretamente o que ele tinha que fazer para
ser salvo e ter a vida eterna, Mateus claramente registra uma salvação pelas
obras:
Mateus 19:16-21 "E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre,
que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por
que me perguntas acerca do que é bom? Bom, só existe um. Se queres,
porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele lhe respondeu: Quais?
Respondeu Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás
falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe, e amarás o teu próximo
como a ti mesmo. Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; o que
me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus
bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me".
Ainda em Mateus, Jesus pregou sobre as bem-aventuranças que enfatizam
que aqueles que têm bom caráter e boas atitudes herdarão o Reino de Deus,
que é uma outra maneira de dizer que eles irão para o céu.
Mateus 5:3 "Bem - aventurados os humildes de espírito, porque deles é o
reino dos céus".
Mateus 5:4 "Bem - aventurados os que choram, porque serão consolados".
Mateus 5:5 "Bem - aventurados os mansos, porque herdarão a terra".
Mateus 5:6 "Bem - aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
serão fartos".
Mateus 5:7 "Bem - aventurados os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia".
Mateus 5:8 "Bem - aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus".
Mateus 5:9 "Bem - aventurados os pacificadores, porque serão chamados
filhos de Deus".
Já no Evangelho de João, que foi escrito mais ou menos 40 anos depois do
Evangelho de Mateus, nós temos versículos tais como:
162
João 3:16 "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna".
João 3:18 "Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus".
João 3:36 "Por isso quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a
ira de Deus".
João 8:24 "Por isso eu vos disse que morrereis nos vossos pecados; porque
se não crerdes que eu sou morrereis nos vossos pecados".
João 11:25 "Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em
mim, ainda que morra, viverá".
Agora dê uma olhada no livro de Marcos. Ele também não menciona que você
tem que acreditar em Jesus para ser salvo, exceto por um versículo no último
capítulo de Marcos:
Marcos 16:16 "Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer
será condenado".
Entretanto, repito, a maioria dos estudiosos acredita que este versículo é
uma interpolação, ou uma falsificação, considerando que muitos dos primeiros
manuscritos do Evangelho de Marcos não contêm este versículo, e além disso
ele não se encaixa com todo o resto de Marcos que não ensina a "salvação pela
fé". Tirando a parte da interpolação, Marcos nunca escreveu nada sobre ter que
acreditar que Jesus morreu por você, sobre salvação pela fé ou sobre o conceito
de redenção. Do mesmo modo, o Evangelho de Lucas é também como o
Evangelho de Mateus e de Marcos e não menciona crença na "salvação pela fé".
É claro que os evangélicos responderão dizendo que temos que colocar todos
os Evangelhos juntos para se obter a história completa. Porém, os Evangelhos
Sinóticos começaram a ser escritos só por volta de 50 anos depois de Cristo,
portanto, se a doutrina da salvação pela fé fosse ponto central da pregação de
Jesus, não era de se esperar que tanto Mateus quanto Marcos e Lucas
escrevessem sobre isto de maneira muito clara em seus evangelhos? Por que ela
não é mencionada de modo algum nos três primeiros Evangelhos? A razão lógica
nos diz que eles nunca ouviram tal coisa e nem apoiavam tal ideia, porque ela só
se desenvolveu mais tarde quando os primeiros líderes cristãos decidiram
adicionar tal doutrina, no então Evangelho de João.
O Evangelho de João foi o resultado do desenvolvimento da teologia da igreja
daquele tempo. É neste livro que encontramos os versículos sobre salvação pela
fé, sobre nascer de novo, sobre redenção, e sobre ter que acreditar que Jesus
morreu por nossos pecados. Em muitas de suas páginas, você encontrará Jesus
dizendo algo sobre ter que acreditar nele. Quando os evangélicos citam
versículos do Evangelho sobre ser salvo, eles sempre se referem a João. Não é
de se surpreender que para muitos evangélicos o Evangelho de João é o
favorito. Todos os versículos mencionados sobre ter fé e acreditar em Jesus são
do Evangelho de João. Mas é muito estranho que apenas no último Evangelho a
ser escrito, que surgiu cerca de 90 anos d.C., seja o único a falar sobre "termos
que acreditar em Jesus" para sermos salvos, isso ninguém pode negar.
A Teologia da Salvação se desenvolveu no meio da Igreja enquanto os livros
e cartas do Novo Testamento ainda estavam sendo escritos. Repare que, de
acordo com Marcos, Cristo era um homem; mas, de acordo com Mateus e Lucas
ele era um semideus; enquanto João insiste que ele era o próprio Deus. É
interessante notar que Lucas, em seu Evangelho, por não ter conhecido Jesus
pessoalmente, fez uma acurada investigação colhendo relatos das testemunhas
oculares, e escreveu então a Teófilo um relato em ordem sobre tudo o que se
passou. Dos Evangelhos Sinóticos, o de Lucas é o que foi escrito de maneira
mais organizada. Ele fez o que um repórter faria hoje em dia. Entrevistou as
testemunhas oculares que presenciaram tudo o que aconteceu na morte e
ressurreição de Jesus e que também relataram tudo o que o Mestre ensinou. E o
interessante é que no relato das testemunhas oculares, NÃO HÁ NADA sobre
"ter que acreditar em Jesus" para ser salvo. Isto não é estranho?
Porém, em Atos dos Apóstolos, Lucas passa a falar sobre "salvação pela fé" e
não é muito difícil adivinhar o porquê disso - ele era companheiro e colaborador
163
do apóstolo Paulo, aquele cuja ênfase da pregação é a "salvação pela fé". É
óbvio que quando Lucas escreveu Atos dos Apóstolos, ele já estava sob forte
influência das ideias paulinas. A ênfase da pregação de Paulo está na salvação
pela graça, pela fé e não pelas obras, como vemos em:
Efésios 2:8-9 "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem
de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie".
Entretanto, Paulo jamais se encontrou com Jesus (pelo menos não
fisicamente)! Ele também nunca escreveu nada sobre o que Jesus disse. E
considerando que ele nunca esteve com o Cristo histórico, ele obviamente não
sabia e nem era qualificado para nos contar o que o Cristo histórico tinha
ensinado quando esteve na Terra.
Em compensação Tiago, que segundo a Bíblia Anotada por Scofield
(Protestante), era irmão de Jesus (Mt. 13:55; Mc. 6:3; Gl. 1:18-19 "Decorridos
três anos, então subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas, e permaneci com
ele 15 dias; e não vi outro dos apóstolos, senão a Tiago, o irmão do Senhor"), e
foi o chefe da primeira igreja cristã em Jerusalém, além de ter sido irmão de
sangue de Jesus e ter convivido com o Mestre, é conhecido como o apóstolo das
obras, pois a ênfase de sua carta está nas boas obras:
Tiago 2:14 "Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé,
mas não tiver obras? Pode acaso semelhante fé salvá-lo?"
Tiago 2:17 "Assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta".
Aqui há, claramente, duas doutrinas opostas em jogo... qual devemos seguir?
A que nos é ensinada nos Evangelhos Sinóticos e por Tiago; ou a que está no
Evangelho de João, último Evangelho a ser escrito (cerca de 90 anos d.C.) e os
ensinos de Paulo que não conviveu e nem conheceu o Jesus histórico? Este é um
questionamento
justo,
não
acha?"
(SOUZA,
L.
S.
S.
P.
http://www.apologiaespirita.org/apologia/artigos/025_Salvacao_pela_fe_ou_pel
as_obras.pdf)
Antes de encerrar, não podemos deixar de falar sobre os rituais de sacrifícios ou rituais
de expiação pelo pecado. A maioria das pessoas nem tem ideia do que se fazia na época de
Moisés, quando foram, supostamente, instituídos por Deus. Dizemos supostamente porque o
profeta Jeremias afirmou que: “[quando] os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisa
alguma acerca de holocaustos ou sacrifícios”. (Jr 7,21-22).
Lv 1,1-9: “Iahweh chamou Moisés e da Tenda de Reunião falou-lhe, dizendo: 'Fala aos
israelitas; tu lhes dirás: Quando um de vós apresentar uma oferenda a Iahweh,
podereis fazer essa oferenda com animal grande ou pequeno. Se a sua oferenda
consistir em holocausto de animal grande, oferecerá um macho sem defeito;
oferecê-lo-á à entrada da Tenda da Reunião, para que seja aceito perante Iahweh.
Porá a mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita para que se faça por ele o
rito de expiação. Em seguida imolará o novilho diante de Iahweh, e os filhos de
Aarão, os sacerdotes, oferecerão o sangue. Eles o derramarão por todos os
lados, sobre o altar, que se encontra à entrada da Tenda da Reunião. Em seguida
esfolará a vítima e a dividirá em quartos, e os filhos de Aarão, os sacerdotes, porão
fogo sobre o altar e colocarão a lenha em ordem sobre o fogo. Depois os filhos de
Aarão, os sacerdotes, colocarão os quartos, a cabeça e a gordura em cima da lenha que
está sobre o fogo do altar. O homem levará com água as entranhas e as patas, e o
sacerdote queimará tudo sobre o altar. Este holocausto será uma oferenda
queimada de agradável odor a Iahweh”. (Bíblia de Jerusalém) (a mesma coisa está em
Lv 1,10-13, para ofertas de gado miúdo e em Lv 1,14-17, para a de aves).
Ficamos a imaginar que “belo” quadro nós podemos “pintar” com as determinações
acima: sangue dos animais para tudo quanto é lado, mais parecendo com um ritual de magia
negra. (Cruz!). Não podemos deixar de classificar esses rituais como próprios de religiões
primitivas, nas quais achavam que os deuses aceitavam o sangue e a vida dos animais –
algumas até de seres humanos –, como forma de perdoar seus “pecados”.
O ritual de expiação, segundo os tradutores da Bíblia de Jerusalém:
164
A Expiação é o sacrifício pelo qual o homem que ofendeu a Deus,
transgredindo a aliança, pode voltar à graça. O animal oferecido em sacrifício
(kipper) foi interpretado como resgate (koper; cf. Ex 30,12). Nos sacrifícios de
expiação, os ritos de sangue desempenhavam papel primordial (17,11; cf.
4,1+; 4,12+). Conhecida pelos assírio-babilônicos e pelos cananeus, a
expiação ligou-se aos fundamentos da Lei israelita. […] (Bíblia de
Jerusalém, p. 162). (grifo nosso).
É, sem dúvida alguma, plágio dos rituais de outros povos, portanto, pagãos.
Ao quererem transferir tal barbaridade à pessoa de Cristo, é onde reside o grande
problema das religiões tradicionais, pois pensam que com um ritual totalmente pagão Deus irá
“apagar” os pecados da humanidade. Da forma que vemos, são até incoerentes, por que para
o sacrifício de Cristo na cruz ser algo desse tipo, faltou:
a) “Porá a mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita”;
b) “oferecerão o sangue. Eles o derramarão por todos os lados, sobre o altar”;
c) “Em seguida esfolará a vítima e a dividirá em quartos”;
d) “ o sacerdote queimará tudo sobre o altar” para que fosse “de agradável odor a
Iahweh”.
Tudo isso estritamente dentro das normas do ritual de expiação, mencionadas no passo
acima citado (Lv 1,1-10).
Ademais, como sempre vimos dizendo, os rituais eram feitos para pecados já
cometidos, nunca para pecados futuros, daí precisamos arrumar um segundo Cristo, para ser
sacrificado pelos pecados cometidos após a morte do primeiro Cristo; procedimento que teria
que ser feito, novamente, com um terceiro Cristo, quarto, quinto,...
E, talvez, o que vemos de maior importância, pois trata-se do valor dos sacrifícios.
Considerando que “não falei nada nem dei ordem alguma sobre holocaustos e sacrifícios” (Jr
7,22) e “aprendei o que significa misericórdia quero, e não sacrifícios” (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7),
como atribuir algum valor expiatório aos sacrifícios, incluindo, ai, o que atribuem a Jesus?
E, finalizando, colocaremos essa frase de Jesus:
“Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos
digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras.
Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa das
mesmas obras. Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim também
fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas, porque eu vou para meu
Pai”. (Jo 14,10-12).
Veja bem: as obras que Jesus faz não vem dele, mas do Pai, e ele afirma que podemos
fazer essas mesmas obras e até maiores; nos dá a certeza que as obras que fazemos serão
para cumprir a vontade de Deus. Mas, quais são as obras de Jesus? No tempo que passou
junto de nós, curou enfermos, deu vista a cegos, curou paralíticos, libertou pessoas de
espíritos maus, enfim, somente obras de amor, o amor operante de que já falamos por várias
vezes.
165
Toda Escritura é mesmo inspirada?
Sempre nos aparecem pessoas defendendo a origem divina da Bíblia, usando, para
sustentar essa posição, da seguinte passagem:
“Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar, para corrigir,
para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para
toda boa obra”. (2Tm 3,16-17).
Ora, como foram os homens que a escreveram, retirar, dela mesma, algo para provar
sua veracidade não seria agir com bom senso. É como aceitar o argumento de um falsário de
que aquilo que ele fez é verdadeiro. Como já dissemos, em outras oportunidades, usar desse
tipo de argumentação é ficar, literalmente, rodando em círculo. Aliás, os que fazem isso são,
normalmente, aqueles que dificilmente leem alguma coisa fora do meio religioso em que
vivem. Aí vale a frase: “Quem ouve um sino só escuta um som, não podendo, portanto, saber
se está afinado” (LETERRE, 2004).
Essa forma de argumentação é, segundo Rodrigo Farias (?- ), do tipo “Raciocínio
circular ou Petição de Princípio”, que assim explica:
Esse é um erro comuníssimo em debates ou pregações religiosas. Trata-se
simplesmente de afirmar a mesma coisa com outras palavras. Alguns exemplos:
1. "Por que a Bíblia é a Palavra de Deus? Ora, porque ela foi inspirada pelo
próprio Criador."
ou, ainda, no que eu chamaria de "variação Tostines":
2. "A Bíblia é perfeita porque é a Palavra de Deus. E como sabemos que ela é
a Palavra de Deus? Pela sua perfeição."
Esse exemplo é fácil de encontrar, especialmente nos meios evangélicos mais
conservadores. É importante ressaltar que ele foi posto aqui apenas para ilustrar
um tipo de raciocínio falacioso muito frequente, não para desmerecer a Bíblia ou
a crença de quem quer que seja.
Um exemplo laico agora:
3. "Eu acho que alpinismo é um esporte perigoso porque é inseguro e
arriscado."
Dizer que algo é "inseguro e arriscado" não é o mesmo que dizer que ele é
"perigoso"? Ora, o que essa "explicação" acrescentou que justificasse a ideia de
que alpinismo é perigoso? Nada. Simplesmente, repetiu-se a primeira afirmação
com outras palavras.
4. "Por que eu sou a pessoa mais indicada para o trabalho? Porque eu
descobri que, dentre todos os outros candidatos, e considerando minhas
qualificações, eu sou a melhor pessoa para o trabalho."
Valem as mesmas observações. Porém prestemos atenção num detalhe: às
vezes, quando a "justificativa" é muito longa, podemos nos perder e não
notarmos que a pessoa acabou não dando evidências para aquilo que disse. Um
exemplo trágico poderia ser a frase de Goebbels, propagandista do regime
nazista alemão: "Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba se tornando uma
verdade." Afirmações muito repetidas podem ganhar um status tal que as
pessoas podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê de
acreditarem nelas. Crenças inculcadas desde a infância ou em períodos de
fragilidade emocional são casos típicos. Por isso, tenhamos a máxima prudência
com aquilo que nos chega aos ouvidos e com a maneira como abordaremos
certas crenças arraigadas num debate; antes de questionar os outros, convém
darmos uma olhada na nossa própria fé em certas premissas, que talvez nunca
tenhamos analisado criticamente. (FARIAS, 2007, Internet).
166
O filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), em seu livro Tratado Teológico-Político, fez
uma interessante observação, que é atualíssima; vejamo-la:
Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de Deus que ensina aos
homens a verdadeira beatitude ou caminho da salvação: na prática, porém, o
que se verifica é completamente diferente. Não há, com efeito, nada com que o
vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver segundo os
ensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como andam quase todos fazendo
passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não procuram outra
coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem
como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupada é em saber como
extorquir dos Livros Sagrados as suas próprias fantasias e arbitrariedades,
corroborando-as com a autoridade divina. (ESPINOSA, 2003, p. 114).
Falando a respeito das interpretações, que visam esconder as contradições existentes
na Bíblia, Espinosa apresenta um argumento desconcertante, tanto quanto oportuno, qual
seja:
Os comentadores, porém, na tentativa de conciliar essas contradições
manifestas, inventa cada um aquilo que pode e o engenho lhe deixa, e,
enquanto estão assim adorando as letras e as palavras da Escritura, mais não
fazem, como já o dissemos, que expor os autores da Bíblia ao ridículo, a ponto
de parecer até que eles não sabiam falar nem expor com nexo aquilo que
tinham para dizer. (ESPINOSA, 2003, p. 181).
E, ainda, sobre os que creem cegamente em tudo que consta da Bíblia, não deixou,
também, de fazer suas valiosas considerações, com o seguinte teor:
Julgam que é piedoso não se fiar na razão e no próprio juízo e que é ímpio
duvidar daqueles que nos transmitiram os livros sagrados: mas isso não é
piedade, é pura demência! Afinal, pergunto eu, o que é que os preocupa? O que
é que receiam? Porventura a religião e a fé só podem ser mantidas se os
homens forem totalmente ignorantes e despedirem definitivamente a razão? Se
é isso o que pensam, então é porque a Escritura lhes inspira mais medo que
confiança. (ESPINOSA, 2003, p. 225-226).
Sempre estamos recorrendo a esse renomado filósofo, porquanto, vemos muito do que
fala como coisas bem atuais, que, se não o citássemos como origem, certamente, elas seriam
tomadas como sendo de um autor hodierno.
Uma posição que merece ser lembrada é a dos estudiosos Russel N. Champlin (1933- )
e J. M. Bentes (1932- ), constante de um dos volumes da obra Enciclopédia de Bíblia, teologia
e filosofia, da qual transcrevemos os trechos:
Finalmente, devemos lembrar que as declarações de que a Bíblia não
contém erro alicerçam-se sobre o dogma humano e levaram séculos para
se desenvolver. A própria Bíblia não revindica isso para si mesma. […]
[…] Mas, supor que eles [os autores sagrados] tivessem de estar certos em
tudo não passaria de dogmas humanos que precisavam de séculos para se
desenvolver. Os próprios autores não reivindicaram inerrância; e mesmo
que o tivessem feito, não poderiam comprová-la. Aquele que precisa apelar
para o mito da inerrância é um infante espiritual que precisa de mamadeira
adredemente preparada. […] (CHAMPLIN e BENTES, 1995a, p. 36) (grifo nosso)
Tiro mortal: “aquele que precisa apelar para o mito da inerrância é um infante espiritual
que precisa de mamadeira adredemente preparada”.
Não vamos, neste presente estudo, relacionar textos bíblicos para provar que eles não
são inspirados, porquanto já fizemos isso em várias outras ocasiões; apenas deixaremos
registrado que nem tudo é o que nos parece ser:
167
Muitos anos se passariam, porém, antes que o jeovismo se tornasse uma
religião do livro. Os exilados haviam levado muitos rolos do arquivo real
de Jerusalém consigo para a Babilônia, e lá estudaram e editaram esses
documentos. Se tivessem permissão de voltar para casa, esses registros da
história e do culto do seu povo poderiam desempenhar um importante papel na
restauração da vida nacional. Mas os escribas não encaravam esses
Escritos como sacrossantos e se sentiam livres para acrescentar novas
passagens, alterando-as para adequá-las à suas novas circunstâncias.
Não tinham ainda noção alguma de texto sagrado. Na verdade, existiam
muitas histórias no Oriente Médio sobre tábuas celestes que haviam
descido miraculosamente à terra e comunicado conhecimentos secretos,
divinos. Corriam histórias em Israel sobre as pedras gravadas que Jeová dera a
seu profeta Moisés, que falara com ele face a face (4). Mas os rolos do arquivo
de Judá não pertenciam a esse grupo e não desempenhavam nenhum papel no
culto de Israel.
_______
(4) Geo Widengren. The Ascension of the Apostle and the Heavenly Book, Uppsala e
Leipzig. 1950, passim; Wilfred Cantwell Smith, What Is Scripture? A Comparative
Approach, Londres, 1993, p. 59-61.
(ARMSTRONG, 2007, p. 17-18) (grifo nosso).
Embora fossem reverenciados, esses textos ainda não haviam se
tornado “Escritura”. As pessoas sentiam-se livres para alterar Escritos
mais antigos, mas havia um cânone de livros sagrados prescritos. Mas eles
começaram a expressar as aspirações mais elevadas da comunidade. Os
deuteronomistas que celebravam a reforma de Josias estavam convencidos de
que Israel se encontrava no limiar de uma nova era gloriosa; contudo, em 622
ele foi morto num conflito em o Exército egípcio. […] (ARMSTRONG, 2007, p. 30)
(grifo nosso).
[…] No fim do século II, houve uma explosão de piedade apocalíptica. Em
novos textos, judeus descreveram visões escatológicas em que Deus intervinha
poderosamente nos negócios humanos, estraçalhava a presente ordem corrupta
e inaugurava uma nova era de justiça e pureza. Enquanto lutava para encontrar
uma solução, o povo de Judá dividiu-se numa miríade de seitas, cada uma
insistindo que somente ela era o verdadeiro Israel. (40). Esse foi, contudo, um
período bastante criativo. O cânone da Bíblia ainda não fora finalizado.
Ainda não havia Escritura definitiva, nenhuma ortodoxia, e poucas seitas
sentiam-se obrigadas a se conformar a leituras tradicionais da Lei e dos
Profetas. Algumas até se sentiam em liberdade para escrever Escrituras
inteiramente novas. A diversidade do final do período do Segundo Templo foi
revelada quando a biblioteca da comunidade de Qumram foi descoberta em
1942.
_______
(40) Jacob Neusner, “Judaism and Christianity in the First Century”, in Philip R. Davies e
Richard T. White (orgs.) A Tribute to Geza Vermes; Essays in Jewish and Christian
Literature and History, Sheffield, 1990, p. 256-7.
(ARMSTRONG, 2007, p. 46-47) (grifo nosso).
Portanto a nossa proposta aqui será apenas a análise dessa frase com a qual abrimos
esse estudo. Entretanto, para uma visão geral, traremos a seguinte informação resultante do
grupo The Jesus Seminar (Seminário de Jesus), que contou, entre exegetas e teólogos, com
cerca de duzentos acadêmicos, que se debruçaram, por sete anos, no exame dos Evangelhos.
Em última análise, esses acadêmicos chegaram à conclusão de que Jesus
jamais disse 82% do que os evangelhos atribuem a ele. A maior parte dos 18%
restantes foram considerados duvidosos, sobrando apenas 2% de dizeres
incontestavelmente autênticos. (STROBEL, 2001, citando Gregory A. BOYDE,
Jesus under siege, Wheaton, Victor, 1995, p. 88).
Ao que nos parece a informação de Boyde, em relação aos 2%, pode não estar
totalmente correta, porquanto os percentuais apurados no Seminário de Jesus (SJ), têm outros
valores:
168
[…] Os pesquisadores do SJ chegaram a concluir que apenas 18%
(dezoito por cento) do total de palavras atribuídas a Jesus nos
Evangelhos podem ser realmente consideradas autênticas e que apenas
16% (dezesseis por cento) do total de ações a ele atribuídas nos
Evangelhos pode ser, de fato, consideradas autênticas, ou seja,
aproximadamente 82% das palavras e 84% das ações atribuídas a Jesus nos
Evangelhos não são verdades históricas, mas crenças cristãs (cf. FUNK & THE
JESUS SEMINAR, p. 1) (SOUZA, 2011, p. 67) (grifo nosso).
Isso leva-nos a crer que Boyde pegou os 18% e deduziu 16%, sobrando os 2%, quando
na realidade, isso não poderia ter sido feito, pois versam sobre temas diferentes, ou seja,
enquanto um trata de 18% das palavras o outro já se refere a 16% das ações.
Mesmo levando-se em conta esses dois percentuais distintos, vê-se que a coisa é muito
mais séria do que, inicialmente, poder-se-á supor.
Uma outra opinião, que reputamos de grande valor, é a do ex-evangélico Bart D.
Ehrman (1955- ), porquanto ele é considerado, segundo os entendidos, a maior autoridade em
Bíblia do mundo. Ehrman é Ph.D. em Teologia pela Princeton University e dirige o
Departamento de Estudos Religiosos da University of North Carolina, Chapel Hill. É especialista
em Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e na vida de
Jesus.
Ehrman gravou uma série de conferências, muito populares nos Estados Unidos, para a
Teaching Company, além de ser prefaciador do livro Evangelho de Judas, publicado
recentemente. Leiamos o que ele afirma em seu livro O que Jesus disse? O que Jesus não
disse?:
[...] Eu sempre voltava a meu questionamento básico: de que nos vale dizer
que a Bíblia é a palavra infalível de Deus se, de fato, não temos as palavras que
Deus inspirou de modo infalível, mas apenas as palavras copiadas pelos copistas
– algumas vezes corretamente, mas outras (muitas outras!) incorretamente? De
que vale dizer que os autógrafos (isto é, os originais) foram inspirados? Nós não
temos os originais! O que temos são cópias eivadas de erros, e a vasta
maioria delas são centúrias retiradas dos originais e diferentes deles,
evidentemente, em milhares de modos. (EHRMAN, 2006, p. 17). (grifo nosso).
[...] Uma coisa é dizer que os originais foram inspirados, mas a
verdade é que não temos os originais. Então, dizer que eles foram
inspirados não me serve de grande coisa, a não ser que eu possa
reconstruir os originais. E além disso, a vasta maioria dos cristãos, em toda a
história da Igreja, não teve acesso aos originais, fazendo de sua inspiração um
objeto de controvérsia. Nós não apenas não temos os originais, como não temos
as primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as cópias das cópias
dos originais, ou as cópias das cópias das cópias dos originais. O que temos
são cópias feitas mais tarde, muito mais tarde. Na maioria das vezes,
trata-se de cópias feitas séculos depois. E todas elas diferem umas das
outras em milhares de passagens. (EHRMAN, 2006, p. 20). (grifo nosso).
Em suma, meus estudos do Novo Testamento grego e minhas pesquisas dos
manuscritos que o contêm me levaram a repensar radicalmente o meu
entendimento do que é a Bíblia. Antes disso – a começar de minha experiência
de novo nascimento no ensino fundamental, passando por meu período
fundamentalista no Moody, até chegar aos meus tempos de evangélico em
Wheaton -, minha fé baseava-se completamente em uma certa visão da Bíblia
como palavra infalível de Deus, integralmente inspirada. Agora, deixei de ver a
Bíblia desse modo. A Bíblia passou a ser para mim um livro
completamente humano. Do mesmo modo como os copistas humanos
copiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros autores
humanos escreveram os originais dos textos das Escrituras. Ela é um
livro humano do começo ao fim. E foi escrita por diferentes autores humanos,
em diferentes épocas e em diversos lugares para atender a diferentes
necessidades. Muitos desses autores sem dúvida se sentiam inspirados por Deus
para dizer o que disseram, mas tinham suas próprias perspectivas, suas próprias
crenças, seus próprios pontos de vista, suas próprias necessidades, seus
próprios desejos, suas próprias compreensões, suas próprias teologias. Tais
169
perspectivas, crenças, pontos de vista, necessidades, desejos, compreensões e
teologias deram forma a tudo o que eles disseram. Por todas essas razões é que
esses escritores diferem um do outro. Entre outras coisas, isto significava que
Marcos não disse a mesma coisa que Lucas porque não quis dar a entender o
mesmo que Lucas. João é diferente de Mateus – eles não são os mesmos. Paulo
é diferente dos de Atos dos Apóstolos. E Tiago é diferente de Paulo. Cada autor
é um autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se trate
sempre de autores homens) tem a dizer. A Bíblia, feitas todas as contas, é
um livro inteiramente humano.
Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo distinta da
visão que eu tinha quando era um cristão evangélico – e que não é a visão da
maioria dos evangélicos de hoje. (ERMAN, 2006, p. 21-22) (grifo nosso).
Mas será que Ehrman não estaria sendo radical? É o que veremos no decurso deste
estudo. Ele certamente tem razão, quando diz:
[…] Para os escritores do Novo Testamento, incluindo nosso mais
antigo autor, Paulo, as “escrituras” apontavam para a Bíblia judaica, a
coletânea de livros que Deus dera a seu povo e que predizia a vinda do Messias,
Jesus”. (EHRMAN, 2006, p. 40) (grifo nosso).
Em relação à Bíblia judaica, surge-nos um outro problema, porquanto a quantidade de
livros que ela possuía não é a mesma que hoje vemos no Antigo Testamento constante das
bíblias cristãs:
Os judeus tinham outros livros, que eram também muito importantes para
sua vida religiosa, como por exemplo os livros dos profetas (como Isaías,
Jeremias e Amós), os poéticos (Salmos) e os históricos (como Josué e Samuel).
Por fim, algum tempo depois do início do cristianismo, uma série desses livros
hebraicos – vinte e dois deles – passou a ser considerada cânon sagrado
das Escrituras, a Bíblia judaica atual, aceita pelos cristãos como a primeira
parte do cânon cristão, o Antigo Testamento (2).
_______
(2) Para um esboço da formação do cânon judaico das Escrituras, ver: SANDERS, James.
“Canon, Hebrew Bible”. In: FREEDMAN, David Noel (Ed.). The anchor Bible dictionary. New
York: Doubleday, 1998, p. 1838-1852.
(EHRMAN, 2006, p. 30) (grifo nosso).
Essa informação, sobre a quantidade de livros, pode ser confirmada em Flávio Josefo
(37-103 d.C.), um historiador hebreu, autor de História dos Hebreus, obra que, talvez, possa
ser a fonte de Ehrman:
[...] Não pode haver, de resto, nada de mais certo do que os escritos
autorizados entre nós, pois que eles não poderiam estar sujeitos a controvérsia
alguma, porque só se aprova o que os profetas escreveram há vários séculos,
segundo a verdade pura, por inspiração e por movimento do espírito de Deus.
Não temos pois receio de ver entre nós um grande número de livros que se
contradizem. Temos somente vinte e dois que compreendem tudo o que se
passou, e que se refere a nós, desde o começo do mundo até agora, e aos quais
somos obrigados a prestar fé. Cinco são de Moisés, que refere tudo o que
aconteceu até sua morte, durante perto de três mil anos e a sequência dos
descendentes de Adão. Os profetas que sucederam a esse admirável legislador,
escreveram em treze outros livros, tudo o que se passou depois de sua morte
até o reinado de Artaxerxes, filho de Xerxes, rei dos persas e os quatro outros
livros, contêm hinos e cânticos feitos em louvor a Deus e preceitos para os
costumes. Escreveu-se também tudo o que se passou desde Artaxerxes até os
nossos dias, mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas não
se lhes dá o mesmo crédito, que aos outros livros de que acabo de falar e pelos
quais temos tal respeito, que ninguém jamais foi tão atrevido para tentar tirar
ou acrescentar, ou mesmo modificar-lhes a mínima coisa. Nós os
consideramos como divinos, chamamo-los assim: fazemos profissão de
observá-los inviolavelmente e morrer com alegria se for necessário, para prová-
170
lo. [...] (JOSEFO, 1990, p. 712) (grifo nosso).
Podemos concluir que, no tempo de Josefo, o Antigo Testamento só possuía vinte e dois
livros, enquanto que, hoje, na Bíblia usada pelos católicos, ele possui quarenta e seis livros, e
na dos protestantes apenas trinta e nove livros.
Visando apenas completar as informações sobre Josefo, transcrevemos:
[…] Josefo oferece informações sobre o cânon de livros inspirados dos
judeus, cujo número diz reduzir-se a “somente 22” (Contra Apião 1,37-43). O
cânon conhecido por Josefo difere do da Bíblia hebraica no máximo em um
único livro, pela omissão do Ecl ou do Ct. (BARRERA, 199, p. 194) (grifo
nosso).
[…] Como, quando e quem já tinha concordado que eram especiais? Em
reação a esse ponto, só dispomos de um indício fragmentário, algumas
afirmações feitas por Josefo na década de 90 d.C.
Nelas, Josefo, comparava as escrituras judaicas com os muitos textos
conflitantes dos gregos: os judeus, dizia, ele, não tinham milhares de livros
inconsistentes, mas “apenas 22, que são devidamente reconhecidos e contêm os
registros de todos os tempos”. Ele não relacionava quais eram estes livros, mas
é certo que se referia aos cinco livros da lei, aos treze livros de história que
recuavam até a época de Artaxerxes (todos escritos, segundo acreditava ele,
pelos profetas) e aos quatro “livros de hinos a Deus e preceitos para a conduta
humana” (Salmos, provérbios e, presumivelmente, o Cântico dos Cânticos e o
Eclesiastes). Também conhecia outros livros além desses 22, mas os considerava
inferiores, embora fossem livros de história (não tinha sido escritos por
profetas). (FOX, 1996, p. 100-101) (grifo nosso).
Com isso, nós ficamos diante de uma nova encruzilhada: qual delas é a verdadeira? A
de Josefo, a dos católicos ou a dos protestantes? Optamos pela de Josefo.
Muito provavelmente temos no historiador, escritor e professor australiano Geoffrey
Norman Blainey (1930- ) a razão pela qual o Novo Testamento foi juntado ao Antigo, usado
pelo judaísmo:
Durante seus dois primeiros séculos de existência, o cristianismo enfrentou
um obstáculo: competia com religiões criadas havia muito tempo. Os romanos
tendiam a apreciar o antigo. Adoravam os deuses antigos. Sua admiração por
Homero, Platão e Aristóteles devia-se, em parte, ao fato de serem antigos. Os
romanos questionavam o seguinte: se o cristianismo continha uma verdade
vital, por que essa verdade não foi descoberta pelos grandes homens do
passado? Para vencer esse preconceito, os cristãos enfatizaram sua
ligação com a religião judaica, muito mais antiga. (BLAINEY, 2012, p. 43)
(grifo nosso).
Achamos bem plausível essa explicação de Blainey, que transcrevemos de sua obra
Uma breve História do Cristianismo.
Um ponto importante, que não podemos relegar à segundo plano, é o fato de saber se
Paulo, quando escrevia, estava pensando que suas cartas fariam parte das Escrituras. Sobre
isso vejamos o que Karen Armstrong (1944- ), estudiosa do judaísmo, do cristianismo e do
islamismo, diz:
[…] Paulo viajou muito na diáspora e fundou comunidades na Síria, na Ásia
Menor e na Grécia, determinado a disseminar o evangelho até os confins da
Terra antes que Jesus retornasse. Ele escreveu cartas a seus conversos,
respondendo às suas perguntas, exortando-os e explicando a fé. Paulo nem
por um instante pensou que fazia uma “Escritura”; como estava
convencido de que Jesus retornaria ainda durante a sua vida, nunca
imaginou que as gerações futuras estudariam cuidadosamente suas
epístolas. Era considerado um mestre consumado, mas tinha plena consciência
de que seu temperamento explosivo significava que não era apreciado em toda
171
parte. Contudo, suas cartas às igrejas de Roma, Corinto, Galácia, Filipos e
Tessalônica (29) foram preservadas, e, após sua morte, no início dos anos 60,
escritores cristãos que o reverenciavam escreveram em seu nome e
desenvolveram suas ideias em cartas às igrejas de Éfeso e Colossos, e
redigiram cartas supostamente póstumas dirigidas a Timóteo e Tito,
companheiros de Paulo.
______
(29) A autoria da primeira epístola aos tessalonicenses é discutida; talvez ela não tenha
sido escrita por Paulo.
(ARMSTRONG, 2007, p. 63-64) (grifo nosso).
Portanto, apoiar-se naquilo que, no Novo Testamento, se atribui a Paulo não é uma boa
alternativa para justificar-se a inspiração divina da Bíblia. E no caso especifico das cartas
dirigidas a Timóteo e a Tito, por terem sido escritas após a morte de Paulo, a única maneira de
preservar a autoria delas, como sendo de Paulo, é considerá-las como resultado de uma
psicografia, o que irá contrariar o dogma das igrejas cristãs sobre a impossibilidade de
comunicação com os mortos.
E para complicar ainda mais a situação, nem mesmo sabe-se, com segurança, quem
foram os autores de seus livros; incluindo os do Novo Testamento, mais recentes do que os da
Bíblia judaica:
[…] Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos
forjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é a Bíblia que estamos
falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, é isso o que
eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi
escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para
enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista
que representavam. (EHRMAN, 2010, p. 154) (grifo nosso)
"Não sabemos quem escreveu os evangelhos. Quando apareceram, eles
circularam anonimamente, e só mais tarde foram atribuídos a figuras
importantes da Igreja primitiva. (60) Os autores eram cristãos judeus, (61)
que escreviam em grego e viviam nas cidades helenísticas do Império Romano.
Eram não somente escritores criativos - cada um com suas tendências
particulares -, mas também redatores competentes, que editaram
materiais anteriores. Marcos escreveu por volta de 70; Mateus e Lucas no
final dos anos 80, e João no final dos anos 90. Os quatro evangelhos refletem o
terror e a ansiedade desse período traumático. […]
_______
(60) Fredricksen, Jesus, p. 19.
(61) Há uma crença muito difundida de que Lucas era gentio, mas não há prova
incontestável disso.
(ARMSTRONG, 2007, p. 71) (grifo nosso).
Se não temos certeza de quem, realmente, são os autores dos Evangelhos, como lhes
atribuir origem divina, a não ser por puro fanatismo religioso?
E quanto ao Novo Testamento como um todo, é oportuno transcrever o que Ehrman diz
de sua formação:
[…] Hoje, muitos cristãos podem achar que o cânon do Novo
Testamento simplesmente surgiu um dia, logo após a morte de Jesus...
nada mais distante da verdade. Tendo isso claro, podemos identificar a
primeira vez em que um cristão listou os vinte e sete livros do nosso
Novo Testamento – nem mais, nem menos. Por mais surpreendente que possa
parecer, esse cristão escrevia na segunda metade do século IV, mais ou
menos trezentos anos depois que os livros do Novo Testamento tinham
sido escritos. O autor foi um poderoso bispo de Alexandria chamado Atanásio.
No ano 367 E.C., Atanásio escreveu sua carta pastoral anual às igrejas
egípcias sob sua jurisdição e, nela, incluiu um conselho acerca de quais livros
deviam ser lidos como escritura nas igrejas. Ele relaciona vinte e sete livros,
com exclusão de todos os demais. Essa é a primeira instância que chegou ao
nosso conhecimento de alguém declarando que esse nosso conjunto de
172
livros era o Novo Testamento. Mas nem o próprio Atanásio resolveu a
questão de uma vez por todas. Os debates continuaram durante décadas,
durante séculos até. Os livros que hoje chamamos de Novo Testamento não
foram reunidos em um cânon e declarados Escrituras, em instância última e
final, sem que se passassem centenas de anos depois que os textos em si
tinham sido produzidos. (ERMAN, 2006, p. 46) (grifo nosso).
Certamente que se os livros, que compõem o Novo Testamento, foram escritos
trezentos anos antes de alguém citá-los como fazendo parte dele, muita coisa pode ter sido
mudada em relação ao que realmente aconteceu, pois é sabido que “quem conta um conto,
aumenta um ponto”.
Ademais, cabe-nos a pergunta: como foram escolhidos? Encontramos a resposta em
Pepe Rodríguez (1953- ), autor do livro Mentiras fundamentais da Igreja Católica, como a
Bíblia foi manipulada, do qual transcrevemos:
A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) e
ratificado no de Laodiceia (363). O modus operandi, ou o processo
utilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos, foi, segundo
a tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentados, de facto, quatro
versões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos: 1) depois de
os bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e foram
pousar-se sobre um altar; 2) puseram todos os evangelhos em competição
sobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não se
mexeram; 3) depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foi
pedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair ao
chão, o que não sucedeu com nenhum deles; 4) o Espírito Santo, na forma de
uma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bispo
sussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais os
apócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dos
bispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havido
grande oposição à selecção – por voto maioritário, que não unânime – dos
quatro textos canónicos actuais. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 68) (grifo nosso).
Seja lá qual tenha sido a forma de escolha, dentre as aqui apresentadas, não resta
dúvida que ela não teve como base nenhum critério técnico, apenas valeram-se da sorte. E é
nisso que acreditam ter sido inspirados... Como o fanatismo embota a inteligência das
pessoas, cegando-as completamente.
Diante de tudo isso, temos que ter muito cuidado ao tirar alguma coisa das Escrituras,
pois nem tudo que está lá é inspiração divina, conforme confirma-nos Paul Johnson (1928- ),
autor de História do cristianismo:
[…] o estudo dos textos escriturais, aplicando os novos métodos de análise
histórica e com auxílio da filologia e da arqueologia, revelaram as Escrituras
como uma coletânea de documentos muito mais complexa do que se havia
imaginado até então – um assombroso composto de alegorias e fatos, a
ser peneirado como qualquer outra peça de literatura antiga. (JOHNSON,
2001, p. 456) (grifo nosso).
Temos que abrir a mente para aceitar, pacificamente, essa triste realidade ou seremos
levados de roldão pelo maremoto causado pelas descobertas arqueológicas ou pelo resultado
da análise crítica dos textos bíblicos pelos especialistas.
Essa passagem foi retirada da segunda carta a Timóteo, cuja autoria alguns exegetas
ainda atribuem a Paulo. A nossa pesquisa, entretanto, nos remete a uma outra hipótese. O que
julgamos importante dela é que constatamos que não foi só um crítico quem colocou, sob
sérias dúvidas, essa suposta autoria de Paulo. É o que passaremos a ver a partir de agora.
O primeiro da lista é Ernest Renan (1823-1892), filósofo e historiador, que, na sua obra
sobre a vida apostólica de Paulo, disse:
173
[...] Imperfeitas e pesadas são as Epístolas apócrifas do Novo
Testamento, por exemplo as escritas a Tito e a Timóteo; [...]
[...] Cabe destacar ainda que Márcion, que em geral também se inspirou na
crítica dos textos de Paulo e que repudiava com convicção as Epístolas a
Tito e a Timóteo, admitira sem contestar, na sua compilação, as duas Epístolas
citadas. [Colossenses e Efésios]. (RENAN, 2004a, p. 17) (grifo nosso).
Sobram as duas Epístolas a Timóteo e a Epístola a Tito. Grandes obstáculos
oferece a autenticidade destas três epístolas. Eu as considero como
peças apócrifas. Para o provar, poderia demonstrar que a linguagem destes
três textos não é a de Paulo; poderia destacar uma quantidade de períodos e de
expressões ou exclusivamente próprias ou particularmente utilizadas pelo autor
que, sendo características, deveriam encontrar-se em proporção análoga nas
outras epístolas de Paulo, o que não acontece. Além disso, faltam-lhes outras
expressões, que são como a assinatura de Paulo. Poderia principalmente mostrar
que estas epístolas contêm um elevado número de detalhes que não se
apropriam ao autor suposto, nem aos supostos destinatários. (36) A habitual
característica das cartas elaborada com uma intenção doutrinária é a de que o
falsário vê o público sobre a cabeça do destinatário e escreve a este coisas
muito conhecidas, muito familiares, mas que o falsário pretende fazer
conhecidas do público. As três epístolas que discutimos têm, num grau elevado,
esta característica. (37) Paulo, cujas cartas autênticas são tão especiais, tão
precisas, Paulo que, acreditando num fim do mundo próximo, nunca supõe que
virá a ser lido através dos séculos, teria sido aqui um pregador geral,
despreocupado com o seu correspondente para lhe fazer sermões que não
tinham nenhuma relação com ele e dirigir-lhe um pequeno código de disciplina
eclesiástica, considerando o futuro. (38) Mas estes argumentos, que por si só
seriam decisivos, posso perfeitamente dispensá-los. Para provar a minha tese,
utilizarei apenas argumentos que o sejam por assim dizer materiais; procurarei
demonstrar que não existe maneira destas epístolas encaixarem-se nem no
quadro conhecido nem no quadro provável da vida de Paulo. Inicialmente muito
importante é a semelhança perfeita destas três epístolas entre si, semelhança
que nos impede a admiti-las como autênticas ou a repeli-las como apócrifas. As
particularidades que as distinguem profundamente das outras epístolas de Paulo
são as mesmas. As expressões pouco usuais ao estilo de Paulo, encontram-se
por igual em todas as três. As imperfeições, que tornam a sua linguagem
indigna de Paulo, são idênticas. É esquisito que cada vez que Paulo escreve aos
seus discípulos, se esqueça da sua maneira corriqueira, caindo nas mesmas
divagações, nas mesmas bobagens. As próprias ideias dão lugar a uma
observação análoga.
