Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI.
ANÁLISE DESCRITIVO-COMPARATIVA DO VERBO GOSTAR NO PB E NO
PP: UM ESTUDO BASEADO EM CORPUS
Juliana Bertucci BARBOSA1
Talita de Cássia MARINE2
RESUMO: Este artigo apresenta uma breve análise descritivo-comparativa do uso do
verbo “gostar” no português do Brasil (PB) e no português de Portugal (PP),
considerando seus usos no pretérito imperfeito e no futuro do pretérito a partir de um
corpus constituído por cartas de leitoras das revistas femininas Capricho e Ragazza –
sendo esta uma revista portuguesa, similar à brasileira Capricho – publicadas entre os
anos de 1994 a 2005. Além dessa análise descritivo-comparativa, pretendemos avaliar
se a polidez está ligada ou não aos empregos assumidos por este verbo na seguinte
situação: o Pretérito Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito em contextos em que
o falante quer expressar um pedido e/ou um desejo (MARINE; BARBOSA, 2008). Por
fim, cabe destacar que a escolha desse corpus se justifica pelo seu caráter menos formal
da escrita, muitas vezes relacionado a traços da oralidade menos formal, inserido num
continuum da língua escrita e da língua falada, denominado por Marine (2004; 2008;
2009), como “língua oral-escrita”.
PALAVRAS-CHAVE: Português; verbo; traços semânticos; traços pragmáticos; corpus
1
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Cursos de Letras, Av. Getúlio Guaritá, 159, Bairro
Abadia, CEP 38025-440, UBERABA, MG, Brasil, [email protected]
2
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras, Rodovia Araraquara-Jaú, km
01, Bairro dos Machados, Caixa Postal 174, CEP 14.800-901, Araraquara, SP, Brasil,
[email protected] / apoio CNPq.
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Considerações iniciais
A fim de fazer uma breve análise sobre a alternância de uso do verbo “gostar”
no Pretérito Imperfeito (PI) e no Futuro do Pretérito (FP) do modo Indicativo,
considerando as variedades portuguesa e brasileira do Português Contemporâneo,
pretendemos verificar em quais situações essas formas verbais estão sendo usadas.
Para tal análise, utilizamos um corpus constituído por cartas de leitoras de duas
revistas femininas, a brasileira Capricho e a portuguesa Ragazza – revista feminina
portuguesa similar à Capricho -, publicadas entre os anos de 1994 a 2005. Essas cartas
possuem características peculiares – tal como poderá ser observado posteriormente
neste artigo –, que fazem delas uma riquíssima amostra de dados de um registro escrito
menos formal da língua.
Dada a natureza descritivo-comparativa deste estudo, embasado por um olhar
variacionista dos fenômenos da linguagem (cf. LABOV, 1972, 1994), é inegável que
essa menor formalidade da escrita e a presença de alguns traços da oralidade menos
formal que caracterizam nosso corpus sejam fundamentais para a observação do
fenômeno linguístico que nos serve de objeto de estudo. Isso porque, como se sabe, são
em situações de menor formalidade, seja na escrita ou na fala, que os fenômenos de
variação e mudança linguísticas ocorrem (cf. WEINREICH, LABOV, HERZOG, 1969;
LABOV, 1972, 1994).
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Valores semânticos do Imperfeito e do Futuro do Pretérito
Para realizarmos a análise das formas do PI e do FP do modo Indicativo com o
verbo “gostar” encontradas em nosso corpus, tivemos que buscar embasamento teórico
em estudos sobre as três categorias semânticas verbais: Tempo, Modo e Aspecto.
O Tempo é uma categoria dêitica que expressa relações de anterioridade ou
simultaneidade entre três momentos (Momento da Fala - MF, Momento do Evento ME, e o Momento de Referência - MR) (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2008); por outro
lado, o Aspecto é uma categoria não-dêitica, que quantifica o evento expresso pelo
verbo ou exprime a constituição interna de fases, momentos ou intervalos de tempo que
se incluem nesse evento (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2008). Por fim, o Modo é a
categoria que expressa uma apreciação qualitativa em relação ao enunciado, uma
tomada de posição do sujeito falante, a manifestação da vontade, sentimentos ou
julgamento do sujeito gramatical (LOBATO, 1971).