As três epístolas estão repletas de conselhos vagos, exortações
morais de que Timóteo e Tito, familiarizados por um comércio cotidiano
com as ideias do apóstolo, não tinham nenhuma necessidade. Uma
espécie de gnosticismo são os erros que nelas se combatem. Nas três epístolas
a preocupação do autor não muda; reconhece-se a ideia obsidiante e incansável
de uma ortodoxia já formada e de uma hierarquia já desenvolvida. Muitas vezes
os três escritos repetem-se entre si (39) e copiam as outras epístolas de Paulo.
(40) Sem dúvida que, se estas três epístolas foram ditadas por Paulo, todas são
de um determinado período da sua vida, (41) distante em muitos anos do tempo
em que redigiu as outras epístolas. Qualquer hipótese que coloque entre estas
três epístolas um intervalo de três ou quatro anos, por exemplo, ou que coloque
entre elas algumas das outras epístolas, deve ser repudiada inteiramente. Existe
apenas uma única hipótese para explicar a semelhança das três epístolas entre
si e a sua dessemelhança com as outras, ou seja, que é a de que foram escritas
num espaço de tempo muito curto e muito tempo após as outras, numa época
em que todas as circunstâncias que rodeavam o apóstolo tinham mudado, tendo
ele envelhecido e alterado as suas ideias e o seu estilo. A possibilidade de provar
essa hipótese, não significa que se resolva a questão. O estilo de um homem
pode mudar; mas de um estilo o mais impressionante e inimitável que nunca
existiu, não se passa para um estilo prolixo e sem vigor. (42) Além disso, tal
hipótese é formalmente destruída pelo que nós conhecemos, com segurança, da
vida de Paulo. A seguir, isso será demonstrado.
______
36 Por exemplo, as direções solenes (confronte-se com Filém., 1; e contudo Paulo era
menos amigo de Filémon do que de Tito e Timóteo); as longas dissertações que Paulo faz
sobre o seu apostolado (I Tim., I, 11 e seg.; II, 7), dissertações que, sendo dirigidas a um
174
discípulo, são completamente inúteis; a enumeração das suas virtudes (II Tim., 10,11); a
sua convicção na salvação final (II Tim. IV, 8; cf. I Cor., IV, 3-4; IX, 27) I Tim., I, 13, é
bem do estilo de um discípulo de Paulo. I Tim., II, 2, não pode explicar-se nos últimos
anos de Nero; devia ser escrito depois da proclamação de Vespasiano. Ibid. V, 18,
encontra-se aí citada com graphé uma passagem de Lucas, X,7: ora o Evangelho de Lucas
não existia, pelo menos como graphé, antes da morte de Paulo. Por fim a organização das
igrejas, a hierarquia, o poder presbiterial e episcopal são, nessas epístolas, muito mais
desenvolvidos do que seria natural supor nos últimos anos da vida de Paulo (ver. Tit. I,5 e
seg. etc.; Timóteo recebeu as insígnias espirituais pela imposição das mãos do colégio dos
padres de Listres: I Tim., IV,14). A doutrina sobre o casamento I Tim., II, 15; IV,3: V,14
(cf. III, 4,12; V,10) é também de uma época mais atual e está em contradição com I Cor.,
VII, 8 e seg., 25 e seg. O destinatário das Epístolas a Timóteo supõe-se em Éfeso; por que
não se encontra nestas epístolas nenhuma comissão, nenhuma saudação específica para
os efésios?
37 Observe-se, por exemplo, II Tim., III,10-11, ou melhor, I Tim., I,3 e seg., 20; Tit., I,5 e
seg., e a menção de Pôncio Pilatos, I Tim., VI, 13 etc.
38 Destaca-se a insignificância da passagem I Tim., III, 114-115, que procura mostrar
razão destas inúteis ampliações.
39 Compare-se I Tim., I,4; IV,7; II Tim., II,23; Tit., III,9; I Tim. III, 2; Tit., I,7; I Tim.,
IV,1 e seg., II Tim., III, 1 e seg.; I Tim., II,7; II Tim., I,11. Observe-se a analogia na
maneira de introduzir no assunto. I Tim., 1,3, e Tit. I, 5.
40 II Tim., I,3 (Rom., I,9), 7 (Rom., VIII,15); II,20 (Rom., IX, 21); IV, 6 (Fil., I,30; II,17;
III, 12 e seg.).
41 Nas duas epístolas que lhe são dirigidas observe-se que Timóteo figura como um
homem ainda jovem: I Tim., IV,12; II Tim., II,22.
42 Apesar de Lamennais ter mudado muito, o seu estilo manteve sempre a mais perfeita
unidade.
(RENAN, 2004a, p. 24-26) (grifo nosso).
Na sequência, Renan faz considerações sobre estas epístolas de Paulo, demonstrando
que, pelas características e pelo conteúdo, não podem ser mesmo desse autor bíblico.
Vejamos também o que Robin Lane Fox (1946- ), escritor e professor de História
Antiga, disse:
[...] as duas epístolas a Timóteo são postas sob suspeita pelo estilo, e são
por fim desautorizadas por seu conteúdo e por sua localização (um bispo único;
a falta de conhecimento de Timóteo e sua descrição descabida dos
acontecimentos que o cercavam). Seus autores foram muito ousados em
sua falsificação. “Pedro, apóstolo de Cristo”, “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus”,
é como se dizem chamar. Talvez estivessem escrevendo o que achavam que
Pedro e Paulo “devessem” ter escrito, mas ainda assim mentiram para seus
leitores. Se a Primeira Epístola a Timóteo é obra do século II, bem podia estar
levando em conta o terceiro Evangelho quando cita o texto sobre “o salário do
trabalhador”. Também atribuída a Paulo um texto enfático contra a ordenação
das mulheres: “Pois não permito que a mulher ensine, nem tenha domínio sobre
o homem, mas que esteja em silêncio” (I Timóteo 2:12).
É a Segunda Epístola a Timóteo que contém o texto que os fundamentalistas
tanto idealizam: “Toda escritura é divinamente inspirada e proveitosa para
ensinar, para repreender, para corrigir” (II Timóteo 3:16). A tradução é
discutível, bem como a autoridade do texto. Isto dá uma boa ideia das
complexidades envolvidas na veracidade da Bíblia: o texto que foi
indevidamente empregado em apoio de uma visão literal da inspiração
divina de toda a Bíblia é, ele próprio, obra de um autor que mentiu sobre
sua identidade. (FOX, 1996, p. 125-125) (grifo nosso).
Agora iremos ver, para ampliar a abrangência de nossa pesquisa, o que dizem alguns
tradutores bíblicos, pessoas com inegáveis conhecimentos sobre a Bíblia, cujos pensamentos
destacamos:
As cartas a Timóteo e a Tito são dirigidas a dois dos mais fiéis discípulos de
Paulo (At 16,14; 2Cor 2,13). Elas dão diretivas para a organização e conduta
das comunidades confiadas a eles. É por isso que se tornou costumeiro, desde o
século XVIII, chamá-las “pastorais”. Essas cartas divergem de maneira
significava de outras cartas paulinas. Há considerável diferença de
vocabulário. Muitas das palavras comuns em outras epístolas desapareceram, e
175
há também uma proporção muito maior de palavras não usadas em outro lugar
por Paulo. O estilo não é mais apaixonado e entusiasta, mas mitigado e
burocrático. O modo de resolver problemas mudou. Paulo simplesmente condena
falso ensinamento em lugar de argumentar persuasivamente contra ele.
Finalmente, é difícil situar essas cartas na vida de Paulo, assim como é
conhecida dos Atos dos apóstolos. É compreensível, portanto, que a
autenticidade das pastorais seja disputada.
Muitos explicam as diferenças postulando um Paulo mais velho, que deve ter
dado muito mais espaço a um secretário (possivelmente Lucas, 2Tm 4,11) e
levando em conta que nada conhecemos da vida de Paulo subsequente à sua
libertação da prisão em Roma. Igual número de estudiosos rejeitam tais
argumentos como subjetivos demais, e sustenta que as pastorais foram
compostas por um discípulo de Paulo no fim do século I para tratar de
problemas de uma igreja muito diferente. Embora não impossível em si mesma,
esta hipótese não é sustentada por qualquer evidência de que cartas pseudoepigráficas fossem comuns e aceitáveis. 2Ts 2,2 e Ap 22,18 mostram que os
primeiros cristãos viam a necessidade de distinguir entre escritos autênticos e
forjados. Uma posição intermediária entre esses dois extremos defende-a por
uma minoria que acredita que um leal seguidor de Paulo herdou três cartas que
Timóteo e Tito conservaram até sua morte. Ele então expandi essas cartas,
acrescentando o que pensava que seria dito por Paulo diante das circunstâncias
mudadas da igreja. As pastorais então não são do Apóstolo, mas contêm
fragmentos paulinos autênticos (p.e., 2Tm 1,15-18; 4,9-15; Tt 3,12-14). A falta
de concordância sobre a extensão e número dos fragmentos é uma séria
fraqueza dessa hipótese, que também falha em prover qualquer evidência
contemporânea desta pratica editorial postulada.
A natureza insatisfatória de todas as hipóteses correntes sugere que poderia
ter sido um engano tratar as pastorais como um bloco unificado. Nessa
aproximação, observações e afirmações são confusas. O que é visto como
verdadeiro para uma carta é afirmado como válido para as outras duas. O
exame minucioso, porém, revela que 1Tm e Tt são mais próximas um da outra
do que ambas a 2Tm. Se a última é considerada separadamente, não há
objeções convincentes de elas terem sido escritas por Paulo. Dirigidas a
indivíduo, sua divergência em relação a epístolas dirigidas a igrejas tem seu
paralelo nas diferenças entre as cartas de Inácio à igreja de Esmirna e ao seu
bispo, Policarpo. Uma vez que se reconheça que 2Tm 4,6 não é referência à
morte próxima, 2Tm se coloca naturalmente dentro do último período da prisão
de Paulo em Roma (At 28,16s), quando olhava para a liberdade.
Se 2Tm é aceita como autêntica, o isolamento de 1Tm e Tt no corpus paulino
torna-se cada vez mais marcante. Em particular elas desenvolvem uma visão do
ministério que contrasta vividamente com o ethos missionário dinâmico de Paulo
(1Ts 1,6-8; Fl 2,13-16. Predomina um conceito burguês pela respeitabilidade e
aceitação, 1Tm 2,1-2; 6,2; Tt 3,1-2), e as qualidades dos ministros são as
requeridas de todos os burocratas (1Tm 3,1-13; Tt 1,5-9). Deste modo houve
uma evolução definida nas igrejas paulinas. Uma igreja entusiástica radiante
com o Espírito tornou-se um cômodo lar. Todavia, embora a liderança
carismática tenha dado caminho á direção institucional, não há evidência do tipo
do episcopado monárquico atestado por Inácio de Antioquia. A autoridade na
igreja é colegial, e os “bispos” (1Tm 3,22-5), têm as mesmas funções que os
“anciãos” (1Tm 5,17). Cada “ancião” precisa ter as qualidades de “bispo” (Tt
1,6-9). Assim, 1Tm e Tt não deveriam ser datadas muito tardiamente no
primeiro século. (Bíblia de Jerusalém, Introdução às Epístolas de Paulo, p. 19631964).
“Epístolas pastorais” é o nome dado aos escritos dirigidos a Timóteo e a Tito,
companheiros de missão de Paulo. A expressão caracteriza bem a natureza
destas cartas, desde o II século atribuídas a Paulo. Elas contêm instruções e
exortações sobre o reto desempenho do ministério pastoral nas comunidades,
sobre a organização da Igreja e a luta contra as heresias. As três epístolas
foram escritas na mesma época e pelo mesmo autor.
[...]
É difícil enquadrar estes dados na vida de Paulo como nos é
conhecida dos Atos e de suas epístolas autênticas. Agora Paulo está
algemado (2,9), enquanto na primeira prisão em Roma vivia em prisão
domiciliar (At 28,16). Clemente Romano e o Cânon de Muratori admitem que
Paulo, depois da primeira prisão romana, pregou na Espanha por certo tempo,
176
foi novamente preso e por fim martirizado em Roma. Ora, as epístolas pastorais
supõem viagens de Paulo no Oriente após a prisão romana (61-63). Este quadro
histórico depõe contra a autenticidade das Pastorais. Além do mais, a
teologia, a linguagem e o estilo, a organização da Igreja e a luta contra
as heresias dificilmente se coadunam com o que sabemos de Paulo a
seu tempo. A hipótese de um secretário ter redigido as epístolas enquanto
Paulo estava preso a segunda vez em Roma, ou de que nestas epístolas temos
fragmentos autênticos, são insuficientes para afastar as sérias objeções da
crítica contra a autenticidade das Pastorais.
O mais provável é que o seu autor não seja um discípulo imediato de
Paulo, mas um admirador da segunda ou da terceira geração cristã.
Segundo o costume da literatura helenística e judaica da época, produziu estas
cartas pseudônimas, atribuindo-as a Paulo a quem considerava o maior dos
apóstolos. O motivo que o levou a escrever foi o desejo de ser fiel ao evangelho
pregado pelo grande apóstolo, diante da ameaça das heresias e da necessidade
de organizar bem as comunidades a fim de esconjurar os perigos para a fé
apostólica. Neste sentido a 1Tm e Tt podem ser vistas como a primeira
constituição eclesiástica, e a 2Tm como o discurso de despedida, ou o
testamento espiritual de Paulo às vésperas de seu martírio. A data de
composição pode ser colocada pelo ano 100. (Bíblia Sagrada Editora Vozes, As
Epístolas Pastorais, p. 1407) (grifo nosso).
Introdução
[...]
Supôs-se que as cartas fossem de Paulo, e acreditou-se nisso durante
séculos. Porém surgiu a crítica dos estudiosos e, com ela, a dúvida, como
indicam as passagens em que Paulo fala de si na primeira pessoa (p. ex. 1Tm
1,11.12-16; 2Tm 4,6-8.16-18 etc.)
Autenticidade
As razões contra a autenticidade são fortes; referem-se à linguagem,
à mentalidade, à situação proposta, e afetam as três cartas como corpo.
a) O vocabulário. Segundo um cálculo cuidadoso, de 848 palavras que as três
cartas usam, 306 não aparecem no resto do chamado corpo paulino, 175 não
constam no resto do NT; faltam palavras típicas do vocabulário paulino, outras
frequentes escasseiam, algumas mudam de significado; díkaios significa
honrado, pístis é um corpo de doutrina. Estilo: apararam-se a vivacidade, a
paixão e o movimento; não argumenta para provar seu ensinamento; predomina
uma tonalidade pacata e suave. A língua grega é mais depurada, mais próxima
do grego helenístico.
b) Mentalidade. A preocupação central das três cartas é garantir as igrejas
como instituição, conservar o ensinamento tradicional e defender-se das
ameaças de desvio doutrinal. Para isso é preciso nomear chefes competentes e
confiáveis, manter a ordem e a concórdia, regular o culto. O autor repete o
adjetivo “são/sã” para referir-se à ortodoxia, fala da “verdade”, repete que
“alguns se afastaram de...” Ao ímpeto de evangelizar sucede aqui o esforço por
manter.
c) O quadro em que as cartas se inserem não combina com o que sabemos
por outras informações de Paulo. Se o apóstolo vai morrer em breve (2Tm 4,58), como pode chamar Timóteo de jovem (1Tm 4,11)? O ancião deverá ter saído
da sua prisão romana para retomar sua atividade no Mediterrâneo oriental.
Essas razões somadas são mais fortes, mas não determinantes. Os
defensores da autenticidade as rebatem, principalmente com evasivas; que com
os anos o vigor e a combatividade de Paulo amainaram; que um tema diferente
exigia uma linguagem nova; que se valia de um secretário redator; que seu
pensamento tinha evoluído. E que em nossa informação sobre a atividade de
Paulo há importantes lacunas, e aí as cartas poderiam encaixar-se. As réplicas
são fracas: um ancião muda radicalmente de vocabulário? Esquece seus temas
preferidos?
Teorias sobre o autor
Aceitando como mais provável a não autenticidade das três cartas,
pensa-se que é um discípulo imediato ou mediato, da geração seguinte.
Recorre à pseudonímia, procedimento corrente naquela época. Dá às suas
instruções a forma de carta, escolhendo como destinatários dois insignes
personagens do círculo paulino. Aceitamos que pôde utilizar material original do
177
apóstolo. Provavelmente sentia-se herdeiro legítimo de Paulo; talvez os rivais
citassem Paulo, deformando seu ensinamento.
Não faltou a teoria de um compilador que teria composto e dado forma às
três cartas com fragmentos autênticos do apóstolo.
Nada do que foi dito diminui o valor canônico das Pastorais. São parte
integrante do NT, reconhecida sempre por todas as confissões religiosas. [...]
A data de composição seria o final do séc. I ou começo do séc. II. (Bíblia do
Peregrino, Introdução - Primeira e segunda carta a Timóteo e carta a Tito, p.
2847-2848) (grifo nosso).
Assim, por mais três fontes diferentes, chegamos à mesma conclusão de que a Epístola,
em que se encontra o passo citado, visando tornar evidente a inspiração bíblica como sendo
divina, não é de Paulo.
À guisa de informação, detalhamos: Bíblia do Peregrino versão do Pe. Luís Alonso
Schökel (1920-1998), contou com uma equipe de quatorze colaboradores; Bíblia Sagrada Ed.
Vozes, coordenação geral Ludovico Garmus (1939- ), junto com mais onze pessoas, entre
tradutores e revisores, e a Bíblia de Jerusalém, em cujo corpo, composto de católicos e
protestantes, havia três coordenadores e um número de dezoito tradutores/revisores. Como se
vê é uma quantidade respeitável de pessoas envolvidas, cuja competência não poder-se-á ser
colocada em dúvida.
Em nosso estudo, deparamos com essa frase escrita de duas maneiras diferentes, as
quais transcrevemos apenas o início, porquanto, é ele o que nos interessa neste momento:
“Toda Escritura é inspirada por Deus é útil para instruir, [...]”
“Toda Escritura divinamente inspirada, é útil para ensinar, [...]”
A primeira frase é encontrada nas Bíblias pelas versões Mundo Cristão, Traduções Novo
Mundo, Santuário, Vozes, Ave Maria e Paulus: de Jerusalém, do Peregrino e Pastoral e a
segunda pelas versões Barsa, Loyola, Paulinas, SBB.
A equipe de tradutores da Bíblia de Jerusalém, que sabemos ter sido composta de
exegetas católicos e protestantes, informa-nos (p. 2077) que, na Vulgata, ela se encontra
dessa forma:
“Toda Escritura, inspirada por Deus, é útil.”
É interessante observar a mudança na redação dessa frase, porquanto dizer que “Toda
Escritura é inspirada por Deus” é uma coisa bem diferente daquilo que se quer afirmar dizendo
“Toda Escritura divinamente inspirada”. A ideia que se passa nessa última frase é que existem
outras Escrituras, porém não inspiradas. Ora, isto vai ao encontro da afirmação de Paulo (e da
conclusão apresentada pelos vários biblicistas citados), viabilizando-a como a de maior chance
de ser a mais próxima do original. Isso agora compromete os próprios tradutores bíblicos,
deixando-nos a crer na possibilidade de que mais lhes preocupavam eram suas ideias do que a
dos autores aos quais traduziam.
A afirmação pela frase de que “Toda Escritura é inspirada por Deus”, aproxima-se
daquilo que Faria, denominou de “raciocínio do '8 ou 80'”, no caso, por conta do significado da
palavra “toda” nesta frase.
Não podemos deixar de mencionar que há um passo que pode muito bem ser usado
para defender a ideia de que, pelo menos, as cartas de Paulo faziam parte das Escrituras;
vejamo-lo primeiro pela versão da Bíblia de Jerusalém:
2Pe 3,16: “Isto mesmo faz ele em todas as cartas, ao falar nelas desse tema. É
verdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que os
ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras (d), para a
própria perdição”.
Em nota explicam-nos, os tradutores:
(d) Lit.; “o resto das Escrituras”, com o que se compra a compilação feita e
conhecida dessas cartas. Temos aqui um dos primeiros indícios de
178
equivalência entre os escritos cristãos e os livros do AT (cf. 1Mc 12,9+,
1Rs 5,27+). (Bíblia de Jerusalém, p. 2124) (grifo nosso).
Ao verem algo que parece justificar pontos defendidos pelas Igrejas, os nobres
tradutores não levaram em conta fatos importantes que podem derrubar, e de fato derrubam,
aquilo que querem defender como verdade, conforme iremos ver.
Estranhamos o fato de alguma obra ser considerada “Escritura”, pois todas as vezes que
o termo Escrituras foi usado se refere ao Antigo Testamento, o que podemos corroborar com
Geza Vermes:
[...] Finalmente, as cartas de Paulo, que já formavam um corpo literário, são
chamadas de “Escrituras” (3:15-16). Em todos os outros livros do Novo
Testamento, e mesmo no cristianismo posterior, só o Velho Testamento
ostenta este título. (VERMES, 2006, P. 137) (grifo nosso).
Isso nos remete à conclusão que tal fato pode ter sido construído depois, possivelmente
algum copista tentando referendar as cartas de Paulo como também inspiradas.
Por outro lado, os que ainda quiserem continuar aceitando o passo de Paulo a Timóteo
(2Tm 3,16-17), devem ser pelo menos coerente, e considerar como Escritura inspirada apenas
o Antigo Testamento.
Em qualquer estudo de textos bíblicos é prudente vermos como constam em outras
Bíblias o texto que queremos analisar, pois, geralmente, encontraremos coisas bem
interessantes.
Temos em mãos três Bíblias da Edições Paulinas (1957, 1977 e 1980), tradução de Pe.
Matos Soares, das quais iremos transcrever o teor:
2Pe 3,16: “Como também (faz) em todas as suas cartas, em que fala disto, nas quais
há algumas coisas difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes adulteram
(como também as outras Escrituras) para usa própria perdição”. (Bíblia Sagrada
Paulinas 1977, p. 1333; 1980, p. 1333).
O texto das três seria idêntico, não fosse o da edição mais antiga (1957), ter a mais a
expressão “(na fé)”, entremeio as palavras “inconstantes” e “adulteraram”; mas isso é
insignificante e nem vem mesmo ao caso. O que queremos destacar é que um dos trechos que
está em parênteses, mais especificamente o seguimento “como também as outras
Escrituras”. Um texto bíblico colocado entre parênteses, geralmente, ocorre porque se trata
de glosa (Bíblia de Jerusalém, p. 15), que é entendida como:
GLOSA. Diz-se de um texto, em geral de poucas palavras, que não
pertence à obra original do autor mas foi acrescentado por outros
(glosadores). A finalidade de uma glosa é explicar o texto existente.
Inicialmente as glosas eram escritas à margem do texto. Mais tarde os copistas
as introduziram no próprio texto. As modernas edições críticas dos textos
originais, que são a base para as traduções vernáculas modernas, procuram
eliminar tais glosas. (Bíblia Vozes, p. 1525) (grifo nosso)
Comparando-se o texto da Edições Paulinas com o da Bíblia de Jerusalém, vemos que a
glosa já não é mais colocada entre parênteses, passando a fazer parte do texto. Ora, isso é
querer levar o leitor a acreditar como inspirado um texto que é obra de um copista piedoso.
Em razão disso, não teria nenhum sentido pegar esse passo de Pedro, pois dele
baseiam-se numa glosa, ou seja, um acréscimo, para justificar que as cartas de Paulo já tinha
“características” de Escrituras. Um exemplo disso é o que consta nesta nota:
16. As outras Escrituras: significa que no tempo do autor desta carta pelo
menos um grupo de cartas paulinas Já era considerado de valor igual ao
dos outros livros da Escritura. Este é "um versículo muito importante, pois
contém em germe a doutrina da inspiração e da canonicidade do Novo
179
Testamento e, em segundo lugar, a regra hermenêutica que condena o livre
exame na interpretação dos textos sagrados. Pedro mostra que conhece
certo número de cartas paulinas e em parte as supõe conhecidas dos leitores.
Isto nos deixa perceber que nas igrejas eram recolhidos como sagrados os
escritos dos Apóstolos. É o começo da história da Cânone neotestamentário' (G.
Saldarini). (Bíblia Sagrada – Paulinas, 1977, p. 1333) (grifo nosso).
Se, como disse Pe. Matos Soares, a regra de hermenêutica condena o livro exame, há
também que se considerar, no mínimo, o contexto histórico bem como a origem e autoria do
texto para, primeiramente, termos certeza se é autêntico ou não. O que temos encontrado é
afirmações de que exegetas modernos não aceitam a Segunda carta de Pedro como autêntica.
A título de exemplo, transcrevemos:
[…] Mas há outras complicações que põem em dúvida a autenticidade e
sugerem data mais tardia. A linguagem apresenta notáveis diferenças em
relação a 1Pe. Todo o cap. 2 é retomada, livre mas patente, da epístola de
Judas. A coleção das epístolas de Paulo parece já formada (3,15s). O grupo
apostólico é posto em paralelo com o grupo profético e o autor fala como se não
fizesse parte deles (3,2). Estas dificuldades autorizam certas dúvidas que
surgiram desde a antiguidade. Não apenas o uso da epístola não é atestado
com certeza antes do séc. III, mas também alguns a rejeitaram, como o
testemunham Orígenes, Eusébio e Jerônimo. Além disso, muitos críticos
modernos recusam-se, por sua vez, a atribuí-la a são Pedro, e é difícil
não lhes dar razão. […] (Bíblia de Jerusalém, p. 2105) (grifo nosso).
O autor se identifica como “Simão Pedro” (1,1) e “testemunha” de Cristo
(1,16-18). Mas, ao contrário da 1Pd que foi logo aceita como autêntica e
canônica, sobre a 2Pd já na Igreja antiga pairaram dúvidas devido à
grande diferença de linguagem entre as duas epístolas. A tardia
aceitação da epístola pelas igrejas orientais e ocidentais (Séc. V/VI) e a
sua dependência da epístola de Judas, composta após a morte de S.
Pedro, levou a maioria dos exegetas a negar a autenticidade da 2Pd.
(Bíblia Vozes, p. 1439) (grifo nosso).
A Segunda Epístola de Pedro, longe de ser uma obra do apóstolo mais
antigo de Jesus, é provavelmente a composição mais recente do Novo
Testamento, datada de 125 d.C., senão depois. A análise literária mostra
que foi composta depois da Epístola de Judas (escrita por volta de 100
d.C.), pela qual foi visivelmente influenciada. Além disso, o documento
evidencia um desencanto conspícuo nas fileiras dos fiéis, causado pela
prolongada demora do retorno de Jesus. O próprio autor não esperava
testemunhar a Parusia (2Pd 1:14-15). As alusões a uma massa de falsos
ensinamentos indica um crescimento do gnosticismo, o que aponta para o século
II. […] (VERMES, 2006, P. 137) (grifo nosso).
O que não entendemos é o fato de mesmo sabendo que o autor da carta não é Pedro,
por que motivo ainda a consideram inspirada? A culpa disso, certamente, é o dogmatismo,
que, infelizmente, não deixa as pessoas enxergarem as coisas de um outro ângulo, pelo qual
poder-se-ia descobrir o que é realmente verdadeiro ou não.
O que se percebe dos que se apressam em apontar textos da Bíblia, para justificar sua
origem divina, é que não se dão ao trabalho de pesquisa, não analisam nada. E questionar?
Nem pensar! Já que, para eles, tudo que lá se encontra é absolutamente verdadeiro. É claro
que, diante dessa premissa, certamente não conseguirão ver nenhum erro ou contradição, por
mais óbvios que sejam.
Apenas cabe-nos apresentar alguma coisa visando a corroborar tudo quanto foi
colocado anteriormente, já que, pela consistência e coerência, inclusive, quanto ao número
significativo de exegetas envolvidos nas traduções, revisões e estudos bíblicos aqui citados,
nos alinhamos com as opiniões mostradas neste estudo
Começaremos por um questionamento bem simples: será que o termo “Escritura”, dito
por Paulo, se refere à Bíblia como um todo? A resposta iremos encontrar na explicação ao
passo 2Tm 3,15-16: “Neste tempo, o NT estava ainda em período de gestação. Por isso, o
termo 'Escrituras' refere-se, em concreto aos livros do AT”. (Bíblia Sagrada Edição Santuário,
180
p. 1768). Isso é um golpe mortal naquilo que se apresenta como forte indício da inspiração
divina ser “capa a capa”. Mas estaria essa informação coerente com os textos bíblicos? Sim,
pois Paulo foi, acima de tudo, um ferrenho defensor do Evangelho e que, ao mesmo tempo,
combatia a Lei.
Pode-se, por exemplo, vê-lo, num corpo a corpo, contra a circuncisão, ritual judaico,
contido no Antigo Testamento (Lv 12,3) que determinava que todos os meninos deveriam ser
circuncidados, aos oito dias de nascido. Isso era aplicado, talvez por analogia, aos convertidos
não procedentes do judaísmo. Assim é que, nos primórdios do cristianismo, queriam aplicar
essa lei aos que se convertiam a essa nova crença; mas que ainda não haviam sido
circuncidados. A atitude de Paulo, quanto a isso, foi radical: “De resto, cada um continue
vivendo na condição em que o Senhor o colocou, tal como vivia quando foi chamado. É o que
ordeno em todas as igrejas. Alguém foi chamado à fé quando já era circuncidado? Não procure
disfarçar a sua circuncisão. Alguém não era circuncidado quando foi chamado à fé? Não se
faça circuncidar. Não tem nenhuma importância estar ou não estar circuncidado. O que
importa é observar os mandamentos de Deus” (1Cor 7,17-19).
Seu combate à legislação mosaica ainda poderá ser visto em:
Rm 7,4-6: “Meus irmãos, o mesmo acontece com vocês: pelo corpo de Cristo, vocês
morreram para a Lei, a fim de pertencerem a outro, que ressuscitou dos mortos, e
assim produzirem frutos para Deus. De fato, quando vivíamos submetidos a instintos
egoístas, as paixões pecaminosas serviam-se da Lei para agir em nossos membros, a
fim de que produzíssemos frutos para a morte. Mas agora, morrendo para aquilo que
nos aprisionava, fomos libertos da Lei, a fim de servirmos sob o regime novo do
Espírito, e não mais sob o velho regime da letra”.
Gl 2,21: “Portanto, não torno inútil a graça de Deus, porque, se a justiça vem
através da Lei, então Cristo morreu em vão”.
E o próprio Jesus, também estabelece essa divisão, entre a nova lei e a lei mosaica,
quando disse que “a Lei e Profetas vigoraram até João” (Lc 16,16), ou seja, esse foi o período
– de Moisés a João Batista -, no qual ela teve valor como regra religiosa, depois, só aquilo que
estiver relacionado à missão de Jesus que foi a de implantar o Evangelho. Essa sim, foi a
grande preocupação de Paulo, conforme, para exemplo, podemos ver nessas passagens:
Rm 1,1: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo e escolhido para
anunciar o Evangelho de Deus,”
Rm 1,16: “Não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para a
salvação de todo aquele que acredita, do judeu em primeiro lugar, mas também do
grego”.
Rm 10,16: “Mas, nem todos obedeceram ao Evangelho. Isaías diz: 'Senhor, quem
acreditou em nossa pregação?'"
Rm 15,16: “Sou ministro de Jesus Cristo entre os pagãos, e a minha função sagrada
é anunciar o Evangelho de Deus, a fim de que os pagãos se tornem oferta aceita e
santificada pelo Espírito Santo”.
1Cor 1,17: “De fato, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar o
Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil a
cruz de Cristo”.
1Cor 9,16: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; pelo contrário, é
uma necessidade que me foi imposta. Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!”.
1Cor 15,2: “É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem do
modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.
Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a Palavra da verdade, o Evangelho que
os salva [...]”
181
2Ts 1,6-8: “Deus fará o que é justo: vai mandar tribulações para aqueles que os
oprimem, e a vocês, que são agora oprimidos, como também a nós, ele dará descanso,
quando o Senhor Jesus se manifestar. Ele virá do céu com seus anjos poderosos, em
meio a uma chama ardente. Virá para vingar-se daqueles que não conhecem a Deus e
não obedecem ao Evangelho do Senhor Jesus”.
Deixaremos aos que, porventura, ainda queiram alegar que Paulo pregava a validade
das “Escrituras”, como um todo, o ensejo de nos apresentarem as passagens em que ele
estaria dando essa orientação. Nem mesmo a podemos considerar como sendo toda a
revelação divina, pois Cristo não deixou dúvida quanto a isso ao afirmar: “Tenho ainda muito
que vos dizer, mas não podeis agora suportar” (Jo 16,12), reservando, portanto, para o futuro
outras revelações, quando passariam a ter melhores condições de assimilá-las.
E, para finalizar, vemos que todas as opiniões, que citamos neste estudo, a respeito de
serem outros os autores das epístolas mencionadas, são, de fato, coerentes, o que poderemos
confirmar com o próprio Paulo que reclamara sobre isso; vejamos:
2Ts 2,1-3: Agora, irmãos, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e ao nosso
encontro com ele, pedimos a vocês o seguinte: não se deixem perturbar tão facilmente!
Nem se assustem, como se o Dia do Senhor estivesse para chegar logo, mesmo que
isso esteja sendo veiculado por alguma suposta inspiração, palavra, ou carta
atribuída a nós. Não se deixem enganar de nenhum modo!
Assim, não há alternativa mais coerente, senão aquela de aceitar a hipótese levantada
por Renan de que as três cartas pastorais (as duas a Timóteo e uma a Tito) são, sem dúvida
alguma, apócrifas. A consequência disso é que, por tabela, a pessoa encarregada de escolher
os livros para comporem a “Vulgata”, S. Jerônimo (c. 347-420), fatalmente, também, ele não
estava “totalmente” inspirado pelo Espírito Santo, segundo afirmou Clemente VIII (Papa de
1592 a 1605), derrubando todo o alicerce dos que advogam tal coisa.
O biblicista José Reis Chaves (1935- ) trata deste assunto em seu livro A Face Oculta
das Religiões, ele, pessoalmente, nos resumiu da seguinte forma:
É óbvio que se existisse a tal de inspiração tal qual dizem, São Jerônimo teria
que ser o mais inspirado, pois foi ele que escolheu os livros tidos como
canônicos (legais), verdadeiros, o que não aconteceu com os apócrifos (ocultos,
desconhecidos), para formar a Vulgata. Lembremo-nos de que a Vulgata já
existia, mas foi a de São Jerônimo que se tornou oficial e aprovada pelo Papa
Dâmaso e passou a ser a Bíblia do cristianismo, com seu Velho e Novo
Testamentos.
Por tudo isso, e, especialmente, por vários outros textos, nos quais estudamos
inúmeras outras passagens bíblicas, acabam derrubando, inevitavelmente, e a contragosto de
muitos bibliólatras, a crença literal de que é a palavra de Deus e de que ela é toda inspirada
por Deus, colocando a Bíblia, como um livro de cunho eminentemente humano. Certamente,
que nossa opinião, reconhecemos, não tem mesmo um grande valor, mas, pelo menos, ela vai
ao encontro da conclusão pessoal a que também chegou Ehrman, considerado por muitos
estudiosos como sendo a maior autoridade em Bíblia do mundo. Nosso conhecimento, pois,
nem de longe se pode comparar com o dele.
Antes de finalizar esse estudo, voltemos, mais uma vez, ao eminente filósofo holandês:
[...] Não quero, no entanto, acusar de impiedade os adeptos das várias
seitas por adaptarem às suas opiniões as palavras da Escritura. [...] Acuso-os de
não querer reconhecer aos outros a mesma liberdade e perseguir como inimigos
de Deus todos os que não pensam como eles, por mais honestos e praticantes
da verdadeira virtude que sejam, ao mesmo tempo que estimam como eleitos
de Deus os que os seguem em tudo, ainda quando se trata de pessoas
moralmente incapazes. (ESPINOSA, 2003, p. 215).
[...] A fé, portanto, concede a cada um a máxima liberdade de filosofar, de
tal modo que se pode, sem cometer nenhum crime, pensar o que se quiser
sobre todas as coisas. As únicas pessoas que ela condena como heréticas e
182
cismáticas são as que ensinam opiniões que incitem à insubmissão, ao ódio, às
dissensões e à cólera; em contrapartida, só considera fiéis aqueles que, tanto
quanto a sua razão e as suas capacidades lhes permitem, espalham a justiça e a
caridade. (ESPINOSA, 2003, p. 222).
Ao encerrar este estudo, convém deixar bem explícito que o nosso objetivo, desde o
início, é somente a busca da verdade, aliás, essa deveria ser a meta de todos nós. Plena razão
tem o teólogo alemão Holger Kersten (1951- ), quando disse:
Uma pessoa que frequenta uma igreja cristã não pode deixar de assumir
uma postura crítica, frente à proliferação de obscuros artigos de fé, e dos
deveres e obrigações que a envolvem. Sem termos tido outros conhecimentos, e
por termos crescido sob a única e exclusiva influência do estabelecido, somos
levados a acreditar que, por subsistirem há tanto tempo, devem,
necessariamente, ser verdade. (KERSTEN, 1988, p. 12-13).
Em hipótese alguma deveremos deixar de procurar a verdade, porquanto, é através
disso que estaremos indo ao encontro dessas palavras de Jesus: “conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Descobrimos um pensamento de Paulo, do qual temos, frequentemente, nos utilizado, e
que é: “o Senhor é o Espírito; e onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a liberdade” (2Cor
3,17). Isso que nos leva à conclusão de que, onde não existe liberdade, o Espírito do Senhor
não se encontra. Mas o que isso tem a ver com o assunto em pauta? Poderá alguém nos
perguntar. Em princípio nada, mas quando ficamos sabendo o que ocorre “por detrás dos
bastidores”, vemos sua aplicação prática. Leiamos o seguinte relato:
Bruce me convenceu a tentar me tornar um cristão “sério” e a me dedicar
por inteiro à fé cristã. Isso significava estudar Escrituras em período integral no
Moody Bible Institute, o que, entre outras coisas, implicaria uma drástica
mudança de estilo de vida. ...matriculei-me no Moody, entrei e lá permaneci até
o segundo semestre de 1973.
A experiência no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia bíblica,
o que significava encarar muito estudo bíblico e vários cursos de teologia
sistemática. Ensinava-se uma só perspectiva em todos esses cursos, subscrita
por todos os professores (eles todos assinavam um termo de compromisso) e
por todos os estudantes (nós também o assinávamos): a Bíblia é a palavra
infalível de Deus. Ela não contém erros. É completamente inspirada e é, em
todos os seus termos, “inspiração verbal plena”. Todos os cursos que fiz
pressupunham e ensinavam e ensinavam essa perspectiva; qualquer outra era
considerada desviante e até mesmo herética. Acho que alguém pode chamar
isso de lavagem cerebral. [...] (EHRMAN, 2006, p. 14) (grifo nosso).
Entendemos, assim, que, com esse modesto estudo, temos boas chances de convencer
a muitos, mas não aos doutos e críticos, já que estamos cientes de que a “técnica de lavagem
cerebral” se aplica por ai a mancheias, o que resulta na validade do ditado popular: “o pior
cego é aquele que não quer ver”.
183
O Consolador veio no Pentecostes?
Os teólogos, se não todos, pelo menos na sua grande maioria, afirmam que o
Consolador prometido por Jesus (Jo 14,16) teria vindo no dia de Pentecostes (At 2,1-4); quem
sabe se não buscaram apoio a isso no documento apócrifo denominado Caverna dos Tesouros,
do qual extraímos:
Decidiram jejuar, até receberem todos juntos o Espírito, o Paráclito, no dia de
Pentecostes, ali mesmo onde estavam reunidos. Foram-lhes distribuídas línguas,
e cada um partiu para ensinar os povos, de acordo com a língua que lhes fora
dada;... (TRICCA, Apócrifos III, p. 100).
Se isso for verdade, então a base para essa afirmação é tirada de uma fonte
considerada não inspirada, colocando, portanto, em sérios apuros os que assim pensam.
O primeiro ponto importante a se levantar é aquele em que vamos demonstrar que o
Consolador não é o Espírito Santo, porquanto, àquela época, nem ele nem essa terminologia
existiam, uma vez que é uma criação posterior para sustentar o dogma da Trindade. Em toda a
Bíblia a passagem Mt 28,19-20 é a única em que se nomeiam as supostas pessoas da
Trindade.
Sabemos que o dogma da Trindade se iniciou no Concílio Ecumênico de Niceia, em 325,
quando Jesus foi divinizado; a providência seguinte foi também dar status de Deus ao Espírito
Santo, fato que ocorreu no Concílio de Constantinopla, em 381. (CHAVES, 2006). Depois, foi
só ajustar os textos do Novo Testamento a essa nova realidade; aí, onde havia “um” espírito
santo (puro), transformaram em “o” Espírito Santo, eleito a terceira pessoa da Trindade.
Ademais, estudiosos bíblicos têm esse passo de Mateus (28,19-20) como uma
interpolação. Por exemplo, o historiador e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém,
David Flusser (1917-2000), que lecionou no Departamento de Religião Comparada, por mais
de 50 anos, nascido na Áustria, estudioso da literatura clássica e talmúdica, e conhecedor de
26 idiomas, informa que:
De acordo com os manuscritos de Mateus que foram preservados, o Jesus
ressuscitado ordenou aos seus discípulos batizar todas as nações “em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”. A fórmula trinitária franca, aqui, é de fato
notável, mas já foi mostrado que a ordem para batizar e a fórmula
trinitária faltam em todas as citações das passagens de Mateus nos
escritos de Eusébio anteriores ao Concílio de Niceia. O texto de Eusébio de
Mt 28:19-20 antes de Niceia era o seguinte: “Ide e tornai todas as nações
discípulas em meu nome, ensinando-as a observar tudo o que vos ordenei”.
Parece que Eusébio encontrou essa forma do texto nos códices da famosa
biblioteca cristã em Cesareia. 75 Esse texto mais curto está completo e coerente.
Seu sentido é claro e tem seus méritos óbvios: diz que o Jesus ressuscitado
ordenou que seus discípulos instruíssem todas as nações em seu nome, o que
significa que os discípulos deveriam ensinar a doutrina de seu mestre, depois de
sua morte, tal como a receberam dele. (FLUSSER, 2001, p. 156). (grifo nosso).
Transcreveremos a nota (75) em que Flusser coloca sua base de informação:
Ver D. Flusser, "The Conclusion of Matthew in a New Jewish Christian
Source", Annual of the Swedish Theological lnstitute, vol. V, 1967, Leiden, 1967,
pp. 110-20; Benjamin J. Hubbard, “The Matthean Redaction of a Primitive
Apostolic Commissioning", SBL, Dissertation Series 19, Montana, 1974. Mais
testemunho da conclusão não-trinitária de Mateus está preservado num
texto copta (ver E. Budge, Miscelleaneous Coptic Texts, Londres, 1915, pp. 58
184
e seguintes, 628 e 636), onde é descrita uma controvérsia entre Cirilo de
Jerusalém e um monge herético. "E o patriarca Cirilo disse ao monge: 'Quem te
mandou pregar essas coisas?' E o monge lhe disse: 'O Cristo disse: Ide a todo o
mundo e pregai a todas as nações em Meu nome em cada lugar". O texto é
citado por Morcon Smith, Clement of Alexandria and a Secret Cospel of Mark,
Harvard University Press, Cambridge, Mass, 1973, pp. 342-6. (FLUSSER, 2001,
p. 170).
Na sequência, Flusser diz que “um testemunho adicional das versões mais curtas de Mt
28:19-20a foi descoberto há pouco tempo numa fonte judeu-cristã...” (FLUSSER, 2001, p.