Estabelecidas tais definições adotadas neste trabalho para o PI e o FI, realizamos
uma revisão bibliográfica em gramáticas e em outros estudos linguísticos. Bechara
(2006), por exemplo, afirma que não podemos atribuir ao imperfeito a significação de
passado, a não ser que ele seja considerado um “presente” do passado. Como o
“presente”, que tem um “passado” (pretérito perfeito) e um “futuro” (futuro simples), o
imperfeito também tem seu próprio “passado” (pretérito mais que perfeito) e seu próprio
futuro (futuro do pretérito ou condicional presente). Segundo ainda Bechara (2006,
p.277), “o imperfeito, sendo um termo neutro do plano ‘inatual’, pode ser empregado
‘em lugar’ do seu pretérito (passado) e de seu futuro”.
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Daí a variedade e a ambivalência deste tempo verbal na atividade do discurso;
“geralmente uma forma verbal não está por outra ou em lugar de outra, mas sim no
lugar de outra significação” (BECHARA, 2006, p. 277). De acordo com o gramático,
emprega-se o PI quando: a) transportamo-nos mentalmente a uma época passada e
descrevemos o que era então presente; b) nos pedidos e solicitações; c) duvidamos da
realização de um dado fato; d) exprimimos um desejo feito com modéstia.
Bechara (2006, p.278) destaca que o imperfeito “pode substituir, principalmente
na conversação, o futuro do pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a
segurança do falante: Se me desprezasses, morreria, matava-me”.Outros gramáticos,
como Cunha e Cintra (2007, p. 465), afirmam que “a própria denominação deste tempo
– Pretérito Imperfeito– ensina-nos o seu valor fundamental: o de designar um fato
passado, mas não concluído (imperfeito = não perfeito, inacabado)”. Para eles, existem
sete situações de uso em que podemos empregar o PI no Português, sendo apenas uma
delas que julgamos relevante para este estudo: o PI substituindo o FP para denotar um
fato que seria consequência certa e imediata de outro que não ocorreu ou não poderia
ocorrer.
Já o Futuro do Pretérito (simples), segundo Cunha e Cintra (2007, p.476) pode
ser empregado em cinco diferentes situações, das quais destacamos duas: como forma
polida do presente, em geral denotadora de desejo e, nas afirmações condicionadas,
quando se referem a fatos que não se realizaram e que, provavelmente, não se
realizarão. Cabe ressaltar que os gramáticos fazem as seguintes observações a respeito
deste tempo verbal: o FP pode ser substituído pelo PI nas afirmações condicionadas.
Observemos os exemplos apresentados por Cunha e Cintra (2007, p.478):
(01) Sem a sua interferência, eu estaria perdido.
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(02) Sem a sua interferência, eu estava perdido.
No primeiro, o fato principal, ou seja, “estar perdido” é apresentado como
consequência provável da condição que não ocorreu. Já na segunda, o fato principal
aparece como efeito imediato e inelutável da condição. Esses autores destacam também
que esta substituição é frequente com os verbos modais poder, dever, saber, querer,
desejar, sugerir etc. Além disso, Bechara (2006, p.280) afirma que o Futuro, tanto o do
presente, quanto o de pretérito, denotam uma ação que ainda vai se realizar, sendo que
este é especificamente utilizado para denotar: a) que um fato se dará, agora ou no
futuro, dependendo de certa condição; b) asseveração modesta em relação ao passado,
admiração por um fato se ter realizado; c) incerteza.
Já na gramática de Mateus et al. (2003), baseada no PP, “[...] o Imperfeito recebe
a seguinte definição: é um tempo gramatical com informações de passado, mas que em
muitas construções não apresenta características temporais”. Observemos os exemplos
fornecidos pelas autoras (MATEUS et al., 2003, p.157):
(03) A Maria lia o jornal quando a Joana chegou.
(04) Ontem a Maria estava doente.
No exemplo (03) verificamos que a chegada da Joana está incluída no tempo de
ler o jornal, que pode ter continuado para além da chegada (MATEUS et al., 2003, p.
157). No exemplo (04), com verbo de estado, as autoras apontam que o advérbio está
incluído no intervalo de estar doente.
Mateus et al. (2003, p.157) ainda, seguindo essa definição adotada para o PI,
ressaltam que esse tempo nem sempre apresenta características de tempo relativo a um
ponto de perspectiva temporal do passado:
(05) Eu, neste momento, bebia um cafezinho.
(06) Estava à tua espera desde ontem.
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(07) Se a Rita chegar/chegasse a tempo, íamos ao concerto.