156), citando como fonte: Sh. Pinès, “The Jewish Christians of the Early Centuries of
Christianity According to a New Source”, The Israel Academy of Sciences and Humanities
Proceedings, vol. II, nº 13, Jerusalém, 1966, p. 25. (FLUSSER, 2001, p. 170).
Em sua obra apologética intitulada Contra Celso (cerca de 248) Orígenes(185-254),
refutando a esse filósofo pagão, cita inúmeras passagens bíblicas, entre as quais Mt 28,19:
“Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos” (ORÍGENES, 2004, p. 154). O
que prova incontestavelmente que a expressão “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo” é uma interpolação que foi colocada posteriormente para se justificar o dogma
da Trindade.
Essa interpolação é até fácil de ser comprovada, pois, enquanto no versículo se
recomendava batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), os discípulos
só o faziam “em nome de Jesus” (At 2,37; 10,48; 19,5), do qual também se utilizavam para
expulsar os espíritos (At 16,18).
Por outro lado, não foi por mera coincidência que esse acréscimo esteja no último passo
do Evangelho de Mateus; certamente, como não encontraram outro lugar melhor para situá-lo
acharam por bem colocá-lo ali mesmo, bem no final. Então, fica aí demonstrado, de forma
clara, que essa expressão é uma interpolação. Assim, qualquer relação que se queira
estabelecer entre o Consolador e o Espírito Santo não faz sentido algum.
Um outro ponto, também não menos importante, é que devemos situar as coisas no
tempo próprio. Assim, não é válido usar o Evangelho de João para justificar alguma coisa em
Lucas, pois, como sabemos, os Evangelhos foram escritos em épocas diferentes. Segundo o
prof. Julio Trebolle Barrer (?- ), Marcos por volta de 65 a 70, Lucas entre 70 e 80, Mateus no
período de 70 e 80, e, finalmente, João, no ano de 90 (BARRERA, 1995, p. 287); mas é bom
ressaltar que os estudiosos não se entendem quanto a essas datas. Desse modo, depois da
morte de Jesus, até um certo período, os textos eram utilizados isoladamente; isso deve ter
acontecido por não haver necessidade, à época, de uma “uniformização” das descrições dos
fatos acontecidos com Jesus, já que não havia condições de se estabelecer uma sistematização
no sentido de tornar os escritos esparsos em um único corpo doutrinário dos ensinamentos
deixados pelo Mestre. O que pudemos corroborar com J. Lentsman (1908-1967):
Assim, cada evangelho era endereçado a um meio determinado, e
tinha limitada, desse modo, sua esfera de ação a uma ou outra região.
Sua inclusão no cânone deu-se muito mais tarde, como consequência de uma
escolha dos escritos cristãos mais autorizados aos olhos dos crentes.
(LENTSMAN, 1963, p. 38) (grifo nosso).
Mas, com a sistematização desses ensinamentos, visando dar uma característica
sinóptica aos Evangelhos, certamente houve uma “necessidade” (para não dizer conveniência)
de algumas “adequações” de alguns textos a algumas interpretações dos dirigentes religiosos
de então. Vejamos:
Quanto aos livros do Novo Testamento, houve também certa confusão, já que
além dos livros inspirados, circulavam outros que gozavam também de muito
prestígio entre as comunidades cristãs, alguns dos quais atribuídos aos próprios
Apóstolos. Em compensação, alguns dos livros inspirados não eram aceitos como
tais por pessoas de prestígio na própria Igreja.
Os Concílios de Hipona e de Cartago, celebrados em fins do séc. IV, pela
primeira vez apresentaram uma lista oficial dos livros inspirados, tanto
185
do Novo como do Antigo Testamento, entre os quais se incluíram os
deuterocanônicos também do Novo, que são: Epístolas de S. Tiago, 2ª e 3ª de
S. João, de S. Judas, 2ª de S. Pedro, aos Hebreus e o Apocalipse.
Como nenhum desses concílios africanos, por seu caráter local, implicasse a
autoridade oficial da Igreja universal, houve necessidade de se proclamar de
novo, em forma solene, a doutrina tradicional católica, o que se fez no Concílio
Ecumênico de Florença, celebrado no ano de 1441 e, posteriormente, no de
Trento em 1546, onde se enumeram de forma definitiva os livros que constituem
a Bíblia. (Bíblia Barsa – A Igreja e a Bíblia, p. xii). (grifo nosso).
Então, somente após o final do séc. IV, é que temos algo próximo da Bíblia como a
conhecemos hoje. E para ser mais específico, leiamos:
No ano de 367 E.C., Atanásio escreveu sua carta pastoral anual às igrejas
egípcias sob sua jurisdição e, nela, incluiu um conselho acerca de quais livros
deviam ser lidos como escritura nas igrejas. Ele relaciona nossos vinte e sete
livros, com exclusão de todos os demais. Essa é a primeira instância que chegou
ao nosso conhecimento de alguém declarando que esse novo conjunto de livros
era o Novo Testamento. (EHRMAN, 2006, p. 46).
Isso significa que não assiste razão aos que, querendo interpretar uma passagem,
relacionam, no sentido de completar, um escritor com outro. A se aceitar isso, então,
preferimos ficar com a opinião de Orígenes de Alexandria (185-254), considerado um dos “Pais
da Igreja”, porquanto foi um expoente do cristianismo nascente. Vejamos o que ele disse:
E como as práticas legais eram uma figura, penso eu, e a verdade era o que
o Espírito Santo lhes ensinara, foi dito: “Quando vier o Espírito de Verdade, ele
vos conduzirá à verdade plena” (Jo 16,13); como se dissesse: à verdade integral
das realidades das quais, não possuindo senão as figuras, vós acreditáveis
adorar a Deus com a verdadeira adoração. De acordo com a promessa de
Jesus, o Espírito de Verdade veio sobre Pedro e lhe disse, a respeito dos
quadrúpedes e répteis da terra e dos pássaros do céu: “Levanta-te, Pedro, imola
e come!” Ele voltou a si, embora ainda imbuído de superstição, pois mesmo ao
ouvir a voz divina ele responde: “De modo algum, Senhor, pois jamais comi
alguma coisa impura e profana”. E lhe ensinou a doutrina sobre os alimentos
verdadeiros e espirituais com estas palavras: “Ao que Deus purificou, não
chames tu de profano”. E depois desta visão, o Espírito de Verdade, conduzindo
Pedro “à verdade plena”, lhe disse “o muito que vos dizer” que ele não podia
“suportar enquanto Jesus estava ainda presente segundo a carne. (ORÍGENES,
p. 122-123). (grifo nosso).
E é por isso que afirmamos que cada um deles tem que se explicar por si mesmo.
Sendo assim, ou seja, que temos que relacionar o autor com ele mesmo, fomos buscar
primeiramente Lucas. Em seu Evangelho pudemos encontrar apenas duas passagens que
poderíamos entender como alguma promessa sendo feita: a primeira é onde João Batista diz
que “Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3,16); e a segunda é
quando Jesus recomenda aos discípulos não se preocuparem com o que irão falar, pois “nessa
hora o Espírito Santo ensinará o que vocês devem dizer” (Lc 12,12). Ambas não servem de
suporte, pelo simples motivo de que falam em Espírito Santo, que, conforme demonstramos,
esse epíteto não “existia”, ainda.
Jesus ressurreto, entre outras coisas, disse aos discípulos: “Agora eu lhes enviarei
aquele que meu Pai prometeu. Por isso, fiquem esperando na cidade, até que vocês sejam
revestidos da força do alto". (Lc 24,49), por que não Ele não falou “revestidos do Espírito
Santo”? Muito estranho! Mas vejamos a opinião de um exegeta sobre esse versículo:
Lc 24,49: “... envio sobre vós a promessa de meu Pai...” A promessa
que se cumpriu no dia de Pentecostes, antecipa também, neste passo bíblico, a
declaração mais completa que se vê no livro de Atos, que Lucas tencionava
escrever, a fim de completar a sua obra em dois volumes, que versa sobre as
origens do cristianismo (Lucas-Atos); e não é mesmo impossível que Lucas já
186
tivesse dado início a essa obra, em algum estágio preliminar. Este versículo é
paralelo a Atos 1,4-5, 8; 2,1-13. A promessa feita pelo Pai, que é o próprio
Espírito Santo, não é claramente definida nos evangelhos sinópticos,
mas poderemos aceitar o trecho de Luc. 11,13 como indicação sobre isso; e não
há que duvidar que a mensagem de João Batista, na tradição evangélica mais
primitiva, conforme nos é dada em Marc. 1;8 - “mas ele vos batizará com o
Espírito Santo...” - deve ser compreendida como paralela à promessa aqui
registrada. Trata-se, por conseguinte, da tradição evangélica mais remota. O
evangelho de João a anuncia de forma ainda mais clara. (ver João 14:16 e
15:26). A ordem dada aos discípulos de se demorarem em Jerusalém, até que
se cumprisse essa promessa, é paralela à passagem de Atos 1:4. (CHAMPLIN,
2005b, vol. 2, p. 247). (grifo nosso).
Observamos que o autor diz que a promessa não é claramente definida nos evangelhos
sinópticos, embora tente, de alguma forma, estabelecer uma ligação dela com o Evangelho de
João. O que ele não percebeu é que não poderia relacionar essa passagem de Lucas ao que
consta em João, pelas razões já expostas.
Em Atos dos Apóstolos, Lucas já narra da seguinte forma:
At 1,4-8: “...'Não se afastem de Jerusalém. Esperem que se realize a promessa do
Pai, da qual vocês ouviram falar: 'João batizou com água; vocês, porém, dentro de
poucos dias, serão batizados com o Espírito Santo'... Mas o Espírito Santo descerá
sobre vocês, e dele receberão força para serem as minhas testemunhas...'".
Pelo que se pode entender, a promessa aqui é o batismo com o Espírito Santo;
entretanto, está se prometendo o que não existe. No dia de Pentecostes é, quando se supõe,
que houve o cumprimento dessa promessa; leiamos:
At 2,1-4: “Quando chegou o dia de Pentecostes, todos eles estavam reunidos no
mesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho como o sopro de um forte vendaval,
e encheu a casa onde eles se encontravam. Apareceram então umas como línguas de
fogo, que se espalharam e foram pousar sobre cada um deles. Todos ficaram repletos
do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes
concedia que falassem”.
Novamente aparece a expressão Espírito Santo, que só poderia ser entendida como “um
espírito santo”, não a pessoa da Trindade que, conforme provado, não se falava dela ainda. Se
cada um falava conforme o espírito lhe concedia, já não é mais o Santo; então, temos, nessa
ocorrência, um fenômeno mediúnico, onde cada um falava sob a ação de um espírito. Aqui,
percebe-se, claramente, a mediunidade em propulsão espontânea a todos os discípulos. Fato
idêntico se repetirá novamente nos episódios conhecidos como o “Pentecostes samaritano” (At
8,14-17) e o “Pentecostes dos pagãos” (At 10,44-46) (CHAMPLIN, 2005c, vol. 3, p. 45).
Vejamo-los:
At 8,14-17: “Os apóstolos, que estavam em Jerusalém, souberam que a Samaria
acolhera a Palavra de Deus, e enviaram para lá Pedro e João. Ao chegarem, Pedro e
João rezaram pelos samaritanos, a fim de que eles recebessem o Espírito Santo. De
fato, o Espírito ainda não viera sobre nenhum deles; e os samaritanos tinham apenas
recebido o batismo em nome do Senhor Jesus. Então Pedro e João impuseram as mãos
sobre os samaritanos, e eles receberam o Espírito Santo”.
At 10,44-46: “Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todos
os que ouviam a Palavra. Os fiéis de origem judaica, que tinham ido com Pedro, ficaram
admirados de que o dom do Espírito Santo também fosse derramado sobre os
pagãos. De fato, eles os ouviam falar em línguas estranhas e louvar a grandeza
de Deus...”
Por isso, então, poder-se-á concluir, numa boa lógica, que, a supor seja o Espírito Santo
o Consolador, ele veio por três vezes; a primeira aos discípulos (At 2,1-4), aos quais a
promessa foi feita, e duas agora, nessas passagens, de uma forma generalizada. Assim, em
qual delas deve-se ter como sendo o cumprimento da promessa de sua volta? Fica aí a nossa
187
dúvida, porque a que se considera a primeira (At 2,1-4), os próprios textos bíblicos a
relacionam a uma profecia de Joel, conforme se verá.
Em relação ao Pentecostes narrado em At 2,1, temos duas observações importantes. A
primeira é que, na própria Bíblia, esse fato não é relacionado à promessa do Consolador, mas a
uma outra bem mais antiga; leiamos:
At 2,14-18: “Então Pedro ...falou em voz alta: 'Homens da Judeia e todos vocês que se
encontram em Jerusalém! Compreendam o que está acontecendo e prestem atenção
nas minhas palavras: ...está acontecendo aquilo que o profeta Joel anunciou:
'Nos últimos dias, diz o Senhor, eu derramarei o meu Espírito sobre todas as
pessoas. Os filhos e filhas de vocês vão profetizar, os jovens terão visões e os anciãos
terão sonhos. E, naqueles dias, derramarei o meu Espírito também sobre meus servos
e servas, e eles profetizarão”.
Se aqui está se relacionando o fenômeno do Pentecostes à profecia de Joel, que viveu
no século VIII a.C.; então, não está reservado o direito a ninguém de mudar isso, para
relacioná-lo ao cumprimento da promessa do envio do Consolador. Podemos confirmar com
Russell N. Champlin (1933- ):
No dia de Pentecoste, o Espírito Santo desceu sobre todos quantos estavam
reunidos no mesmo cenáculo, num total de cerca de cento e vinte pessoas. Não
se há de duvidar que essa dádiva do Espírito envolvendo mais do que os doze
apóstolos, segundo fica subentendido no trecho de Atos 2:14, como também
na profecia de Joel, conforme Simão Pedro mencionou em seu sermão, como
interpretação daquela extraordinária ocorrência, que acabara de suceder. (Ver
Atos 2:16-21 e Joel 2:28-32). Essa profecia revela-nos como o Espírito
haveria de ser derramado sobre toda a carne, de modo pleno e
transbordante. Os cento e vinte irmãos reunidos no cenáculo, pois, foram os
primeiros a experimentar isso. (Champlin, 2005c, vol. 3, p. 45) (grifo nosso).
Comprova-se, então, como sendo a realização da profecia de Joel.
A segunda observação é que, no dia citado como o Pentecostes, o fenômeno pode
mesmo nem ter ocorrido, conforme se pode ver na explicação dada a respeito de At 2,1-13,
cujo teor é: “O relato é simbólico. De fato, quando o autor escreveu, as comunidades cristãs já
se haviam espalhado por todas as regiões aqui mencionadas”. (Bíblia Sagrada Pastoral, p.
1391). Certamente agiram com prudência em não dizer diretamente que o dito fenômeno não
ocorreu, preferindo ir pelo caminho do simbólico, para salvar a Bíblia da contradição do texto
bíblico com os fatos realmente ocorridos.
Como em Lucas não encontramos nada, quem sabe se agora, ao analisarmos João,
possamos encontrar algo?... Leiamos a passagem relacionada à promessa:
Jo 14,15-26: "'Se me amais, guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e
ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja sempre convosco, o Espírito da
Verdade, que o mundo não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós o
conhecereis, porque ele habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos,
voltarei para vós outros... Respondeu Jesus: '... Isto vos tenho dito, estando ainda
convosco; mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome,
esse vos ensinará todas as cousas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito'”.
O que significa Consolador? Segundo Champlin, a palavra Consolador significa “alguém
chamado para o lado de outrem, a fim de ajudar” (CHAMPLIN, 2005b, vol. 2, p. 534).
Interessante essa afirmação de que enviaria “outro”; é sinal que Jesus se considerava
como sendo um Consolador. E muito curioso, também, é que a cidade onde Jesus fixou
residência, que se tornou centro do seu ministério, chamava-se Cafarnaum, que, segundo
Pastorino, significa “cidade do Consolador” (PASTORINO, vol. 1, 1964a, p. 139).
Neste passo Jesus também afirma que voltará. Se aqui o Consolador é especificado
como o Espírito da Verdade, por que mais à frente ele passa a ser o Espírito Santo, epíteto
188
esse que nem existia? Certamente que é por uma interpolação; ou, quem sabe, se esse último
também não seria o Espírito de Verdade, que sofreu uma modificação na sua terminologia?...
Jo 15,26-27: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai,
o Espírito da Verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim; e vós
também testemunhareis, porque estais comigo desde o princípio”.
Aqui se reafirma a identidade do Consolador como sendo o Espírito da Verdade,
acrescentando que ele dará testemunho de Jesus. Um detalhe, que depois voltaremos a falar, é
que Jesus afirma que os discípulos também iriam testemunhar.
Jo 16,7-11: “Mas eu vos digo a verdade: ‘Convém-vos que eu vá, porque se eu não
for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei.
Quando ele vier convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado,
porque não creem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais;
do juízo, porque o príncipe desse mundo já está julgado’”.
Percebemos que há uma estreita relação entre a vinda do Consolador com a questão de
Jesus ter que partir, o que se justifica, porquanto Ele mesmo é quem o enviaria ou, quem
sabe, voltaria para cumprir sua promessa: “Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós
outros (Jo 14,18); inclusive, como está dito no passo, que ainda estabelece a missão do
Consolador.
Jo 16,12-14: "Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora;
quando vier, porém, o Espírito da Verdade, ele vos guiará a toda a verdade;
porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as
cousas que hão de vir. Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e vo-lo
há de anunciar”.
Jesus afirma que não falou tudo que era para ser dito aos discípulos, e que a missão do
Espírito da Verdade, o Consolador, seria também para que fosse completado o seu
ensinamento.
Vejamos agora, a última passagem de João, na qual se vê a manifestação do Espírito
Santo:
Jo 20,19-23: “Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadas
as portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dos
judeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: 'A paz esteja com vocês'. Dizendo
isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos ficaram contentes por ver o
Senhor. Jesus disse de novo para eles: 'A paz esteja com vocês. Assim como o Pai me
enviou, eu também envio vocês'. Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo:
“Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão
perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados”.
O fato aqui relatado aconteceu exatamente no mesmo dia em que Jesus ressuscitou, o
primeiro dia da semana; é, então, o dia de domingo, ou seja, o terceiro dia após ter sido
sepultado. Nele Jesus afirma que o Pai o enviou e sopra sobre os discípulos o “Espírito Santo”.
Assim, a promessa que João citou anteriormente foi cumprida aqui nesse momento, segundo a
forma de entendimento dos adeptos das religiões tradicionais.
Nesse ponto, iremos ver, em A Gênese, como Allan Kardec (1804-1869) abordou sobre
o assunto, já que isso foi objeto de sua preocupação:
Anunciação do Consolador
35. Se me amais, guardai os meus mandamentos - e eu pedirei a meu Pai e
ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: - O
Espírito de Verdade que o mundo não pode receber, porque não o vê; vós,
porém, o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós. - Mas o
Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos
ensinará todas as coisas e fará vos lembreis de tudo o que vos tenho dito. (S.
189
João, 14:15 a 17 e 26. - O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. VI.).
36. - Entretanto, digo-vos a verdade: Convém que eu me vá, porquanto, se
eu não me for, o Consolador não vos virá; eu, porém, me vou e vo-lo enviarei. E, quando ele vier, convencerá o mundo no que respeita ao pecado, à justiça e
ao juízo: - no que respeita ao pecado, por não terem acreditado em mim; - no
que respeita à justiça, porque me vou para meu Pai e não mais me vereis; no
que respeita ao juízo, porque já está julgado o príncipe deste mundo.
Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas presentemente não as podeis
suportar.
Quando vier esse Espírito de Verdade, ele vos ensinará toda a verdade,
porquanto não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tenha escutado e vos
anunciará as coisas porvindouras.
Ele me glorificará, porque receberá do que está em mim e vo-lo anunciará.
(S. João, 16:7 a 14.).
37 - Esta predição, não há contestar, é uma das mais importantes, do ponto
de vista religioso, porquanto comprova, sem a possibilidade do menor equívoco,
que Jesus não disse tudo o que tinha a dizer, pela razão de que não o teriam
compreendido nem mesmo seus apóstolos, visto que a eles é que o Mestre se
dirigia. Se lhes houvesse dado instruções secretas, os Evangelhos fariam
referência a tais instruções. Ora, desde que ele não disse tudo a seus apóstolos,
os sucessores destes não terão podido saber mais do que eles, com relação ao
que foi dito; ter-se-ão possivelmente enganado, quanto ao sentido das palavras
do Senhor, ou dado interpretação falsa aos seus pensamentos, muitas vezes
velados sob a forma parabólica. As religiões que se fundaram no Evangelho
não podem, pois, dizer-se possuidoras de toda a verdade, porquanto ele,
Jesus, reservou para si a completação ulterior de seus ensinamentos. O
princípio da imutabilidade, em que elas se firmam, constitui um desmentido às
próprias palavras do Cristo.
Sob o nome de Consolador e de Espírito de Verdade, Jesus anunciou a vinda
daquele que havia de ensinar todas as coisas e de lembrar o que ele dissera.
Logo, não estava completo o seu ensino. E, ao demais, prevê não só que ficaria
esquecido, como também que seria desvirtuado o que por ele fora dito, visto
que o Espírito de Verdade viria tudo lembrar e, de combinação com Elias,
restabelecer todas as coisas, isto é, pô-las de acordo com o verdadeiro
pensamento de seus ensinos.
38 - Quando terá de vir esse novo revelador? É evidente que se, na época em
que Jesus falava, os homens não se achavam em estado de compreender as
coisas que lhe restavam a dizer, não seria em alguns anos apenas que poderiam
adquirir as luzes necessárias a entendê-las. Para a inteligência de certas partes
do Evangelho, excluídos os preceitos morais, faziam-se mister conhecimentos
que só o progresso das ciências facultaria e que tinham de ser obra do tempo e
de muitas gerações. Se, portanto, o novo Messias tivesse vindo pouco tempo
depois do Cristo, houvera encontrado o terreno ainda nas mesmas condições e
não teria feito mais do que o mesmo Cristo. Ora, desde aquela época até os
nossos dias, nenhuma grande revelação se produziu que haja completado o
Evangelho e elucidado suas partes obscuras, indício seguro de que o Enviado
ainda não aparecera.
39 - Qual deverá ser esse Enviado? Dizendo: “Pedirei a meu Pai e ele vos
enviará outro Consolador”, Jesus claramente indica que esse Consolador
não seria ele, pois, do contrário, dissera: “Voltarei a completar o que vos tenho
ensinado”. Não só tal não disse, como acrescentou: A fim de que fique
eternamente convosco e ele estará em vós. Esta proposição não poderia
referir-se a uma individualidade encarnada, visto que não poderia ficar
eternamente conosco, nem, ainda menos, estar em nós; compreendemo-la,
porém, muito bem com referência a uma doutrina, a qual, com efeito, quando a
tenhamos assimilado, poderá estar eternamente em nós. O Consolador é,
pois, segundo o pensamento de Jesus, a personificação de uma doutrina
soberanamente consoladora, cujo inspirador há de ser o Espírito de
Verdade.
40 - O Espiritismo realiza, como ficou demonstrado (cap. 1, nº 30),
todas as condições do Consolador que Jesus prometeu. Não é uma
doutrina individual, nem de concepção humana; ninguém pode dizer-se seu
criador. É fruto do ensino coletivo dos Espíritos, ensino a que preside o
Espírito de Verdade. Nada suprime do Evangelho: antes o completa e elucida.
190
Com o auxílio das novas leis que revela, conjugadas essas leis às que a Ciência
já descobrira, faz se compreenda o que era ininteligível e se admita a
possibilidade daquilo que a incredulidade considerava inadmissível. Teve
precursores e profetas, que lhe pressentiram a vinda. Pela sua força
moralizadora, ele prepara o reinado do bem na Terra.
[...]
42. - Se disserem que essa promessa se cumpriu no dia de
Pentecostes, por meio da descida do Espírito Santo, poder-se-á responder
que o Espírito Santo os inspirou, que lhes desanuviou a inteligência, que
desenvolveu neles as aptidões mediúnicas destinadas a facilitar-lhes a missão,
porém que nada lhes ensinou além daquilo que Jesus já ensinara, porquanto, no
que deixaram, nenhum vestígio se encontra de um ensinamento especial. O
Espírito Santo, pois, não realizou o que Jesus anunciara relativamente
ao Consolador; a não ser assim, os apóstolos teriam elucidado o que, no
Evangelho, permaneceu obscuro até ao dia de hoje e cuja interpretação
contraditória deu origem às inúmeras seitas que dividiram o Cristianismo desde
os primeiros séculos. (KARDEC, 2007e, p. 439-443) (negrito nosso, itálico do
original).
Como foi citado o item 30 do capítulo I de A Gênese, iremos também transcrevê-lo para
que o entendimento não fique prejudicado:
30 - O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo, como este partiu
das de Moisés, é consequência direta da sua doutrina. A ideia vaga da vida
futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e
povoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um corpo, uma
consistência, uma realidade à ideia. Define os laços que unem a alma ao corpo e
levanta o véu que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte.
Pelo Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por que está na
Terra, por que sofre temporariamente e vê por toda parte a justiça de Deus.
Sabe que a alma progride incessantemente, através de uma série de
existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que a aproxima de Deus.
Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais,
com idêntica aptidão para progredir, em virtude do seu livre-arbítrio; que todas
são da mesma essência e que não há entre elas diferença, senão quanto ao
progresso realizado; que todas têm o mesmo destino e alcançarão a mesma
meta, mais ou menos rapidamente, pelo trabalho e boa vontade.
Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas do que
outras; que Deus a nenhuma criou privilegiada e dispensada do trabalho
imposto às outras para progredirem; que não há seres perpetuamente votados
ao mal e ao sofrimento; que os que se designam pelo nome de demônios são
Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no espaço, como o
praticavam na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os anjos ou
Espíritos puros não são seres à parte na criação, mas Espíritos que chegaram à
meta, depois de terem percorrido a estrada do progresso; que, por essa forma,
não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes,
mas que toda a criação deriva da grande lei de unidade que rege o Universo e
que todos os seres gravitam para um fim comum que é a perfeição, sem que
uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos das suas
próprias obras. (KARDEC, 2007e, p. 37-38).
Considerando:
a) que a expressão “Espírito Santo” não deveria ser relacionada ao Consolador;
b) que temos que identificar com o texto do próprio evangelista, e não com de um
outro, se o Consolador já veio ou não;
c) que Jesus disse que voltaria;
d) que também disse que os discípulos o testemunhariam;
então, fatalmente, teremos que concluir que, dentro do Novo Testamento, não se
encontra nenhuma passagem na qual poderemos afirmar que o Consolador teria voltado
191
naquela época; portanto, isso nos remete a um tempo num futuro mais distante daquela
época.
Assim, o Espiritismo vem assumir essa condição de ser o Consolador, pelas razões
expostas por Kardec e por ter João Evangelista, portanto, pelo pelo menos um dos discípulos
testemunhando, embora não possamos afirmar taxativamente que outros não participaram só
pelo motivo de não termos nada escrito a respeito deles.
Apenas para esclarecer, informamos que, para nós, o Espírito da (de) Verdade é Jesus.
192
Jesus pode ser considerado Deus?
Esse assunto torna-se recorrente, visto determinadas pessoas ainda insistirem na tese
de que Jesus seja o próprio Deus, tomando-se uma ou outra passagem bíblica para justificar
essa interpretação. Obviamente, que faz parte de quase todas as culturas religiosas a crença
de que a divindade a qual prestavam culto viria a Terra e após fecundar uma mulher, essa
sempre uma virgem, daria nascimento a um semideus. Se não estivermos nos enganando na
interpretação do pensamento do psiquiatra suíço C. G. Jung (1875-1961), o fundador da
psicologia analítica, isso poderia ser classificado como um arquétipo (JUNG, 1988).
O certo é que Jesus, tendo nascido e vivido como um judeu, nunca diria tal coisa; é o
que, de fato, percebemos pelas narrativas dos Evangelhos. A lei judaica seria implacável
quanto a isso; certamente, que resultaria no apedrejamento, até a morte, do blasfemo, num
rito sumário sem qualquer possibilidade de apelação para alguma instância superior.
Como ainda não tivemos a oportunidade de fazer um estudo sobre o tema, vamos
aproveitar esse momento para fazê-lo, de uma forma bem abrangente; para isso é necessário
que analisemos várias passagens bíblicas, nas quais estaremos grifando os trechos que
julgamos importantes, visando ressaltá-los.
Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo
profeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado
Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco'”.
Essa passagem certamente que nada tem a ver com o assunto; entretanto, vemos que,
algumas vezes, é usada para justificar a condição de Jesus ser Deus, por ter vindo cumprir
essa e muitas outras supostas profecias. Não vamos aqui estender muito a explicação sobre
isso, pois ela poderá ser vista no seu todo em nosso texto “Será que os profetas previram a
vinda de Jesus?”, disponível no site www.paulosnetos.net.
Em Isaías é que iremos encontrar a conjecturada profecia relacionada a esse passo:
“Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem concebeu e dará à luz um filho, e o
chamará pelo nome de Emanuel”. (Is 7,14). Entretanto, pelo contexto bíblico, iremos perceber
que, na verdade, Deus está prometendo um sinal ao rei Acaz, que seria exatamente o filho
dele que estaria por nascer, o que podemos confirmar com a seguinte explicação: “O sinal
prometido a Acaz é o seu próprio filho, do qual a rainha (a jovem) está grávida. Esse menino
que está por nascer é o sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus
conosco)”. (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 955).
Outro fato curioso é que o nome Jesus significa “Deus é salvação”; obviamente,
diferente de Emanuel que quer dizer “Deus está conosco”, que é aquele previsto na passagem
tida como profecia para ser dado à criança.
Mc 2,7: “Por que fala assim este homem? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados
senão um só, que é Deus?”
Mc 10,18: “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senão
um que é Deus”.
Jo 5,44: Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros e não buscais a
glória que vem do único Deus?
Jo 17,3: E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o único Deus verdadeiro,
e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste.
Rm 3,30: “De fato, há um só Deus que justifica, pela fé, tanto os circuncidados como
os não circuncidados”.
193
Rm 16,27: “ao único Deus sábio seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre.
Amém”.
1Cor 8,4: “Quanto, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que o
ídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus, senão um só”.
1Cor 8,6: “Contudo para nós existe um só Deus: o Pai. Dele tudo procede, e para ele
é que existimos. E há um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por meio do
qual também nós existimos”.
Gl, 3,20: “Ora, esse intermediário não representa uma pessoa só, e Deus é um só”.
Ef 4,6: “Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, que age por meio de
todos e está presente em todos”.
1Tm 1,17: “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus, seja honra e
glória para todo o sempre. Amém”.
1Tm 2,5-6: "Porque existe um só Deus. E entre ele e os homens há um só
intermediário, que é Jesus Cristo seu Filho, que é, ele próprio, homem também; o qual
se deu a si mesmo como preço da salvação de toda a humanidade. Esta é a mensagem
que Deus trouxe ao mundo no momento oportuno"
Tg 2,19: “Você acredita que existe um só Deus? Muito bem! Só que os demônios
também acreditam, e tremem!”
Jd 1,24-25: “Àquele que pode guardar-vos da queda e apresentar-vos perante sua
glória irrepreensíveis e jubilosos, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus
Cristo nosso Senhor, glória, majestade, poder e domínio, antes de todos os séculos,
agora e por todos os séculos! Amém”.
Um dos pontos fortes para que Jesus fosse elevado à condição de Deus está,
certamente, na crença da Trindade, onde a divindade seria três pessoas, iguais e distintas ao
mesmo tempo. Não iremos abordar essa questão aqui, por já ter jeito um estudo sobre o
tema; mas iremos apenas argumentar que, por essas passagens, não há como atribuir tal
coisa; julgamos ser interpretações equivocadas de quem quer vê-las assim, porquanto
nenhum desses passos fala disso. E, para ver que crença de Deus ser um só não é coisa nova,
citamos do Antigo Testamento:
Dt 4,35: “Foi a você que lhe mostrou isso, para você ficar sabendo que Javé é o único
Deus e que não existe outro além dele”.
Dt 4,39: “Portanto, reconheça hoje e medite em seu coração: Javé é o único Deus,
tanto no alto do céu, como aqui em baixo, na terra”.
Is 44,6: “Assim diz Javé, o Rei de Israel, seu redentor, Javé dos exércitos: Eu sou o
primeiro, eu sou o último, fora de mim não existe outro Deus”.
Is 45,14: “Deus está somente com você e não existe nenhum outro, não existem
outros deuses”.
Is 45,18: “Porque assim diz, Javé, que criou os céus, o único Deus, que formou a
terra, que a fez e a firmou em suas bases; ele não a fez para ser um caos, mas para
ser habitada; Eu sou Javé e não existe outro”.
Is 46,9: “Lembrem-se das coisas há muito tempo passadas, pois eu sou Deus, e não
existe outro. Eu sou Deus, e não existe outro igual a mim”.
1Rs 8,60: “Assim, todos os povos da terra saberão que só Javé é Deus e que não há
nenhum outro”.
Se você, leitor, se interessar pelo tema Trindade, pedimos a sua permissão para lhe
recomendar o nosso texto “Trindade: um mistério criado por um leigo, anuído pelos teólogos”,
no site: www.paulosnetos.net.
194
Mt 4,1-11: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado
pelo Diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome.
Chegando, então, o tentador, disse-lhe: 'Se tu és Filho de Deus manda que estas
pedras se tornem em pães'. Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: 'Nem só de pão
viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus'. Então o Diabo o levou
à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: 'Se tu és Filho de
Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu
respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra'.
Replicou-lhe Jesus: 'Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus'.
Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do
mundo, e a glória deles; e disse-lhe: 'Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares'.
Então ordenou-lhe Jesus: 'Vai-te, Satanás; porque está escrito: 'Ao Senhor teu Deus
adorarás, e só a ele servirás'. Então o Diabo o deixou; e eis que vieram os anjos e o
serviram”.
No Evangelho segundo Marcos, o primeiro a ser escrito, segundo os especialistas, não
se especifica essas três tentações; o autor diz, apenas, genericamente, que no período
assinalado Jesus foi tentado por Satanás. No de Lucas, no final do relato, há algo interessante;
nele narra-se: “Assim, tendo o Diabo acabado toda sorte de tentação retirou-se dele até
ocasião oportuna” (Lc 4,13). O que nos chamou a atenção foi a expressão “retirou-se dele”,
dando a impressão de que Jesus estava possuído pelo diabo, o que vai muito além das
tentativas de levar o Mestre a fazer as cousas que lhe foram sugeridas por ele.
Causou-nos muita estranheza o fato de Jesus, ao ser sugerido para adorar o tentador,
tenha dito “não tentarás o Senhor teu Deus”, uma vez que o “dito cujo” o havia reconhecido
apenas como o Filho de Deus e não como Deus. Essa afirmativa pode levar à interpretação de
que aqui Jesus estaria insinuando que ele seria o próprio Deus, fato que não vemos a não ser
em algumas narrativas de João, caso não tenhamos maior cuidado em buscar o sentido exato
do que este fala.
A grande dúvida que nos envolve é: se as tentações de Jesus, que aqui nos são
narradas, de fato ocorreram, então, é evidente a contradição, em si considerando Jesus como
sendo Deus, com o que foi dito por Tiago, pois, segundo ele “Deus não pode ser tentado pelo
mal” (Tg 1,13); assim, não nos cabe aceitar Jesus como sendo mesmo o próprio Deus.
Por outro lado, ampliando nosso campo de pesquisa, verificamos que essa suposta
tentação de Jesus tem precedentes em outras culturas religiosas. O escritor, filósofo, filólogo e
historiador francês Ernest Renan (1823-1892), por exemplo, nos informa um fato curioso; diz
ele que “O deserto era, segundo a crença popular, a morada dos demônios”. (RENAN, 2004, p.
165). Aliás, até mesmo os hebreus assim pensavam, conforme comprovam estas passagens:
Lv 16,10: “mas o bode sobre que cair a sorte para Azazel será posto vivo perante o
Senhor, para fazer expiação com ele a fim de enviá-lo ao deserto para Azazel6”.
Lv 16,20-22: “... Arão... apresentará o bode vivo; e, pondo as mãos sobre a cabeça do
bode vivo, confessará sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todas as
suas transgressões, sim, todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do
bode, e envia-lo-á para o deserto, pela mão de um homem designado para isso.
Assim aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles para uma região solitária;
e esse homem soltará o bode no deserto”.
Lv 17,7: “Daqui em diante e para sempre, os israelitas nunca mais oferecerão
sacrifícios aos demônios do deserto, pois, se fizerem isso, estarão sendo infiéis a
Deus”.
Encontramos nessa crença, de que os demônios moravam no deserto, o motivo pelo
qual Jesus foi levado ao deserto para ser tentado. E, segundo Juan Arias (1932- ), jornalista,
pesquisador, escritor e ex-padre “o que o demônio propõe a Jesus em suas tentações são
justamente coisas típicas dos magos, como voar através das nuvens ou transformar pedras em
pães” (ARIAS, 2001, p. 177). Devemos também somar a isso uma outra crença, a de que os
6
Azazel, conforme nos informam os tradutores da Bíblia de Jerusalém (p. 183-184), é o nome de um demônio que os
antigos hebreus e cananeus acreditavam que habitasse o deserto.
195
líderes espirituais deveriam sofrer algum tipo de tentação antes de iniciarem a sua missão.
Vejamos alguns exemplos:
Mais ou menos com a idade de 30 anos, isto é, com a mesma idade de Jesus,
Buda inicia sua carreira espiritual. Durante um jejum e penitência, é tentado
pelo mal da mesma forma como Jesus o foi pelo diabo, após quarenta dias e
quarenta noites de abstinência. No Oriente é comum uma história que atribui a
Zoroastro uma semelhante tentação, que também aparece na saga dos
santos cristãos. (KERTEN, 1988, p. 85) (grifo nosso).
Durante sete dias Buda permaneceu sentado sob a árvore bodhi, sem se
mover, em abençoado êxtase. Conta a lenda que, durante esse período, ele foi
tentado por Mara, o demônio. (KERSTEN e GRUBER, 1995(?), p. 28) (grifo
nosso).
Na mesma linha, como o inimigo de Hórus era Sata, deduz-se que daí teria
vindo a teoria de satanás e dos demônios contida nos evangelhos. Hórus,
assim como Jesus mil anos depois, também lutou no deserto, durante
quarenta dias, contra as tentações de Sata, numa luta simbólica entre a luz
e a escuridão. (ARIAS, 2001, p. 112) (grifo nosso).
Portanto, as mencionadas tentações de Jesus nada mais são do que um reflexo de
culturas religiosas, incorporadas aos Evangelhos para que o mesmo padrão do que acontecia
com os que eram considerados filhos de deuses e/ou seus reveladores fosse mantido.
Corroborando nosso entendimento, veja o leitor o que dizem os evangelhos:
Mt 4,16-17: “Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que se lhe abriram os
céus, e viu o Espírito Santo de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre
ele; e eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo”.
Mc 1,9-11: “E aconteceu naqueles dias que veio Jesus de Nazaré da Galileia, e foi
batizado por João no Jordão. E logo, quando saía da água, viu os céus se abrirem, e
o Espírito, qual pomba, a descer sobre ele; e ouviu-se dos céus esta voz: Tu és
meu Filho amado; em ti me comprazo”.
Lc 3,21-22: “Quando todo o povo fora batizado, tendo sido Jesus também batizado, e
estando ele a orar, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma
corpórea, como uma pomba; e ouviu-se do céu esta voz: Tu és o meu Filho amado;
em ti me comprazo”.
Jo 1,32: “E João deu testemunho, dizendo: Vi o Espírito descer do céu como
pomba, e repousar sobre ele”.
Interessante é a divergência; afinal, o que se viu?: o Espírito Santo de Deus, o Espírito
Santo ou simplesmente o Espírito? E como será que desceu sobre ele? Vejamos o que Bart D.
Ehrman (1955- ) nos diz: “Ver, por exemplo, Marcos 1:10. Em grego, o versículo diz
literalmente que o Espírito desceu 'para dentro' de Jesus”. (EHRMAN, 2008, p. 374) (grifo
nosso). Ora, se o Espírito desceu para dentro de Jesus, caso seja esse espírito o Espírito Santo,
então, pode-se concluir que os dois (Jesus e o Espírito Santo) são distintos um do outro. E
mais que o Espirito Santo é maior do que Jesus, porquanto, somente após a “descida” desse
espírito sobre Ele é que o Nazareno inicia a sua pregação ao povo, desempenhando a sua
missão de Messias, após o caminho endireitado por João (Mt 3,3) ou seja, depois de estar sob
a ação do Espírito Santo. Isso será confirmado em Mt 12,31-32, que analisaremos um pouco
mais à frente.
Mt 9,6-8: “'Pois bem, para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder na
terra para perdoar pecados - então disse Jesus ao paralítico: Levante-se, pegue a sua
cama e vá para a sua casa'. O paralítico então se levantou, e foi para a sua casa.
Vendo isso, a multidão ficou com medo e louvou a Deus, por ter dado tal poder aos
homens”.
196
A expressão “Filho do Homem”, encontrada inúmeras vezes (doze vezes em Mateus,
treze vezes em Marcos, vinte e seis vezes em Lucas e doze vezes em João), foi usada por
Jesus para se colocar como um homem e não como o próprio Deus; fato que também pode ser
observado, quando, após curar esse paralítico, a multidão louvou a Deus por ter dado tal poder
aos homens, ou seja, com isso estavam se referindo a Jesus como homem; portanto, é certo
que o tinham mesmo nessa condição, não como sendo o próprio Deus.
Mt 11,27: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece
plenamente o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece plenamente o Pai, senão o Filho, e
aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Caso Jesus se considerasse Deus não havia razão para Ele dizer que recebera todas as
coisas do Pai, porquanto, já as tinha por si mesmo.
Mt 12,31-32: “É por isso que eu digo a vocês: todo pecado e blasfêmia será perdoado
aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Quem disser alguma
coisa contra o Filho do Homem, será perdoado. Mas quem disser algo contra o
Espírito Santo, nunca será perdoado, nem neste mundo, nem no mundo que há de
vir.”
Ora, se toda blasfêmia contra o Filho do Homem será perdoada e a contra o Espírito
Santo nunca será, a conclusão, que depreendemos disso, é que ele, o Espírito Santo, é
superior ao Filho do Homem, além de não ser Jesus. Então, a igualdade na Trindade, propalada
pelos que nela creem, não existe. Se não existe, consequentemente, Jesus, não podendo ser o
Espírito Santo, muito menos poderá ser Deus.
Mt 12,48-49: “Ele, porém, respondeu ao que lhe falava: Quem é minha mãe? e quem
são meus irmãos?·E, estendendo a mão para os seus discípulos disse: Eis aqui minha
mãe e meus irmãos”.
Mt 25,34-40: “Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu
Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era
forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava
na prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos
com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos
forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na
prisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre
que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o
fizestes.·E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a
um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes”.
Mt 28,9-10: “E eis que Jesus lhes veio ao encontro, dizendo: Salve. E elas,
aproximando-se, abraçaram-lhe os pés, e o adoraram. Então lhes disse Jesus: Não
temais; ide dizer a meus irmãos que vão para a Galileia; ali me verão”. (fato ocorrido
depois de sua ressurreição).
Jo 10,17: “Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai a
meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso
Deus”.
Ao tratar a todos, povo e discípulos, como irmãos, Jesus, seguramente, o faz por ter a
si mesmo nessa condição; não numa infinitamente mais elevada, que seria aquela se Ele fosse
a própria divindade. E, numa outra oportunidade, afirmou: “Em verdade, em verdade vos
digo: Aquele que crê em mim, esse também fará as obras que eu faço, e as fará maiores
do que estas; porque eu vou para o Pai;” (Jo 14,12). Ora, disso não podemos concluir outra
coisa senão que Jesus se igualou a todos nós, a não ser que tenhamos o que aqui está dito
como inverídico.
Mt 14,23: “Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar à parte. Ao anoitecer,
estava ali sozinho”.
197
Mt 26,36: “Então foi Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmane, e disse aos
discípulos: Sentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar”.
Mt 26,39: “E adiantando-se um pouco, prostrou-se com o rosto em terra e orou,
dizendo: Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice; todavia, não seja como
eu quero, mas como tu queres”.
Mt 26,44: “Deixando-os novamente, foi orar terceira vez, repetindo as mesmas
palavras”.
Lc 3,21: “Quando todo o povo fora batizado, tendo sido Jesus também batizado, e
estando ele a orar, o céu se abriu;”
Lc 6,12: “Naqueles dias retirou-se para o monte a fim de orar; e passou a noite toda
em oração a Deus”.
Lc 9,28: “Cerca de oito dias depois de ter proferido essas palavras, tomou Jesus
consigo a Pedro, a João e a Tiago, e subiu ao monte para orar”.
Mantendo-se a crença de que Jesus é Deus, julgamos totalmente fora de propósito Ele
orar para si mesmo; tal coisa, por tão absurda, fere-nos a razão. Até onde sabemos somente
os mortais comuns oram a Deus. E, inclusive, num desses momentos, Jesus pede a Deus para
afastar dele o cálice, fraqueza não condizente com a sua condição de Espírito puro, mensageiro
divino; pior ainda se ele fosse mesmo Deus.
Mt 16,13-14: “Tendo chegado à região de Cesareia de Filipe, Jesus perguntou aos
discípulos: ‘Quem dizem por aí as pessoas que é o filho do homem?’ Responderam:
‘Umas dizem que é João Batista, outras que é Elias, outras enfim, que é Jeremias ou
algum dos profetas’”.
Mt 26,67-68: “Então, cuspiram no seu rosto e cobriram-no de socos. Outros lhe davam
bordoadas. E lhe diziam: ‘Mostra que és profeta, ó Cristo, advinha quem foi que te
bateu?’”
Jo 7,40: “Muitos daquela gente que tinham ouvido essas palavras de Jesus afirmavam:
‘Verdadeiramente ele é o profeta’”.
Jo 9,17: “Perguntaram ainda ao cego: ‘Qual é a tua opinião a respeito de quem te abriu
os olhos?’ Respondeu: ‘É um profeta’”.
Lc 24,19 “... Jesus de Nazaré foi um profeta, poderoso em obras e palavras diante de
Deus e do povo”.
At 2,22: “Homens de Israel, escutai o que digo: ‘Jesus de Nazaré foi o homem
credenciado por Deus junto a nós com poderes extraordinários, milagres e prodígios.
Bem sabeis as coisas que Deus realizou através dele no meio de vós’”.
Por esses passos temos, seguramente, que o povo e os discípulos pensavam ser Jesus
um profeta e não o próprio Deus; porém, não é só isso: Ele mesmo assim se qualificava;
senão vejamos:
Lc 13,33: “Entretanto devo continuar meu caminho hoje, amanhã e no dia seguinte,
porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém”.
Mc 6,4-5: “Mas Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só deixa de ser honrado em sua pátria,
em sua casa e entre seus parentes. E não podia ali fazer milagre algum’”.
Observamos, assim, que tanto o povo como os seus discípulos acreditavam que Jesus
era um profeta, o que aqui, nesses passos, está sendo confirmado pelo próprio Mestre. Na
passagem que se segue também veremos como o tinham.
Mt 17,1-6: “Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, a Tiago e a João, irmão
deste, e os conduziu à parte a um alto monte; e foi transfigurado diante deles; o seu
198
rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis
que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Pedro, tomando a palavra, disse a
Jesus: 'Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três cabanas, uma para
ti, outra para Moisés, e outra para Elias'. Estando ele ainda a falar, eis que uma
nuvem luminosa os cobriu; e dela saiu uma voz que dizia: Este é o meu Filho amado,
em quem me comprazo; a ele ouvi. Os discípulos, ouvindo isso, caíram com o rosto em
terra, e ficaram grandemente atemorizados”.
Percebemos que Pedro, ao sugerir a construção de três cabanas7, uma para cada um
dos personagens - Jesus, Moisés e Elias -, o faz porque tem os três no mesmo nível, ou seja,
estabeleceu uma igualdade entre eles; via de consequência, tomou Jesus como um profeta, tal
e qual os outros dois foram, sem qualquer tipo de privilégio, como aconteceria caso o visse
como Deus.
Mt 20,20-23: “Aproximou-se dele, então, a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos,
ajoelhando-se e fazendo-lhe um pedido. Perguntou-lhe Jesus: 'Que queres?' Ela lhe
respondeu: 'Concede que estes meus dois filhos se sentem, um à tua direita e outro à
tua esquerda, no teu reino'. Jesus, porém, replicou: 'Não sabeis o que pedis; podeis
beber o cálice que eu estou para beber?' Responderam-lhe: 'Podemos'. Então lhes
disse: 'O meu cálice certamente haveis de beber; mas o sentar-se à minha direita e
à minha esquerda, não me pertence concedê-lo; mas isso é para aqueles para
quem está preparado por meu Pai'”.
Certamente que, se houvesse igualdade entre Jesus e Deus, Ele mesmo poderia ter
atendido ao pedido da mãe dos filhos de Zebedeu; porém, não o fez e foi logo dizendo que
somente o Pai poderia fazê-lo. Portanto, não há como aceitar que Jesus seja Deus, usando-se
de seus próprios argumentos.
Mt 24,30-36: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem, e todas as
tribos da terra se lamentarão, e verão vir o Filho do homem sobre as nuvens do céu,
com poder e grande glória. E ele enviará os seus anjos com grande clangor de
trombeta, os quais lhe ajuntarão os escolhidos desde os quatro ventos, de uma à outra
extremidade dos céus. Aprendei, pois, da figueira a sua parábola: Quando já o seu
ramo se torna tenro e brota folhas, sabeis que está próximo o verão. Igualmente,
quando virdes todas essas coisas, sabei que ele está próximo, mesmo às portas. Em
verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas essas coisas se
cumpram. Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras jamais passarão. Daquele
dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só
o Pai”.
Se encontramos alguma coisa que Jesus, o filho, não sabe, somente o Pai é que tem
conhecimento, não há razão para supô-los uma só personalidade. Será que o Pai tem segredos
para Jesus ou existem coisas que estariam acima do conhecimento deste? Qualquer que seja a
resposta, dela nós só podemos concluir que nem tudo o filho sabe; portanto, diante disso,
Jesus não pode ser Deus.
Mt 27,46: “Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá
sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.
Totalmente fora de propósito, caso Jesus fosse Deus, Ele clamar a si próprio (Deus) por
tê-Lo desamparado. Aliás, em outra oportunidade, Ele disse “meu Pai, vosso pai, meu Deus,
vosso Deus” (Jo 20,17); portanto, reforçando sua condição de igualdade para conosco, uma
vez que Ele não se coloca nem mesmo como alguém superior a qualquer um de nós, como
também como sendo Deus. Por sua elevação moral, pode, nesse sentido, ser considerado
superior, pois é um Espírito puro que nos foi enviado por Deus, para regenerar a humanidade.
Mt 28,2: “E eis que houvera um grande terremoto; pois um anjo do Senhor descera do
céu e, chegando-se, removera a pedra e estava sentado sobre ela”.
Algumas traduções trazem tendas, que significa, abrigos rústicos para residência temporária. (Bíblia Anotada, p.
1209).
7
199
Na intimidade, ficamos confabulando com “os meus botões” sobre os grandes prodígios
atribuídos a Deus, tais como criar o Universo, mandar chover para inundar a Terra de água,
confundir a língua dos terráqueos, abrir o Mar Vermelho em duas muralhas, parar o Sol para
aumentar as horas do dia, fazer chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra,
derrubar as muralhas de Jericó, entre outros feitos extraordinários narrados na Bíblia, como
não pôde mover uma simples pedra que fechava seu túmulo, foi preciso que um anjo, uma
insignificante de suas criaturas, o fizesse? Diria um homem precavido: “Sei não, mas esse aí,
que colocaram no túmulo, não poderia ser Deus”.
Mc 1,24: “Que temos nós contigo, Jesus, nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quem
és: o Santo de Deus”.
Tomando-se como verdadeira essa passagem, estaremos diante de uma situação bem
embaraçosa, pois satanás, aquele que dizem ter sido expulso do céu, identifica Jesus como o
Santo de Deus e não o próprio. Essa informação é importante, uma vez que ele, satanás,
sendo um dos filhos de Deus, que vivia no reino dos céus (Jó 1,6), conhecia pessoalmente a
Deus, vamos assim dizer, então, como atribuiu a Jesus outra condição? Diante do que se
coloca aqui, não nos cabe aceitar Jesus como sendo mesmo o próprio Deus.
Mc 10,18: “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senão
um que é Deus”.
Se Jesus não aceita o epíteto de bom, porquanto, segundo sua maneira de pensar, isso
só pode ser atribuído a Deus; assim, não há outra conclusão a chegar senão a de que Ele não
se considerava como sendo o próprio Deus, por mais que queiram, via dogmatismo, colocá-Lo
nessa condição.
Mc 10,27: “Jesus, fixando os olhos neles, respondeu: Para os homens é impossível,
mas não para Deus; porque para Deus tudo é possível.
É a resposta dada por Jesus, quando foi questionado sobre quem poderia ser salvo.
Seria mais lógico, caso fosse a divindade, Ele ter se incluído nessa afirmativa, quem sabe,
dizendo: “... porque para mim tudo é possível”.
Mc 12,26-27: “Quanto aos mortos, porém, serem ressuscitados, não lestes no livro de
Moisés, onde se fala da sarça, como Deus lhe disse: Eu sou o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas de vivos.
Estais em grande erro”.
Da mesma forma, que na situação anterior, aqui Ele deveria ter dito: “como eu já lhes
disse: eu não sou Deus de mortos”.
Mc 15,39: “Ora, o centurião, que estava defronte dele, vendo-o assim expirar, disse:
Verdadeiramente este homem era filho de Deus”.
Se o reconhecessem como Deus essa frase só teria sentido se estivesse dessa forma:
“Verdadeiramente este homem era Deus”; até mesmo porque, devemos convir, satanás
também é filho de Deus (Jó 1,6). Nesse caso, podemos até dizer que satanás seria filho de
Jesus. Então como Jesus não o repreendeu como a um filho, quando ele O tentava no deserto?
Lc 1,35: “Respondeu-lhe o anjo: 'Virá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo
te cobrirá com a sua sombra; por isso o que há de nascer será chamado santo, Filho
de Deus'”.
Será que o anjo se enganou, ou realmente toda a corte celeste tem Jesus como um
homem? Portanto, se O chamavam de “santo, filho de Deus” isso não é tê-lo como o próprio
Deus.
Quanto ao uso da expressão “filho de Deus”, o jornalista Pepe Rodríguez (1953- ) coloca
o seguinte:
200
Jesus, apesar de saber que a expressão “Filho de Deus” tinha sido
normalmente utilizada no Velho Testamento para designar figuras
particularmente importantes da história hebraica – como David, Salomão, outros
reis hebreus, o próprio Adão e os “filhos de Israel” –, em nenhuma passagem
se refere a si próprio como filho de Deus (6), preferindo utilizar a
expressão “Filho do homem”, um termo utilizado por Daniel (Dan 7,13) e
que, em aramaico, significa simplesmente “homem”, “ser humano” e nada mais.
Procurar dar-lhe um outro qualquer significado não passa de um exercício
próprio de uma imaginação febril.
______
6. A única excepção encontramo-la em Jo 6,32-45: “Moisés não vos deu o pão do
céu; é meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu; porque o pão de Deus é o que baixou
do céu e dá vida ao mundo. […] Eu sou o pão da vida; o que vem a mim deixará de ter
fome, e o que crê em mim jamais sentirá sede, […] todo aquele que o Pai me dá vem a
mim, e aquele que vem a mim não o deitarei fora, porque desci do céu, não para fazer a
minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. […] Porque esta é a vontade de
meu Pai, que todo aquele que vê o Filho e crê n'Ele recebe a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia. […] Todo aquele que escuta o meu Pai e recebe o seu
ensinamento, vem a mim...” Porém, como mostrámos no seu devido momento, o texto
do Evangelho de João, escrito pelo grego João, o Ancião, em princípios do século
II, revela um Jesus absolutamente deformado, que fala com uma prepotência
descarada, contrariamente à humildade que o caracteriza nos relatos dos três
sinópticos. Por exemplo, em Mc 10,18, deparamos com um Jesus que diz: “Porque me
chamas bom? Ninguém, a não ser Deus, é bom”. Por outro lado, o Jesus do Evangelho de
João fala de uma maneira azeda com os outros judeus e as suas afirmações soam a
absurdas na boca de um judeu, quando tudo o que sabemos sobre ele é que foi um judeu.
Esta autodesignação como filho de Deus não merece, pois, qualquer crédito, em
termos históricos, além de nela ser claramente evidente a influência da filosofia
platónica. Como se sabe, foi no contexto dessa filosofia que se desenvolveu a cristologia
tal como a conhecemos hoje.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 178) (grifo nosso).
Baseando-nos no título da obra de Rodríguez, da qual transcrevemos esse texto,
diremos que a elevação de Jesus ao status de um deus faz parte das “Mentiras fundamentais
da Igreja Católica”.
Lc 2,40: “E o menino ia crescendo e fortalecendo-se, ficando cheio de sabedoria; e a
graça de Deus estava sobre ele”.
Essa narrativa é uma das poucas referências à infância de Jesus. Nela não vemos
sentido dizer que a graça de Deus estava sobre Ele, caso fosse o próprio Deus, uma vez que,
para se chegar a essa conclusão, teria que ser afirmado algo mais ou menos assim: “a graça
de Deus era ele”.
Lc 3,23: “Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou sua atividade pública. E,
conforme se pensava, ele era filho de José, [...]”.
Será que até aos trinta anos de vida, Jesus não foi considerado, pelos de Sua época,
como sendo Deus, deixando-se para fazê-lo depois? Ou será que O tornaram Deus
posteriormente? Ficamos com a segunda hipótese.
Jo 1,1-14: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e
sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens;
a luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve um
homem enviado de Deus, cujo nome era João. Este veio como testemunha, a fim de
dar testemunho da luz, para que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas
veio para dar testemunho da luz. Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem,
estava chegando ao mundo. Estava ele no mundo, e o mundo foi feito por
intermédio dele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam. Mas, a todos quantos o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue, nem da
vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e
habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória
201
do unigênito do Pai”.
Certamente, que Jesus sendo o Verbo de Deus, ou seja, aquele por quem Deus envia a
Sua mensagem à humanidade, ao encarnar-se como ser humano, podemos considerar o Verbo
se fazendo carne. Entretanto, o que não podemos fazer, por falta de lógica, é admitir que Jesus
seja o próprio Deus encarnado, uma vez que se Deus não cabe num templo, com muito maior
razão, não caberia num corpo humano, templo do Espírito. Salomão, com sua sabedoria,
percebeu que: “Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que o céu, e até o céu dos
céus, não te podem conter; quanto mais esta casa que edifiquei!” (1Rs 8,27), ou seja, nem
mesmo na Terra é admitido que Deus caiba, o que perfeitamente podemos entender, por se
tratar de um ser infinito.
E, quanto ao versículo 14, que diz “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”,
encontramos a seguinte explicação: “Esta expressão entre nós não é fiel ao original, que é
em nós (do grego em hemin; e do latim in nobis, como está na Vulgata). (CHAVES, 2006, p.
136). (negrito nosso). Em http://www.bibliacatolica.com.br/ confirmamos que, de fato, em
grego e latim, consta da forma aqui mencionada. O interessante é que isso muda
completamente o sentido da frase, pois se o Verbo está em nós, é, certamente, a centelha
divina que todos nós possuímos, não se pode dizer que somente Jesus a tenha.
O filósofo, educador e teólogo Huberto Rohden (1893-1981) manifestou sua opinião
sobre isso da seguinte forma:
Que é o Cristo, o Ungido, que os antigos hebreus chamavam Messias, o
Enviado?
O quarto Evangelho designa o Cristo com a palavra Logos, começando o
texto com estas palavras:
"No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus".
A palavra grega Logos é muito anterior à Era Cristã. Os filósofos antigos
de Alexandria e de Atenas, sobretudo, Heráclito de Éfeso, designavam
com Logos o espírito de Deus manifestado no Universo. Logos seria, pois,
o Deus imanente, em oposição à Divindade transcendente, que não é objeto de
nosso conhecimento.
A Vulgata Latina traduz Logos por Verbo: "No princípio era o Verbo..."
Logos, Verbo, Cristo são idênticos e designam a atuação da Divindade
Creadora, a manifestação individual da Divindade universal.
Neste sentido, o Cristo é Deus, mas não é a Divindade. E neste sentido
diz ele aos Homens: "Vós sois deuses"; os homens são manifestações individuais
da Divindade Universal. A primeira e mais perfeita das manifestações da
Divindade Universal, no Universo, é o Cristo, o Verbo, o Logos, que Paulo de
Tarso chama acertadamente "o primogênito de todas as creaturas" do Universo.
O Cristo é anterior à creação do mundo material. Ele é "o Primogênito de
todas as creaturas". O Cristo não é creatura humana, mas a mais antiga
individualidade cósmica, que, antes do princípio do mundo, emanou da
Divindade Universal.
O Cristo é Deus, mas não é a Divindade, que Jesus designa com o
nome Pai: "Eu e o Pai somos um, mas o Pai é maior do que eu".
Deus, na linguagem de Jesus, significa uma emanação individual da
Divindade universal.
A confusão tradicional entre Deus e Divindade tem dado ensejo a
intermináveis controvérsias entre os teólogos. Mas o texto do Evangelho
é claro: o Cristo afirmou ser Deus, mas nunca afirmou ser ele a própria
Divindade. (ROHDEN, 1996, p. 23-25) (grifo nosso).
Portanto, temos aí, por esse renomado teólogo ex-padre jesuíta, a confirmação de que
Jesus não é Deus, com base nessa passagem de João.
Encontramos, em nossa pesquisa, uma informação que será desconcertante para os que
acreditam na divindade de Jesus, tomando-se esse trecho de João sobre o Verbo, porquanto
ela nos induz a concluir que o passo em questão tem grande possibilidade de tratar-se de um
plágio do livro Rig-Veda da Índia, no qual consta este verso: “No princípio era Brahman, com
202
quem estava o Verbo, e o Verbo é Brahman” (traduzindo-se a palavra “Vak” do sânscrito como
“Verbo”. (LEWIS, 2008, p. 45).
Por outro lado, vemos a afirmativa de que Jesus é Filho unigênito, e João repete isso
por mais quatro vezes (Jo 1,18; 3,16,18; 1Jo 4,9), enquanto em outras passagens se diz ser
ele primogênito, estabelecendo um conflito, pois não se pode atribuir a uma mesma pessoa
simultaneamente essas duas condições. Leiamos os passos:
Rm 8,28-29:“E sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que
amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que
dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de
seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos;”.
Cl 1,12-15: “dando graças ao Pai que vos fez idôneos para participar da herança dos
santos na luz, e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do
seu Filho amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; o
qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;”.
As afirmativas de que Jesus foi “o primogênito entre muitos irmãos” e “o primogênito
de toda a criação” é um golpe mortal na crença de que Ele seja Deus, especialmente, aos que
querem usar a razão e a lógica como base de sua análise.
Rohden, provavelmente tomando dessas duas falas de Paulo, argumenta bem claro:
Quando Paulo de Tarso diz que o Cristo é o primogênito de todas as
creaturas, supõe ele que o Cristo seja creatura, e não o Creador, e toda
creatura é evolvível, de perfeição elástica, aumentável. Nenhuma creatura pode
coincidir com o Creador. " (ROHDEN, 1996, p. 45) (grifo nosso).
Outro autor bíblico que colocou Jesus como primogênito foi o de Hebreus:
Hb 1,1-6: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos
pais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez também o mundo; sendo ele o
resplendor da sua glória e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas as
coisas pela palavra do seu poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados,
assentou-se à direita da Majestade nas alturas, feito tanto mais excelente do que
os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles. Pois a qual dos anjos
disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele me
será Filho? E outra vez, ao introduzir no mundo o primogênito, diz: E todos os anjos
de Deus o adorem”.
Nesse passo, percebe-se que, para o autor, Jesus é superior aos anjos, os filhos de
Deus (Jo 1,6) que, como sabemos, são Espíritos humanos desencarnados; certamente, por sua
condição de Espírito puro, não se poderia dizer outra coisa dele.
Ao que nos parece, ele não fez confusão alguma no sentido de tomar Jesus como sendo
Deus; ele O vê como manifestação da divindade, coisa bem diferente daquilo que alguns
autores querem fazer-nos crer; porém, uma coisa não se definiu claramente, pois, nesse
passo, ele situa Jesus acima dos anjos, no que se segue, já faz justamente o contrário:
colocando-O abaixo dos anjos:
Hb 2,7-9: “Fizeste-o um pouco menor que os anjos, de glória e de honra o
coroaste, todas as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés. Ora, visto que lhe sujeitou
todas as coisas, nada deixou que não lhe fosse sujeito. Mas agora ainda não vemos
todas as coisas sujeitas a ele; vemos, porém, aquele que foi feito um pouco
menor que os anjos, Jesus, coroado de glória e honra, por causa da paixão da
morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos”.
É uma visão bem interessante, que, segundo acreditamos, contradiz o que se
dogmatizou a respeito de Cristo, entronizando-O como a segunda pessoa da Trindade.
203
Jo 1,15: “João deu testemunho dele, e clamou, dizendo: Este é aquele de quem eu
disse: O que vem depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim ele
já existia.
Jo 8,58: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que
Abraão existisse, eu sou”.
Cl 1,17: “Ele existe antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste”.
Não compreendendo que todos os Espíritos preexistem, tomaram essa afirmativa sobre
Jesus para sustentar a condição dele ser o próprio Deus. Certo estava o amigo de Jó ao dizer,
embora em outro contexto, que “somos de ontem e nada sabemos” (Jó 8,9); mas,
infelizmente, até o momento, isso não foi compreendido pelos teólogos, que não se deram
conta do seguinte:
Disso ressalta um outro ensinamento de uma alta gravidade. Não se
admitindo que a alma já viveu, é necessário, de toda a necessidade, que ela
seja criada no momento da formação e para uso de cada corpo; de onde se
segue que a criação da alma por Deus estaria subordinada ao capricho
do homem, e, na maior parte do tempo, o resultado do deboche. […] (KARDEC,
1993f, p. 188) (grifo nosso).
Já, por muitas vezes, vimos pessoas usando o “eu sou” citado por João, para divinizar
Jesus, ao estabelecerem uma relação dessa afirmativa com o que foi dito em Ex 3,14: “[...]
Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”. O que não fazem para chegar ao
que querem?... Na verdade quanto ao “eu sou” da frase de João trata-se do verbo existir, ou
seja, Jesus está afirmando que ele existia antes de Abraão, nada mais que isso. Simples, de
ver isso: se em Êxodo, ao invés de “eu sou”, estivesse um dos nomes atribuídos a Deus, a fala
ficaria: “Assim dirás aos olhos de Israel Jeová me enviou a vós”. Façamos a mesma coisa na
frase de João: “[...] antes que Abraão existisse, Jeová”, ou seja, não tem cabimento, pois a
frase ficará totalmente sem sentido, enquanto, que se entendermos o “eu sou” como “eu já
existia”, isso perfeitamente se encaixa para se compreender o que foi dito. Além disso, em Jo
14,10-11 Jesus afirma que “ eu estou no Pai, e que o Pai está em mim”, ou seja, estar no
Pai não é a mesma coisa que ser o pai e, por sua vez, o Pai está em mim, não significa dizer o
Pai sou eu.
Encontramos uma versão bem interessante para essa passagem de Êxodo: “Eu sou o
Ser. Assim dirás aos filhos de Israel: O Ser me enviou até a vós” (ASCH, 1958, p. 115), que,
acreditarmos, dá uma tradução mais lógica ao passo.
Uma vez que citamos Paulo (Cl 1,17), é oportuno vermos também o que Pepe
Rodríguez diz sobre ele:
Paulo deixou, no entanto, uma outra marca na doutrina, uma marca mais
essencial e original que as precedentes. Estamos a referir-nos à preexistência de
Cristo e ao seu papel fundamental após a ressurreição. Paulo não concebia
Jesus como um deus encarnado, e ainda menos como a segunda pessoa
da Santíssima Trindade. Para ele, o Jesus da Ascensão era o “Filho do
homem” dos místicos judeus. Segundo o ramo do ocultismo judeu, conhecido
por Maaseh Bereshit – em que Paulo fora iniciado e que procurava saber, a partir
da leitura do Génesis, como tinha sido criado o homem –, Deus criou o Homem
Celestial à sua imagem, como Arquétipo (Filho do homem), e foi à imagem
deste que Adão foi formado. Paulo integrou perfeitamente esta crença e
adaptou-a ao seu objetivo, postulando que o Homem Celestial ou “Messias do
Alto” encarnara em Jesus, o “Messias de Baixo”, transformando-o, assim, num
Segundo Adão. (42).
Por outras palavras, a origem do contributo determinante de Paulo para a
cristologia radica em determinadas crenças do ocultismo rabínico, crenças que
lhe eram caras desde a juventude e que não só se adaptaram perfeitamente à
sua personalidade peculiar, como lhe fortaleciam a convicção de ser um eleito
divino. “O Cristo de Paulo”, conclui Schonfield no seu estudo (43), “não é
Deus, mas sim a primeira criação de Deus. Na concepção de Paulo, não
há lugar para qualquer fórmula trinitária do credo de Anastásio, nem
204
para a outra doutrina por este defendida e segundo a qual o Filho foi
“não feito, nem criado, mas gerado”. […]
_____
42. É essa problemática que Paulo se refere quando, por exemplo, escreve; “Razão por
que está escrito: “O primeiro homem, Adão, foi um ser psíquico dotado de vida”; o último
Adão é um espírito que dá vida” (ICor 15,45). Descrições e desenvolvimentos similares
encontram-se igualmente noutras epístolas enviadas por Paulo às comunidades da Ásia,
aos Filipenses e aos Colossenses.
43. Cf. Schonfield, H. J. (1987), Jesús ¿Mesías o Dios?, Martínez Roca, Barcelona, pp. 188193.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 86-87) (grifo nosso).
Vê-se, portanto, que não há espaço para nos basearmos em Paulo visando elevar Jesus
à categoria de um deus.
Jo 4,34: “Disse-lhes Jesus: 'A minha comida é fazer a vontade daquele que me
enviou, e completar a sua obra'”.
Jo 5,30: “Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma; como ouço, assim
julgo; e o meu juízo é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade
daquele que me enviou”.
Jo 6,38: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade
daquele que me enviou”.
Fica clara a condição de Jesus ser subordinado a Deus, vindo ao mundo pela vontade
Dele, para cumprir determinada missão; por conseguinte, não temos como não vê-Lo como
alguém que é inferior a Deus, embora, bilhões e bilhões de vezes moralmente superior a
qualquer um de nós, seres humanos normais.
Jo 5,43: “Eu vim em nome de meu Pai, e não me recebeis; se outro vier em seu
próprio nome, a esse recebereis”.
Jo 8,38: “Eu falo do que vi junto de meu Pai; e vós fazeis o que também ouvistes de
vosso pai”.
Jo 10,18: “Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho autoridade
para a dar, e tenho autoridade para retomá-la. Este mandamento recebi de meu
Pai”.
Jo 10,29: “Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatálas da mão de meu Pai”.
Jo 14,21: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama;
e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei a
ele”.
Jo 14,23: “Respondeu-lhe Jesus: Se alguém me amar, guardará a minha palavra; e
meu Pai o amará, e viremos a ele, e faremos nele morada”.
Jo 15,10: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; do
mesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneço
no seu amor”.
Jo 15,15: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos dei a conhecer”.
Jo 15,23-24: “Aquele que me odeia a mim, odeia também a meu Pai. Se eu entre eles
não tivesse feito tais obras, quais nenhum outro fez, não teriam pecado; mas agora,
não somente viram, mas também odiaram tanto a mim como a meu Pai”.
Ninguém chama a si mesmo de “meu Pai”, a não ser que esteja completamente fora do
juízo. Até onde sabemos, não existe nenhuma lei natural que possa fazer alguém ser pai de si
mesmo; portanto, aqui temos claramente a distinção entre Jesus e Deus. E não há desculpa de
205
“mistério” que possa resolver essa questão.
Jo 8,54: “Respondeu Jesus: 'Se eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória não é
nada; quem me glorifica é meu Pai, do qual vós dizeis que é o vosso Deus;'”.
Jo 20,17: “Disse-lhe Jesus: 'Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai
a meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus'”.
Verifica-se que Jesus se coloca exatamente na mesma condição que todos nós, pois se
o Pai/Deus dele é o mesmo que o nosso, não podemos qualificá-Lo como sendo o próprio
Deus, porquanto, dizer o contrário é não ser coerente com o que aqui Ele diz.
Jo 10,25: “Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço
em nome de meu Pai, essas dão testemunho de mim”.
O correto seria dizer “as obras que eu faço, faço em meu nome”, caso Jesus se
considerasse o próprio Deus.
Jo 10,30: “Eu e o Pai somos um”.
Jo 14,20: “Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em
vós”.
Jo 17,22: “E eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós
somos um;”.
A primeira dessas passagens é a que é mais usada para sustentar a divindade de Jesus.
O que não se faz para manter um dogma, pois aqui, de uma metáfora, fizeram uma realidade.
Quando um padre diz ao casal, que abençoa, “agora vocês formam um só corpo”, tomando
como base “o homem... se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24),
devemos entender pelo sentido metafórico ou como coisa real? Da mesma forma, também não
poderemos pegar o “Eu e o Pai somos um” a não ser no sentido figurado. E, tanto é verdade,
que o que se diz em Jo 17,22 derruba aquilo que tomaram como verídico; inclusive, para
serem coerentes teriam que tomá-lo também no mesmo sentido de Jo 10,30, mas não é isso o
que fazem. Caso Jesus quisesse que entendêssemos alguma igualdade, certamente teria dito
algo mais ou menos assim: “Eu e o Pai somos a mesma pessoa”; fala bem explicita, de modo a
não deixar qualquer possibilidade de dúvidas. Aliás, o que estamos vendo é que dezenas de
passagens nos apontam para o fato de que Jesus não é Deus, enquanto com apenas uma
“meia-dúzia de seis”, num linguajar popular, tentam nos contradizer, tomando de uma
interpretação ortodoxa, que visa apenas sustentar dogmas impostos a ferro e fogo.
Recorramos novamente ao teólogo Rohden, que se manifestou da seguinte forma:
A visão de Jesus é inteiramente monista, e não monoteísta; para ele, há uma
única Essência, que ele chama Pai, a qual se manifesta em muitas existências,
ou creaturas. Depois de afirmar "Eu e o Pai somos um", acrescenta ele "mas o
Pai é maior do que eu", como se dissesse: Eu, o Cristo, estou na Divindade
mas não sou a Divindade; a Divindade é infinitamente maior do que eu.
Ou então, em terminologia filosófica: Eu, a existência individual, sou uma
manifestação da Essência Universal, que é maior que qualquer existência; vós
também, meus discípulos, sois existências individuais, manifestações da
Essência única da Divindade.
A manifestação individual da Divindade Universal é por ele chamada Deus.
Quando foi acusado de se dizer Deus, não o negou, e acrescentou que
também os homens eram Deus, isto é, manifestações individuais da
Divindade Universal: "Vós também sois deuses".
Quando o Cristo se diz Deus, afirma ele que é uma manifestação
individual da Divindade, mas não faz de si uma parcela ou pessoa da
Divindade, como não faz dos homens parcelas ou pessoas da Divindade.
Nenhuma creatura é parcela ou centelha da Divindade, como querem os poetas;
se a Divindade se parcelasse, ela se diminuiria na razão direta do seu
206
parcelamento.
As creaturas são apenas manifestações da Divindade, ou existencializações
múltiplas da Essência una e única. (ROHDEN, 1996, p. 60-61) (grifo nosso).
E em Jesus Nazareno, Rohden, volta ao assunto, desta vez dizendo:
Há quase vinte séculos que a cristandade se agita em controvérsias sobre a
questão se Cristo é Deus ou não, confundindo Deus com Divindade.
Jesus faz ver aos seus adversários que ele, como a mais alta emanação
individual (Deus) da Divindade não é escravo, mas Senhor do sábado, e não tem
de obedecer a leis humanas.
Em todo esse diálogo com seus ouvintes, afirma Jesus que o seu Cristo é
Deus, mas que o Pai, que é a Divindade, é maior do que ele, o Cristo, a primeira
e mais alta emanação individual da Divindade Universal. Entretanto, como os
ouvintes não sabiam distinguir entre Deus e Divindade (Pai), compreendem mal
as palavras de Jesus. Ele, porém, continua a afirma que está na Divindade e a
Divindade está nele, embora a Divindade seja maior do que ele. Acrescenta que
a Divindade também está em todos os homens, e todos os homens estão na
Divindade, por isto, todo homem é Deus, uma emanação individual da
Divindade, embora nenhum homem seja a própria Divindade Universal.
Para ilustrar esta verdade, poderíamos fazer o seguinte paralelo. Um raio
solar pode dizer: Eu e o Sol somos um; o Sol está em mim, e eu estou no Sol –
mas o Sol é maior do que eu.
Esta imanência de Deus nas creaturas é chamada “panenteísmo” (tudo em
Deus), que não é “panteísmo” (tudo é Deus).
A Divindade é a única Essência, que está imanente em todas as Existências.
A Divindade é o Infinito, assim como a Essência única está em todas as
Existências múltiplas. (ROHDEN, 2007, p. 103-104).
Rohden foi muito feliz em suas colocações; somente o fanatismo, que embota o
raciocínio, impede de entendê-lo.
Ademais falta aos fanáticos um pouco mais de coerência, pois deveriam dar a outros
textos a mesma linha de interpretação que dão a “Eu e o pai somos um” (Jo 10,30). Vejamos
os passos:
Rm 12,5: “Assim nós, embora muitos, somos um só corpo em
individualmente uns dos outros”.
Cristo, e
1Cor 10,17: “Pois nós, embora muitos, somos um só pão, um só corpo; porque todos
participamos de um mesmo pão”.
Gl 3,28: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem
mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.
Em nenhuma dessas falas de Paulo, poderemos dar uma interpretação literal, teremos,
pois, por lógica e bom senso, tomá-las no sentido simbólico, tal e qual devemos aplicar à fala
de Jesus em João (Jo 10,30).
Mais uma fala de Paulo:
Gl 2,19-20: “Pois eu pela lei morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que
agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si
mesmo por mim”.
Se o “Cristo vive em mim” então, podemos concluir que Paulo é o Cristo. Sabemos ser
apelação, mas é exatamente isso que fazem a respeito de Jesus, quando querem tomá-lo à
conta de ser o próprio Deus.
Acreditamos que as pessoas que creem na Trindade tomam Jesus por Deus, baseandose no “Eu e o Pai somos um”; entretanto, esse entendimento carece de lógica, pois, para
207
também justificar o Espírito Santo como sendo Deus, não apresentam uma afirmativa como
essa, no sentido de que o Espírito Santo e Deus também sejam um, ou mesmo uma
semelhante, tal como: “Eu, o Pai e o Espírito Santo somos um”.
Jo 14,28: “Ouvistes que eu vos disse: 'Vou, e voltarei a vós. Se me amásseis, alegrarvos-íeis de que eu vá para o Pai; porque o Pai é maior do que eu'”.
Não fosse a teimosia em querer sustentar suas crenças, essa passagem seria o “tiro de
misericórdia” na questão de Jesus ser Deus, porquanto, ele aqui foi taxativo em afirmar que
Deus é maior do que ele, e o que é maior, por questões de razão e lógica, não pode,
simultaneamente, ser visto como se fosse uma igualdade. Aliás, dizer que formam uma única
entidade, mas distintas ao mesmo tempo, já é, para nós, uma grande contradição.
Jo 15,1: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o viticultor”.
Percebemos que se tem de fazer muito esforço exegético para querer sustentar a tese
de que Jesus é Deus, porquanto, são inúmeras as passagens que nos apontam na direção
contrária. O sentido metafórico aqui é claro, não podemos tomar um pelo outro, ou seja, Jesus
como sendo o próprio Deus, pois a videira não pode ser tomada pelo cultivador, da qual é
dono. Também, por lógica, não se deve tomar o filho com o pai, nem a coisa com o dono.
Jo 20,26-28: “Oito dias depois estavam os discípulos outra vez ali reunidos, e Tomé
com eles. Chegou Jesus, estando as portas fechadas, pôs-se no meio deles e disse: 'Paz
seja convosco'. Depois disse a Tomé: 'Chega aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos;
chega a tua mão, e mete-a no meu lado; e não mais sejas incrédulo, mas crente'.
Respondeu-lhe Tomé: 'Senhor meu, e Deus meu!'.
Essa é mais uma das passagens utilizadas para sustentar que Jesus é Deus. Preferimos
tomar de outra tradução a expressão final de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”, para facilitar
o entendimento. É algo que sempre acontece conosco no dia a dia, quando nos surge um
acontecimento extraordinário e exclamamos: “Meu Deus”. Ou ao encontramos um amigo que
não vemos de longa data, lhe dizer: “Meu Deus, você aqui!”. Certamente, que não queremos
elevar ninguém à categoria da divindade; é apenas uma forma de falar, tal e qual,
acreditamos, aconteceu com Tomé. Aliás, causa-nos espécie essa fala de Tomé só ter sido
narrada apenas por um dos evangelistas, quando fato semelhante a esse em importância - ida
de Jesus do Pretório ao Calvário -, foi narrado pelos quatro (Mt 27,31-32; Mc 15,20-21; Lc
23,25-26 e Jo 19,16-17).
At 2,22: “Varões israelitas, escutai estas palavras: A Jesus, o nazareno, varão
aprovado por Deus entre vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus por ele fez
no meio de vós, como vós mesmos bem sabeis;”.
Certamente que a afirmativa de Pedro, que Jesus era um varão aprovado por Deus,
está bem longe de se atribuir a Ele uma condição divina, porquanto, ser aprovado varão é uma
coisa, ser Deus é outra completamente diferente.
Pepe Rodríguez, mencionando esse passo, assim explica a questão:
Os Actos dos Apóstolos atestam exactamente isso, ou seja, que a
primitiva fé cristã distinguia cuidadosamente entre Deus e Cristo, como se vê,
por exemplo, em Act 2,22, onde se diz:” Varões israelitas, escutai estas
palavras: Jesus de Nazaré, credenciado por Deus a vossos olhos por seus
milagres, prodígios e sinais que Deus fez por seu intermédio no meio de vós
[...]”, ou em Act 7,55: “Ele [trata-se de Estêvão], cheio do Espírito Santo, olhou
para o céu e viu a glória de Deus e Jesus em pé à direita de Deus”. A invejável
vista de Estêvão talvez não seja tão boa como parece, se a tomarmos por um
dos recursos literários de que Lucas habitualmente se serve para introduzir nos
seus textos inspirados dados alheios aos próprios factos. No caso vertente, esse
dado é a famosa visão de Mc 16,19, que supõe Jesus “sentado à direita de
Deus”. É evidente, no entanto, que quer para Lucas como para Marcos,
Deus e Jesus são duas entidades absolutamente separadas, diferentes e
de natureza distinta. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 175) (grifo nosso).
208
Na opinião desse estudioso, em seu tempo, Jesus não era considerado Deus, isso foi
coisa que aconteceu posteriormente, com o desenvolvimento do cristianismo, que muito
abraçou das crenças pagãs.
At 3,13: “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a
seu Servo Jesus, a quem vós entregastes e perante a face de Pilatos negastes,
quando este havia resolvido soltá-lo”.
A afirmativa de Pedro é categórica quanto à situação de Jesus de ser um servo
glorificado por Deus, não cabendo nenhuma outra interpretação que eleve Jesus à condição de
ser o próprio Deus, numa encarnação humana.
At 3,22: “Pois Moisés disse: 'Suscitar-vos-á o Senhor vosso Deus, dentre vossos
irmãos, um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser'”.
At 3,26: “Deus suscitou a seu Servo, e a vós primeiramente vo-lo enviou para que
vos abençoasse, desviando-vos, a cada um, das vossas maldades”.
Continuando seu discurso, Pedro relaciona Jesus a Moisés que, segundo acreditavam,
havia feito uma profecia de que Deus iria enviar um profeta semelhante a ele (Dt 18,15); disso
só temos uma alternativa: aceitar que Pedro e todos os outros discípulos tinham Jesus como
um profeta; não como a encarnação de Deus.
Por outro lado, a crença dos judeus era que, segundo as profecias, Deus lhes enviaria
um Messias (ungido); não que ele mesmo viria para restabelecer a sua aliança com o povo
hebreu.
At 4,27-31: “Porque verdadeiramente se ajuntaram, nesta cidade, contra o teu santo
Servo Jesus, ao qual ungiste, não só Herodes, mas também Pôncio Pilatos com os
gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho
predeterminaram que se fizesse. Agora pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças, e
concede aos teus servos que falam com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto
estendes a mão para curar e para que se façam sinais e prodígios pelo nome de teu
santo Servo Jesus. E, tendo eles orado, tremeu o lugar em que estavam reunidos; e
todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com intrepidez a palavra de Deus”.
Aí temos uma fala atribuída à comunidade cristã (v. 24), na qual se reafirma o que
Pedro dissera a respeito de Jesus, tendo-o como um santo servo de Deus, o que nos indica ser
essa a crença geral naquela época.
At 5,31: “Sim, Deus, com a sua destra, o elevou a Príncipe e Salvador, para dar a
Israel o arrependimento e remissão de pecados”.
Ora, se Deus elevou Jesus à condição de Príncipe e Salvador é porque Ele estava numa
situação inferior a essa, razão pela qual, não O podemos ter como Deus, pois isso implica em
contradizer o que daí podemos entender.
At 9,22: “Saulo, porém, se fortalecia cada vez mais e confundia os judeus que
habitavam em Damasco, provando que Jesus era o Cristo”.
Se pela crença daquela época tinham Jesus como Deus, por que motivo Paulo não
tentava provar isso, mas que Jesus era o Cristo? Cristo significa em grego ungido e em
hebraico messias, portanto alguém subordinado à divindade e não ela própria.
At 10,36-38: “A palavra que ele enviou aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus
Cristo (este é o Senhor de todos) esta palavra, vós bem sabeis, foi proclamada por toda
a Judeia, começando pela Galileia, depois do batismo que João pregou, concernente a
Jesus de Nazaré, como Deus o ungiu com o Espírito Santo e com poder; o qual
andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do Diabo, porque
Deus era com ele”.
O que aqui ocorre é semelhante ao passo anterior; portanto, se Deus ungiu a Jesus com
209
“o Espírito Santo e com poder” é pelo fato de que Ele não gozava dessa condição, o que nos
leva a acreditar que era inferior à nova situação; aquela depois de ungido e de ter recebido o
poder.
At 10,42: “este nos mandou pregar ao povo, e testificar que ele é o que por Deus foi
constituído juiz dos vivos e dos mortos.
Dessa fala de Pedro temos que Jesus disse que Deus o havia constituído juiz, como só
se outorga uma condição dessa a quem não a tem, esse é o motivo que não nos permite
concluir que Jesus seja Deus; até mesmo porque, no sentido real, ninguém concede alguma
coisa a ele mesmo.
Rm 1,1-4: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o
evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas
Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne,
e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade,
pela ressurreição dentre os mortos - Jesus Cristo nosso Senhor,”.
Aqui a coisa vai mais longe, pois, se Jesus foi declarado Filho de Deus segundo o
espírito de santidade, nós outros o que somos? Ainda mantemos a ideia dos dois comentários
anteriores, pois Jesus foi declarado ser algo que antes não era; consequentemente, não temos
como elevá-Lo a uma situação de ser Ele o próprio Deus.
Rm 1,8: “Primeiramente dou graças ao meu Deus, mediante Jesus Cristo, por
todos vós, porque em todo o mundo é anunciada a vossa fé”.
2Cor 12,21: “e que, quando for outra vez, o meu Deus me humilhe perante vós, e
chore eu sobre muitos daqueles que dantes pecaram, e ainda não se arrependeram da
impureza, prostituição e lascívia que cometeram.”
Fl 1,2: “Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós”.
Fl 4,19: “Meu Deus suprirá todas as vossas necessidades segundo as suas riquezas na
glória em Cristo Jesus”.