(08) Amanhã ia falar consigo ao escritório, está bem?
Para as autoras, nos exemplos (05) e (06), o ponto de perspectiva temporal é o
momento da fala -, através de “neste momento” e “desde ontem” (até agora). Entretanto,
em (05), há uma projeção para um futuro eventualmente articulado com uma
condicional e, em (06), o Imperfeito expressa um estado descrito – “estar à espera” –,
não importante no momento da fala. Nos exemplos (07) e (08), o ponto de perspectiva
temporal é um tempo posterior ao da enunciação, estabelecido, num caso, pela
condicional (7) e, no outro, pelo advérbio “amanhã” (8) (MATEUS et al., 2003, p.157).
Mateus et al. (2003), a partir desses exemplos, chamam a atenção para o fato de
o PI nem sempre denotar um tempo do passado, podendo, também, expressar
modalidade. Já o FP3, assume valor temporal (“Futuro do Passado”) desde que o ponto
de perspectiva temporal do enunciador seja “passado” (exemplo 9). Se esse ponto for
um tempo futuro, então o verbo conjugado no FP adquire um valor modal (exemplo 10):
(09) Ontem o Rui encontrou a Maria e esta convidá-lo-ia posteriormente para
presidir ao encerramento da sessão.
(10) O Rui e a Maria têm um encontro dentro de dias e esta convidá-lo-ia
(*posteriormente) para presidir à sessão, se não soubesse já que ele recusava.
Já para Prista (1966), autor de uma gramática do português para estrangeiros, o
PI é frequentemente usado no lugar do FP, em situações como:
(11) Desejava ler este livro (PRISTA, 1966, p.57).
Neste exemplo, o verbo “desejar” no PI é utilizado para uma solicitação; Rebello
(2005), comentando a afirmação de Prista, argumenta que o verbo “gostar” também é
usado com sentido similar ao “desejar” no português, à exceção do PB:
3
Designado por Mateus et al. (2003) como Futuro do Passado ou Condicional.
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(12) Gostava de ler este livro.
Como se pode observar, o PI substituindo o FP é previsto em gramáticas
tradicionais da língua portuguesa, porém, tal substituição corresponderia às encontradas
em nosso corpus do PP e do PB? Parece-nos que não.
Marine e Barbosa (2008, BARBOSA, MARINE, 2009) já chamaram atenção
para esse fato, enfatizando que, se fizermos uma revisão bibliográfica em gramáticas e
em outros estudos linguísticos, verificar-se-á que, embora em algumas situações
específicas, a substituição do PI pelo FP no português seja prevista, é importante se
atentar aos contextos de uso em que tal substituição é possível.
Cabe frisar que, ao analisarmos a substituição do FP pelo PI do verbo “gostar”
na mesma amostra escrita do PP que estamos considerando como “menos formal” neste
trabalho – as cartas das leitoras da revista Ragazza –, verificamos em pesquisa anterior
(MARINE; BARBOSA, 2008) que essa troca em situações modais, representando
“desejo” e/ou “desejo+solicitação”, foi bastante expressiva.
Tal constatação, somada ao fato de que Hutchinson e Lloyd (1996) também
atestam que o PI está sendo usado no lugar do FP e que esse uso ocorre quando o falante
quer fazer solicitações de forma polida, levou-nos a um dos importantes
questionamentos já mencionamos neste trabalho: o PI substituindo o FP é mais utilizado
em situações de maior grau de polidez no PP e PB?
Antes de tratarmos dessa questão, é interessante destacar que, conforme já
apontado em Marine e Barbosa (2008), o uso do PI com valor modal está previsto na
gramática do PP; entretanto, a alternância que ocorre entre o PI e o FP com o verbo
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“gostar”, expressando sentido de “solicitação/desejo”, não é abordado, tampouco
aspectos relacionados à polidez.
Polidez: algumas reflexões
Partindo de uma concepção sociodiscursiva de texto, a qual lhe confere uma
natureza dialógica, acreditamos que todo texto, seja da modalidade falada, seja da
escrita da língua, acaba promovendo ao pesquisador algumas reflexões acerca das
condições materiais de produção desses textos, bem como a caracterização da relação
estabelecida entre os enunciadores, já que nos parece inquestionável o fato de que o
conhecimento da língua é insuficiente para a interpretação plena de um dado enunciado.