Fm 1,4: “Sempre dou graças ao meu Deus, lembrando-me de ti nas minhas orações”.
Teria Paulo perdido essas oportunidades para afirmar que Jesus era Deus, ou definir
Deus como sendo três pessoas? Acreditamos que não, porquanto, não era essa a concepção
que faziam de Jesus àquela época, conforme está ficando cada vez mais claro nesse estudo.
Rm 8,1-14: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo
Jesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da
morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus
enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do
pecado, na carne condenou o pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse
em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois os que são
segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o
Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a
inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra
Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser; e os que estão na
carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no
Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o
Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Ora, se Cristo está em vós, o corpo, na
verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E,
se o Espírito daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos
mortos ressuscitou a Cristo Jesus há de vivificar também os vossos corpos mortais,
pelo seu Espírito que em vós habita. Portanto, irmãos, somos devedores, não à carne
para vivermos segundo a carne; porque se viverdes segundo a carne, haveis de
morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Pois todos os
que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”.
210
Na verdade, não encontramos nada nessa passagem; porém, como a vimos ser citada
(o que consta em negrito) para justificar que Jesus é Deus, resolvemos colocá-la aqui. Mas é
certo que o Espírito de Deus habita em nós; não fomos criados à sua semelhança? O sentido
figurado não pode ser outro a não ser esse. E realmente, se uma pessoa não tem o Espírito de
Cristo, ou seja, age como Ele agiu, não é dele, porquanto, não o segue no exemplo.
Rm 9,3-5: “Porque eu mesmo desejaria ser separado de Cristo, por amor de meus
irmãos, que são meus parentes segundo a carne; os quais são israelitas, de quem é a
adoção, e a glória, e os pactos, e a promulgação da lei, e o culto, e as promessas; de
quem são os patriarcas; e de quem descende o Cristo segundo a carne, o qual é sobre
todas as coisas, Deus bendito eternamente. Amém.
Muitas vezes deparamos com uma situação como essa; a de que a pontuação usada
pelos tradutores pode nos levar a uma conclusão equivocada do que se está querendo dizer. Se
no trecho final (v. 5) fosse dito: “[...] e de quem descende o Cristo segundo a carne, o qual é
sobre todas as coisas; Deus bendito eternamente. Amém”, perceberíamos que o sentido da
frase é diferente do que se poderia pensar que aqui estar-se-ia se dizendo que Jesus é Deus.
Quanto à questão da pontuação, é bom que se saiba:
[...] Um dos problemas com textos gregos antigos (o que incluiria todos
os escritos cristãos mais primitivos, incluindo os do Novo Testamento) é que,
quando eram copiados, não se usavam marcas de pontuação, não se
fazia distinção entre minúsculas e maiúsculas e, o que é ainda mais
estranho para leitores modernos, não havia espaços de separação entre as
palavras. Este tipo de escrito sequencial é chamado de scriptuo continua e, é
claro, muitas vezes, podia dificultar ler (nem falemos em entender) um texto. As
palavras godisnowhere poderiam significar algo completamente distinto para um
crente (God is now here = Deus está aqui agora) e para um ateu (God is
nowhere = Deus não está em parte alguma) e o que significa dizer
nojantardanoitepassadaamesaestavaabundante? Isso seria um acontecimento
normal ou extraordinário? (EHRMAN, 2006, p. 58) (grifo nosso).
Sabemos que os manuscritos originais do Novo Testamento não
possuíam pontuação, e em face do fato de o grego clássico (incluindo o grego
koiné, no qual foi escrito o Novo Testamento) gozar de ampla liberdade no
tocante à ordem das palavras, é impossível, à base do próprio texto grego,
provar um lado ou outro dessas ideias contraditórias. […] (SILVA, C., 2001, p.
309-310) (grifo nosso).
[…] Os manuscritos originais também não tinham sinais de
pontuação. Estes foram introduzidos na arte de escrever em época recente. É
claro, pois, que a pontuação moderna não é inspirada, e por isso não dá, às
vezes, sentido às palavras do original. (SILVA, A., 1997, p. 77) (grifo nosso).
Disso conclui o teólogo Russell N. Champlin (1933- ) “Já que os primeiros manuscritos
do N.T. são sem pontuação sistemática, editores e tradutores do texto devem inserir tais
marcas de pontuação como parecem apropriadas à sintaxe e ao significado. […]” (CHAMPLIN,
vol. 3, 2005c, p. 745). Isso, de fato, torna-se um problema muito sério, pois um sinal de
pontuação mudado de lugar, acrescentado ou suprimido, seja por interesse ou não de quem o
fez, pode alterar profundamente o sentido do texto. Para exemplificar isso, vejamos como o
versículo 5, do passo citado, se encontra em outras traduções bíblicas:
Bíblia do Peregrino: “[…] de sua linhagem segundo a carne descende o Messias. Seja
para sempre bendito o Deus que está acima de tudo. Amém”.
Bíblia Vozes: “[…] e deles é o Cristo segundo a carne. O Deus que está acima de tudo
seja bendito pelos séculos! Amém”.
Tradução Novo Mundo: “[…] e de quem [procedeu] o Cristo segundo a carne: Deus,
que é sobre todos, [seja] bendito para sempre. Amém”.
Observe-se que em todas, além da disposição dos vocábulos, há divergência na
pontuação, o que também ocorre comparando-as com a que transcrevemos mais acima.
211
Certamente, que o sentido delas, em relação à primeira, é completamente diferente em
virtude da pontuação, entre um período e outro, pois, quer se usando um ponto, quer se
usando os dois, não temos a mesma ideia de que no caso de usarmos uma vírgula, como no
texto questionado. Assim, percebe-se que a intenção no texto é destacar Deus como sendo o
verdadeiro e não a Jesus, o que se pode perfeitamente confirmar pelas próprias palavras de
Jesus se referindo ao Pai: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o único
Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste”. (Jo 17,3).
As duas primeiras Bíblias – do Peregrino e Vozes - são de cunho católico e a última
protestante. Acreditamos, sinceramente, que o significado seja o que daqui tiramos dessas
traduções e não o da outra citada anteriormente. Isso porque, conforme estamos
demonstrando, Jesus, àquela época, não era considerado como sendo o próprio Deus, somos
obrigados a repetir. Esse fato veio a acontecer posteriormente, por imposição dos denominados
“pais da Igreja”, cuja interpretação acabou prevalecendo; portanto, são eles os “pais da
criança”, ou seja, os culpados de transformar Jesus em Deus; e, na sequência, para abrigar
esse absurdo teológico, foi criada a Trindade, que conforme acreditamos, foi copiada de outras
religiões mais antigas.
O certo é que Paulo, autor da carta aos Romanos, não tinha Jesus como Deus. Esse fato
é importante, porquanto ele viveu bem mais próximo dos acontecimentos do que os “pais da
Igreja”. Leiamos o que ele disse aos colossenses:
Cl 1,15-20: “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior a
qualquer criatura; porque nele foram criadas todas as coisas, tanto as celestes como
as terrestres, as visíveis como as invisíveis: tronos, soberanias, principados e
autoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as
coisas, e tudo nele subsiste. Ele é também a Cabeça do corpo, que é a Igreja. Ele é o
Princípio, o primeiro daqueles que ressuscitam dos mortos, para em tudo ter a
primazia. Porque Deus, a Plenitude total, quis nele habitar, para, por meio dele,
reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo
a paz pelo seu sangue derramado na cruz”.
Caso Paulo realmente pensasse que Jesus fosse Deus, nunca iria dizer "ele é a imagem
do Deus invisível" e "aprouve a Deus fazer habitar nele a plenitude”; e para quem afirma que
"… não há senão um só Deus" (Rm 3,30), é porque não pensava em divinizá-lo ou em torná-lo
um Deus; certamente usou uma metáfora para evidenciar a grandeza de Jesus, que sabemos
ter participado da criação do mundo, como preposto de Deus.
1Cor 1,22-24: “Pois, enquanto os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria,
nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os
gregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de
Deus, e sabedoria de Deus”.
A figura de linguagem é notória; Paulo sempre colocou Jesus como mediador entre
Deus e os homens (Gl 3,19-20; 1Tm 2,5) e, neste sentido, Ele está com o poder e a sabedoria
de Deus, sem exatamente ser o próprio Deus. O autor de Hebreus, como exemplo, tem essa
mesma visão de Paulo, ou seja, para ele também Jesus é mediador. (Hb 8,6; 9,15 e 12,24).
1Cor 8,4-6: “Quanto, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que o
ídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus, senão um só. Pois, ainda que haja
também alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra (como há muitos
deuses e muitos senhores), todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem são
todas as coisas e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual
existem todas as coisas, e por ele nós também”.
Gl 3,20: “Ora, o mediador não o é de um só, mas Deus é um só.
Ef 4,46: “Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só
esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e
Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos”.
1Tm 2,5: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo
212
Jesus, homem,”.
Também seriam excelentes oportunidades para Paulo dizer que existe um só Deus e que
nele há três pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo; entretanto, não o faz, porquanto, ainda
não havia sido criada a crença na Trindade, o que só aconteceu posteriormente, conforme já o
dissemos. Então, se aqui Jesus não foi elevado à categoria de um Deus, extemporaneamente,
isso não deveria ter sido feito pelos teólogos dogmáticos. Na última passagem ainda se reforça
a condição de Jesus ser homem, embora não se possa negar sua condição de mensageiro
Divino, o maior Espírito que pisou o solo da Terra.
2Cor 4,4: “nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para
que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem
de Deus.
Cl 1,13-15: “e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do seu
Filho amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; o qual é
imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;”.
Confundir a imagem de uma pessoa com a própria pessoa é algo em que falta bom
senso e lógica, aos que assim procedem. Se Jesus é a imagem de Deus, não pode ser, ao
mesmo tempo, o próprio Deus, como a nossa imagem no espelho não é o nosso ser; é, na
realidade, apenas um reflexo do “meu físico”.
Gl 4,4-5: “mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido debaixo de lei, para resgatar os que estavam debaixo de lei, a fim
de recebermos a adoção de filhos”.
Se, conforme se entende, Jesus não teria vindo destruir a Lei (Mt 5,17), tendo nascido
de mulher e debaixo da lei, ou seja, nasceu de forma natural, como acontece a todos nós, pois
essa é a Lei, então, ele é um ser humano, em igualdade de condições conosco. Aliás, Ele
mesmo afirmou “Tudo o que eu fiz, vós podeis fazer e até muito mais” (Jo 14,13); dessa forma
Ele se iguala a todos nós, sem se colocar na posição de um ser superior e divino. Essa frase
torna-se impossível aplicar-se caso Jesus seja um ser divino, na condição humana, porém,
totalmente factível, se Jesus for um homem em missão divina.
Ef 4,11-13: “E ele deu uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros como
evangelistas, e outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos
santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos
cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado de
homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo;”.
Ora, se podemos chegar à medida da estatura da plenitude de Cristo é sinal de que Ele
não é Deus, porquanto, nunca chegaremos à plenitude de Deus, uma vez que, se isso pudesse
acontecer, teríamos vários deuses; melhor dizendo, bilhões de deuses. Entretanto, não nos
será impossível chegar ao estado de homem feito (espírito puro).
Fp 2,5-11: “Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, o
qual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a
que se devia aferrar, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si
mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o
exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo nome; para que ao nome
de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e
toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai”.
Aqui temos uma declaração bem conflitante com o restante dos textos bíblicos, na qual
supõem-se que Paulo declara ser Jesus igual a Deus; entretanto, parece-nos que os tradutores
da Bíblia de Jerusalém pensam de outra forma; tanto é que a palavra Deus está grafada em
letra minúscula, querendo significar um homem “não-pecador” (Bíblia de Jerusalém, p. 2049).
Esclarece-nos ainda mais, dizendo que o versículo 6b possuiu “outras traduções menos
prováveis: 'não considerou o estado de igualdade com Deus como presa a agarrar”, “não
213
reteve ciumentamente a condição que o igualava a Deus”, (Bíblia de Jerusalém, p. 2049). Isso
nos despertou a curiosidade para ver como consta em outras Bíblias. Vejamos:
Versões bíblicas
SBTB/TBS,
SBTB
SBB
Shedd
Cristão
Mundo
e
e
Texto bíblico Fp 2,5-6:
"De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em
Cristo Jesus, que sendo em forma de Deus, não teve por usurpação
ser igual a Deus”.
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,
pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como
usurpação o ser igual a Deus;”.
De Jerusalém
“Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus: Ele, estando na
forma de Deus não usou de seu direito de ser tratado como um
deus”.
Barsa
“E haja entre vós o mesmo sentimento que houve também em Jesus
Cristo. O qual tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele
uma usurpação ser igual a Deus:”
Paulinas/Loyola
“Comportai-vos entre vós assim, como se faz em Jesus Cristo: ele, que é
de condição divina, não considerou como presa a agarrar o se
igual a Deus”.
Pastoral
“Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo:
Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade
com Deus”.
Ave Maria
“Dedicai-vos mutualmente a estima que se deve em Cristo Jesus. Sendo
ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com
Deus”.
Santuário
“Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus: Ele
que era de condição divina não reivindicou o direito de ser
equiparado a Deus”.
Vozes
“Tende em vós os mesmos sentimentos que Cristo Jesus teve: Ele,
subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser
igual a Deus”.
Paulinas
1957,
1977 e 1980
“Tende em vós os mesmos sentimentos que (houve) em Jesus Cristo, o
qual, existindo na forma (ou natureza) de Deus, não julgou que
fosse uma rapina o seu ser igual a Deus”.
Novo Mundo
“Mantende em vós esta atitude mental que houve também em Cristo
Jesus, o qual, embora existisse em forma de Deus, não deu
consideração a ser igual a Deus”.
Temos o velho problema das traduções que, em obediência à concepção individual do
autor bíblico, acabaram por transformar Jesus no próprio Deus, sem nenhum fundamento no
que Ele disse, mas, apenas, seguindo crença generalizada entre os povos antigos. E nisso
foram bem mais longe, pois, enquanto os pagãos acreditavam que o seu deus vinha à terra e
em contato carnal com uma mulher virgem gerava um semideus, os cristãos elevaram o seu
semideus à condição de Deus.
Tem plena razão o escritor José Pinheiro de Souza (1938- ), quando diz:
Do mesmo modo, os escritores cristãos da igreja primitiva (sobretudo Paulo e
João), influenciados pela cultura mitológica dominante da época (a cultura
grego-romana), onde era muito comum a crença em “encarnações divinas” e em
“filiação divina”, não no sentido adotivo/metafórico/honorífico, mas no sentido
natural (físico/biológico), para enaltecer ao máximo a pessoa de Jesus e as suas
ações e, sobretudo, para dar credibilidade ao cristianismo nascente,
absolutizaram-no, endeusando-o e fazendo-o super exclusivista, o único “Filho
de Deus”, o único Deus encarnado (no sentido natural dessas expressões), o
único salvador da humanidade, o único mediador entre Deus e os homens, o
único fundador da verdadeira religião, o único que verdadeiramente ressuscitou
dos mortos, etc. (SOUZA, 2010, p. 35-36).
214
Mais à frente, acrescenta:
Paulo de Tarso, para dar credibilidade ao cristianismo primitivo e atrair
seguidores de várias religiões do mundo pagão do Mediterrâneo, procurou
converter os adeptos dessas religiões pagãs, utilizando a estratégia
mítica de que Cristo também era uma divindade salvadora, vinda do céu,
tendo nascido miraculosamente (como os demais deuses das religiões
pagãs) mediante um parto virginal, tendo sido morto e ressuscitado
para resgatar-nos de nossos pecados herdados do pecado de Adão e
Eva.
O Paulinismo, como estamos comprovando nesta obra, é, de fato, cópia e/ou
incorporação de crenças, de cultos e de ritos de várias religiões pagãs de épocas
mais antigas do que o cristianismo, destacando-se o culto a Ísis, a Dionisio e a
Mitra. Para atrair seguidores para o cristianismo, Paulo fez sincretismo com
elementos de várias religiões e filosofias, particularmente com elementos das
religiões de mistério do Egito, da Grécia, do paganismo greco-romano, da Índia
e de várias outras culturas religiosas mais antigas:
As evidências da grande semelhança entre a religião cristã e outras crenças do
mundo antigo são volumosas, detalhadas, extremamente específicas e
incrivelmente vastas, estendendo-se desde a sabedoria védica na Índia aos mitos
nórdicos da Escandinávia, às lendas dos incas e à espiritualidade original dos povos
indígenas da América do Norte (HARPUR, 2008, p. 43)
(SOUZA, 2010, p. 40-41) (grifo nosso).
Analisando-se friamente os textos bíblicos não podemos deixar de dar razão ao fato de
que o cristianismo tem muito das religiões pagãs; somente não se vê isso por extremada
ortodoxia.
Cabe-nos ressaltar que o prof. Pinheiro é da opinião de que foi Paulo o responsável pela
divinização de Jesus, conforme se vê nesse seu texto. Outra pessoa que pensa da mesma
forma é a historiadora e advogada Paloma Sánchez-Garnica (1962- ), autora da obra O grande
Arcano, da qual transcrevemos:
As massas arrastadas pela sua mensagem cresceram tanto nos anos
posteriores à sua morte, que surgiram os oportunistas. A população romanizada
gostava de ouvir a mensagem de Jesus de Nazaré. Mas essa população
precisava de um homem superior, reclamava que essa mensagem procedesse de
um ser divino, pois estava acostumada a venerar mil deuses. Não se podia
apresentar o porta-voz daquelas palavras como um homem normal, e começouse a tergiversar o fundamental em toda essa farsa: a ressurreição de Jesus de
Nazaré em corpo e alma, sua divinização levada ao extremo, equiparando-o ao
próprio Deus, quando Ele em nenhum momento dissera que era Deus. […] Isso
pode ser comprovado nos Evangelhos. Nenhum dos quatro evangelistas põe na
boca de Jesus sua identificação com Deus; quando lhe é perguntado quem é,
responde que é “filho do homem”, dando a entender que era um homem sem
mais adjetivos, e isso já podia ser considerado corno a mais alta honraria.
Foi nas Epístolas de Paulo que apareceu a expressão “Filho de Deus”,
e precisamente a Paulo se atribuiu a origem dessa ideia da ressurreição
e da divinização do homem.
Assim tudo começou. A partir de então, surgiu uma profusão de ideias e de
linhas de pensamento: as lutas e enfrentamentos foram numerosos, até que
venceu uma dessas correntes; aquela fundada por Paulo e mantida pela corrente
grega foi a que triunfou e se impôs ao restante; estabeleceu seu poder
definitivamente no concílio de Niceia de 325 e afastou, destruiu, perseguiu ou
considerou como hereges todos os que não estivessem de acordo com ela. Os
textos originais dos Evangelhos foram alterados, porque era necessário
adaptá-los à população a que eram dirigidos, uma população não judia,
e sim romana, helenizada e com uma mentalidade distinta à dos judeus a quem
Jesus havia se dirigido; sua verdadeira mensagem ficou em um segundo plano:
valia tudo para aumentar o número de discípulos da nova religião.
A partir desse momento, ou se estava com a Igreja ou contra ela. Em poucos
anos, os perseguidos passaram a ser perseguidores; e assim se passaram dois
215
mil anos. (SÁNCHEZ-GARNICA, 2008, p. 427-428) (grifo nosso).
Nosso objetivo em trazê-la foi para vermos que também ela afirma que os textos
originais dos Evangelhos foram adulterados, para adaptá-los aos dogmas estabelecidos.
1Tm 3,16: “E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Aquele que se
manifestou em carne, foi justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre os
gentios, crido no mundo, e recebido acima na glória”.
Esse passo é mais um dos que precisamos ver o teor em outras traduções, para
podermos ver por qual motivo o tomam para sustentar que Jesus, como Deus, ter-se-ia
manifestado na carne. Vejamos:
Versões bíblicas
Texto bíblico 1Tm 3,16
SBTB
“E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se
manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos,
pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória”.
SBB
"E sem dúvida alguma grande é o mistério da piedade: Aquele que se
manifestou em carne, foi justificado em espírito, [...]”.
Shedd
Cristão
e
Mundo
“Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi
manifestado na carne foi justificado em espírito, […]”.
De Jerusalém
“Seguramente, grande é o mistério da piedade: Ele foi manifestado na
carne, justificado no Espírito, [...]”.
Barsa
“E visivelmente é grande o sacramento da piedade, com que Deus se
manifestou em carne, foi justificado pelo espírito, [...]”.
Paulinas/Loyola:
“Grande é, com certeza, o ministério da piedade. Ele foi manifestado
na carne, justificado pelo Espírito, [...]”.
Pastoral
“De fato, como é grande o mistério da piedade: ele se manifestou na
carne, foi justificado no espírito, […]”.
Do Peregrino
“Grande é sem dúvida o mistério de nossa religião: Manifestou-se
corporalmente, justificado no Espírito, [...]”.
Ave Maria
“Sim, é tão sublime – unanimemente o proclamamos – o Mistério da
bondade divina: manifestado na carne, justificado no Espírito, [...]”.
Santuário
“Em verdade, grande mistério é o da piedade. Manifestou-se na carne,
foi justificado pelo Espírito, […]”.
Vozes
“Não pode haver dúvida de que é grande o mistério da piedade: Ele foi
manifestado na carne, foi justificado no espírito, [...]”
Paulinas
1957,
1977 e 1980
“E evidentemente é grande o mistério da piedade, que se manifestou
na carne, que foi justificado pelo Espírito, visto pelos anjos, pregado
aos gentios, crido no mundo, exaltado na glória”.
Novo Mundo
“Evidentemente, grande é o mistério da piedade: aquele que foi
manifestado na carne, foi justificado em espírito, […]”.
Enquanto nas versões da SBTB e Barsa a personagem que se manifestou na carne foi o
próprio Deus, nas restantes foi Jesus. Visando resolver o impasse buscamos orientação em
Russell Norman Champlin, que dá a seguinte explicação para “... Aquele que foi manifestado
na carne...”:
Essas palavras ensinam tanto a “preexistência”, como a
“encarnação” de Cristo. (Ver o trecho de João 1:1-3;14 acerca dessas
doutrinas bíblicas). A divindade de Cristo não é aqui ensinada
diretamente, mas somente uma pessoa divina poderia ter realizado tudo
quanto aqui é atribuído a Cristo. (Ver Heb. 1:3 quanto a notas expositivas sobre
a “divindade de Cristo”). Além disso, esta epístola defende a “humanidade
autêntica” de Jesus, o Cristo, o que era negado pelo docetismo ensinado pelos
gnósticos. Cristo é a “epifania” de Deus, isto é, a sua “manifestação”. Assim
216
sucedeu quando da encarnação, e assim sucederá novamente quando de sua
“parousia” ou segundo advento. (ver as notas expositivas completas a esse
respeito, em I Tes. 4:15. Quanto à exposição dessas verdades, nestas epístolas
pastorais, ver os trechos de I Tim. 6:14 e II Tim. 1:10, que frisam a primeira
manifestação, e ver I Tim. 4:1,8, que salienta a segunda futura manifestação. O
trecho de I João 3:2 pode ser comparado quanto à primeira manifestação; e o
trecho de I Tim. 4:2 pode ser posto em confronto com a passagem presente, no
tocante à ênfase sobre a autêntica humanidade de Jesus, como Verbo
encarnado, onde tal ideia combate, uma vez mais, o docetismo dos gnósticos). A
vinda de Cristo foi “... na carne...” Essa expressão é usada exclusivamente aqui,
nas “epístolas pastorais”. (Comparar com João 1:14 e I João 4:2; II João 7; Rom
1:3; 8:3 e 9:5). O hino que encontramos aqui começa afirmando a verdade
central do cristianismo, que faz parte do grande mistério da nossa fé.
(CHAMPLIN, 2005e, p. 317) (grifo nosso).
Embora reconheça o real significado da expressão, Champlin busca dar-lhe o sentido de
algo que dá sustentação à divinização de Jesus. É sempre a mesma história que ocorre com
aqueles que ficam presos aos dogmas estabelecidos: não enxergam o óbvio.
Quanto a explicação sobre a divergência nas traduções, encontramo-la em Bart D.
Ehrman:
Em 1715, Wettstein foi à Inglaterra (em uma turnê literária) e teve completo
acesso ao Códice Alexandrino, do qual já ouvimos falar quando abordamos
Bentley. Uma parte do manuscrito mereceu a atenção particular de Wettstein:
era uma daquelas questões acessórias de consequências enormes: dizia respeito
ao texto de uma passagem-chave do livro de I Timóteo.
A passagem em questão, I Timóteo 3, 16, fora usada durante muito tempo
por defensores da teologia ortodoxa em apoio da visão segundo a qual o próprio
Novo Testamento chama Jesus Deus. É que o texto, na maioria dos manuscritos,
refere-se a Cristo como "Deus tornado manifesto na carne e justificado no
Espírito". Como já indiquei no capítulo 3 deste livro, a maioria dos manuscritos
abreviava os nomes sagrados (os chamados nomina sacra, e esse é o caso
justamente aqui, onde o termo grego para Deus (ΘEOΣ é abreviado com duas
letras, teta e sigma (ΘΣ), com uma linha traçada no topo das duas para indicar
que se trata de uma abreviatura. Wettstein percebeu, ao examinar o Códice
Alexandrino, que a linha sobre as duas letras fora feita em uma tinta diferente
da que fora usada para as palavras circundantes, de onde se depreende que
provinha de uma mão tardia (isto é, traçado por um copista posterior). Além
disso, o traço horizontal do meio da primeira letra, Θ, não fazia realmente parte
da letra, mas era uma linha que vazara desde o outro lado do velho velino. Em
outros termos, em vez de se tratar de uma abreviatura (teta-sigma) de "Deus"
(ΘΣ, a palavra era realmente formada por um ômicron e um sigma (OΣ), uma
palavra completamente diferente, que significa simplesmente "quem". A redação
original do manuscrito não falava, pois, de Cristo como "Deus manifestado na
carne", mas de Cristo, "que foi manifestado na carne". De acordo com o
testemunho antigo do Códice Alexandrino, Cristo deixa de ser explicitamente
chamado de Deus nessa passagem. (ERMAN, 2006, p. 123)
Na verdade, já vimos uma variação textual relacionada a essa controvérsia
cristológica em nossa discussão, no capítulo 4, das pesquisas textuais de J.J.
Wettstein. Wettstein examinou o Códice Alexandrino, atualmente na Biblioteca
Britânica, e determinou que em 1 Timóteo 3,16, onde a maioria dos manuscritos
fala de Cristo como “Deus tornado manifesto na carne”, esse manuscrito
primitivo fala originalmente de Cristo “que foi tornado manifesto na carne”. A
mudança, em grego, é muito sutil – é apenas a diferença entre as letras teta e
ômicron (ΘΣ e OΣ), que são muito semelhantes. Um copista tardio alterou a
variante original, de modo que se deixou de ler “que” e passou a ler “Deus”
(tornado manifesto na carne). Em outros termos, esse revisor tardio mudou o
texto de modo a enfatizar a divindade de Cristo. É chocante perceber que a
mesma correção ocorreu em quatro dos nossos outros manuscritos primitivos de
1 Timóteo. Todos eles encontraram revisores que mudaram o texto do mesmo
modo, de modo que agora ele chama Jesus explicitamente de “Deus”. Esse se
tornou o texto da vasta maioria dos manuscritos bizantinos (isto é, medievais)
posteriores – e por isso se tornou o texto da maioria das traduções antigas da
217
Bíblias. (EHRMAN, 2006, p. 167).
Foi ótimo tomar conhecimento disso, pois agora temos argumentos para refutar aqueles
que advogam que Jesus é o próprio Deus.
1Pe 3,18: “Porque também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos
injustos, para levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificado
no espírito;”.
A ressurreição espiritual de Jesus (vivificado no espírito) é um fato que leva muitas
pessoas a divinizá-Lo, sem se darem conta de que todos os seres humanos também
ressuscitarão; uns para a glória (viver como espíritos puros), outros para a perdição (planetas
inferiores, onde haverá prantos e ranger de dentes). O dia em que o homem se render à
realidade do Espírito, o que de fato somos, então entenderá isso; até lá continuará mantendo
suas crenças, tal e qual crianças que, por exemplo, acreditam ser verdadeira a história,
contada pelos adultos, de que os bebês são entregues por cegonhas.
1Jo 5,1: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, é o nascido de Deus; e todo
aquele que ama ao que o gerou, ama também ao que dele é nascido”.
Entendamos o que significa a palavra Cristo: “O termo de origem grega significa
'ungido' e traduz o termo hebraico 'messias'. Os sumos sacerdotes (Lv 4,3-16; 15,16) e os reis
de Israel (1Sm 12,3-5; 24,7.11; 2Sm 19,22) eram chamados de 'ungidos'”. (Bíblia Sagrada
Vozes – p. 1520) e até mesmo Ciro, rei da Pérsia, um pagão recebe o título “ungido de
Iahweh” (Is 45,1) (Bíblia de Jerusalém, p. 1325). Assim, percebemos que se trata de um título
e não um nome próprio como muitas vezes vemos nomeando-O, quando o correto seria dizer:
Jesus, o Cristo. Se outras passagens bíblicas trazem pessoas também consideradas como
ungidos, então não podemos dizer que a condição de “ungido” O transforma em divino, já que
sua divindade decorre de sua evolução espiritual.
1Jo 5,7-8: “Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e
estes três concordam”.
Em princípio, esse passo nada teria a ver com o caso; entretanto, ele consta de
algumas Bíblias 8 com teor semelhante a este da Bíblia Anotada:
“Pois há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e
estes três são um. E três são os que testificam na terra]: o Espírito, a água e o
sangue, e os três são unânimes num só propósito”.
Vejamos o que nos explicam sobre essa divergência (o que grifamos):
O texto dos vv. 7-8 é acrescido na Vulg. De um inciso (aqui abaixo entre
parênteses) ausente dos antigos mss gregos, das antigas versões e dos
melhores mss da Vulg., o qual parece ser uma glosa marginal introduzida
posteriormente no texto: “Porque há três que testemunham (no céu: o Pai, o
Verbo e o Espírito Santo, e esses três são um só; e há três que testemunham na
terra); o Espírito, a água e o sangue, e esses três são um só” (Bíblia de
Jerusalém, p. 2132-2133). (grifo nosso).
De acordo com os melhores códigos, o texto original devia ser o
seguinte: “O Espírito, a água e o sangue, e estes três são unânimes”. Estes vv.
São conhecidos como o “Coma Joaneo”, cujo acréscimo tem sua autenticidade
contestada embora seja verdadeira a doutrina nele exposta. (Bíblia Barsa, NT, p.
221). (grifo nosso).
Depois de “os que dão testemunhos”, ?ABVgSyh,p omitem as palavras
acrescentadas em mss. gr. Posteriores e na Vgc, a saber: 'no céu, o Pai, a
Palavra, e o espírito santo; e estes três são um. (Trad. Novo Mundo, p. 1407).
(grifo nosso).
Bíblia Sagrada – SBTB, Bíblia Anotada, Bíblia Shedd, Bíblia Sagrada – SBB, Bíblia Sagrada – Paulinas, 9ª, Bíblia
Sagrada – Paulinas, 37ª ed. e Bíblia Sagrada – Barsa.
8
218
Jung, ao dizer que “não existe uma só passagem do Novo Testamento na qual a
Trindade seja mencionada dum modo que possa ser expresso numa linguagem racional”,
remete-nos a uma nota na qual ele explica o seguinte:
O chamado Comma Johanneum que, sob este ponto de vista, constitui uma
exceção, é um caso comprovadamente tardio e de origem duvidosa. Como
textus per se (texto em si) e como revelatum explicitum (como revelado
explícito) seria a prova mais convincente da ocorrência da Trindade no Novo
Testamento. Trata-se de 1Jo 5,7: “Porque são três os que testificam: o Espírito e
a água e o sangue, e estes três estão de acordo, (isto é, convergem no
testemunho de que Cristo veio “pela água e pelo sangue”. A Vulgata, neste
lugar, traz a inserção tardia: “Quonian tres sunt, qui testiomonium dant in coelo:
Pater, Verbum et Spiritus Sanctus: et hi tres unum sunt” [Porque três são os que
dão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espirito Santo, e estes três são um
só].[...] (JUNG, 1988, p. 27).
Um estudioso que também fala disso é o ex-evangélico Bart D. Ehrman, Ph.D. em
Teologia pela Princeton University e dirige o Departamento de Estudos Religiosos da University
of North Carolina, Chapel Hill. É especialista em Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e
heresia, manuscritos antigos e na vida de Jesus; ele afirma:
Havia, contudo, uma passagem-chave das Escrituras que os manuscritosfonte de Erasmo não continham: trata-se do relato de 1 João 5,7-8, que os
pesquisadores chamaram de o parêntese joanino, encontrado nos manuscritos
da Vulgata latina, mas não na vasta maioria dos manuscritos gregos, uma
passagem que foi, por muito tempo, a predileta entre os teólogos
cristãos, dado que é a única passagem na Bíblia inteira que delineia
explicitamente a doutrina da Trindade, segundo a qual há três pessoas
na divindade, com todas as três constituindo um só Deus. Na Vulgata, a
passagem é lida assim:
Há três que conduzem o testemunho nos céus: o Pai, o Verbo e o Espírito e
esses três são um; e há três que conduzem o testemunho na terra, o
Espírito, a água e o sangue, e esses três são um.
Trata-se de uma passagem misteriosa, mas inequívoca em seu apoio aos
ensinamentos tradicionais da igreja sobre o "Deus trino que é um". Sem esse
versículo, a doutrina da Trindade deve ser inferida de uma série de passagens
combinadas para mostrar que Cristo é Deus, assim como o Espírito e o Pai, e
que há, não obstante, um só Deus. Essa passagem, por seu turno, afirma a
doutrina direta e sucintamente.
Mas Erasmo não a achou em seus manuscritos gregos, nos quais
simplesmente se lê: "Pois há três que dão testemunho: o Espírito, a
água e o sangue, e esses três são um". Para onde foram "o Pai, o Verbo e o
Espírito"? Eles não figuravam no manuscrito primário de Erasmo, nem em
nenhum dos demais que ele consultou. Por isso, naturalmente, ele os deixou de
fora de sua primeira edição do texto grego.
Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que tirou do sério os teólogos de
seu tempo, que acusaram Erasmo de adulterar o texto, numa tentativa de
eliminar a doutrina da Trindade e de desvalorizar o seu corolário, a
doutrina da divindade plena de Cristo. Particularmente Stunica, um dos
editores-chefes da Poliglota Complutense, veio a público desacreditar Erasmo e
insistir em que, em edições futuras, ele restituísse o versículo a seu lugar
correto.
Com o desenrolar dos fatos, Erasmo - provavelmente em um momento de
descuido - concordou em inserir o versículo em uma futura edição de seu Novo
Testamento grego, sob uma condição: que seus adversários produzissem um
manuscrito grego no qual o verso pudesse ser encontrado (achá-lo nos
manuscritos latinos não era o bastante). Dessa forma, produziu-se um
manuscrito grego. Na realidade, ele foi produzido nessa ocasião. Parece que
alguém copiou o texto grego das epístolas e, quando chegou à passagem em
questão, traduziu o texto latino para o grego, dando o parêntese joanino em
sua forma teologicamente aproveitável, familiar. O manuscrito
providenciado para Erasmo era, em outras palavras, uma produção do
219
século XVI, feita sob encomenda. (EHRMAN, 2006, p. 91-92) (grifo nosso).
Assim, estamos vendo que a adição, que aparece em algumas traduções da Bíblia, tem
o objetivo de se justificar a Trindade, dogma de Constantino, anuído pela Igreja Católica, o que
poderá ser comprovado em nosso texto anteriormente indicado. Lembramos apenas que “Deus
é realmente um, e é apenas em nossa capacidade limitada de conceber que Deus se torna
três”. (Barth, Karl, 1969, apud LORENZEN, 2002, p. 57).
1Jo 5,20: “Sabemos também que já veio o Filho de Deu.s, e nos deu entendimento
para conhecermos aquele que é verdadeiro; e nós estamos naquele que é
verdadeiro, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida
eterna”.
Passagem ao gosto dos “divinizantes”, que, apressadamente, a apresentam para
sustentar suas crenças. Só que a coisa pode não ser tanto quanto querem, visto que, essa
passagem, na versão dos tradutores da Bíblia de Jerusalém, tem o seguinte teor:
Nós sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu a inteligência para conhecermos o
Verdadeiro (c). E nós estamos no Verdadeiro, no seu Filho Jesus Cristo. Este é o Deus
verdadeiro e a Vida eterna.
Explicam-nos, em nota, o seguinte: c) Deus, o único verdadeiro (Jo 17,3+; cf. 8,31);
1Ts 1,9; Ap3,4) e o único verdadeiramente conhecido pelo que ele é: Vida e Amor. (Bíblia de
Jerusalém, p. 2134). O que significa dizer que “O verdadeiro” que negritamos no passo deve
ser entendido como “Deus, o único verdadeiro”.
Na Bíblia Sagrada Vozes, encontramos a seguinte redação:
“Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecermos o
Verdadeiro. E nós estamos no Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Ele é o verdadeiro
Deus e a vida eterna”.
Observa-se, que o “este”, da tradução anterior, passa a ser “Ele”. Seus tradutores nos
explicam “O Verdadeiro” dessa forma: o verdadeiro Deus, ou então, Deus, o Verdadeiro.
(Bíblia Sagrada Vozes, p. 1553). O que faz ter o sentido diferente da tradução anterior. De
igual modo a Bíblia Do Peregrino e Novo Testamento Loyola, encontramos “Ele”.
Assim, percebemos que a polêmica toda, em torno dessa passagem, está ligada à
questão de qual manuscrito se toma para as traduções. Por tudo que levantamos até o
momento sobre o assunto, temos a convicção de que na passagem o “este” está se referindo a
Deus e não a Jesus; essa ideia só se mantém por conta das traduções divergentes.
Considerando que, conforme já o dissemos alhures, o povo (Mt 16,13-14; 26,67-68; Jo
7,40 e 9,17), os discípulos (Lc 24,19; At 3,22) e o próprio Jesus (Lc 13,33;. Jo 8,40 e Mc 6,45) diziam ser ele, o Mestre, um profeta; não somos nós que iremos negar isso, já que não
vivemos naquela época.
Seria de grande interesse ver como esse problema já vem de longa data, sem que
ainda se tenha ouvido as “vozes que clamam no deserto”.
Flávio Cláudio Juliano (em latim Flavius Claudius Iulianus) ou simplesmente Juliano
(331-363) foi o último imperador pagão do Império Romano, e reinou entre 361 e a sua
morte; vejamos o que Henry Bettenson (1910-1979), cita dele:
r. Juliano opina sobre cristianismo: O culto de Jesus e dos mártires Juliano
Contra Christianos, apud Cirilo de Alexandria contra Julianum, X (op. IX.326ss)
Mas, infortunadamente, não sois fiéis às tradições apostólicas: estas em
mãos dos seus sucessores tornaram-se em máxima blasfêmia. Nem Paulo,
nem Mateus, nem Lucas ou Marcos ousaram afirmar que Jesus é Deus.
Foi o venerável João quem, constatando que grande número de habitantes das
cidades gregas e italianas eram vítimas de epidemias, e ouvindo, imagino, que
as tumbas de Pedro e Paulo se tornavam objeto de culto (privado, sem dúvida,
mas sempre culto), João, repito, foi quem primeiro ousou fazer tal afirmação...
220
Este mal se deve a João. Quem, entretanto, denunciará a causa desta outra
inovação, qual seja, a veneração dos corpos de muitos cristãos mortos
ultimamente, além dos corpos dos apóstolos? Tendes enchido as praças com
tumbas e monumentos... Opinais que no particular nem sempre valem as
palavras de Jesus... (Mt 23.27) declarando que os sepulcros estão cheios de
imundície... como podeis invocar a Deus acima deles? (BETTENSON, 1967, p.
49-50) (grifo nosso).
Ernest Renan (1823-1892) disse que “Jesus não declara em momento algum que ele
seja Deus. Ele se diz em relação direta com Deus, se diz filho de Deus. A mais alta consciência
de Deus existente no seio da humanidade foi a de Jesus”. (RENAN, 2004, p. 138). E mais à
frente, encontramos:
Que jamais Jesus tenha pensado em se fazer passar por uma
encarnação do próprio Deus, é uma coisa que não se pode duvidar. Tal
ideia era profundamente estranha ao espírito do Judaísmo; não há nenhum
vestígio dela nos Evangelhos sinóticos [25], só a encontramos indicada nas
partes do quarto Evangelho que menos podem ser aceitas como um eco do
pensamento de Jesus. Às vezes parece que Jesus toma precauções para repelir
tal doutrina [26]. A acusação de passar por Deus, ou igual a Deus, é
apresentada, mesmo no quarto Evangelho, como uma calúnia dos
judeus [27]. Nesse último Evangelho, Jesus se declara menor que seu Pai [28].
Em outro lugar, confessa que o Pai não lhe revelou tudo [29]. Ele se toma por
um homem além do comum, mas separado de Deus por uma distância infinita.
Ele é filho de Deus; mas todos os homens o são ou podem tornar-se em
diversos níveis [30]. Todos, a cada dia, devem chamar a Deus seu pai; todos
os ressuscitados serão filhos de Deus [31]. No Antigo Testamento a filiação
divina era atribuída a seres que não se pretendiam, de forma alguma,
igualar a Deus [32]. A palavra “filho”, nas línguas semíticas e na língua do
Novo Testamento, tem as mais variadas acepções [33]. Além disso, a ideia que
Jesus faz do homem não é essa ideia humilde que um frio deísmo introduziu. Em
sua poética concepção da natureza, um único sopro permeia o universo: o sopro
do homem é o de Deus. Habitando no homem, Deus vive pelo homem, assim
como o homem que habita em Deus vive por Deus [34]. O idealismo
transcendente de Jesus nunca lhe permitiu ter uma visão clara de sua própria
personalidade. Ele é seu pai, seu Pai é ele. Ele vive em seus discípulos, está em
toda parte com eles [35]; seus discípulos são um, como ele e seu Pai são um
[36]. A ideia, para ele, é tudo; o corpo, que faz a distinção das pessoas, não é
nada.
______
[25] Certas passagens, como Atos, II, 22, a excluem formalmente.
[26] Mat. IV, 10; VII, 21, 22; XIX, 17; Marc. I, 44; III, 12; X, 17, 18; Luc., XVIII, 19.
[27] João V, 18 e seg.; X, 33 e seg.
[28] João XIV, 28.
[29] Marc., XIII, 35.
[30] Mat. V, 9,45; Luc. III, 38; VI, 35; XX, 36; João, 1, 12-13; X, 34-35, Comp. Atos,
XVII, 28-29; Rom. VII, 14-17, 19, 21, 23; IX, 26; II Cor. VI, 18; Gálat. III, 26; IV, I e
seg.; Fíl. II, 15; epístola de Barnabé, 14 (p. 10, Hilgenfeld, segundo o Codex Sinaïticus).e,
no Antigo Testamento, Deuter. XIV, 1 e sobretudo Sabedoria II, 13, 18.1
[31] Luc. XX, 36.
[32] Gen. VI, 2; Jó I, 6; II, 1; XXVIII, 7; Salmo II, 7; LXXXII, 6; VII, 14.
[33] O filho do diabo (Mat., XIII, 38; Atos, XIII, 10); os filhos deste mundo (Marc., III, 17;
Luc., XVI, 8; XX, 34); os filhos da luz (Luc., XVI, 8; João, XII, 36); os filhos da
ressurreição (Luc., XX, 36); os filhos do reino (Mat., VIII, 12; XIII, 38); os filhos do esposo
(Mat., IX, 15; Marc., II, 19; Luc., V, 34); os filhos da geena (Mat., XXIII, 15); os filhos da
paz (Luc., X, 6), etc. Lembremos que o Júpiter do paganismo é pater andron te theon te.
[34] Comp. Atos, XVII, 28.
[35] Mat. XVIII, 20; XXVIII, 20.
[36] João X, 30; XVII, 21. Ver, em geral, os últimos discursos relatados pelo quarto
Evangelho, principalmente o cap. XVII, que exprimem bem um lado do estado psicológico
de Jesus, embora não se possa encará-los Como verdadeiros documentos históricos.
(RENAN, 2004, p. 260-264). (grifo nosso).
Bart D. Ehrman afirma incisivamente que “Os escritos originais do Novo Testamento,
porém, raramente trazem algo tão categórico como a firmação 'Jesus é Deus'” (EHRMAN,
221
2008, p. 324), em nota ele explica: “Há algumas passagens que se aproximam disso (por
exemplo, João 8:58, 10:30, 14:9) e eis uma das razões pelas quais os proto-ortodoxos
gostavam delas, mas nenhuma faz menção explícita de Jesus como Deus”. (EHRMAN, 2008, p.
389).
Juan Arias, jornalista, filólogo, escritor e ex-sacerdote, nascido Arboleas, Almería
(Espanha) em 1932. Cursou teologia, filosofia, psicologia, línguas semíticas e filologia
comparada na Universidade de Roma. Durante quatorze anos foi correspondente na Itália e no
Vaticano para o jornal espanhol El País. Antes disso, cobriu para o jornal Pueblo trabalhos do II
Concílio do Vaticano. Viajou inúmeras vezes ao redor do mundo acompanhando os papas Paulo
VI e João Paulo II. É autor de vários livros, publicados em mais de dez idiomas. Recebeu o
Premio a la Cultura de la Presidencia del Gobierno e o Castiglione de Sicilia como melhor
correspondente estrangeiro. Atualmente é correspondente no Brasil para El País e membro do
Comitê Científico do Instituto Europeu de Design. Da sua obra Jesus esse grande desconhecido
transcrevemos:
Jesus era diferente. Sem nunca renegar a sua condição de judeu cioso da Lei,
foi imensamente crítico em relação à religião fossilizada de seu tempo. Nunca
se proclamou Messias nem Deus, mas os que o seguiam, diante dos
prodígios que realizava, sentiam-no como tal ou desejavam que o fosse. E, por
mais que ele às vezes protestasse, dizendo que não era ele mas Deus
quem operava os milagres, as pessoas e até os próprios apóstolos
acreditavam literalmente que o novo Reino que ele anunciava era também um
reino temporal e concreto que devolveria a Israel a liberdade perdida. E
confiaram nele. (ARIAS, 2001, p. 100-101) (grifo nosso).
Arias possui credenciais suficientes para darmos crédito ao que fala. Se tivesse num
encontro com o Presidente dos Estados Unidos, certamente, que este lhe diria: “Esse é o cara”.
Concluímos dizendo que criar um mito é fácil, derrubá-lo torna-se a coisa mais difícil,
tarefa quase impossível mesmo, visto que a grande maioria de nós não tem humildade
suficiente para reconhecer que está errado, de um lado; e de outro o apego aos conhecimentos
adquiridos como certos faz com que neguemos quase tudo o que nos vem de forma contrária;
mesmo diante de elementos comprobatórios das verdades que nos são apresentadas; ou seja,
agimos puramente por preconceito. Nossa maneira de agir é tal qual a daqueles que não
queriam olhar o céu pelo telescópio de Galileu...
Se estendemos por demais esse estudo, não foi sem razão, visto tratar-se, como já o
dissemos, de um assunto polêmico; por isso seguimos: “O rigor da crítica exige uma busca
longa e precisa, um exame de cada ponto, depois dos quais, com vagar e precaução, podemos
afirmar que estes autores dizem a verdade e aqueles outros mentem sobre os prodígios que
narram”. (ORÍGENES, 2004, p. 440).
Apenas mais três coisinhas, antes de finalizar, se nos permite a sua paciência, caro
leitor. Todos nós temos repulsa aos rituais sangrentos de sacrifícios de animais; pior ainda
quando, ao invés de animais, são utilizados seres humanos. A origem deles sabemos ser os
rituais pagãos; mas, apesar disso, encontramos nas páginas da Bíblia, tanto um quanto o
outro. Os rituais de expiação pelos pecados praticados pelos judeus envolviam animais –
touros, bodes, carneiros, cabritos, etc. -, na tola esperança de serem perdoados de seus
pecados, quando o supremo Criador do Universo passa a perdoá-los por ter sentido o “odor
agradável” de carne assada. Aliás, não sabemos quem inventou essa história, pois Deus nega
veementemente que tenha instruído tais barbaridades: “Pois quando tirei do Egito os
antepassados de vocês, eu não falei nada nem dei ordem alguma sobre holocaustos e
sacrifícios” (Jr 7,22) e também afirmou que “eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento de
Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6); essa afirmação foi confirmada pelo Mestre que disse:
“E amá-lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como a
si mesmo, é melhor do que todos os holocaustos e do que todos os sacrifícios". (Mc 12,33).
Manassés, rei de Judá (687-642 a.C.), chegou a sacrificar seu filho no fogo (2Rs 21,17), o que também fez Acaz, rei de Israel (737-732 a.C.) (2Cr 18,1-4). Jefté, nono juiz de
Israel, para cumprir uma promessa idiota que fez, mandou queimar sua filha (Jz 11,30-40),
até mesmo toda Jerusalém foi acusada de entregar seus filhos para serem queimados (Ez
16,20-21; Jr 19,4-5).
222
Um outro sacrifício foi feito por Jerusalém; aquele que fazem questão de lembrar todos
os anos na Semana Santa. É isso mesmo; embora, não tenham queimado Jesus, numa
oferenda, não deixaram por menos; pregaram-no numa cruz. Sabemos que, na verdade, não
foi um sacrifício oferecido; mas a cristandade tem sua morte como tal, o que corroboramos em
Rohden:
Infelizmente, porém, a ideia do bode expiatório que morreu para o
judaísmo, continua no cristianismo, com a diferença de que agora o bode
expiatório não é mais um animal inocente, que, morrendo, extinga os pecados
humanos, mas sim o único homem sem pecados que, segundo a teologia, paga
com sua morte os pecados da humanidade. (ROHDEN, 1996, p. 96) (grifo
nosso).
E aí, magistralmente, conclui:
Depois desse pagamento dos pecados da humanidade pelo sangue de
Jesus, era de se esperar que o homem estivesse quite com a justiça
divina; mas os teólogos ensinam que todo homem nasce de novo em estado de
pecado, vive e morre cheio de pecados – não se sabe em virtude de que lógica...
(ROHDEN, 1996, p. 97) (grifo nosso).
Aceitando isso como querem, ou seja, o Messias como um “bode expiatório”, então,
estamos diante de mais um absurdo teológico: Deus aceitando a expiação do pecado da
humanidade após um sacrifício humano, que foi o do seu filho Jesus.
Dito isso, vamos às três coisas:
1ª) Como um sacrifício de uma pessoa até a morte pode redimir o pecado de uma
outra?;
2ª) Caso Jesus seja mesmo Deus, ficaremos em grande dificuldade para entender, como
Deus, descendo do céu, encarnando num corpo humano (Jesus), utiliza-se de sua
morte na cruz para oferecer-se em sacrifício a si próprio visando a remissão dos
pecados da humanidade. Não seria mais prático e, portanto, mais lógico fazer isso com
um simples perdão?;
3ª) Considerando que os rituais de sacrifício eram feitos pelos pecados já cometidos,
então devemos esperar um outro Cristo para morrer pelos nossos, os cometidos depois
de sua morte até o presente?
Fechando esse estudo, queremos apenas acrescentar que não temos a pretensão de
demover os que advogam a divindade de Jesus, da ideia de ser ele o próprio Deus, nem
convertê-los à nossa maneira de pensar; estamos apenas propondo uma reflexão sobre esse
assunto, e os que tiverem “ouvidos de ouvir, que ouçam”. Você, caro leitor, poderá até
estranhar o motivo pelo qual enveredamos nessa reflexão. Respondemos: É que sempre
achamos impossível seguir o exemplo de Jesus considerando-o como sendo Deus; e pensando
assim, nenhum esforço fazíamos para tal; entretanto, considerando-o um ser humano
encarnado como todos nós, e deixando a sua evolução fora disso, é mais viável assim
entender, embora saibamos não ser uma tarefa muito fácil.
223
A morte de Jesus foi para a remissão de pecados?
Sempre ouvimos dos cristãos tradicionais, especialmente os do segmento evangélico,
que Jesus teria morrido na cruz para remissão dos nossos pecados. É um descalabro, que,
certamente, não corresponde aos fatos históricos, pois, na realidade, a sua morte foi por
questões políticas, obviamente, com o incentivo dos líderes religiosos de sua época que não
toleravam seu discurso.
O que percebemos é que as pessoas, que pensam dessa forma, querem, de fato, é a
salvação “de graça”, pela qual não têm que fazer, absolutamente, nada para “ganhar” o “céu”.
Aliás, modernamente, tem-se entendido que o “céu” e o “inferno” são estados de consciência e
não lugares geográficos. Acreditamos que essa visão seja mesmo a interpretação lógica,
levando-se em conta que Jesus disse aos fariseus “o reino de Deus está dentro de vós” (Lc
17,21). Isso nos remete à conclusão que somente a transformação moral pode levar-nos a
implantá-lo dentro dos nossos corações, de forma que todas as nossas ações sejam pautadas
na recomendação de “amar ao próximo como a si mesmo” (Mt 19,19).
É importante, para nosso estudo, saber a ordem cronológica dos textos bíblicos, pois
isso nos auxiliará na tentativa de descobrir quem seria o autor epígrafe dessa crença de que a
morte de Jesus foi para remissão dos pecados, que reputamos, absurda e de cunho totalmente
pagão. Iremos basear-nos na ordem proposta pelo professor Julio Trebolle Barrera (?- ),
doutorado em Filosofia Semítica e Teologia, membro do Comitê internacional de publicação dos
Manuscritos do Mar Morto, autor de vários livros sobre crítica textual.
1 Tessalonicenses (51)
2 Tessalonicenses (51 ou anos 90)
Gálatas (54-57)
Filipenses (56-57)
1 Coríntios (57)
2 Coríntios (57)
Romanos (58)
Filêmon (56-57 ou 61-63)
Colossenses (61-63 ou anos 70/80)
Efésios (61-63 ou anos 90/100)
Marcos (anos 65-70)
Tito (65 ou 95-100)
1 Timóteo (65 ou 95-100)
2 Timóteo (66 ou 95-100)
Hebreus (anos 60 ou 70/80)
Mateus (anos 70/80)
Lucas (anos 70/80)
Atos dos Apóstolos (anos 70-80)
1 Pedro (64 ou anos 70/80)
Tiago (62 ou anos 70/80)
João (anos 90)
1 João (anos 90)
2 João (anos 90)
3 João (anos 90)
Apocalipse de João (anos 90)
2 Pedro (100-150)
(BARRERA, 1999, p. 287-289)
224
Vejamos, então, qual será o critério para a “salvação”, se é pelas obras, pela morte de
Jesus na cruz ou, se ainda, por algum outro motivo.
Salvação pelas obras?
O primeiro ponto a ser levantado é saber em que, de fato, consistia a “salvação” para
Jesus. Acreditamos que podemos encontrá-la no que ele disse sobre qual o critério que será
usado para o julgamento de cada um de nós e na parábola do juízo final, conforme consta,
respectivamente, dos seguintes passos:
Mt 16,27: “Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e
então retribuirá a cada um de acordo com a própria conduta”.
Mt 25, 31-46: “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todos
os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão
reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as
ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua
esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, que
são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes
preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram
de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me
receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava
doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar'.
Então os justos lhe perguntarão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome e te
demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como
estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te
vimos doente ou preso, e fomos te visitar?' Então o Rei lhes responderá: 'Eu garanto a
vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a
mim que o fizeram'. Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Afastemse de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.
Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com
sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam
em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na
prisão, e vocês não me foram visitar'. Também estes responderão: 'Senhor, quando
foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou
preso, e não te servimos?' Então o Rei responderá a esses: 'Eu garanto a vocês: todas
as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o
fizeram'. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para
a vida eterna”.
Em ambos os textos, podemos ver que, “quando o Filho do homem vier”, o julgamento
terá como critério a avaliação das ações a favor do próximo, que é exatamente o que se afirma
com a expressão: “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27), cujo teor foi reforçado com o
exemplo dado no segundo passo.
Por outro lado, a própria ideia de ocorrer um julgamento já induz a conclusão lógica de
que alguma coisa será medida, pesada ou avaliada o que, portanto, conflita com a morte de
alguém visando a remissão de pecados, que nada mais é que uma crença de pagã. Os judeus
adoraram-na em sua cultura religiosa, quando Moisés estabeleceu o ritual do bode expiatório
para remissão dos pecados do povo. Vejamos o passo:
Lv 16,5-16: “Receberá da comunidade dos filhos de Israel dois bodes para o
sacrifício pelo pecado e um cordeiro para o holocausto. Depois de oferecer o bezerro
como sacrifício pelo seu próprio pecado, e de ter feito a expiação por si mesmo e pela
sua família, Aarão pegará os dois bodes e os apresentará diante de Javé, na entrada da
tenda da reunião. Tirará a sorte sobre os dois bodes: um será de Javé e o outro
de Azazel. Pegará o que foi sorteado para Javé e o oferecerá como sacrifício
pelo pecado. Quanto ao bode que foi sorteado para Azazel, será colocado vivo
diante de Javé, para fazer a expiação, e depois será mandado para Azazel no
deserto. Aarão oferecerá o bezerro do sacrifício pelo seu próprio pecado. Em seguida
fará o rito de expiação por si mesmo e por sua família, e imolará o bezerro. Então
225
encherá um incensório com brasas tiradas do altar diante de Javé e pegará dois
punhados de incenso aromático em pó. Levará tudo para trás do véu, e colocará o
incenso sobre o fogo, diante de Javé; uma nuvem de incenso cobrirá a placa que está
sobre o documento da aliança; assim ele não morrerá. Depois pegará sangue do
bezerro e aspergirá, com o dedo, o lado oriental da placa; depois, diante da placa fará
com o dedo sete aspersões de sangue. A seguir imolará o bode do sacrifício pelo
pecado do povo e levará o sangue para trás do véu. Com esse sangue, fará o
mesmo que fez com o sangue do bezerro, aspergindo sobre a placa e diante
dela. Fará desse modo o rito de expiação pelo santuário, pelas impurezas dos
filhos de Israel, pelas transgressões e por todos os pecados deles. Fará o
mesmo com a tenda da reunião, estabelecida entre eles no meio de suas impurezas”.
Por necessidade, Moisés atribuiu esse ritual como tendo origem divina. Embora não
tenha nenhum sentido em julgá-lo por conta disso, não quer dizer que ainda devemos praticar
atos tão bárbaros como os aqui mencionados.
É bom deixar bem claro que Jesus, aquele a quem incondicionalmente seguimos, veio
com a missão específica de ensinar o “caminho de Deus” (Mt 22,16), não para servir de bode
expiatório para “lavar” os pecados dos homens. Aliás, acreditamos que para não ficar algo
forte designá-lo de “bode expiatório”, buscam, capciosamente, amenizar denominando-o
“cordeiro expiatório”. Mudaram o termo; porém, a função continuou a mesma: morrer paga
pagar pelos pecados dos outros.
Vejamos mais algumas passagens indicativas de que seremos responsabilizados pelas
nossas ações:
Ex 34,7: “Ele conserva seu amor por milhares de gerações, tolerando a falta, a
transgressão e o pecado, mas não deixa ninguém impune: castiga a falta dos pais
nos filhos, netos e bisnetos".
Nm 14,18: “Javé, paciente e misericordioso, que perdoas a culpa e a transgressão,
mas não nos deixas sem castigo; que castigas a culpa dos pais em seus filhos,
netos e bisnetos”.
A crença de que haverá punição é algo bem claro nesses dois passos; porém, salta aos
olhos a injustiça de se penalizar os filhos pela culpa dos pais. Da forma como está, certamente
entra em conflito com “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela
culpa dos pais. Cada um será executado por causa de seu próprio crime” (Dt 24,16, ver
também Jr 31,29-30 e Ez 18,20). É melhor explicarmos, pois, na verdade, não há injustiça
alguma. Vamos ver o primeiro passo, na versão dos tradutores da Bíblia de Jerusalém:
Ex 34,7: “[...] e castiga a falta dos pais nos filhos e nos filhos dos seus filhos, até a
terceira e a quarta geração”.
O problema é que a preposição “até”, utilizada no texto, diz que os filhos e netos
sofrem pelos erros dos pais, coisa totalmente injusta, indigna mesmo daquilo que podemos
chamar de Justiça Divina; porém, se ela fosse alterada para “na”, ainda que não fosse a
tradução correta, nada de injusto aconteceria. Veja, caro leitor, que essa simples mudança da
preposição faz uma enorme diferença, porquanto se a pena ocorrer “na” terceira e quarta
geração, o próprio espírito infrator estaria pagando, em “suaves prestações”, pelo erro que
cometeu, uma vez que reencarna como seu neto ou bisneto, o que tornará a lei justa, vamos
assim dizer, pois o espírito, que está sendo punido, não é outro senão aquele mesmo que a
transgrediu.
Recentemente, tivemos a oportunidade de conhecer como é o teor deste texto (Ex
34,7) na Torá e o anterior que fala quase a mesma coisa (Ex 20,6):
Ex 34,7: “[...] visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobre
terceiras e quartas gerações.” (TEMPLO ISRAELITA, 2001, pag. 266, grifo nosso).
226
Ex 20,6: “[...] que visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e quartas
gerações, aos que me aborrecem; […]”. (TEMPLO ISRAELITA, 2001, p. 214, grifo
nosso).
Certamente, que a preposição “sobre” não tem o mesmo significado de “até”, está
mais para ter o de “na”, conforme nossa sugestão, um pouco mais acima, em alterar o “até”,
que consta de muitas traduções bíblicas cristãs.
Vale a pena colocar o que o profeta Ezequiel disse:
Ez 18,20: “O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca será
responsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho. O
justo receberá a justiça que merece e o injusto pagará por sua injustiça”.
Este é o senso de justiça que todos deveríamos ter: a pena deve somente ser aplicada
ao próprio infrator. E, diante disso, cabe-nos fazer a pergunta: Como nos imputam o pecado de
Adão e Eva, qual é a base que tomam para sustentar tamanho disparate?
Em Deuteronômio encontramos um trecho bem significativo, do qual podemos tirar
interessantes conclusões:
Dt 25,1-3: “Quando houver demanda entre dois homens e forem à justiça, eles serão
julgados, absolvendo-se o inocente e condenando-se o culpado. Se o culpado
merecer açoites, o juiz o fará deitar-se no chão e mandará açoitá-lo em sua
presença, com número de açoites proporcional à culpa. Podem açoitá-lo até
quarenta vezes, não mais; isso para não acontecer que a ferida se torne grave, caso
seja açoitado mais vezes, e seu irmão fique marcado diante de você”.
Retomando de nossos comentários, que dissemos alhures:
“absolvendo-se o inocente”: isto significa que não se deve condenar um inocente.
“condenando-se o culpado”: por questão de justiça o culpado deverá ser condenado.
“se o culpado merecer açoites”: sinal que pode haver situação especial em que o
culpado não mereça receber um castigo; uma repreensão poderia, talvez, ser mais
útil.
“o juiz... mandará açoitá-lo em sua presença”: a presença pessoal do Juiz indica a
necessidade de se ter certeza do cumprimento da pena, se o culpado a merecer.
“com número de açoites proporcional à culpa”: sendo o castigo proporcional à
culpa, significa que não poderá haver pena igual para todos os tipos de infração à lei.
“podem açoitá-lo até quarenta vezes, não mais”: significa, incontestavelmente,
que tudo tem um limite, que a pena não poderá ser eterna, muito menos de morte,
já que a pena deve ser efetiva, mas não definitiva.
Alguma dúvida quanto a necessária e justa punição, que se deve aplicar ao culpado?
Aliás, é comum dizer-se, quando da ocorrência de algum crime bárbaro: “errou tem que
pagar”. Será que esse mesmo senso de justiça, que advogamos, não se deve também atribuilo a Deus no julgamento que irá fazer?
2Sm 7,13-14: “Ele é que vai construir uma casa para o meu nome. E eu estabelecerei o
trono real dele para sempre. Serei para ele um pai e ele será um filho para mim. Se
ele falhar, eu o corrigirei com bastão e chicote, como se costuma fazer”.
Merece ser ressaltado que a intenção é corrigir quem errou e não punir, como pensa a
maioria das pessoas. A correção indica o uso do amor, para reconduzir o infrator ao caminho
certo, já a punição leva-nos a crer em estar ela motivada pelo sentimento de vingança, no qual
não há nenhum intuito de mostrar o que deveria ter sido feito, visando a melhoria do infrator.
1Rs 8,32: “Escuta do céu e age. Julga os teus servos: condena o culpado, dando-lhe
o que merece, e absolve o inocente, tratando-o conforme a justiça dele”.
227
Além de absolver o inocente é intrínseco ao critério de justiça condenar somente o
culpado. Dessa forma, já se pode ver que a crença comum, naquela época, nada tem a ver
com remissão de pecados.
2Mc 6,12-16: “Recomendo àqueles que lerem este livro, que não fiquem perturbados
por causa de tais calamidades. Ao contrário, pensem que esses castigos não vieram
para destruir, mas apenas para corrigir a nossa gente. É sinal de grande bondade
não deixar por muito tempo sem castigo aqueles que cometem injustiça, mas
aplicar-lhes logo a merecida punição. O Senhor não age conosco como faz com os
outros povos, esperando pacientemente o tempo de castigá-los, até que os pecados
deles cheguem ao máximo. Ele quis agir dessa forma conosco, para não chegarmos
primeiro ao extremo dos nossos pecados, e só então nos castigar. Significa que ele
nunca retira de nós a sua misericórdia. Mesmo quando nos corrige com desgraças, não
está abandonando o seu povo”.
Fantástica a assertiva de que “é sinal de grande bondade não deixar por muito tempo
sem castigo aqueles que cometem injustiça”, melhor que isso não é preciso; porém, temos
mais; sigamos em frente.
Jó 34,11: “Deus paga ao homem conforme as suas obras e retribui a cada um
conforme a sua conduta”.
Pr 3,11-12: “Meu filho, não despreze a disciplina de Javé, nem se canse com o aviso
dele, porque Javé corrige aqueles que ama, como o pai corrige o filho preferido”.
Eclo 18,8-14: “A duração de sua vida é de cem anos no máximo. Como gota no mar e
grão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da eternidade. É por isso
que o Senhor tem paciência com os homens, e derrama sobre eles a sua
misericórdia. Ele vê e reconhece que o fim deles é miserável, e por isso multiplica
para eles o seu perdão. A misericórdia do homem é para o seu próximo, porém a
misericórdia do Senhor é para todos os seres vivos. Ele repreende, corrige, ensina e
dirige, como o pastor conduz o seu rebanho. Ele tem compaixão dos que aceitam a
correção, e dos que se esforçam para lhe cumprir os mandamentos”.
Is 26,10: “Se absolvermos o malvado, ele nunca aprende a justiça; sobre a terra
ele distorce as coisas direitas e não vê a grandeza de Javé”
Diante de coisas tão claras, como ainda querem atribuir a salvação ao fato de alguém
ter sido morto não por sacrifício a favor de alguém; mas puramente, por questões políticas?
No livro Apocalipse (anos 90), cuja autoria é incerta, mas, por tradição, é atribuída a
João, discípulo de Jesus, temos, novamente, qual será o critério de julgamento:
Ap 20,12-13: “Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono. E
foram abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortos
foram julgados de acordo com sua conduta, conforme o que estava escrito nos
livros. O mar devolveu os mortos que nele estavam. A morte e a morada dos mortos
entregaram de volta os seus mortos. E cada um foi julgado conforme sua conduta”.
Corrobora tudo quanto foi apresentado até agora, inclusive, do que ouvimos do próprio
Jesus, negar isso é algo que só fanático consegue fazer sem lhe “doer” a consciência.
Vemos duas coisas curiosas neste livro. A primeira diz respeito ao fato de que João era
iletrado (At 4,13), portanto, não sabia escrever, por isso, se foi ele mesmo quem escreveu o
Apocalipse, só pode ter sido na condição de médium de psicografia. A segunda, é que se tem o
seu conteúdo como fatos que irão acontecer num tempo futuro, apesar de, no início e no fim
desse livro, ter sido alertado de que “o tempo está próximo” (At 1,3; 22,10). Quanto a isso,
podemos dizer que não somos só nós que pensamos assim:
[…] Em vez de ser um livro sobre um futuro distante, tornar-se uma
porta do diálogo sobre os desafios do presente imediato. Torna-se um
livro de advertências e de promessas.
228
Os leitores originais do Apocalipse viviam sob constante ameaça de opressão
religiosa por parte das autoridades religiosas e do império romano. Naquele
ambiente não se podia falar – e com toda certeza não se podia escrever – nem
uma palavra de crítica contra o governo ou outras autoridades. Caso alguém
fosse flagrado de posse de tal literatura subversiva, seria levado à prisão, ou
talvez condenado à morte. Entretanto, se ninguém falasse ou escrevesse a
respeito da opressão, esta teria vencido, controlando, silenciando e intimidando
a todos. Será que existe uma alternativa? Sim, e esta é a genialidade da
literatura do oprimido de um modo geral, e da literatura apocalíptica em
particular.
Eis o que fazer: dizer a verdade sobre aqueles que estão no poder – que são
corruptos, sedentos por derramar sangue, e amaldiçoados – mas fazer isso
secretamente. Não se menciona o “império romano”; menciona-se “a besta”.
Não se fala sobre as autoridades religiosas corruptas; personificam-se estas
mesmas autoridades como sendo “o falso profeta”. O imperador não é citado,
mas conta-se a história de um dragão. Dessa forma recusa-se a ser silenciado
pelo medo – e não se produz nenhuma evidência capaz de incriminação, as
quais poderiam levar à tortura e também à morte os autores e os leitores de tal
literatura.
Se o Apocalipse fosse um plano sobre um futuro distante, teria sido
ininteligível para seus leitores originais, tanto quanto para os leitores de
todas as gerações seguintes; e seria verdadeiro e plenamente relevante
somente para uma geração – a que vivesse no exato período de tempo a
respeito do qual teriam sido feitos os prognósticos. Mas se o Apocalipse for, por
outro lado, um exemplar da literatura do oprimido, repleto de advertências e
promessas sempre relevantes, será então um presente para cada uma das
gerações com os necessários inspiração, sabedoria e encorajamento. Dentro
dessa perspectiva, o Apocalipse torna-se um livro poderoso sobre o Reino de
Deus aqui e agora, disponível a todos. (MCLAREN, 2007, p. 216-218) (grifo
nosso).
Portanto, o pastor Brain D. McLaren (1956- ), a quem se acabou de ler, corrobora aquilo
que tínhamos intuído desde a muito tempo.
Salvação pela morte de Jesus na cruz?
A questão que se coloca é: será que Jesus falou alguma vez que a sua morte na cruz
seria para remissão dos pecados da humanidade? Em princípio, muitos fiéis diriam que sim;
porém, a passagem que tomam como base, carece de uma análise mais profunda, coisa que,
dificilmente, esses fiéis fazem, já que, regra geral, confiam cegamente no que seus líderes lhes
passam. Vejamos o passo, que, nas Bíblicas católicas, é, geralmente, intitulado de “Instituição
da Eucaristia”, no qual isso é ventilado:
Mt 26,26-29: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,
o partiu, distribuiu aos discípulos, e disse: 'Tomem e comam, isto é o meu corpo'. Em
seguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: 'Bebam dele todos, pois
isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de
muitos, para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não beberei
desse fruto da videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino do
meu Pai'”.
Fora a questão estranha de Jesus ter recomendado, ainda que simbolicamente, que
bebessem sangue, porquanto, isso era, expressamente, condenado pela legislação mosaica,
que previa até mesmo a exterminação de quem o fizesse (Lv 3,17; 7,27; 17,10.14; 19,26),
ainda temos que o derramamento de seu sangue seria para “remissão dos pecados”.
Entretanto, quanto a isso, algo nos soou ser improvável, porquanto, nesse mesmo autor,
lemos: “Aprendam, pois, o que significa: 'Eu quero a misericórdia e não o sacrifício'.
Porque eu não vim para chamar justos, e sim pecadores” (Mt 9,13), fato que, para nós,
conflita com o que se propõe nesse passo em análise.
Para sairmos desse impasse, resolvemos pesquisar nos outros Evangelhos para ver
como consta, pela pena de seus autores, a versão desse episódio. Foi aí que nos deparamos
com uma nova surpresa, embora já intuitivamente esperássemos por ela. Vejamos,
229
primeiramente, a versão de Marcos (anos 65-70), pois, pelo que os estudiosos dizem, foi nele
que Mateus (anos 70/80) teve a sua fonte:
Mc 14,22-25: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,
o partiu, distribuiu a eles, e disse: 'Tomem, isto é o meu corpo'. Em seguida, tomou um
cálice, agradeceu e deu a eles. E todos eles beberam. E Jesus lhes disse: 'Isto é o
meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos. Eu
garanto a vocês: nunca mais beberei do fruto da videira, até o dia em que beberei o
vinho novo no Reino de Deus'”.
Se fosse nos dias atuais diríamos que Mateus, simplesmente, plagiou Marcos, pois, as
palavras utilizadas por este, que foi o primeiro a escrever, são quase as mesmas com as quais
Mateus narra o episódio. O único detalhe, mas importante, é que Mateus acrescenta a
expressão “para remissão dos pecados”, que, obviamente, não se encontra em Marcos e nem
nos outros dois evangelistas – Lucas e João.
Esse fato torna evidente que o texto do Evangelho Segundo Mateus sofreu um
acréscimo; a questão é saber se foi o próprio autor ou algum piedoso teólogo, preocupado em
defender dogma de sua igreja. Podemos mesmo admitir que a expressão “para remissão dos
pecados” não foi acrescentada pelo autor de Mateus, pois, julgamos como hipótese mais
provável é que ela tenha sido uma adulteração dos textos ditos originais realizada por puro
interesse dogmático. Tal fato não escapou ao teólogo e exegeta Russell Norman Champlin
(1933- ), que assim explica:
“... para remissão...”: são palavras que não se encontram no evangelho
de Marcos, no original grego, podendo ter sido acrescentadas como uma
forma de interpretação pelo amor do evangelho de Mateus. Não obstante,
é um comentário verdadeiro, consubstanciado por outras passagens. Jesus
disse: “... que está sendo derramado...” como antecipação, como se o seu
sangue já houvera sido derramado. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 596) (grifo
nosso).
Embora tenha percebido o acréscimo, ele
comentário verdadeiro, consubstanciado por outras
estudioso apontar quais passagens corroboram isso
estas que estamos analisando (Mt 26,28; Mc 14,24 e
tenta justificar-se dizendo que “é um
passagens”; porém, faltou ao eminente
que diz, por isso presumimos que sejam
Lc 22,20).
Vejamos também a narrativa de Lucas (anos 70/80):
Lc 22,17-20: “Então Jesus pegou o cálice, agradeceu a Deus, e disse: 'Tomem isto, e
repartam entre vocês; pois eu lhes digo que nunca mais beberei do fruto da videira, até
que venha o Reino de Deus'. A seguir, Jesus tomou um pão, agradeceu a Deus, o partiu
e distribuiu a eles, dizendo: 'Isto é o meu corpo, que é dado por vocês. Façam isto em
memória de mim'. Depois da ceia, Jesus fez o mesmo com o cálice, dizendo: 'Este
cálice é a nova aliança do meu sangue, que é derramado por vocês'”.
Como em Lucas não temos nada sobre sangue derramado para “remissão de pecados”;
mas apenas “derramado por vocês”, sem nenhuma preocupação em determinar que tenha sido
para remir pecados, seu depoimento é importantíssimo para vermos quem está com a razão,
porquanto, ele mesmo afirmou que resolveu escrever depois de “fazer um estudo cuidadoso de
tudo o que aconteceu desde o princípio” (Lc 1,3). Se no resultado desse “estudo cuidadoso”
não aparece, expressamente, nada sobre Jesus ter morrido para remissão de pecados, então,
podemos, tranquilamente, concluir que isso não era crença comum àquela época. Assim, o
acréscimo disso em Mateus, de duas uma: foi algo bem localizado, de alguns poucos crentes
ou adulteração posterior, por recreação dos teólogos de antanho. Conforme já o dissemos a
segunda opção é, para nós, a mais provável.
Para completar o que os evangelistas disseram, vamos agora à narrativa de João (anos
90), que se assemelha ao episódio da última ceia, narrado pelos outros:
Jo 6,51-59: “E Jesus continuou: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come
230
deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para
que o mundo tenha a vida'. As autoridades dos judeus começaram a discutir entre si:
'Como pode esse homem dar-nos a sua carne para comer?' Jesus respondeu: 'Eu
garanto a vocês: se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seu
sangue, não terão a vida em vocês. Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha
carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a
minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele. E como o Pai,
que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, assim, aquele que me receber como alimento
viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Não é como o pão que os pais de
vocês comeram e depois morreram. Quem come deste pão viverá para sempre'. Jesus
disse essas coisas quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum”.
Nos outros três Evangelhos – Mateus, Marcos e Lucas –, temos que o sangue de Jesus
foi para selar a nova aliança e não para remissão de pecados da humanidade, João destoa
disso, buscou dar um outro significado. Nele também não vemos nada de ter sido algo para
“remissão dos pecados”.
Quanto a crença de que teria sido para selar a nova aliança, podemos, também
acrescentar Paulo de Tarso que, com sua primeira carta aos coríntios (ano 57), confirma isso:
1Cor 11,23-25: “De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti para
vocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar
graças, o partiu e disse: 'Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memória
de mim”. Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: 'Este cálice é
a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam isso
em memória de mim'”.
Pela ordem cronológica, este foi o primeiro texto a ser escrito, que corrobora o que
encontramos nos Evangelhos Sinópticos - Mateus, Marcos e Lucas –, quanto ao que, na época,
acreditavam representar o sangue de Jesus derramado na cruz, inclusive, isso foi o que
perceberam alguns tradutores bíblicos:
Como outrora no Sinal, o sangue das vítimas selou a aliança com Iahweh
com o seu povo (Ex 24,4-8+; cf. Gn 15,1+), assim, sobre a cruz, o sangue da
vítima perfeita, Jesus, selaria a “nova” aliança entre Deus e os homens
(cf. Lc 22,20), a qual os profetas tinha anunciado (Jr 31,31+). Jesus atribui a si
a missão de redenção universal que Isaías atribuído só “Servo de Iahweh” (Is
42,6; 49,6; 53,12, cf. 42,1+; cf. Hb 8,8; 9,14; 12,24). A ideia de nova aliança
está presente também em Paulo, não só em 1Cor 11,25, mas em diversos
outros contextos que mostram sua grande importância (2Cor 3,4-6; Gl 3,15-20;
4,24). (Bíblia de Jerusalém, 2002, p. 1752) (grifo nosso).
A antiga Aliança ou pacto entre Javé e o seu povo tivera como sinal de
contrato uma cerimônia de aspersão de sangue de animais (cf. Ex 24,8). A nova
Aliança baseia-se no sangue de Jesus. (Bíblia Sagrada Santuário, 1984, p.
1480) (grifo nosso).
O sangue da nova aliança: a primeira aliança de Deus com o povo foi selada
pelo sangue das vítimas oferecidas em sacrifício. A nova aliança é feita pelo
sangue das vítimas oferecidas em sacrifício. A nova aliança é feita pelo
sangue de Cristo, vítima oferecida em sacrifício pelo gênero humano. (Bíblia
Sagrada Ave-Maria, 1989, p. 1317) (grifo nosso).
Aliança: A primeira aliança foi estabelecida pelo sangue aspergido de animais
sacrificados (cf. Hb 9,19ss). A nova aliança tornou-se válida através do
sangue vertido do Filho de Deus (Hb 8,7-13). (Bíblia Shedd, 2005, p. 1376)
(grifo nosso).
Assim, todos os tradutores envolvidos nessas Bíblias citadas têm a morte de Jesus na
cruz como um selo para a nova Aliança, nada de remissão de pecados da humanidade. Na
verdade, quando admitem isso estão fazendo um paralelo com o que teria acontecido com
Moisés:
231
Ex 24,4-8: “Moisés colocou por escrito todas as palavras de Javé. Depois
levantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze estelas para as
doze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de Israel oferecer
holocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de comunhão. Moisés
pegou a metade do sangue e colocou em bacias; a outra metade do sangue, ele a
derramou sobre o altar. Pegou o livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram:
"Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos". Moisés pegou o sangue e o
espalhou sobre o povo, dizendo: "Este é o sangue da aliança que Javé faz com
vocês através de todas essas cláusulas".
Caso insistam em considerar que o sangue de Jesus tenha sido para remissão dos
pecados, veremos que, pelo que consta do ritual aqui descrito, faltou pegar o seu sangue e
espalhá-lo sobre o povo, por mais tétrico e próprio de filmes de terror que isto seja.
Julgamos que é desse ato que surgiu a ideia de que nenhum pacto poderia ser feito sem
que fosse derramado sangue, conforme poder-se-á ver em Hebreus, cujo passo, um pouco
mais à frente, iremos transcrever.
Vejamos agora a explicação dos tradutores da Bíblia Vozes para a passagem de Mateus
(Mt 26,26-29):
O testamento de sangue que será derramado por muitos para a
remissão dos pecados (v. 28) é o conceito desenvolvido na epístola aos
Hebreus (9,16-28). O sangue de Jesus presente no cálice vai adquirir o direito
à redenção dos pecados e à graça e glória. É o último convívio de Jesus antes da
morte (v. 29), garantia do banquete celeste no reino do Pai (8,11). (Bíblia
Sagrada Vozes, 1989, p. 1208) (grifo nosso).
Parece-nos que aqui já temos uma pista para iniciar a busca a fim de saber qual é a
origem dessa ideia de que o sangue de Jesus serviu para a remissão dos pecados da
humanidade.
Antigamente, admitia-se que o autor de Hebreus fosse Paulo, hoje não se sabe ao certo
quem foi; provavelmente, tenha sido um seu seguidor, porquanto nele “Pode-se todavia
reconhecer ressonâncias do pensamento paulino” (Bíblia de Jerusalém, p. 2083).
É, pelo visto, já apareceu o pai dessa criança:
1Cor 15,3-4: “[...] Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele
foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; [...]”.
Rm 4,24-25: “[...] acreditamos naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus nosso
Senhor, o qual foi entregue à morte pelos nossos pecados e foi ressuscitado para
nos tornar justos”.
Rm 5,8-9: “Mas Deus demonstra seu amor para conosco porque Cristo morreu por nós
quando ainda éramos pecadores. Assim, tornados justos pelo sangue de Cristo,
com maior razão seremos salvos da ira por meio”.
Col 1,13-14: “Deus Pai nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino
do seu Filho amado, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados”.
Ef 1,7: “Por meio do sangue de Cristo é que fomos libertos e nele nossas faltas
foram perdoadas, conforme a riqueza da sua graça”.
Paulo é o autor dessas cartas – 1ª Coríntios (ano 57), Romanos (ano 58); Colossenses
(anos 61-63 ou 79/80), Efésios (anos 61-63 ou 90/100) –, cujos textos transcrevemos. É
importante não esquecermos de que ele foi um judeu bem ortodoxo e que, pessoalmente, não
conheceu a Jesus e nem era um dos seus apóstolos.
Não podemos deixar de observar que em 1Cor 15,3-4, vemos dois fatos dos quais se
diz ter acontecido “conforme as Escrituras”. É importante a elucidação de Champlin sobre isso:
232
[…] Não está aqui em foco a coleção dos escritos neotestamentários,
porquanto as epístolas paulinas aos Coríntios foram escritas antes dos
evangelhos, não existindo ainda um “cânon” do N.T. quando Paulo
registrou essas palavras. A alusão é ao A.T. e àquelas passagens que os
cristãos primitivos consideravam como profecias sobre a morte expiatória de
Cristo. […] (CHAMPLIN, 2005d, p. 237) (grifo nosso).
Na verdade, apesar de algumas tentativas de relacionar a passagens no A.T., não há
uma só sequer que objetivamente poder-se-ia atribuir aos dois assuntos tratados por Paulo.
Vários tradutores bíblicos mencionam Isaías 53, como sendo a profecia realizada;
porém, é bom deixar claro que os versículos compreendidos entre Isaías 52,13–53,12, nos
quais apresentam o servo sofredor, este, segundo o contexto, é a nação de Israel. Portanto
não há sentido algum em querer atribuir tal epíteto a Jesus.
Algo bem interessante encontramos em Pepe Rodríguez (1953- ), de cuja obra Mentiras
fundamentais da Igreja Católica, como a Bíblia foi manipulada, transcrevemos:
[…] No texto conhecido como o Canto do Servo de Iavé (Is 42,1-9; 49,1-6;
50,4-9; 52,13; 53,12), que deve ser lido no contexto do exílio e do cativeiro
a que foi submetido o povo hebreu, o sacrifício expiatório dos
sofrimentos do Servo (personificação da comunidade exilada e,
portanto, do verdadeiro povo de Israel) é apresentado como tendo sido
aceite por Iavé. Foi a maneira encontrada pela elite sacerdotal de assegurar a
“salvação” de todo o povo, apesar de este nada ter feito para a merecer – “o
Justo, meu Servo, muitos há-de justificar-se” (Is 53,11), ele “será a Aliança dos
homens, a luz das nações” (s 42,6).
Apesar de não haver qualquer relação entre estes textos do Velho
Testamento e a história de Jesus, os cristãos transformá-lo-ão num pilar básico
da sua fé, ao lê-los com a confirmação do “varão de dores” (Is 53,3) e o anúncio
do papel do messias sofredor desempenhado pelo nazareno como a sua paixão e
a sua morte. Ao tornar profético o relato de Isaías, extraviando conscientemente
o seu verdadeiro sentido, a Igreja intentou conferir um sentido triunfante,
glorioso e divino à execução de Jesus que, de outro modo, teria sido apenas um
fracasso puro e simples. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 191) (grifo nosso).
Para justificar a execução de Jesus que, aos olhos do mundo, só
podia passar por um fracasso da sua missão, desde cedo se começou a
difundir a ideia de que era necessário que o nazareno morresse
“segundo a Escritura”. Dito de outro modo, a sua crucificação não só estivera
desde sempre prevista nos planos de Deus, como essa ocorrência se podia
deduzir da leitura dos textos bíblicos. Para documentar uma tamanha asneira, a
Igreja procedeu ao rastreio de todos os textos do Velho Testamento, até deparar
com versículos que, devidamente manipulados e extraídos do seu contexto,
pudessem ser convertidos em profecias virtuais do mistério da paixão de Cristo.
Nessa perspectiva, a atitude cobarde dos discípulos de Jesus face à sua
prisão encontrou fundamento profético em Zac 13,7; o suborno recebido por
Judas, em Zac 11,13; a compra do campo do oleiro, em Jer 32,6; o discurso de
Jesus perante o Conselho e a sua afirmação de que estaria sentado à direita do
Pai e de que apareceria sobre as nuvens, em Dan 7,13, e no Salmo 110,1; as
suas palavras “Tenho sede”, no Salmo 22,16; o episódio da esponja embebida
em vinagre, no Salmo 69,22; a sua exclamação de se considerar abandonado
por Deus, no Salmo 22,2; o eclipse do Sol, em Am 8,9; etc.(2).
A crucificação em si – o facto de ser exposto num madeiro – era muito mais
difícil de justificar profeticamente, pela boa razão de que a única profecia bíblica
que se lhe podia aplicar conduzir a resultados demasiados perigosos. O texto
que, com esse intuito, foi utilizado pelos primeiros cristãos figura no Dt 21,2223. Diz ele: "Quando um homem, culpado de uma falta que mereça a morte, for
executado e exposto num madeiro, o seu cadáver não deverá passar a noite no
suplício, mas o enterrarás no mesmo dia, porque um dependurado é objecto da
maldição de Deus, e não deves manchar a terra que Iavé, teu Deus, quer
partilhar contigo” (3) Terá sido Jesus amaldiçoado por Deus por ter sido
“exposto num madeiro”? Que cada um, inspirado pela palavra de Deus, expressa
através da legislação do Deuteronômio, tire as suas próprias conclusões.
Em definitivo, foi nos Salmos 22 e 69, assim como no capítulo 53 de
233
Isaías (todo ele falso, como vimos), que a Igreja encontrou os textos
necessários e suficientes para dar cobertura profética à paixão e Jesus.