Prova disso, são as inúmeras pesquisas linguísticas que surgiram nos últimos
sessenta anos, baseando-se nas “leis do discurso”, propostas por Grice (1982), que
constituem normas que devem ser respeitadas pelos enunciadores num ato de
comunicação verbal e, que devem ter como grande norteador, o “princípio de
cooperação”, denominado como “princípio de comunicação”, por Charaudeau (1984).
Afinal, sabe-se que para que o enunciador atinja seus objetivos numa situação
comunicativa – posto que todo texto possui um contexto e uma intenção –, é preciso que
este saiba atuar de algum modo sobre o seu enunciatário, a fim de evitar “conflitos”.
Além disso, ao considerar a existência de “leis do discurso” e de “princípios de
cooperação e comunicação”, não podemos deixar de destacar também a “teoria da
polidez” desenvolvida por Brown e Levinson (1987), já que a polidez pode ser
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entendida como uma série de estratégias discursivas que têm por finalidade evitar ou
amenizar conflitos entre os enunciadores.Reforçando tal ideia, podemos afirmar que
[...] a comunicação verbal é uma atividade intencional dirigida para a
obtenção de determinado objetivo e o uso adequado da linguagem
pode constituir um elemento determinante para o êxito do objetivo
pretendido. O locutor deve, assim, levar em conta que seu enunciado
esteja de acordo com as suas intenções e, principalmente, com a
categoria e o papel de seu interlocutor. Portanto, o uso conveniente de
todos os meios de que a linguagem dispõe é fator primordial para a
manutenção de uma interação cordial [...] (FÁVERO; ANDRADE;
AQUINO, 2000, p.221).
Este “uso conveniente de todos os meios de que a linguagem dispõe”, por parte
do enunciador, implica no conhecimento de algumas regras sociodiscursivas que regem
os padrões de polidez de uma dada cultura e da língua dessa sociedade, visto que, ainda
segundo Fávero, Andrade e Aquino (1998, p.221), “[...] a polidez pode ser concebida
como um conjunto de normas sociais que cada comunidade estabelece para regular o
comportamento adequado de seus membros, ajustando atitudes às normas”.
Dado o fato de as estratégias de polidez estabelecidas por Brown e Levinson
(1987) – polidez positiva, negativa e indireta – terem tido como referência a teoria das
faces de Goffman (1967), cabem alguns comentários acerca de tal teoria.
Grosso modo, este estudioso propõe que todos temos uma auto-imagem
construída socialmente; uma espécie de “fachada social” que tentamos apresentar aos
“outros” e que necessita de aprovação e reconhecimento. Essa auto-imagem possui duas
faces: uma negativa e outra positiva. Considerando que, segundo Goffman (1967), todo
ato de enunciação pode constituir uma ameaça à face do indivíduo, surgem alguns “[...]
procedimentos de facework necessários para neutralizar as ameaças à face, [os quais
constituem] estratégias discursivas a fim de envolver, seduzir, comover, convencer e,
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finalmente, influenciar as decisões dos interlocutores” (SAITO; NASCIMENTO, 2005,
p.04, interpolação nossa).
Acreditamos que essas questões sejam altamente relevantes à nossa pesquisa, e,
por isso, pretendemos observar se a polidez está ou não relacionada aos empregos
assumidos pelo verbo “gostar”. De acordo com Brown e Levinson (1987), as estratégias
de polidez que marcam uma dada interação, cujas funções principais são assegurar a
eficácia das informações compartilhadas e satisfazer as faces dos enunciadores que nada
mais são do que procedimentos cujo interesse é impedir ou atenuar atos ameaçadores à
face.
Somando-se às estratégias de polidez propostas por Brown e Levinson (1987) e
baseando-nos no estudo de Fernandes (2007), verificamos que muitas estratégias de
polidez4 estão ligadas aos tempos verbais. Para Fernandes (2007, p.06, interpolação
nossa), “[...] apesar de a delicadeza poder encontrar-se em todos os tempos verbais,
existem três especialmente ligados à cortesia linguística: o Pretérito Imperfeito (do
Indicativo), o Condicional [ou Futuro do Pretérito do Indicativo] e o Imperativo”.
Em nosso estudo, dedicar-nos-emos aos dois primeiros tempos verbais e, tal
escolha, foi pautada a partir de algumas considerações que poderão ser observadas a
seguir.
Para Fernandes (2007), os modais “querer” e “poder” são os mais recorrentes
nos contextos de polidez, “[...] sendo utilizados pelo locutor para exprimir um desejo
e/ou um pedido, de uma forma cortês [...]” (FERNANDES, 2007, p.06). O pesquisador
argumenta que o Imperfeito do Indicativo, além de ser empregado para exprimir um
4
Cabe ressaltar que os linguistas portugueses empregam, preferencialmente, o termo “cortesia” ou
“delicadeza”, para o que ora estamos denominando como “polidez”.
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evento ainda não concluído, também é utilizado na expressão de polidez, timidez e
amabilidade. Nessas situações de uso, o Imperfeito possui o mesmo valor do Presente
do Indicativo, como forma de polidez, para atenuar uma afirmação ou um pedido,
designado pelo autor como “imperfeito de cortesia” (FERNANDES, 2007, p.06):
(13) Podia informar-nos onde fica a Rua Direita.
(14) Queria um copo de água, se faz favor.
O autor afirma ainda que no Português de Portugal também é possível exprimir a
polidez com outros verbos além dos modais, citando, como exemplo, o verbo “gostar”:
(15) Gostava que me acompanhasses à festa.
O autor destaca que a polidez, por meio deste verbo, no Imperfeito, não ocorre
no PB; já que, segundo Fernandes (2007), no PB, a “cortesia” ou a “delicadeza” na
formulação de desejos ou pedidos e, até mesmo, de ordens, contribui para a diminuição
da força ilocutória, privilegiando-se, assim, o uso do Futuro do Pretérito, tal como no
exemplo abaixo:
(16) Gostaria que me levasse ao cinema.
Observamos também que o uso do verbo “gostar”, justamente em situações que
expressa desejo e/ou pedido, tal como “querer” e “poder”, também é frequente no PP,
tanto no Pretérito Imperfeito do Indicativo, quanto no Futuro do Pretérito. Entretanto, de
acordo com Barbosa e Marine (2009), em tais contextos de uso, o FP é a forma mais
utilizada pelos portugueses em situações de maior formalidade; por outro lado, o PI
mostra-se mais “produtivo” em situações menos formais.
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Diante disso, nossa pesquisa procurou focar os usos do verbo “gostar”, no PP e
no PB, em contextos de escrita considerados menos formais, a fim de, por meio de uma
análise descritivo-comparativa, observar se também é possível encontrar a
predominância de uso no PI, em situações de “pedido e/ou solictação”, no PB.
O corpus
Embora as opiniões sobre a utilização de corpus em pesquisas linguísticas sejam
bastante divergentes, tal como aponta Sinclair (1991), acreditamos que um estudo
baseado em corpus proporciona novas descrições e hipóteses teóricas, fortalecendo e
tornando mais maduras as pesquisas linguísticas desenvolvidas. Isso porque sua
utilização proporciona a realização de descrições linguísticas de base empírica,
permitindo uma reflexão acerca de questões teóricas fundamentadas em usos reais da
língua.
Entretanto, há de se destacar que o linguista que compõe o seu próprio corpus –
como é o nosso caso –, deve conhecer muito bem o tipo de texto e o gênero textual com o
qual pretende trabalhar, já que cada tipo e gênero textual apresentam peculiaridades que
implicam não apenas em aspectos estruturais caracterizadores, mas também em tipos de
tema mais recorrentes, grau de formalidade, intenção, entre outros. O conhecimento
dessas características conduz o pesquisador a um caminho mais adequado no tratamento
do texto utilizado como corpus, seja este oral ou escrito, o que, por sua vez, garantirá
uma análise mais fiel do objeto de estudo de sua pesquisa.
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Além disso, um estudo linguístico que tem por objetivo proceder a uma análise
descritivo-comparativa de um dado fenômeno da língua deve levar em consideração o
tipo de corpus que irá utilizar, inclusive porque a recorrência ou produtividade de
determinado fenômeno linguístico está diretamente ligada ao gênero textual com o qual
se está trabalhando.
É importante destacar que a escrita, como se sabe, por muito tempo foi vista como
uma manifestação da linguagem mais formal e, justamente por isso, estudos de variação e
mudança linguísticas norteados pelo modelo teórico-metodológico laboviano (LABOV,
2006; 2008) inicialmente privilegiaram o estudo da modalidade falada da língua, em
contextos de menor formalidade, já que esta, em geral, é tida como menos preocupada em
se adequar à norma padrão e, portanto, mostra-se mais vulnerável a variações de uso.