Não será exagero nosso, no entanto, voltar a lembrar que todos os textos ditos
“proféticos” se aplicam única e exclusivamente a situações que ocorreram
muitos séculos antes do nascimento de Jesus. Razão por que qualquer suposta
profecia do Velho Testamento que se pretenda relacionar com a vida e a obra do
nazareno carece absolutamente de fundamento (4).
Ao vermos o modo como a Igreja forçou o sentido de muitos
versículos do Velho Testamento, para os converter em profecias e, acto
contínuo, os utilizar na sustentação da missão de que investiu Jesus, depois da
sua execução, talvez convenha trazer à colação o aviso que se acha escrito em
Mt 7,15-17: “Guardai-vos dos falsos profetas que vêm até vós vestidos de peles
de ovelha mas que por dentro são como lobos rapaces. Pelos seus frutos os
conhecereis. Porventura, colhem-se uvas no espinhos e figos nos cardos? Toda
a árvore boa dá bons frutos, toda a árvore má dá maus frutos”. Este parece ser,
sem dúvida, o parágrafo mais inspirado de Mateus.
_______
2. Não vamos reproduzir todos os textos do Velho Testamento que supostamente
profetizam as correspondentes passagens dos Evangelhos; ver-nos-íamos obrigados a
transcrever o contexto de cada um deles, o que seria tão incómodo quão absurdo. Não
deixamos, no entanto, de recomendar a quem tiver dúvidas sobre o que afirmamos que
pegue numa Bíblia e proceda por si às referidas comparações e verá com os seus próprios
olhos como foi desavergonhada e infantil a fabricação de profecias bíblicas relativas à
paixão de Jesus.
3. Neste passo, não nos servimos do texto da Bíblia católica de Nácar-Colunga, que
utilizamos em todo este livro, por estar escandalosamente mal traduzido. A verão que
apresenta é a seguinte: “Quando alguém cometeu um crime digno de morte, que seja
morto dependurado num madeiro, e o seu cadáver não ficará no m adeiro durante a noite,
não deixareis de o enterrar no próprio dia, porque o enforcado é maldição de Deus, e não
há-de manchar a terra que Iavé, teu Deus, te deu em herança”; a palavra “enforcado”,
com que se pretende criar uma distância entre este passo e o tipo de morte que sofreu
Jesus, não só aparece em nenhuma tradução objectiva da Bíblia (seja ela católica ou
independente) como, inclusivamente, está ausente de outras versões absolutamente
católicas. É o caso, por exemplo, da que nos servimos neste passo (Cf. Sagrada Bíblia,
traduzida por Félix Torres e Severiano del Páramo, Apostolado de la Prensa, Madrid, 1928,
p. 349).
4. Como o leitor poderá constatar por si próprio, é muito fácil encontrar profecias na
Bíblia. Experimente fazer o que nós mesmos fizemos: ao abrirmos a Bíblia ao acaso,
saíram-nos as páginas 704-705; quando começámos a ler, deparamos com este versículo:
"Mesmo que se forme contra mim um exército, o meu coração manter-se-á firme. Mesmo
que parta em guerra contra mim, não deixarei, mesmo então, de continuar tranquilo” (Sl
27, 3). A uma primeira leitura, é evidente que se trata de uma profecia claríssima de
“Rambo” - especialmente do seu filme O Encurralado; ou talvez de um filme de James
Bond; ou, melhor ainda, do líder sectário David Koresh, mortalmente cercado pelas forças
especiais do FBI, no seu rancho de Waco; mas também pode estar a referir-se ao cerco
final de Che Guevara em La Higuera pelo exército boliviano; ou, talvez seja urna descrição
perfeita do comportamento do valente e honesto monsenhor Oscar Romero, assassinado
em El Salvador; ou ainda pode estar a profetizar a detenção de Jesus de Nazaré por toda
uma coorte do exército romano; ou, talvez...
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 192-194) (grifo nosso).
Podemos, portanto, concluir que a morte e ressurreição de Jesus não foi profetizada por
ninguém; é produto do delírio dogmático dos teólogos de antanho.
Além disso não há nenhuma profecia a respeito de que, especificamente, alguém
deveria ressuscitar no terceiro dia, nem mesmo em Oseias, conforme podemos ver: “Vinde, e
tornemos para o Senhor, porque Ele despedaçou, e nos sarará, fez a ferida, e a ligará. Depois
de dois dias nos dará a vida: ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele” (Os
6,1-2) (Bíblia Sagrada – SBB). Percebe-se que aqui, não se trata de ressurreição, mas de
levantar alguém que, após vários castigos, fica quase desfalecido, sendo revigorado por Deus,
num curto espaço de tempo.
Então, fica evidenciado que tudo teve início por volta do ano de 57, data da sua
primeira carta aos coríntios. De onde foi que Paulo tirou essa ideia é algo que ainda não
conseguimos descobrir. Até mesmo porque a informação, que temos do professor de história
Fida Mohammad Khan Hassnain (1924- ), conflita com essa crença entre os judeus:
Os judeus da Palestina nunca acreditaram em sacrifício humano, nem
234
na crucificação do messias pelos pecados do mundo. Os pagãos
acreditam que seus deuses, Adonis, Attis, Osiris e Mitra morreram pelos
pecados da humanidade. Foi Paulo que adotou a ideia de bode expiatório
acentuando-a sobre o Cristo crucificado. A teoria do “pecado original” e
redenção pela morte do Filho de Deus foi invenção de Paulo. Para mais
esclarecimentos, veja Shamas, J. D., Where Did Jesus Die?, London Mosque,
Londres, cap. 10, chamado “Redemption”. (HASSANAIN, 1999(?), p. 119) (grifo
nosso).
Mas algo é possível: como ele pregou aos gentios, ou seja, aos pagãos, acostumamos a
esse tipo de crença, provavelmente Paulo tenha se utilizado de uma linguagem simbólica para
que pudesse sensibilizá-los para seguir a Cristo. Acreditamos que, em José de Souza Pinheiro
(1938- ), encontramos apoio a essa nossa hipótese:
Como nos esclarece o teólogo Franz Griese (cf. GRIESE, p. 174-175), no
tempo de Paulo, os pagãos e os judeus costumavam sacrificar animais
aos respectivos deuses. A carne desses animais sacrificados era consumida
nos mercados públicos, na qualidade de carne de Júpiter (o Senhor dos deuses),
carne de Minerva (deusa da sabedoria) etc., segundo as divindades a quem
haviam sido sacrificados os animais. Os consumidores escolhiam a carne
que mais lhes convinha, crendo que comendo essa carne recebiam uma
bênção especial da divindade respectiva, e até entrar em certa união
com ela, mediante aquela carne.
É da maior importância ter presente essas crenças da antiguidade, para
compreender o sentido das palavras nos escritos daqueles que viviam naquela
época e estavam imbuídos de suas ideias.
Pois bem, o apóstolo Paulo, para induzir os novos cristãos, oriundos
dos povos pagãos, a não participarem dos sacrifícios pagãos e não
comerem a carne dos animais sacrificados aos ídolos, proíbe essa
prática, substituindo-a pela "Ceia do Senhor", dizendo que, como pela
carne dos ídolos, o homem participa dos "demônios", ou seja, dos "deuses
pagãos", do mesmo modo pelo consumo do pão e do vinho eucarísticos o cristão
participa do "Cristo da fé" (cf. GRIESE, p. 175).
Mas, como afirma Griese (ibid.), não há a menor dúvida de que Paulo não
acreditava numa participação literal da própria pessoa dos deuses pagãos,
mediante a carne dos ídolos e, portanto, tampouco na participação literal da
verdadeira pessoa de Cristo, mediante o pão e o vinho eucarísticos.
Os coríntios (como Paulo) também tinham um conceito simbólico muito
simples da eucaristia e, certamente, não tinham a convicção de que o pão seria
o verdadeiro corpo e o vinho o verdadeiro sangue de Cristo. Eles apenas
acreditavam que, ao comerem o pão e ao beberem o vinho, participavam do
Cristo da fé, do mesmo modo como os pagãos acreditavam que participavam
simbolicamente dos seus deuses comendo a carne dos animais sacrificados em
sua honra (cf. GRIESE, p. 179). (SOUZA, 2011, p. 134) (grifo nosso).
Para a hipótese de ser um simbolismo temos como base o que Paulo disse na sua
segunda carta aos coríntios (ano 57), onde a sua fala foi completamente diferente:
2Cor 5,10: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a
fim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a sua
vida no corpo, tanto para o bem, como para o mal”.
Essa afirmação de Paulo vem ao encontro do que consta nos Evangelhos de Mateus,
Marcos e Lucas, quanto à questão do critério de julgamento; por isso, julgamos que esse era,
verdadeiramente, o seu pensamento e, na pior das hipóteses, a crença daquela época; que,
acreditamos, pode ser corroborado com o que se lê nestes passos:
Gl 6,10: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a
fim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a sua
vida no corpo, tanto para o bem, como para o mal”.
1Cor 15,2: “É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem
235
do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.
Rm 1,16-17: “Não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para a
salvação de todo aquele que acredita, do judeu em primeiro lugar, mas também do
grego. De fato, no Evangelho a justiça se revela única e exclusivamente através da fé,
conforme diz a Escritura: 'o justo vive pela fé'”.
Rm 2,5-8: “Pela teimosia e dureza de coração, você está amontoando ira contra si
mesmo para o dia da ira, quando o justo julgamento de Deus vai se revelar,
retribuindo a cada um conforme as suas próprias ações: a vida eterna para
aqueles que perseveram na prática do bem, buscando a glória, a honra e a
imortalidade; pelo contrário, ira e indignação para aqueles que se revoltam e rejeitam a
verdade, para obedecerem à injustiça”.
As várias falas de Paulo, indiscutivelmente, causam muita confusão, pois uma hora ele
diz uma coisa, em outra hora diz algo diferente:
Rm 10,9: “Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita
com seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo”.
Será que a nossa salvação e tão simples assim: basta crer que Jesus ressuscitou dos
mortos?
Leiamos o que Fernando Travi (? - ), disse, ao que nos parece, referindo-se ao passo
acima:
Outro petardo disparado pelos críticos diz respeito à doutrina da salvação
defendida por Paulo. “Paulo diz que os pecados são perdoados se a pessoa
acreditar que Jesus morreu na cruz por ela. É a doutrina da salvação em que
o herói derrama seu sangue e todos são perdoados por causa dele.
Enquanto isso, Jesus diz: 'Eu sou o caminho, a verdade e a vida'. Para Jesus, a
salvação será dada àqueles que seguirem seus ensinamentos”, afirma
Fernando Travi. (p. 64) (VASCONCELOS, 2003, p. 56-64) (grifo nosso).
Por outro lado, a questão da remissão de pecados, nas suas cartas, acima mencionadas
(1Cor 15,3-4; Rm 4,24-25; 5,8-9; Col 1,13-14; Ef 1,7), também pode ser entendida como
metáfora, que, talvez, ele tenha utilizado visando a conversão dos pagãos, evitando chocá-los
com ensinamentos muito diferente daqueles que possuíam.
Sobre Paulo, temos as seguintes explicações do teólogo alemão Holger Kersten
(1951- ):
O que conhecemos hoje como cristianismo não passa de uma vasta e
artificial doutrina de regras e preceitos criados por Paulo, e que pode ser melhor
designado pelo nome de “Paulinismo”. O historiador eclesiástico Wilhelm Nestle,
comentando a questão, diz que: “o cristianismo foi a religião fundada por
Paulo, que substituiu o evangelho de Cristo por um evangelho sobre
Cristo” (21). Paulinismo, nesse sentido, significa desvirtuamento e mesmo
falsificação dos verdadeiros ensinamentos de Jesus por Paulo. Há muito tempo
os teólogos modernos e os estudiosos da história da Igreja vêm
afirmando abertamente que o cristianismo da Igreja organizada, cuja
questão central é a compreensão da salvação como fruto da morte e do
sofrimento de Jesus, se apoiou em fundamentos incorretos. “Tudo o que
há de bom no cristianismo provém de Jesus e tudo o que há de mau, de Paulo”,
escreveu o teólogo Overbeck (22). Associando a morte do Unigênito de
Deus à redenção de nossos pecados, Paulo retrocedeu às primitivas
religiões semíticas, em que os pais deviam imolar seus primogênitos.
Paulo também é o responsável pelos dogmas do pecado original e da trindade,
posteriormente incorporados pela Igreja.
______
21. Wilh. Nestle, Krisis des Christentums 1947, p. 89.
22. F. Overbeck, Christentum und Kultur – aus dem Nachlas, 1919.
(KERSTEN, 1988, p. 34-35) (grifo nosso).
236
Foi Paulo quem centralizou a atividade de Jesus em sua morte,
mostrando que é através dela que o homem de fé se liberta de seus
pecados, das misérias do mundo e do poder de satanás.
Em suas cartas, Paulo não escreveu uma única palavra sobre o
ensinamento atual de Jesus, nem menciona qualquer de suas parábolas;
o que ele faz é apresentar sua própria filosofia e suas próprias ideias. (KERSTEN,
1988, p. 237) (grifo nosso).
Seguindo em frente. Veremos agora o que o autor de Hebreus, que não se sabe quem
é, disse.
Hb 9,15-23: “Desse modo, ele é o mediador de uma nova aliança. Morrendo, nos livrou
das faltas cometidas durante a primeira aliança, para que os chamados recebam a
herança definitiva que foi prometida. Onde existe testamento, é preciso que seja
constatada a morte de quem fez o testamento. Pois um testamento só tem valor
depois da morte, e não tem efeito nenhum enquanto ainda vive aquele que fez o
testamento. É por isso que nem mesmo a primeira aliança foi inaugurada sem sangue.
Quando anunciou a todo o povo cada um dos mandamentos da Lei, Moisés pegou
sangue de novilhos e bodes junto com água, lã vermelha e hissopo. Em seguida,
borrifou primeiro o próprio livro e todo o povo. E disse: "Este é o sangue da aliança
que Deus faz com vocês." Do mesmo modo, borrifou com sangue também a tenda e
todos os objetos que serviam para fazer o culto. E, segundo a Lei, quase todas as
coisas são purificadas com sangue; e sem derramamento de sangue não existe
perdão. Portanto, as cópias das realidades celestes são purificadas dessa maneira;
mas as próprias realidades celestes devem ser purificadas com sacrifícios maiores do
que esses”.
O desconhecido autor de Hebreus (anos 60 ou 70/80), admite que a morte de Jesus
tenha sido para selar a nova aliança, entretanto, avança um pouco mais e utiliza da Lei (Antigo
Testamento) para justificar que “sem derramamento de sangue não existe perdão”, o que não
tem nada a ver com o assunto que desenvolvia, até mesmo porque ele considerava que a
Antiga Aliança havia sido revogada, conforme pode-se comprovar por estas passagens:
Hb 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de
sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa alguma) e, por outro
lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. E, visto que não
é sem prestar juramento (porque aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, mas
este, com juramento, por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá;
Tu és sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de
superior aliança”.
Hb 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente,
quanto é ele também mediador de superior aliança instituída com base em
superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem
defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E, de
fato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança
com a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada a
primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido, está prestes a
desaparecer”.
Se os ensinamentos de Jesus é que devem prevalecer, como então utilizar-se de algo
que consta na legislação mosaica? E, não sem motivo, Jesus havia dito: “[...] 'Eu quero a
misericórdia e não o sacrifício'. [...]” (Mt 9,13). Em razão disso, perguntamos: será que
sacrifícios agradavam a Deus? A resposta encontra-se nestes passos:
Is 1,11: “Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? - diz Javé. Estou farto
dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do sangue de
bois, carneiros e cabritos”.
Jr 6,20: “[...] Os holocaustos de vocês não me agradam, seus sacrifícios não
são do meu gosto".
237
Além disso, ainda são condenados os sacrifícios que faziam os povos pagãos,
especialmente os cananeus, cujas terras os hebreus iram espoliar:
Dt 12,29-31: “Quando Javé seu Deus eliminar da sua frente as nações, na terra das
quais você vai entrar para as desapossar; quando você as desapossar e aí estiver
morando, preste atenção a si mesmo! Não se deixe seduzir; não imite essas nações,
depois que elas forem eliminadas de diante de você. Tome cuidado para não procurar
os deuses delas, dizendo: 'Como é que essas nações serviam seus deuses? Vou fazer a
mesma coisa'! Não aja dessa maneira para com Javé seu Deus, porque elas faziam aos
deuses delas tudo o que é abominação para Javé, tudo o que ele detesta. Essas nações
chegaram até a queimar seus próprios filhos e filhas para os deuses delas!”
Será que Deus é tão incoerente assim para condenar os sacrifícios praticados pelos
cananeus e aceitar algum outro, incluindo o que atribuem a Jesus? Bem já questionava o
profeta Samuel, que viveu por volta de 1095 a.C (WIKIPÉDIA): “O que é que Javé prefere?
Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra? Obedecer vale
mais do que oferecer sacrifícios” (1Sm 15,22).
Mas o pior ainda não é isso, é o que vem agora:
Jr 7,21-23: “Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: 'Ajuntem os holocaustos
que vocês queimam, com seus sacrifícios, e comam essas carnes. Pois quando tirei do
Egito os antepassados de vocês, eu não falei nada nem dei ordem alguma sobre
holocaustos e sacrifícios. A única coisa que eu lhes falei e mandei, foi isto:
Obedeçam-me, e eu serei o Deus de vocês, e vocês serão o meu povo. Andem sempre
no caminho que eu lhes ordenar, para que sejam felizes'”.
Ora, o que aqui está é que, pela própria “voz” de Deus, Ele nunca ordenou fazer
holocaustos e sacrifícios, derrubando toda a legislação mosaica a respeito. Diante disso fica a
questão: como acreditar que tenha aceito o (suposto) sacrifício de Jesus? Além disso, temos
ainda este outro passo que, supomos, fulmina de vez com essa macabra ideia, digna de filmes
de terror:
Mc 12,28-34: “Um doutor da Lei estava aí, e ouviu a discussão. Vendo que Jesus tinha
respondido bem, aproximou-se dele e perguntou: 'Qual é o primeiro de todos os
mandamentos?' Jesus respondeu: 'O primeiro mandamento é este: Ouça, ó Israel! O
Senhor nosso Deus é o único Senhor! E ame ao Senhor seu Deus com todo o seu
coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. O
segundo mandamento é este: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Não existe outro
mandamento mais importante do que esses dois”. O doutor da Lei disse a Jesus: 'Muito
bem, Mestre! Como disseste, ele é, na verdade, o único Deus, e não existe outro além
dele. E amá-lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o
próximo como a si mesmo, é melhor do que todos os holocaustos e do que
todos os sacrifícios'. Jesus viu que o doutor da Lei tinha respondido com inteligência,
e disse: 'Você não está longe do Reino de Deus'. E ninguém mais tinha coragem de
fazer perguntas a Jesus”.
Diante do que foi dito acima é preciso acrescentar mais alguma coisa?! Acreditamos que
não; porém, vamos seguir em frente, pois temos mais algumas coisas que precisam ser
mostradas.
Hb 10,11-18: “Cada sumo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto e
oferecer muitas vezes os mesmos sacrifícios, que são incapazes de eliminar os pecados.
Jesus, porém, ofereceu um só sacrifício pelos pecados e se assentou à direita
de Deus. Doravante, ele espera apenas que seus inimigos sejam colocados debaixo de
seus pés. De fato, com uma só oferta ele tornou perfeitos para sempre os que ele
santifica. E é isso que o Espírito Santo atesta; de fato, após ter dito: 'Esta é a aliança
que vou concluir com eles, depois daqueles dias, - diz o Senhor: Eu colocarei minhas
leis em seus corações e as imprimirei na sua mente, e não me lembrarei mais dos seus
pecados e de suas faltas'. Ora, quando os pecados já foram perdoados, não é
mais preciso fazer ofertas pelos pecados”.
238
Hb 13,11-13: “De fato, depois que o sumo sacerdote oferece o sangue no santuário
pelos pecados do povo, os corpos dos animais oferecidos em sacrifício são queimados
fora do recinto sagrado. Por esse motivo, também Jesus sofreu sua paixão fora
de Jerusalém, quando purificou o povo com o seu próprio sangue. Portanto,
saiamos também do recinto sagrado para ir ao encontro de Jesus, carregando a
humilhação dele”.
O autor de Hebreus procura desenvolver aqui outra tese sobre a morte de Jesus,
passando, agora, não mais para selar a Nova Aliança, mas para remissão dos pecados. Essa
crença, ao que tudo indica, acabou também por contaminar Pedro - 1 Pedro (ano 64 ou anos
70/80) – e João - 1 João (ano 90):
1Pe 1,1-2: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos que vivem dispersos como
estrangeiros no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia. Vocês foram escolhidos de
acordo com a presciência de Deus Pai e através da santificação do Espírito, para
obedecerem a Jesus Cristo e serem purificados pelo seu sangue. Que a graça e
a paz sejam abundantes para vocês”.
1Pe 1,17-19: “Vocês chamam Pai àquele que não faz distinção entre as pessoas, mas
que julga cada um segundo as próprias obras. Portanto, comportem-se com temor
durante esse tempo em que se acham fora da pátria. Pois vocês sabem que não foi com
coisas perecíveis, isto é, com prata nem ouro, que vocês foram resgatados da vida
inútil que herdaram dos seus antepassados. Vocês foram resgatados pelo precioso
sangue de Cristo, como o de um cordeiro sem defeito e sem mancha”.
1Jo 1,6-7: “Se dizemos que estamos em comunhão com Deus e no entanto andamos
em trevas, somos mentirosos e não pomos em prática a Verdade. Mas, se caminhamos
na luz, como Deus está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue
de Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado”.
1Jo 2,1-2: “Meus filhinhos, eu lhes escrevo tais coisas para que vocês não pequem.
Entretanto, se alguém pecou, temos um advogado junto do Pai: Jesus Cristo, o justo.
Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados; e não só os nossos, mas
também os pecados do mundo inteiro”.
Estranhamos que, nessa primeira carta, João (ano 90) tenha dito isso, porquanto, em
seu Evangelho (ano 90), escrito no mesmo período, ele, em momento algum, desenvolve algo
parecido.
Antes de prosseguir, vejamos algumas considerações de renomados especialistas a
respeito do episódio onde teria ocorrido a última ceia, do qual vimos aqui as narrativas dos
vários autores bíblicos. Justificamos porque é desse fato que, geralmente, tomam para
fundamentar que a morte de Jesus teria sido para remissão dos pecados. Por serem
pertinentes ao presente estudo, vamos transcrevê-las.
Geza Vermes (1924- ), no capítulo “As palavras de Jesus durante a Última Ceia” (Mc
14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,15-20; 1Cor 11,23-26), diz:
Quatro relatos da Última Ceia sobreviveram no Novo Testamento. Eles
concordam entre si sobre vários pontos essenciais, mas também ostentam
variações substanciais. Também é notável que o Evangelho de João não
contenha qualquer relato da ceia de Páscoa compartilhada por Jesus e seus
discípulos. Isto se deve sem dúvida ao fato de a prisão e crucificação de Jesus
terem acontecido, segundo o Quarto Evangelho, um dia antes da festa, não
podendo consequentemente ser questão de qualquer participação de Jesus
numa ceia real de Páscoa. João especifica que os dignitários que entregaram
Jesus a Pilatos recusaram-se a entrar em seu palácio, no pretório, a fim de
permanecerem ritualmente puros “e poder comer a Páscoa” (ver João 18,28).
Há um consenso geral entre intérpretes do Novo Testamento de que a
narrativa da Última Ceia, com a sua exiguidade de detalhes concretos,
foi escrita acima de tudo para registrar o que desde o princípio a igreja
primitiva compreendeu como a instituição de um ritual religioso
significativo, a Eucaristia. Queira ou não, essa visão eclesial afeta
239
retrospectivamente o significado das palavras que presumidamente teriam vindo
dos lábios de Jesus. (VERMES, 2006, p. 344-345) (grifo nosso).
O teólogo John Dominic Crossan (1934- ), co-fundador do The Seminar Jesus, parecenos ainda mais enfático, conforme podemos ver nessa citação do professor José Pinheiro de
Souza (1938- ):
Por conseguinte, a Ceia Eucarística não pode ter sido instituída pelo Jesus
Histórico. O renomado teólogo e ex-padre católico John Dominic Crossan, em
seu livro O Jesus Histórico, argumenta que a Ceia Eucarística, interpretada
literalmente, não é originária de Jesus histórico (cf. CROSSAN, 1994, p. 398399).
Mais precisamente, ele mostra que a Ceia Eucarística, como referida num dos
livros mais antigos do cristianismo, o chamado Didaqué (ou “Instrução dos Doze
Apóstolos”), escrito por volta do final do Século I de nossa era (mas descoberto
somente no ano de 1883), nada tem a ver com os acréscimos posteriores
católicos a respeito da Ceia Eucarística, supostamente instituída por Jesus, e
sobre o suposto milagre da “transubstanciação”. Na Ceia Eucarística descrita no
livro Didaqué (capítulos 9 e 10), “não há qualquer menção de uma refeição
feita para comemorar a Páscoa, de uma última ceia, nem de alguma
conexão com a morte de Jesus ou sua celebração”. (CROSSAN, 1994, p.
400).
(SOUZA, 2011, p. 139) (grifo do original).
Bart D. Ehrman (1955- ), considerado a maior autoridade sobre o Novo Testamento do
mundo, argumenta:
[...] Em um de nossos mais antigos manuscritos gregos, assim como em
vários testemunhos latinos, temos:
E tomando o cálice, dando graças, ele disse: “Tomai-o, reparti-o entre
vós, pois eu vos digo que não beberei do fruto da vinha a partir de agora,
até que venha o reino de Deus”. E tomando o pão, dando graças, ele o
partiu e o deu a eles, dizendo: “Isto é o meu corpo... Mas vede que a mão
daquele que me trai está comigo nesta mesa” (Lucas 22,17-19).
Contudo, na maioria de nossos manuscritos, há um acréscimo ao texto,
que soará familiar a muitos leitores da Bíblia, visto que se assentou nas
traduções modernas. Ali, depois que Jesus diz: “Isto é meu corpo”, ele
continua dizendo as palavras: “'Que foi dado por vós; fazei isto em memória de
mim', e fez o mesmo com o cálice após a refeição, dizendo: 'Este cálice é a nova
aliança em meu sangue derramado por vós'”.
Estas são as palavras, muito familiares, da “instituição” da Ceia do Senhor,
registradas também sob uma forma muito similar na primeira carta de Paulo aos
Coríntios (1 Coríntios 11,23-25). A despeito do fato de serem tão
familiares, há boas razões para pensar que esses versículos não
estavam no original do Evangelho de Lucas, mas que foram
acrescentados para ressaltar que foram o corpo partido e o sangue
derramado de Jesus que trouxeram a salvação “para vós”. [...]
Além do mais, não se pode deixar de notar que os versículos, por mais
familiares que sejam, não representam a própria compreensão que
Lucas demonstra ter da morte de Jesus. É uma característica
surpreendentemente do retrato que Lucas faz da morte de Jesus – por mais
estranho que isso seja à primeira vista – que ele nunca, em nenhuma outra
passagem, indica que a morte em si seja o que traz a salvação do
pecado. Em nenhum outro lugar de toda a obra em dois volumes de Lucas
(Lucas e Atos dos Apóstolos), se diz que a morte de Jesus foi “por vós”. De fato,
nas duas ocasiões em que a fonte de Lucas (Marcos) indica que foi por meio da
morte de Jesus que veio a salvação (Marcos 10,45; 15,39), Lucas mudou a
disposição do texto (ou o eliminou). Em outros termos, Lucas tem uma
compreensão diferente da forma com que a morte de Jesus conduz à salvação,
diferente da de Marcos (da de Paulo e da de outros escritores cristãos antigos).
(EHRMAN, 2006, p. 175-176) (grifo nosso).
240
David Flusser (1917-2000), trás importante contribuição:
Jesus seguia a ordem essênia em suas refeições de festa e, em especial, na
última ceia, ou seguia a ordem não-sectária: vinho e pão? Segundo Mateus e
Marcos, Jesus primeiro abençoava o cálice e depois o pão, mas a situação em
Lucas é diferente. “Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os
apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta
páscoa, antes de meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até
que ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando um cálice, havendo dado
graças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois vos digo que de agora em diante
não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus. E,
tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é meu
corpo” (Lc 22:14-19). Aí termina o texto de Lucas, de acordo com o famoso
Codex Bezae, a antiga tradução latina, e dois antigos manuscritos siríacos.
Todos os leitores atentos reconhecerão com facilidade que o que se
segue em Lucas nos outros testemunhos é tirado de 1 Cor 11:23-26, de
modo que temos aqui a estranha situação de que no texto aceito
aparecem dois cálices, um no começo e o outro no final. Tanto a Versão
Padrão Revista como a Nova Bíblia Inglesa adotaram o ponto de vista correto, de
que Lc 22:19b-20 não fazia parte do texto original de Lucas. Depois que
Jesus disse do pão partido “Isto é meu corpo” fazendo alusão a sua iminente
morte violenta, ele continuou e tornou-se mais explícito, dizendo: “Todavia a
mão do traidor está comigo à mesa” (Lc 22:21). (FLUSSER, 2000, p. 227) (grifo
nosso).
James D. Tabor (1946- ), também apresenta explicações bem interessantes:
Ironicamente, os mais antigos relatos da última refeição na quarta-feira à
noite vêm de Paulo, e não de qualquer dos evangelhos. Em uma carta a seus
seguidores na cidade grega de Corinto, escrita por volta de 54 d.C., Paulo
passa adiante a tradição que dizia ter “recebido” de Jesus: “Jesus, na
noite em que foi traído, tomou um pão, e tendo dado graças, partiu-o e disse:
'Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isso em memória de mim: Do mesmo
modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: 'Este cálice é a nova Aliança no
meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim'” (1
Coríntios 11:23-25).
Essas palavras, tão familiares aos cristãos como parte da Eucaristia
da Missa, são repetidas com ligeiras variantes em Marcos, Mateus e
Lucas. Representam a síntese da fé cristã, o pilar do evangelho cristão: a
humanidade está salva dos pecados pelo sacrifício do corpo e do sangue de
Jesus. Qual é a probabilidade histórica de que essa tradição baseada
naquilo que Paulo disse ter “recebido” de Jesus represente o que Jesus
disse durante a última ceia? Tão surpreendente quanto possa parecer,
existem alguns problemas autênticos a considerar.
Em cada refeição judaica, o pão é partido, o vinho partilhado, e a
bênção dada - mas a ideia de comermos carne humana e bebermos
sangue, mesmo que simbolicamente, é de todo alheia ao judaísmo. A
Torá proíbe especificamente a ingestão de sangue, não só para os
israelitas, mas para todos. A Noé e a seus descendentes, como
representantes de toda a humanidade, já tinha sido proibido “ingerir sangue”
(Gênesis 9:4). Moisés tinha prevenido, “se qualquer homem da Casa de Israel
ou gentio, residente no meio deles, ingerir qualquer espécie de sangue, eu me
voltarei contra esse que ingere sangue e eliminá-lo-ei de seu povo” (Levítico
17:10). Em outra ocasião, Tiago, o irmão de Jesus, refere-se a isto como uma
“exigência”, para que os não judeus pudessem juntar-se à comunidade nazarena
- não ingerirão sangue (Atos 15:20). Essas restrições dizem respeito ao sangue
de animais. Ingerir carne e sangue humanos não era proibido, era
simplesmente inconcebível. Essa sensibilidade generalizada em relação à
mera ideia de “beber sangue” mostra a improbabilidade de Jesus ter
usado tais símbolos.
Como dissemos, a comunidade essênica, em Qumrã, descreveu, em um de
seus manuscritos, um futuro “banquete messiânico”, no qual o Messias
Sacerdotal e o Messias da linhagem de Davi sentar-se-iam com os membros da
241
comunidade crente e abençoariam a sagrada refeição de pão e vinho como a
celebração do Reino de Deus. Teriam certamente ficado espantados com
qualquer simbolismo sugestivo de que o pão fosse a carne humana, e o vinho, o
sangue. (10) Tal ideia simplesmente não poderia ter partido de Jesus
como judeu.
Portanto, qual a origem dessa linguagem? Se aparece primeiramente com
Paulo, e ele não a recebeu de Jesus, então qual seria sua fonte? As maiores
semelhanças encontram-se em alguns ritos mágicos greco-romanos.
Existe um papiro grego que registra um encantamento amoroso, no qual um
macho pronuncia certos feitiços sobre um cálice de vinho, que representa o
sangue que o deus egípcio Osíris tinha dado à sua consorte Ísis para que ela o
amasse. Quando sua amante bebe o vinho, ela simbolicamente se une a seu
amado pelo seu sangue. (11) Em outro texto, o vinho é transformado na carne
de Osíris. (12) Simbolicamente, comer a “carne” e beber o “vinho” era
parte de um rito mágico de união na cultura greco-romana.
Devemos considerar que Paulo cresceu imbuído da cultura grecoromana, na cidade de Tarso, na Ásia Menor, fora da terra de Israel. Ele nunca
conheceu ou falou com Jesus. A relação que ele pretendeu com Jesus é
“visionária”, e não com um Jesus de carne e osso, caminhando na terra.
Quando os Doze se reuniram para substituir Judas, depois da morte de Jesus,
colocaram como condição para fazer parte do grupo ter estado com Jesus desde
o tempo de João Batista até a crucificação (Atos 1:21-22). Ter visões e ouvir
vozes não eram qualificações suficientes para um apóstolo.
Em segundo lugar, e de forma ainda mais reveladora, o evangelho de João
narra os acontecimentos daquela última refeição na noite de quartafeira, mas nunca se refere às palavras de Jesus instituindo essa nova
cerimônia da Eucaristia. Se Jesus, na realidade, iniciou a prática de comer o
pão como sendo seu corpo, e beber o vinho como sendo seu sangue na sua
“última ceia” como poderia João tê-la omitido? O que João escreve, segundo
todas as indicações, é que Jesus sentou-se para participar de uma refeição
judaica comum. Após a ceia, ele se levantou, pegou uma bacia de água e um
pano, e começou a lavar os pés de seus discípulos, mostrando como o professor
e mestre deveria agir como criado – mesmo para seus discípulos. Jesus
começou, então, a descrever como iria ser traído, e João nos diz que Judas
abruptamente abandonou a ceia.
O evangelho de Marcos está muito próximo, em suas ideias
teológicas, àquele de Paulo. Parece possível que, em sua descrição da última
ceia, feita uma década depois da de Paulo, Marcos tenha inserido o
tradicional “coma o meu corpo” e “beba o meu sangue” em seu
evangelho, influenciado pelo que Paulo afirma ter recebido. Tanto Mateus
como Lucas baseiam inteiramente suas narrativas em Marcos, e Lucas é também
um convicto defensor de Paulo. Tudo parece levar a Paulo. Como veremos, não
há qualquer prova de que os primeiros seguidores judeus de Jesus,
conduzidos ao quartel-general em Jerusalém por Tiago, o irmão de
Jesus, tenham alguma vez praticado qualquer rito dessa natureza. Como
todos os judeus, eles santificavam o vinho e o pão como parte de uma refeição
sagrada, e provavelmente tinham presente a noite em que ele havia sido traído,
lembrando-se da última refeição com Jesus.
Na realidade, para resolver essa questão, precisamos de uma fonte
independente, cristã, que não tenha sido influenciada por Paulo, que possa
esclarecer a prática original dos seguidores de Jesus. Felizmente, em 1873, esse
texto foi encontrado em uma biblioteca em Constantinopla. É intitulado Didache,
e data do início do século II d.C. (13) Fora mencionado pelos primeiros autores
da igreja, mas desaparecera até ser descoberto acidentalmente por um
sacerdote grego, o Padre Bryennios, em um arquivo de manuscritos antigos.
Didache significa "Ensinamentos”, em grego, e seu título completo é "Os
Ensinamentos dos Doze Apóstolos”. Trata-se de um antigo "manual de
instruções", provavelmente escrito para ser utilizado por aspirantes ao batismo
cristão. Contém muitas instruções e exortações éticas, mas também capítulos
sobre o batismo e a Eucaristia - a sagrada refeição do pão e vinho. É aí que
entra a surpresa. Ele oferece as seguintes bênçãos para o pão e o vinho:
No que se refere à Eucaristia, darás graças da seguinte forma.
Em primeiro lugar, quanto ao cálice: “Damos-vos graças, Pai nosso, pela
242
santa vinha de Davi, vosso filho, que nos destes a conhecer através de Jesus,
vosso filho. Para vós a glória eterna”. E quanto ao pão: “Damos-vos graças,
Pai nosso, pela vida e sabedoria que nos comunicastes através de Jesus,
vosso filho. Para vós, glória eterna”. (14)
Notem que não há menção ao vinho, representando o sangue, ou ao
pão, representando a carne. E, no entanto, é um registro da primeira refeição
da Eucaristia cristã! Este texto nos faz lembrar muito das descrições da sagrada
refeição messiânica nos Manuscritos do Mar Morto. O que temos aqui é a
celebração messiânica de Jesus como o Messias da linhagem de Davi, e a vida e
a sabedoria que ele trouxe à comunidade. Evidentemente, essa comunidade de
seguidores de Jesus nada sabia da cerimônia proposta por Paulo. Se a prática de
Paulo viera realmente de Jesus, seguramente esse texto tê-la-ia incluído.
Existe mais um ponto importante a esse respeito. Na tradição judaica, é o
cálice de vinho que, primeiramente, é abençoado, depois o pão. Essa é a ordem
que encontramos na Didache. Mas no relato de Paulo da “Ceia do Senhor”, Jesus
abençoa primeiro o pão, depois o cálice de vinho – justamente o oposto. Pode
parecer um detalhe insignificante até examinarmos o relato de Lucas sobre as
palavras de Jesus, durante a refeição. Embora ele siga basicamente a tradição
de Paulo, ao contrário deste, Lucas fala primeiro no cálice de vinho, depois no
pão e, em seguida, em outro cálice de vinho! O pão e o segundo cálice de vinho
ele interpreta como o “corpo” e o “sangue” de Jesus. Mas quanto ao primeiro
cálice – na ordem que se esperaria da tradição judaica – nada é dito que
represente “sangue”. Ao contrário, Jesus diz, “Eu vos digo, doravante não
beberei da fruta da videira até a chegada do Reino de Deus” (Lucas 22:18). Essa
tradição do primeiro cálice, só encontrada em Lucas, é uma pista do que deveria
ter sido a tradição original antes de a versão Paulina ter sido inserida, agora
confirmada pela Didache.
Vista sob essa luz, essa última refeição tem sentido histórico. Jesus disse a
seus seguidores mais próximos, reunidos secretamente na Sala do Andar
Superior, que ele não partilharia com eles outra refeição até a chegada do Reino
de Deus. Ele sabe que Judas iniciará, naquela noite, os procedimentos que
culminarão com sua prisão. Suas esperança e prece são de que, da próxima vez
em que estiverem sentados juntos para comer, dando a tradicional bênção
judaica do vinho e do pão – o Reino de Deus já tenha chegado.
Uma vez que Jesus se reuniu só com seu Conselho dos Doze, nessa última
refeição privada, Tiago e os três outros irmãos de Jesus teriam estado
presentes. Isso foi confirmado em um texto perdido chamado Evangelho dos
Hebreus, que era usado por judeus-cristãos que rejeitavam os ensinamentos e a
autoridade de Paulo. Sobrevive apenas em algumas citações, preservadas por
autores cristãos, como Jerônimo. Uma das passagens nos diz que Tiago, o irmão
de Jesus, depois de ter bebido do cálice que Jesus fizera circular, afiançou que
também ele não comeria ou beberia até ver o Reino chegar. Portanto, temos
aqui a prova textual de uma tradição que recorda a presença de Tiago na última
refeição.
______
(10) Manuscritos do Mar Morto, The Messianic Rule (1QSa) 2.11-25.
(11) The Demotic Maginal Papyrus of London and Leiden 15.1-6, em The Greek Magical
Payri in Translation, incluing the Demotic Spells, ed. Hans Dieter Betz (Chicago: University
of Chicago Press, 1968).
(12) Papyri graecae magicae 7.643ff.
(13) Didache é promunciado como did-a-quei.
(14) Didache 9:1-3, em Bart Ehrman, trad. The Apostolic Fathers, Loeb Classical Library
24, vol. 1 (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2003), p. 431.
(TABOR, 2006, p. 215-219) (grifo nosso).
Ao que tudo indica, essa questão de comer carne e beber sangue, com a qual se
justifica o sacramento da eucaristia, tenha vindo do culto persa a Mitra: “Aquele que não
comer minha carne e não beber meu sangue para ser um comigo, e eu um com ele, aquele
não conhecerá a salvação”. (FREKE e GANDY, 2002, p. 11 e 52). Além desse, ainda temos:
O serviço religioso semanal era realizado aos domingos, dia dedicado ao
deus. A cerimônia mais importante do culto era uma ceia que constava de
vinho e pão – oferecido na forma de hóstias consagradas que tinham o
243
sinal da cruz. (KERSTEN e GRUBER, p. 316) (grifo nosso)
Bem clara a relação de Mitra com o que querem atribuir a Jesus.
A morte de Cristo foi para resgate?
A razão de colocarmos esse item está nisso que o prof. José Pinheiro explica:
[…] para a grande maioria dos cristãos, no contexto bíblico do Novo
Testamento, o conceito mítico de “salvação” geralmente significa “redenção”
(“resgate” ou “remissão”) do gênero humano, ou melhor, de seus “pecados”,
pelo sangue de Cristo derramado na cruz, e também significa “felicidade eterna
obtida após a morte”, em oposição ao conceito igualmente mítico de
“condenação eterna” (SOUZA, 2007, p. 140).
Entendemos que a inclusão desse ponto é oportuna e pode evitar contra-argumentos
baseados nos passos que mencionam algo relacionado a isso.
Levando-se em conta o que consta dos Evangelhos, acreditamos, conforme já o
dissemos, que a morte de Jesus foi por motivos políticos, que os líderes religiosos de sua
época fizeram questão de “colocar mais lenha na fogueira”.
Podemos afirmar isso, baseando-nos no pastor McLaren, que foi “recentemente
apontado pelo Times como um dos 25 cristãos evangélicos mais influentes nos EUA”
(MCLAREN, 2007, contracapa):
[…] Como vimos, a cruz era o equipamento de execução romana e era
reservada especialmente para líderes de rebeliões. Qualquer um que
proclamasse um reino rival ao reino de César seria forte candidato à
crucificação. Isso é exatamente o que Jesus proclamou, e é exatamente
disso que ele padeceu – em meio a outros dois que haviam feito o mesmo.
(Os dois homens que são habitualmente chamados de ladrões e que foram
crucificados com Jesus estavam mais para líderes ou agentes de rebeliões
políticas fracassadas). […] (MCLAREN, 2007, p. 190) (grifo nosso).
Confirma, portanto, o que dissemos ser a causa da morte de Jesus.
Paul Johnson (1928- ), escritor, jornalista e historiador britânico, católico conservador, é
outro estudioso que confirma a execução de Jesus como causa política:
No momento de seu julgamento e paixão, Jesus tinha conseguido unir uma
coalizão improvável – na verdade, sem precedentes – contra si: as autoridades
romanas, os saduceus, os fariseus, até Herodes Antipas. E, ao destruí-lo, essa
combinação antinatural parece ter agido com grande grau de aprovação popular.
Que conclusões podemos tirar daí? A verdadeira execução foi consumada
por romanos, sob a lei romana. A crucificação era a mais degradante forma
de pena capital, reservada aos rebeldes, escravos amotinados e outros
inqualificáveis inimigos da sociedade; era também a mais prolongada e dolorosa,
embora Jesus tenha escapado de seus horrores em sua totalidade graças a uma
morte incomumente rápida. Pilatos, o procurador da Judeia, é apresentado nos
evangelhos canônicos como um executor relutante, dando início a uma
imaginativa tradição cristã primitiva que, mais tarde, iria transformá-lo em
crente e até santo. Essa ênfase caridosa, pode-se argumentar, foi introduzida
após a ruptura final entre a antiga comunidade cristã e o sistema judaico
estabelecido, a fim de impor aos judeus toda a responsabilidade moral pela
morte de Jesus. Seguindo essa linha de raciocínio, estudiosos judeus e
outros instaram que o julgamento perante o Sinédrio jamais ocorreu; as
passagens que a ele se referem não são compatíveis com o que se sabe,
com base em outras fontes, sobre os procedimentos e competência
desse tribunal; que Jesus nada fizera que quebrasse a lei judaica, muito
menos invocasse a pena capital; e que o episódio é uma ficção – Jesus
simplesmente tinha se tornado inimigo dos romanos, que o
consideravam um agitador. (JOHNSON, 2001, p. 42) (grifo nosso).