O fato de que contextos menos formais de fala - por exemplo, uma conversa do
cotidiano entre colegas, amigos ou familiares que se vêem como “pares” - constitua um
ambiente bastante favorável às variações linguísticas, parece-nos inquestionável. Afinal,
nessas situações, o indivíduo se sente, em geral, tão à vontade diante de seus
enunciatários, que acaba não se preocupando com a maneira com a qual fala. Além disso,
os próprios temas e os ambientes em que se dão essas conversas proporcionam e
acentuam ainda mais esse "clima" de despreocupação com o "como dizer".
No entanto, acreditamos que as relações entre oralidade e escrita acabam
refletindo “um dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas
modalidades de uso da língua” (MARCUSCHI, 2007, p.34). Como destaca Koch (2007,
p.78), “a escrita formal e a fala informal constituem pólos opostos de um contínuo, ao
longo do qual se situam diversos tipos de interação verbal”.
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A consideração de tal continuum nos levou a assumir uma perspectiva sóciodiscursiva5 dos fenômenos da linguagem – a qual volta sua atenção para os processos de
produção de sentido situados sócio-historicamente –, marcada por atividades de
negociação ou por processos inferenciais. Sob tal ótica, as categorias linguísticas não são
dadas a priori, mas,
[...] como construídas interativamente e sensíveis aos fatos culturais.
Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos em
sociedade. Tem muita sensibilidade para fenômenos cognitivos e
processos de textualização na oralidade e na escrita, que permitem a
produção de coerência como uma atividade do leitor/ouvinte sobre o
texto recebido (MARCUSCHI, 2007, p.34).
Diante dessas questões, acreditamos que a utilização de um corpus que represente
um estágio intermediário entre oralidade e escrita, ou seja, um “gênero misto”, tal como
propõe Marcuschi (2007), cuja concepção seja oral, mas o meio seja gráfico e que, por
fim, seja caracterizado por um uso menos formal da escrita, seja tão eficiente quanto um
corpus de língua falada. Sobretudo, em pesquisas que sigam o modelo teóricometodológico laboviano (cf. Labov, 2006; 2008) e que adotem uma perspectiva sóciodiscursiva da linguagem.
Essa modalidade intermediária entre oralidade e escrita, caracterizada por uma
escrita menos formal e fortemente marcada por traços típicos da oralidade também menos
formal, denominada por Marine (2004; 2009) como língua oral-escrita, constitui a
modalidade de escrita ora utilizada como corpus neste estudo. Situada no continnum
entre a oralidade e escrita, tal “faceta” da linguagem pode ser notadamente observada,
por exemplo, na seção de cartas de algumas revistas femininas, em especial nas revistas
mais voltadas ao público jovem, como a brasileira Capricho e a portuguesa, Ragazza,
5
Entendida aqui, tal como Marcuschi (2007a, p.32-35) denomina “perspectiva sociointeracinista”.
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dada sua concepção oral e sua realização gráfica6. Afinal, se o pesquisador puder
observar variações linguísticas nesses textos, isso demonstrará que aquele dado fenômeno
pesquisado está em um estágio avançado de variação, visto que já está "se mostrando" no
universo do texto escrito.
Análise dos dados: “gostava” vs “gostaria” no PB e no PP
A partir do corpus utilizado, selecionamos as ocorrências do verbo “gostar”
flexionadas no Imperfeito e no Futuro do Pretérito, encontrando os seguintes números
de ocorrências:
Tabela 1 - O número total de ocorrências
GOSTAR
Futuro do Pretérito
Pretérito Imperfeito
TOTAL
No
18
72
90
%
20 %
80 %
100%
Separando essas ocorrências de acordo com as variedades do Português – PB e
PP –, obtivemos os seguintes resultados:
Tabela 2 - Número de ocorrências no corpus
GOSTAR
Futuro do Pretérito
PP
No /%
10 / 13%
PB
No /%
08 / 57%
Pretérito Imperfeito
TOTAL
66 / 87%
76 / 100%
06 / 63%
14 / 100%
Como podemos observar, já nesta primeira separação das ocorrências do verbo
“gostar” no PI e no FP, do PP e do PB, encontramos dois resultados bastante relevantes
6
Para maiores detalhes, ver Marcuschi (2007a) e Marine (2009).