244
Está aí, portanto, mais um que advoga a causa política para a crucificação de Jesus.
Vejamos, agora, alguns textos bíblicos, cuja análise se faz necessária.
Gl 4,4-5: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho. Ele
nasceu de uma mulher, submetido à Lei para resgatar aqueles que estavam
submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos”.
1Cor 7,22-23: “Porque o escravo, que foi chamado no Senhor, é liberto no Senhor. Da
mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado é escravo de Cristo. Alguém
pagou alto preço pelo resgate de vocês: não se tornem escravos de homens”.
Mc 10,43-45: “Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser
grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro,
deverá tornar-se o servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido.
Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos”.
Tt 2,14: “Ele se entregou a si mesmo por nós, para nos resgatar de toda
iniquidade e para purificar um povo que lhe pertence, e que seja zeloso nas boas
obras”.
1Tm 2,5-6: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: Jesus
Cristo, homem que se entregou para resgatar a todos. Esse é o testemunho dado
nos tempos estabelecidos por Deus”.
Mt 20,26-28: “Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande,
deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá
tornar-se servo de vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio
para servir, e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos'”.
A ordem cronológica dessas passagens é: Gálatas (anos 54-57), 1 Coríntios (ano 57),
Marcos (anos 65-70), Tito (ano 65 ou anos 95-100), 1 Timóteo (ano 65 ou anos 95-100) e
Mateus (anos 70/80). Assim, mais uma vez, temos Paulo como o inventor da ideia de que
Jesus veio em resgate a favor de muitos. E, novamente, também vemos Mateus plagiando
Marcos.
Essa ideia de resgate em Paulo pode ser pelo fato dele ter Jesus à conta de primogênito
(Rm 8,29; Col 1,15). É na legislação mosaica que veremos o que isso significava:
Ex 13,1-2.11-16: “Javé falou a Moisés: 'Consagre a mim todos os primogênitos,
todo aquele que por primeiro sai do útero materno entre os filhos de Israel,
tanto dos homens como dos animais: ele pertencerá a mim'". “Quando Javé tiver
introduzido você na terra dos cananeus e a tiver dado, como jurou a você e a seus
antepassados, você reservará para Javé todos os primogênitos do útero materno; e a
Javé pertencerá todo primogênito de sexo masculino, também dos animais que
você possuir. O primogênito da jumenta, porém, você o resgatará, trocando por um
cordeiro. Se você não o resgatar, deverá quebrar-lhe a nuca. Os primogênitos
humanos, porém, você os resgatará sempre”. Amanhã, quando seu filho lhe
perguntar: 'Que significa isso?' você lhe responderá: 'Com mão forte Javé nos tirou do
Egito, da casa da servidão. O Faraó se obstinou e não queria deixar-nos partir; por isso,
Javé matou todos os primogênitos do Egito, desde o primogênito do homem até o
primogênito dos animais. É por isso que eu sacrifico a Javé todo primogênito
macho dos animais e resgato todo primogênito de meus filhos'. Isso servirá
como sinal no braço e faixa na fronte, porque Javé nos tirou do Egito com mão forte'".
Pelo que se vê neste passo, todo primogênito era consagrado a Deus para ser
sacrificado. No caso dos homens, o primogênito deveria ser resgatado. “A palavra 'resgatar'
significa 'comprar ou readquirir por um preço'” (Bíblia Anotada, p. 98).
Informam-nos os tradutores:
A oferta ou consagração de primogênitos se relaciona estreitamente com a
oferta das primícias; é provável que os israelitas a tenham tomado de
245
outros povos. Alguns comentadores pensam até que, na sua origem, se
tratava de sacrifício do primogênito, e aduzem o caso de Abraão (Gn 22).
Sobre essa consagração legislam outros textos: Ex 22,29s; 34,19: Dt 13,14-16;
15,19-23. Contra o sacrifício de crianças há muitas referências no AT: considerase prática abominável. O texto presente serve para vincular o rito ao
acontecimento do êxodo: o Senhor protegeu do “extermínio” os primogênitos
israelitas, agora os reclama para si; e permite resgatá-los. (Bíblia do Peregrino,
p. 129) (grifo nosso).
Deus é o Senhor da vida. Por isso os primeiros frutos vegetais (as
“primícias”) e as primeiras crias masculinas dos animais (primogênitos) e dos
homens lhe são consagradas. Os primogênitos de animais puros são
sacrificados. Os primogênitos humanos, como também os do jumento,
são resgatados por outro animal a ser sacrificado. [...] (Bíblia Sagrada
Vozes, p. 95) (grifo nosso).
Ambrogio Donini (1903-1991), historiador italiano, em sua obra Breve história das
religiões, assim aborda a questão:
2. Uma terminologia típica
No conceito de culpa e de redenção reflete-se, pois, a realidade da
exploração e da servidão. A idéia de um “salvador”, destinado a libertar almas e
corpos da expiação e do sofrimento, articula-se lentamente a partir deste enredo
de exasperadas contradições de classe.
A verdade é que o próprio têrmo “redenção”, que melhor caracteriza esta
nova doutrina, é extraído dos costumes da vida dos escravos.
Em latim redemptio significa originalmente o ato de um escravo que adquire
a sua liberdade: o preço do resgate pode ser pago diretamente ou por um
terceiro, sob várias formas, em favor do escravo. A concepção total do
mito da salvação cristã já está contida nesta fórmula(1).
Sendo o homem um pecador, e incapaz de libertar-se pagando à
divindade o preço do seu resgate, intervém um “redentor”, o qual paga
por ele com a sua paixão e a sua morte: esta é a essência da doutrina
soteriológica entre os primeiros escritores cristãos gregos, latinos e
sírios (Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo, Afraates
sírio, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho), os quais reelaboraram em têrmos de
teologia a lenda cristã. Para alguns dêles, inclusive, o “preço do resgate” é
pago a Satanás, que tinha o homem em seu poder; mas posteriormente o
preço foge às mãos do demônio, porque Jesus, com a ressurreição, subtraiu-o.
Sòmente numa sociedade em que a prática da emancipação dos escravos era
plausível podia nascer a expressão com a qual a função de Cristo é definida em
alguns trechos do Novo Testamento: aquela de ser um "preço de resgate para
muitos” (2).
O elemento nôvo consiste em que não se trata mais sòmente de um resgate
dos padecimentos físicos.
Também os deuses do Olimpo, como o deus de Israel, podiam libertar
o homem dos inimigos e da violência, das calamidades e dos demônios;
e em virtude disto freqüentemente eram definidos como “salvadores”.
Quase todos os soberanos do mundo oriental receberam
alternadamente o mesmo título, como libertadores dos seus povos ou
instrumentos da ação benéfica da divindade. No código de Hamurábi, o rei é
definido “salvador do povo reduzido à miséria”; no código sumério de
Lipit-Istar o legislador apresenta-se como aquêle que “libertou da
escravidão” os cidadãos de Nippur, Isin e Ur submetidos pelos
conquistadores elamitas (3). A religião masdéia elaborou o mito do
“salvador” zoroastriano, ou saoshyant, que surgirá no fim dos tempos à
frente das fôrças do bem para derrotar o reino do mal e restaurar o
poder absoluto de Ahura Masda, libertador do mundo (4).
Mas a doutrina da redenção, no sentido acima indicado, penetra as suas
raízes numa realidade completamente diversa.
Estamos diante da idéia da libertação do homem da servidão da
culpa, através do sacrifício cruento de um personagem divino ou
divinizado, que se constitui “mediador” entre o ser supremo e o gênero
246
humano. Os teólogos dizem a verdade quando procuram destacar a
originalidade desta concepção; mas não podem naturalmente compreender que
o resgate espiritual substituiu lentamente, na consciência dos homens, aquela
necessidade de resgate econômico e social que se revelava sempre mais difícil
no terreno das relações de fôrça ou dos costumes legais.
A alforria de um escravo não era originalmente um fenômeno excepcional;
mas acabou tornando-se, à medida que se ampliava e consolidava o sistema da
propriedade e da acumulação de bens materiais em poucas mãos.
Na Índia, os casos de “resgate” e de emancipação eram bastante frequentes;
a integração social do escravo liberto era imediata e completa. Entre os
hebreus, o servo podia alforriar-se pagando ao patrão uma parte do
preço de compra original, proporcionalmente ao número de anos que
ainda deveria permanecer escravo; só se tem memória de um único caso de
emancipação coletiva, num momento delicado da história de Israel, seguido,
porém, logo depois de conjurado o perigo, da pretensão de reivindicar o direito
de propriedade(5). Também na Grécia e em Roma, nos tempos mais antigos, o
escravo podia, em teoria, “redimir-se” depois de alguns anos, graças às suas
economias; mas raramente podia salvar-se consagrando-se a uma divindade ou
em virtude de legado testamentário ou proclamação autônoma da parte do
proprietário (6). Mas o seu estado de “liberto”, até o início do principado de
Augusto, não bastava para torná-lo igual aos outros cidadãos; continuava
privado do jus honorum e era mantido afastado dos negócios públicos.
Em geral, às vésperas do surgimento do cristianismo, as possibilidades de um
escravo alcançar a emancipação total não eram muito superiores àquelas que,
hoje, na sociedade burguesa, tem um operário de tornar-se proprietário.
O poeta latino Marcial vangloria-se de ter concedido a liberdade ao seu
escravo Demétrio, que agonizava, com apenas 19 anos, para permitir-lhe
ingressar em estado de liberdade no mundo subterrâneo (7); isto confirma que
as relações de classe eram consideradas válidas tanto nesta como na outra vida.
Não é necessário acrescentar que o conceito da “redenção”, que entrou na
história dos homens como produto do seu modo de viver na época da
escravidão, separou-se dialeticamente das suas raízes econômicas e sociais para
desenvolver-se no caminho autônomo da ideologia – sempre porém nos limites
de uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem – mesmo
depois de terem desaparecido as razões de ordem material que caracterizavam
o regime escravista.
_______
1 Veja-se J. TOUTAIN, “L'idée religieuse de la rédemption” nos Annales de l'École des
Hautes Etudes, Section des Sciences Religieuses, Paris, 1916-17.
2 Mateus, XX, 28; Marcos, X, 45.
3 “Eu sou Lipit-Istar, que trouxe a liberdade aos filhos e às filhas de Nippur, Ur e Isin; com
os meus esforços libertei da escravidão os filhos e as filhas de Súmer e da Acádia” etc. (cf.
Êxodo, XX, 2: “Eu sou o senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da
servidão”).
4 É muito provável que se tenha estabelecido muito cedo entre o “salvador”
masdeu e o “messias” judaico um processo de identificação. Num comentário latino
ao evangelho de Mateus, os “reis magos”, vindos do país de Zoroastro, procuram o
saoshyant (V. BOUQUET, Breve História das Religiões, cit., introdução).
5 Jeremias, XXXIV, 8-22.
6 W. L. WESTERMANN, The Slave system of Greek and Roman antiquity, Filadélfia, 1955.
7 "Sensit deficiens sua praemia meque patronum Dixit ad internas liber iturus aquas
(Morrendo, teve a prova dos seus méritos e da minha generosidade, certo enfim de ir livre
às águas infernais). Veja-se R. H. BARROW, Slavery in the Roman Empire (A escravidão no
Império Romano), Londres, 1928, pág. 175.
(DONINI, 1965, p. 203-206) (grifo nosso).
Tomando-se de Paulo, entendemos que se houve algum resgate foi o de estarem livres
da lei Gl 4,4-5, ou seja, de toda a legislação mosaica. Ao afirmar que “vocês já não estão
debaixo da Lei, mas sob a graça” (Rm 6,14) e completando com “fomos libertos da Lei, a fim
de servimos sob o regime novo do Espírito, e não mais sob o velho regime da letra” (Rm 7,6),
ele colocava os ensinamentos de Jesus suplantando os anteriores, vindos por Moisés.
E, especificamente, sobre a questão de alguém ser o “salvador da humanidade”, Edward
Carpenter (1844-1929) e Joseph Campbell (1904-1987) abordam, respectivamente, esse tema
da seguinte forma:
247
[…] em seus aspectos mais sensíveis e espirituais, como nos ritos Mitrhaicos,
Egípcios, Hindus e Cristão, uma pessoa passava pelo véu do maya e de seu
mundo em constante mudança, e entrava na região da paz e poder divinos
(17). Ou, novamente, a doutrina do Salvador. A essa eu também não preciso
adicionar muito mais do que já foi dito. O número de divindades pagãs (em
sua maioria nascida de virgens e mortas de uma maneira ou outra por
seus esforços de salvar a humanidade) é tão grande (18) e, portanto, difícil
de precisar. O deus Krishna na Índia, o deus Indra no Nepal e no Tibet
morreram para a salvação dos homens; Buddha disse, de acordo com Max
Muller (19), “Permita que todos os pecados existentes no mundo caiam sobre
mim e o mundo será salvo”; o chinês Tien, o Sagrado – “com deus e existindo
com ele para toda a eternidade” – morreu para salvar o mundo; o egípcio
Osíris era chamado de Salvador, assim como Horus; assim como Mithra, da
Pérsia; assim como o grego Hércules que venceu a morte apesar de seu
corpo ser consumido pelas chamas da mortalidade, da qual ele subiu aos céus.
O mesmo aconteceu com o frígio Attis, chamado de Salvador, e do sírio
Tammuz ou Adônis – os dois que foram pregados a uma árvore, e depois
renasceram de seus túmulos. Prometheu, o maior e mais antigo benfeitor da
raça humana, foi pregado pelas mãos e pelos pés, com os braços abertos, às
pedras do monte Cáucaso. Baco ou Dionísio, nascido da virgem Semele para
ser o libertador da humanidade (Dionísio Bleutherios, como era chamado), foi
cortado em pedaços, como Osíris. Mesmo em Quetzalcoatl, no México, o
Salvador nasceu de uma virgem, foi tentado, jejuou por quarenta dias, morreu,
e sua segunda vinda foi tão esperada que (como é bem conhecido), quando
Cortes apareceu, os mexicanos, coitados, o receberam como o deus que voltara!
(20) No Peru e entre os índios norte-americanos, no Norte e no Sul do Equador,
lendas parecidas são, ou foram, encontradas. Apesar de falarmos pouco sobre o
assunto, é o bastante para provar que a doutrina do Salvador é mundial e
muito antiga, e que o Cristianismo meramente apropriou-se da mesma e
(assim como os outros cultos) lhe deu algumas outras cores. Talvez essa
doutrina original fosse muito melhor e muito mais conhecida, se a Igreja Cristã
não tivesse feito um esforço enorme para tomar as devidas precauções
e para extinguir todas as evidências dos atos pagãos relacionados a
esse assunto. Há muita evidência de que a Igreja antiga tomou esse caminho
com salvadores pré-cristãos (21); e nos últimos tempos a mesma política tem
sido mostrada pelo tratamento no século XVI dos escritos de Sahagun, o
missionário espanhol – cujo trabalho já mencionei. Sahagun era um homem
educado e muito inteligente que, apesar de não aceitar as barbaridades da
religião asteca, foi fiel o bastante para mostrar características nas maneiras e
dos costumes das pessoas, e algumas semelhanças com a doutrina e prática
cristãs. Isso deixou enfurecidos os intolerantes católicos da recém-formada
Igreja Mexicana.
Eles roubaram os manuscritos de Sahagun, de seu História das coisas da
Nova Espanha (1560), e os esconderam, e foi depois de muita briga e a decisão
da Corte Espanhola que Sahagun os teve de volta. Finalmente, aos oitenta anos
de idade, depois de traduzi-los para o espanhol (do original mexicano), ele
mandou seus manuscritos em dois grandes volumes para a Espanha, para que
ficassem em segurança; mas quase imediatamente desapareceram e não mais
foram encontrados! Apenas dois séculos depois foram reaparecer (1790) em um
convento de Tolosa em Navarre. O lorde Kingsborough publicou-os na Inglaterra
em 1830.
Eu já falei sobre várias das principais doutrinas do Cristianismo - ou
seja, do pecado, do sacrifício, da Eucaristia, do Salvador, do
Renascimento e da transfiguração - mostrando que eles não são únicos
em nossa religião, mas sim comuns a quase todas as religiões do mundo
antigo. A lista pode ser muito aumentada, mas não há necessidade de nos
atermos a um assunto que, de modo geral, já foi compreendido. Dedicarei, no
entanto, uma ou duas páginas para um exemplo, que eu julgo muito
interessante e cheio de sugestão profunda.
Não existe nenhuma outra doutrina no Cristianismo que seja mais
apreciada e reverenciada por seus fiéis, do que aquela em que Deus
sacrificou seu único filho para salvar o mundo; também, uma vez que o
filho não era apenas parecido com o pai, mas da mesma natureza do Pai, e igual
a ele, sendo a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o sacrifício foi uma
imolação de si mesmo para o bem do mundo. A doutrina é muito mística, muito
antiga e, de certa maneira, tão absurda e impossível, que tem sido um prato
248
cheio para piadas por parte dos inimigos da Igreja; e aqui podemos pensar, é
uma crença que – seja ela considerada gloriosa ou obsoleta – é única e peculiar
àquela Igreja.
E, ainda, o fato extraordinário é que uma crença parecida existe em todas as
religiões antigas e pode nos remeter ao passado. A palavra hóstia, que é
usada na missa católica para representar o pão e o vinho no altar, símbolos do
corpo e do sangue de Cristo, vem do latim Hóstia, que no dicionário
significa “um animal morto em sacrifício, uma oferta para compensar
um pecado”. Isso nos leva de volta ao estágio do totem, quando toda a tribo,
como eu já expliquei, coroava um touro, um urso ou um outro animal com flores
e prestavam-lhe honras com comida e adoração, sacrificavam a vítima para o
espírito do totem da tribo e o comiam em uma festa eucarística – e o curandeiro
ou sacerdote que dirigia o ritual vestia a pele desse animal como um sinal de
que ele representava o totem –, divindade, participando do sacrifício de “si
mesmo para si mesmo”. Isso nos faz lembrar dos khonds em Bengal sacrificando
seus meriahs coroados e enfeitados como deuses e deusas; dos astecas fazendo
o mesmo; dos quetzalcoatl furando seus cotovelos e dedos para tirar sangue,
oferecido em seu próprio altar; ou de Odin sendo pendurado, por vontade
própria, em uma árvore. “Sei que fui pendurado em uma árvore que foi
balançada pelo vento por nove longas noites. Uma lança atravessou meu corpo,
fui levado a Odin. eu para mim”. E assim por diante. Os exemplos são infinitos.
“Sou a oblação”. diz Krishna no Bhagavad Gita (22). “Sou o sacrifício, a oferenda
os ancestrais”. “No real conceito ortodoxo de sacrifício”, diz Elie Reclus (23). A
oferenda consagrada, seja ela um homem, uma mulher ou uma virgem, um
carneiro ou novilha, galo ou pombo, representa a divindade...
_______
(17) Baring Gould, em seu livro Orig. Relig. Beliej, I. 401, diz: "Entre os Hindus antigos,
Soma era uma divindade; ele é chamado de Provedor da Vida e da Saúde... Encarnou
entre os homens, foi pego por eles, morto e triturado em um almofariz
(aparentemente um deus de cereal e vinho). Mas ele ressuscitou das chamas e subiu
ao céu para ser "Benfeitor do Mundo" e o “Mediador entre Deus e o homem. Por
meio da comunhão com ele em seu sacrifício, o homem (que partilhava desse deus) tem
uma confirmação de imortalidade, pois com esse sacramento obtém união com sua
divindade”.
(18) Ver uma considerável lista no livro de Doane, Bible Myths, cap. XX.
(19) Hist. Sanskrit Literature, p. 80.
(20) Ver o livro de Kingsborough, Mexican Antiquities, vol. VI.
(21) Ver Apologia, de Tertúlio, c. 16; Ad aciones, c. XII.
(22) Cap. IX, V. 16.
(23) Primitive Folk, cap. VI.
(CARPENTER, 2008, p. 89-91) (grifo nosso).
III. A LENDA DO SALVADOR DO MUNDO
E impossível reconstruir o caráter, a vida e a verdadeira doutrina do homem
que se tornou o Buda. Supõe-se que ele tenha vivido entre 563 e 483 a.C.
Entretanto, sua mais antiga biografia, a do cânon páli, começou a ser escrita
apenas por volta de 80 a.C. no Ceilão [atual Sri Lanka], a cinco séculos e 2.400
km de distância do verdadeiro cenário histórico. E a vida, a essa altura, tinhase tornado mitologia - segundo um padrão característico dos Salvadores
do Mundo do período entre aproximadamente 500 a.C. e 500 d.C., seja
na Índia, como nas lendas dos jainas, ou no Oriente Próximo, como na
visão evangélica de Cristo.
Em resumo, essa biografia arquetípica do Salvador fala de:
1. o descendente de uma família real
2. nascido milagrosamente
3. em meio a fenômenos sobrenaturais
4. sobre quem um santo ancião (Simão = Asita), logo apos o nascimento,
profetizou uma mensagem de salvação do mundo, e
5. cujas façanhas na infância proclamam seu caráter divino.
Na sequência indiana, o herói do mundo:
6. casa-se e gera um herdeiro
7. desperta para sua missão
8. parte, com o consentimento de seus progenitores (no jainismo), ou
secretamente (o Buda)
249
9. para engajar-se em árduas disciplinas na floresta
10. que o confrontam, finalmente, com um adversário sobrenatural, sobre o
qual
11. a vitória é alcançada.
O último citado, o Adversário, é uma figura que nos tempos védicos teria
aparecido como um dragão anti-social (Vritra) mas, em concordância com a
nova ênfase psicológica, representa agora aqueles equívocos da mente que o
mergulho do Salvador do Mundo nas suas próprias profundezas traz a luz, e
contra os quais ele está lutando, tanto por sua própria vitória quanto para a
salvação do mundo.
Na lenda cristã, não há registro dos anos de juventude representados
acima pelos estágios 6 a 8. Entretanto, os episódios culminantes (9 a 11)
estão representados pelo jejum de quarenta dias no deserto onde se
deu o confronto com Satã. Ademais, pode-se argumentar que as cenas
infantis da matança dos inocentes pelo rei Herodes, o aviso do anjo a São José e
a fuga da Sagrada Família correspondem simbolicamente ao 6, isto é, aos
esforços do pai do futuro Buda para frustrá-lo em sua missão, confinando-o no
palácio e fazendo-o casar-se depois do que (7) ele foi despertado para sua
missão pela visão de um ancião, um homem doente, um cadáver e um iogue,
ante o que (8) planejou fugir. Em ambos os casos a narrativa é a de um inimigo
régio do espírito, lutando com todos seus recursos – sejam eles maléficos (rei
Herodes) ou benignos (rei Suddhodana) – que se mostram vãos para frustrar o
infante Salvador em sua predestinada missão.
Seguindo seu encontro cara a cara com o Antagonista e vencendo-o, o
Salvador do Mundo:
12. realiza milagres (caminha sobre as águas etc.)
13. torna-se um pregador errante
14. prega a doutrina da salvação
15. a um séquito de discípulos e
16. a uma pequena elite de iniciados
17. um dos quais, menos rápido para aprender do que o resto (Pedro =
Ananda), (340) recebe o comando e se torna o modelo da comunidade leiga,
enquanto
18. outro, obscuro e traiçoeiro (Judas = Devadatta), esta empenhado na
morte do Mestre.
Em várias versões da lenda são dadas diferentes interpretações aos
ternas comuns, coincidindo com as diferenças de doutrina. Por exemplo,
2: enquanto a Virgem Maria concebeu do Espirito Santo, a rainha Maya, mãe do
Buda, era uma verdadeira esposa de seu consorte; tampouco o Salvador do
Mundo que ela era a luz era uma encarnação de Deus, o Criador do Universo,
mas um jīva reencarnado iniciando a ultima de suas inumeráveis vidas.
Igualmente os itens 10-11: enquanto a vida do Buda atingiu o ápice na sua
vitória sobre Mara sob a árvore Bodhi, a lenda cristã transfere a Árvore da
Redenção para o estágio 19, isto e, a morte do Salvador, que na vida do Buda
não é mais do que uma passagem pacífica no final de uma longa carreira de
mestre. Pois o ponto principal do budismo não é – como no antigo sacrifício
Soma – a imolação física do Salvador, mas seu despertar (bodhi) para a Verdade
das verdades e, em consequência, a libertação (moksa) da ilusão (māyā). Por
isso, o ponto principal para o indivíduo budista não é se a lenda do Buda
corresponde ao que de fato e historicamente ocorreu entre 563 e 483 a.C., mas
se serve para inspirá-lo e guiá-lo para a iluminação.
______
340 Mateus 16:23; Mahāparinibbna-Sūtta 61.
(CAMPBELL, 1995, p. 203-205) (grifo nosso).
Esses dois autores, confirmam, portanto, que a história de Jesus é semelhante à de
outros personagens mitológicos, levando-nos a concluir que muitas coisas das ditas religiões
cristãs, são fruto de aculturamento do que se acreditava nas religiões pagãs, por mais que isso
cause constrangimento a seus crentes.
Resta-nos ainda colocar Paul Johnson que, em Uma breve história do Cristianismo, nos
informa:
250
[…] Mais importante, porém, era que Paulo achava que não podia explicar a
natureza da doutrina de Jesus sem recorrer a conceitos e termos que fossem
compreensíveis para os que haviam sido criados no mundo greco-romano. Jesus
previu sua paixão, mas não a explicara. Paulo tinha de explicá-la para um
público que falava e pensava em grego. O ato da salvação tinha de ser mais
amplo que o mero messianismo dos judeus que parecia, aos gregos, uma
questão de política local, limitada em termos temporais e geográficos. O que era
a Judeia, para eles? Paulo achava difícil explicar como por que Jesus era judeu,
e mais ainda por que tinha de ser judeu. Assim, as circunstâncias que levaram à
sua crucificação eram irrelevantes e ele as omite. Simplesmente, identificou
o Jesus histórico como o filho preexistente de Deus, e interpreta a
crucificação como um ato divino com intenções salvacionistas de
importância cósmica. E, naturalmente, quanto mais Paulo pregava seguindo
essa linha, mais claro ficava para ele que seu evangelho helenizado estava mais
próximo da verdade, tal como ele a compreendia, que a restrição imposta pela
visão intolerante do cristianismo judaico – se é que, de fato, ele poderia ser
chamado de cristianismo. O mundo helênico podia aceitar Jesus como uma
divindade, mas o judaísmo interpôs um abismo de diferenças entre Deus e o
homem. E não havia nada na literatura judaica que sugerisse a ideia de
um salvador encarnado da humanidade que se redimisse em virtude de
sua própria morte sacrifical. (JOHNSON, 2001, p. 50-51) (grifo nosso).
Vê-se, portanto, que, no judaísmo, nada existia sobre um salvador que morreria para
redimir a humanidade. Eles, na verdade, acreditavam num salvador político:
Aqui os olhos se voltam para o passado. O homem se representou o tempo
futuro de salvação, segundo o modelo idealizado do antigo reino de Davi e por
isso esperou pelo Salvador vindouro, como um novo Davi: Ungido rei pelo
próprio Deus e dotado de poderes estupendos, o Messias libertará o povo
judeu do domínio estrangeiro romano, com a palavra de sua boca,
esmagará todos os inimigos de Israel, reerguerá a casa de Davi, reunirá as doze
tribos dispersas no mundo e deixará que ressuscitem Jerusalém em todo o seu
esplendor. Assim é que Israel enfim se tornará o povo sagrado de Deus, vivendo
em equidade, justiça e pureza. Os povos gentios, porém, não terão parte no
reinado de Deus, a não ser sob submissão e tributação. A redenção, aqui, é
sobretudo esperada como libertação do jugo romano e, em
consequência, apenas compreendida como uma protelação exagerada
da vida eterna. (ZAHRNT, 1992, p. 27) (grifo nosso).
Portanto, é algo bem diferente da crença surgida posteriormente de um salvador que
fosse redimir pecados. Fato que se pode muito bem comprovar na fala profética de Zacarias,
pai de João Batista:
Lucas 1,68-75: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu
povo. Fez aparecer uma força de salvação na casa de Davi, seu servo; conforme tinha
anunciado desde outrora pela boca de seus santos profetas. É a salvação que nos
livra de nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam. Ele realizou a
misericórdia que teve com nossos pais, recordando sua santa aliança, e o juramento
que fez ao nosso pai Abraão. Para conceder-nos que, livres do medo e arrancados
das mãos dos inimigos, nós o sirvamos com santidade e justiça, em sua presença,
todos os nossos dias”.
A salvação esperara, era, portanto, de conotação política e não espiritual.
Por outro lado, vê-se que essa crença em um salvador é algo comum em outras
culturas, como, por exemplo, entre os persas:
Mitra, um dos principais deuses da religião iraniana anterior a Zaratustra,
era uma divindade do tipo solar – como se pode ver pela sua cabeça de leão –
que expulsou do céu Ahriman (o mal). Formado a partir do antigo deus
funcional indo-ariano Vohu-Manah (24), tornou-se objeto de um culto
aparecido uns mil anos antes de Cristo e, após ter passado por diversas
transformações, foi adoptado pela religião romana, de cujo panteão fez parte
251
até ao século IV d.C. Enquanto divindade, tinha por função carregar com
os pecados da humanidade e expiar as suas iniquidades. Funcionava,
assim, como princípio mediador colocado entre o bem (Ormuzd) e o mal
(Ahriman), como dispensador de luz e de bens, encarregue de manter a
harmonia no mundo e de proteger todas as criaturas. Uma espécie de messias
que, segundo seus seguidores, devia voltar ao mundo como juiz dos
homens. Sem ser propriamente o Sol, representava-o e era invocado como tal.
Nas suas cerimônias, era apresentado num viril ou custódia, em tudo idêntica à
que muitos séculos depois será utilizada pela Igreja cristã. O deus Mitra hindu,
como o persa, é igualmente uma divindade solar, como se pode concluir pelo
facto de ser um dos doze Adítias, filhos de Aditi, a personificação do Sol.
Todas as personificações dos deuses solares acabam por ser vítima
propiciatórias que expiam os pecados dos mortais, carregando com as
suas culpas. Morrendo de morte violenta, são posteriormente
ressuscitados. Assim, Osíris, que nasceu como um salvador ou libertador e
veio ao mundo para pôr fim à tribulação dos humanos, teve que enfrentar na
sua luta pelo bem o irmão Seth, ou Tifão, personificação do mal (posteriormente
identificado como Satanás) que o vence temporariamente e o mata; depositado
no seu túmulo, ressuscita e, ao fim de três dias (ou de quarenta, noutras
versões), ascende aos céus.
______
24. Vohu-Manah, a exemplo de Hórus e de outros deuses-filhos, entre os quais se deve
situar Jesus Cristo, tinha um papel fundamental, no contexto “Juízo Final”, como
intermediário entre os humanos e o deus-pai. Acreditava-se que, quando uma alma
chegava ao céu, Vohu-Manah se levantava do seu trono, a pegava pela mão e a conduzia
até à presença do grande deus Ahura-Mazda e da sua corte celestial.
(RODRÍGUEZ, 2007, p. 117-118) (grifo nosso).
Observamos que Pepe Rodríguez informa tal crença em outras culturas, não só entre os
persas; portanto, não se trata de novidade do cristianismo; ao contrário, mais parece ser um
plágio.
A opção de que a salvação seja por meio das obras, quer dizer, pelas nossas ações, é,
para nós, além de ser a única na qual a justiça e misericórdia de Deus se manifestam
plenamente é a mais lógica. Também é a que não se depara com uma série de problemas, que
aconteceria com qualquer uma outra opção. Vejamos alguns problemas, que certamente,
poderão ser estendidos por qualquer estudioso ou interessado em temas bíblicos:
a) não contradiz o critério justo de avaliar “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27,
ver também Jó 34,11; Sl 28,4; 62,12; Pr 12,14; 24,12; Eclo 16,13; Jr 17,10; Lm 3,64; Ez
24,14; 33,20; Os 12,3, 2Tm 4,14; Ap 2,23);
b) da mesma forma, não contradiz a determinação de que “cada um será executado por
causa do seu próprio crime” (Dt 24,16) (ver também Jr 31,29-30; Ez 18,20).
c) as ações dos homens não atingem a Deus; porém, às suas leis:
“Se você pecar, que mal estará fazendo a Deus? Se você amontoa crimes, que
danos está causando para ele? E se você é justo, o que é que está dando a ele? O que
é que ele recebe de sua mão? Sua maldade só pode afetar outro homem igual a
você. Sua justiça só atinge outro ser humano como você” (Jó 35,6-8).
Dessa forma, sendo Deus totalmente “imune”, ou seja, não se ofende com o que
fazermos, não há que se falar em remissão ou mesmo perdão de pecados.
d) não se torna ilógico ao redimir pecados futuros, porquanto, os rituais de expiação de
pecados praticados pelos hebreus eram todos expressamente pela “violação cometida” (Lv 4,13; 13-15) e não para “violações a cometer”;
e) não ter seguido a ritualística de ofertas pelo sacrifício do povo, que era uma lei
perpétua, quando pegavam dois bodes, um ofereciam a Deus, outro a Azazel, que supunham,
viver no deserto (Lv 16,34);
f) outro ponto da ritualística não seguido é quanto ao sangue da vítima que era
espalhado pelo povo (Ex 24,4-8);
252
g) em consequência do item b, teremos que arrumar um segundo Cristo para morrer
pelos pecados cometidos pela humanidade depois da morte do primeiro Cristo; procedimento
que teria que ser feito, novamente, com um terceiro Cristo, quarto, quinto, etc.;
h) preferência divina pela misericórdia e não por sacrifícios (Mc 12,33, ver também Os
6,6); que não eram do agrado de Deus (Sl 51,7; Jr 6,20) e que nem mesmo foi instituído por
Deus (Jr 7,22). Um passo que vem corroborar isso é:
Is 1,11-17: “Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? - diz Javé. Estou
farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do
sangue de bois, carneiros e cabritos. […] Parem de trazer ofertas inúteis. [...]
Quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda que
multipliquem as orações, eu não escutarei. As mãos de vocês estão cheias de
sangue. Lavem-se, purifiquem-se, tirem da minha vista as maldades que vocês
praticam. Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem: busquem o direito,
socorram o oprimido, façam justiça ao órfão, defendam a causa da viúva”.
i) que, para ser coerente com os próprios textos bíblicos, essa suposta remissão de
pecados poderia ser, no máximo, acontecido “[…] para o resgate das transgressões
cometidas no regime da primeira aliança; […]” (Hb 9,15), o que nos remete ao item e;
j) contrapondo ao item anterior temos que “Ele é a vítima de expiação pelos
nossos pecados; e não só os nossos, mas também os pecados do mundo inteiro” (1Jo
2,2), o que abrigaria até mesmo as pessoas que não estavam nem aí para a mensagem de
Jesus;
k) temos como outras alternativas para a remissão dos pecados que não a morte de
Jesus: 1ª) o batismo: "Assim apareceu João, o Batista, no deserto, pregando o batismo de
arrependimento para remissão dos pecados”. (Mc 1,4); 2ª) o arrependimento: “e que em
seu nome se pregasse o arrependimento para remissão dos pecados, a todas as nações,
começando por Jerusalém” (Lc 24,47); c) crer em Jesus: “A ele todos os profetas dão
testemunho de que todo o que nele crê receberá a remissão dos pecados pelo seu
nome”. (At 10,43).
l) se há predestinação não tem sentido em falar-se também em remissão de pecados,
conforme outra proposta de Paulo:
Rm 8,28-30: “Sabemos que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo o projeto dele. Aqueles que Deus
antecipadamente conheceu, também os predestinou a serem conformes à imagem do
seu Filho, para que este seja o primogênito entre muitos irmãos. E aqueles que Deus
predestinou, também os chamou. E aos que chamou, também os tornou justos. E aos
que tornou justos, também os glorificou”.
Ef 1,5-¨6: “Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus
Cristo, conforme a benevolência de sua vontade, para o louvor da sua glória e da graça
que ele derramou abundantemente sobre nós por meio de seu Filho querido”.
Ef 1,11-12: “Em Cristo recebemos nossa parte na herança, conforme o projeto daquele
que tudo conduz segundo a sua vontade: fomos predestinados a ser o louvor da sua
glória, nós, que já antes esperávamos em Cristo”.
m) se é para se apoiar em Paulo, então é preciso definir qual dessas opções deve
prevalecer para a salvação:
1ª) pelas obras:
“De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a fim de que cada
um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a sua vida no corpo, tanto para
o bem, como para o mal” (Gl 6,10).
2ª) pela aplicação do Evangelho:
253
“É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem do modo como eu
lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão” (1Cor 15,2).
3ª) pela morte de Jesus:
“[...] Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado,
ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; [...]” (1Cor 15,3-4).
4ª) por crer na ressurreição de Jesus:
“Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita com seu
coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo” (Rm 10,9).
5ª) pela fé em Jesus:
“Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da Lei, mas
somente pela fé em Jesus Cristo. Nós também acreditamos em Jesus Cristo, a fim de
nos tornarmos justos pela fé em Cristo e não pela observância da Lei, pois com a
observância da Lei ninguém se tornará justo”. Gl 2,16).
A mensagem central de Jesus está no amor ao próximo, fora disso, ter-se-á um forte
candidato a desilusão. O pastor Brain D. McLaren, que citamos mais no início, fala algo que
prova a visão ampliada que devemos ter dos ensinamentos de Jesus: “Gandhi – não
identificado como cristão, mas alguém com maior clareza do que muitos cristãos” (MCLAREN,
2007, p. 92), ou seja, ele reconhece um não-cristão mais cristão do que muitos que assim se
denominam. Além disso, também reconheceu como verdade o fato de que “alguns teólogos e
estudiosos chegaram à conclusão de que – certa ou errada – a mensagem da Igreja cristã se
tornou uma mensagem completamente diferente da mensagem de Jesus” (MCLAREN, 2007, p.
117).
E afinal, onde podemos encontrar a síntese dos ensinamentos de Jesus: “O modelo
mais condensado do ensino de Jesus se encontra em Mateus, capítulos 5 a 7, em uma
passagem geralmente conhecida por Sermão do Monte”. (MCLAREN, 2007, p. 147). Apenas
acrescentaria: Fora disso não há salvação!
Não podemos centrar nossa visão em Paulo; mas em Jesus que deixou bem claro que
“Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele
que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu”. (Mt 7,21) e, para que não
restasse nenhuma dúvida completou:
"Portanto, quem ouve essas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem
prudente que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, os
ventos sopraram com força contra a casa, mas a casa não caiu, porque fora construída
sobre a rocha. Por outro lado, quem ouve essas minhas palavras e não as põe em
prática, é como o homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia. Caiu a
chuva, vieram as enxurradas, os ventos sopraram com força contra a casa, e a casa
caiu, e a sua ruína foi completa!" (Mt 7,24-27).
Sem precisar levar em consideração outras passagens, inclusive, já citadas por nós,
somente essa daria para concluir que a prática do amor ao próximo é a base de nossa
salvação, portanto, é algo relacionado com a nossa disposição íntima de agir a favor dele e não
uma salvação de “graça”, pelo fato de alguém ter morrido na cruz, como querem muitos.
Finalizando, vamos ainda transcrever uma passagem bem interessante:
Lc 18,18-24: “Uma pessoa importante perguntou a Jesus: 'Bom Mestre, o que devo
fazer para receber em herança a vida eterna?' Jesus respondeu: 'Por que você me
chama de bom? Só Deus é bom, e ninguém mais. Você conhece os mandamentos: não
cometa adultério; não mate; não roube; não levante falso testemunho; honre seu pai e
sua mãe'. O homem disse: 'Desde jovem tenho observado todas essas coisas'.
Ouvindo isso, Jesus disse: 'Falta ainda uma coisa para você fazer: venda tudo o
que você possui, distribua o dinheiro aos pobres, e terá um tesouro no céu.
254
Depois venha, e siga-me'. Quando ouviu isso, o homem ficou triste, porque era muito
rico. Vendo isso, Jesus disse: 'Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus! De
fato, é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar
no Reino de Deus'”.
O interlocutor de Jesus afirma que cumpria todos os mandamentos, porém, Jesus disse
que faltava mais uma coisa: vender tudo o que tinha para distribuir aos pobres, ou seja, que
fosse desapegado dos seus bens, doando-os aos necessitados, pois assim teria um tesouro no
céu. Não temos como entender de outra forma que não a de ser a prática do amor a base para
a nossa salvação, como muitas outras passagens demonstram claramente isso.
Em nosso texto “O que efetivamente nos salva?”, disponível no site
www.paulosnetos.net, além de desenvolver mais sobre esse tema, também tentamos, na
medida do possível, ver Paulo com outros olhos; por considerar tal texto, de uma certa forma,
como complemento do presente texto, nós o recomendamos a todos que leram o presente
texto.
255
Conclusão Final
Não há muito o que acrescentar em relação à conclusão que colocamos no primeiro
volume, apenas reforçaríamos que “o Senhor é o Espírito; e onde se acha o Espírito do Senhor
aí existe a liberdade”. (2Cor 3,17), considerando que a grande maioria das igrejas ditas
tradicionais não permitem a seus fiéis lerem livros que não os de sua igreja. Isso torna
impossível aos que lhes seguem sair do encabrestamento a que são sujeito por esse tipo de
comportamento. Mas é exatamente isso que eles querem, pois daí a arrancar-lhes o dízimo é
coisa fácil, mais ainda que tomar pirulito de criança.
Lembrando-nos de Jesus quando disse que “não se coloca remendo de pano novo e
pano velho, nem vinho novo em odres velhos” (Mt 9,16-17), não seria de todo impróprio
concluir que ele recomendava, aos de sua época, o desapego aos ensinamentos mosaicos, pois
se não fizessem isso, não conseguiram receber aqueles que Ele, Jesus, estava passando.
Entretanto, decorridos tanto tempo, ainda há muitas pessoas que bem serviriam essa
recomendação, pois não se conseguem se desvencilhar de seguir a Moisés.
Esperamos, sinceramente, que esse estudo, possa incentivar outros autores a fazerem
o mesmo, pois há muito joio misturado no trigo, e, certamente, que não conseguimos com
esse modesto trabalho fazer muita coisa a respeito disso. Há necessidade de juntarmos
esforços neste sentido, de forma a tornarem límpidos os ensinos do Mestre, o que os fará
plenamente compreendidos na essência, levando a todos nós, seres humanos, a termos
condições de colocá-los em prática, já que os compreendemos bem.
Jesus abençoe a todos os que advogam a causa da justiça e da verdade!
256
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261
Paulo da Silva Neto Sobrinho, é natural de Guanhães, MG.
Formado em Ciências Contábeis e Administração de Empresas pela Universidade Católica
(PUC-MG).
Aposentou-se como Fiscal de Tributos pela Secretaria de Estado da Fazenda de Minas
Gerais.
Ingressou no movimento Espírita em Julho/87, atualmente frequenta o Movimento Espírita
em Belo Horizonte.
Escreveu vários artigos que foram publicados em alguns sites Espíritas na Internet, entre
eles:
Ø
O Portal do Espírito: www.portalespirito.com/
Ø
Grupo de Apologética Espírita: www.apologiaespirita.org
Ø
Panorama Espírita: www.panoramaespirita.com.br
Autor dos livros:
- A Bíblia à Moda da Casa
- Alma dos Animais: estágio anterior da alma humana?, e
- Espiritismo, princípios, práticas e provas.
- Os espíritos se comunicam na Igreja Católica (no prelo)
Endereço: Rua Mar de Espanha, 633 – Aptº 401
Santo Antônio – Belo Horizonte.
CEP 30.330-270.
Site: www.paulosnetos.net
e-mail: [email protected]
Tel: (31) 3296-8716
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