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à nossa pesquisa: (i) no PP, encontramos uma expressiva predominância do verbo
“gostar” no PI (87%); (ii) no PB, as ocorrências do verbo “gostar” no PI e no FP
aparecem com um percentual de ocorrências mais equilibrado.
Além disso, é importante ressaltar que para expressar pedidos e/ou fazer
solicitações, no PB, observamos o emprego de outros tipos de verbos, tais como o verbo
“querer” (Ex.: “Tenho 16 anos e queria entrar em uma boate”, Capricho). Acreditamos
que esse fato pode justificar o baixo número de ocorrências do verbo “gostar” no PB (14
ocorrências vs. 74, no PP).
Considerando a alternância entre o Futuro do Pretérito e o Imperfeito no PP e no
PB, a fim de analisarmos as 90 ocorrências (Tabela 1) de maneira mais refinada,
dividimos nossos dados da seguinte maneira:
(a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal): ocorrências em que o Futuro do
Pretérito expressa estritamente situações em que o evento, sob uma perspectiva passada
(referência do falante), é previsto como “futuro”, ou seja, um evento que aconteceria,
mas não aconteceu7:
(17) Estou ficando com um garoto que amo muito. Acho que ele também gosta
de mim e nos damos muito bem. Várias vezes deixei-o passar a mão, tipo no meu corpo
todo, mas sem tirar a roupa. Porém, acho que não gostaria mais que ele fizesse isso.
[...]. (Capricho)
(b) Gostar + Futuro do Pretérito (desejo/solicitação): ocorrências em que o Futuro do
Pretérito exprime, também, além de valores semânticos temporais, a noção de “desejo”
ou “solicitação +desejo”8 (16). Além disso, em nosso corpus, percebemos que, nessas
7
Em nosso corpus, não encontramos nenhuma ocorrência de “gostaria” com valor estritamente temporal
no PP e, apenas uma ocorrência no PB.
8
Partilhamos das concepções de Marine e Barbosa (2008) que diferenciam: (i) situações em que o falante
expressa somente “desejo” (modalidade); (ii) situações em que o falante expressa o valor modal de
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ocorrências, tal noção, muitas vezes, estava associada à ideia de “desejo” ou
“solicitação+desejo” de modo mais polido (17):
(18) O meu problema é que a minha mãe tem um namorado, embora pense que
eu não sei; e eu gostaria que ela casasse com ele para poder ter um pai. Como é que o
posso conseguir? Maria-Lisboa (...) (Ragazza)
(19) [...] estou me sentindo pronta para ficar, mas o meu jeito exigente afasta os
meninos que se interessam por mim. Gostaria de saber o que posso fazer? / Este parece
ser um típico caso de auto-sabotagem. Comece a observar mais o seu comportamento e
da próxima vez que perceber, tente mudar de comportamento. (Capricho)
(c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo): ocorrências em que o
Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valor temporal de passado e aspecto
imperfectivo:
(20) O meu primeiro encontro foi demais. Eu gostava do Pedro e ele de mim,
por isso uma amiga comum planeou o nosso ‘arranjinho’. Encontrámo-nos na casa onde
costumava reunir-se o nosso grupo de amigos. (...). (Ragazza)
(21) A distância me mostrou que eu sentia a falta do Paulo, gostava mesmo dele.
Então tentei manter contato por email. Na volta, comecei a planejar como iria pedi-lo
em namoro na minha festa de retorno. Desta vez ele topou na hora. (Capricho)
(d) Gostar + Pretérito Imperfeito (desejo/solicitação)9: ocorrências em que o
Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valores como “desejo” ou
“solicitação+ desejo”.
(22) Tenho 22 anos e ainda sou virgem. Nunca andei com nenhum rapaz e nunca
beijei ninguém. Sinto-me muito angustiada por causa disso, porque faz com que pareça
um bicho raro ao pé das minhas amigas e da minha irmã. Gostava de encontrar o
homem da minha vida e assim deixar de sofrer desta maneira. (...). (Ragazza)
Com base nessa classificação, obtivemos os seguintes quadros de resultados:
Tabela 3 – Usos de “gostava” e “gostaria” no PP e no PB
“desejo” + “ato ilocutório de pedido” (solicitação).
9
Em nosso corpus, não encontramos nenhuma ocorrência de “gostava” com valor de “desejo” ou
“solicitação+desejo” no PB.
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Gostava vs. Gostaria
Gostar + Futuro do Pretérito (temporal)
Gostar + Futuro do Pretérito (desejo/solicitação)
Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo)
Gostar + Pretérito Imperfeito (desejo/solicitação)
TOTAL
PP
No /%
10 / 13%
34 / 45%
32 / 42%
76
PB
No /%
01 / 7%
07 / 50 %
06 / 43%
14 / 100%
O uso do verbo “gostar” no FP com valor eminentemente temporal se mostrou
irrelevante em nossos dados, aparecendo apenas uma vez no PB e nenhuma no PP. Já
conjugado no PI, expressando “desejo/solicitação”, embora seja bastante produtivo no
PP, respondendo por 42% das ocorrências, no PB, essa forma verbal se mostrou
improdutiva, visto que não encontramos nenhum exemplo desse tipo.
Por outro lado, é interessante destacar que a forma “gostava” no PP, além de ser
bastante usada como expressão de “desejo/solicitação”, mostra-se tão expressiva quanto
no seu uso temporal, visto que corresponde a 45% das ocorrências. Este semelhante
equilíbrio da forma “gostava” no PP em usos distintos – 43% (“desejo/solicitação”) e
45% (temporal) - só confirmam nossa tese quanto à importância da utilização de corpus
para uma análise mais eficiente dos mecanismos linguísticos, visto que somente a
observação dos contextos de uso desta forma (“gostava”) é que nos permitiram
diferenciá-las.
Outro ponto que merece destaque em nossa análise, refere-se ao uso do verbo
“gostar” conjugado no FP, expressando “desejo/solicitação: no PB, tal uso corresponde
a 50% das ocorrências, sendo que, como já dito anteriormente, essa expressão no PB
com o verbo “gostar” só é possível por meio do FP, visto que a forma “gostava” é
utilizada apenas para expressar tempo (43% dos dados).
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Por fim, a análise de nossos dados demonstra que, se no PB a expressão de
“desejo/solicitação” por meio do verbo “gostar” só se mostrou produtiva no FP, o
mesmo não ocorre no PP, já que tal expressão se mostrou muito mais produtiva no PI
(42%) do que no FP (13%).
Considerações finais
O levantamento e a análise dos dados, em amostras escritas “menos formais” –
de cartas de leitoras da revista Ragazza e Capricho – do PP e do PB, conduziram-nos
aos seguintes resultados: 1º) a substituição do Futuro do Pretérito (FP) pelo Pretérito
Imperfeito (PI) com o verbo “gostar” em situações expressando “desejo” ou
“desejo+solicitação” são frequentes no PP, já no PB esse uso não foi encontrado, pois as
formas do PI estão sempre vinculadas a questão temporal, localizando o evento no
passado; 2º) por outro lado, as formas do PI, no PP, além de serem bastante utilizadas
expressando
“desejo/solicitação”,
mostram-se
também
rentáveis
expressando
temporalidade (45% das ocorrências); 3º) o emprego do verbo “gostar” no FP com valor
estritamente temporal se mostrou irrelevante em nossos dados, aparecendo apenas uma
vez no PB e nenhuma no PP. Entretanto, ao expressar desejo/solicitação, seu uso
corresponde a 50% das ocorrências no PB, visto que tal expressão, na variedade
brasileira, com verbo “gostar”, só foi encontrada, em nosso corpus, flexionada no FP.
Diante desses resultados, pautados em usos reais da língua a partir de textos
escritos cuja formalidade é baixa e que apresentam de maneira evidente traços de uma
oralidade menos formal, tanto no PB quanto no PP, dada a natureza “mista” do gênero
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discursivo que nos serviu de
amostra – cartas de leitoras de revistas femininas
destinadas ao público jovem -, concluímos que as diferenças de usos do verbo “gostar”
no PI e no FP são marcantes ao compararmos as variedades portuguesa e brasileira do
Português.
Sobretudo quando tal verbo expressa “desejo/solicitação”, é interessante notar
que embora a forma “gostava” seja perfeitamente aceitável e produtiva no PP, no PB
este uso simplesmente não ocorre, já que tal variedade da língua utiliza apenas a forma
“gostaria” para manifestar “desejo/solicitação”. Já no PP, embora seja possível verificar
este uso com o “gostar” no FP, nota-se claramente que, ao menos em nosso corpus,
privilegia-se a forma “gostava”: 43% desta forma expressando “desejo/solicitação” e,
apenas, 13% da forma “gostaria” expressando a mesma ideia.
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