Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. ANÁLISE DESCRITIVO-COMPARATIVA DO VERBO GOSTAR NO PB E NO PP: UM ESTUDO BASEADO EM CORPUS Juliana Bertucci BARBOSA1 Talita de Cássia MARINE2 RESUMO: Este artigo apresenta uma breve análise descritivo-comparativa do uso do verbo “gostar” no português do Brasil (PB) e no português de Portugal (PP), considerando seus usos no pretérito imperfeito e no futuro do pretérito a partir de um corpus constituído por cartas de leitoras das revistas femininas Capricho e Ragazza – sendo esta uma revista portuguesa, similar à brasileira Capricho – publicadas entre os anos de 1994 a 2005. Além dessa análise descritivo-comparativa, pretendemos avaliar se a polidez está ligada ou não aos empregos assumidos por este verbo na seguinte situação: o Pretérito Imperfeito substituindo o Futuro do Pretérito em contextos em que o falante quer expressar um pedido e/ou um desejo (MARINE; BARBOSA, 2008). Por fim, cabe destacar que a escolha desse corpus se justifica pelo seu caráter menos formal da escrita, muitas vezes relacionado a traços da oralidade menos formal, inserido num continuum da língua escrita e da língua falada, denominado por Marine (2004; 2008; 2009), como “língua oral-escrita”. PALAVRAS-CHAVE: Português; verbo; traços semânticos; traços pragmáticos; corpus 1 Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Cursos de Letras, Av. Getúlio Guaritá, 159, Bairro Abadia, CEP 38025-440, UBERABA, MG, Brasil, [email protected] 2 Universidade Estadual Paulista (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras, Rodovia Araraquara-Jaú, km 01, Bairro dos Machados, Caixa Postal 174, CEP 14.800-901, Araraquara, SP, Brasil, [email protected] / apoio CNPq. 88 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Considerações iniciais A fim de fazer uma breve análise sobre a alternância de uso do verbo “gostar” no Pretérito Imperfeito (PI) e no Futuro do Pretérito (FP) do modo Indicativo, considerando as variedades portuguesa e brasileira do Português Contemporâneo, pretendemos verificar em quais situações essas formas verbais estão sendo usadas. Para tal análise, utilizamos um corpus constituído por cartas de leitoras de duas revistas femininas, a brasileira Capricho e a portuguesa Ragazza – revista feminina portuguesa similar à Capricho -, publicadas entre os anos de 1994 a 2005. Essas cartas possuem características peculiares – tal como poderá ser observado posteriormente neste artigo –, que fazem delas uma riquíssima amostra de dados de um registro escrito menos formal da língua. Dada a natureza descritivo-comparativa deste estudo, embasado por um olhar variacionista dos fenômenos da linguagem (cf. LABOV, 1972, 1994), é inegável que essa menor formalidade da escrita e a presença de alguns traços da oralidade menos formal que caracterizam nosso corpus sejam fundamentais para a observação do fenômeno linguístico que nos serve de objeto de estudo. Isso porque, como se sabe, são em situações de menor formalidade, seja na escrita ou na fala, que os fenômenos de variação e mudança linguísticas ocorrem (cf. WEINREICH, LABOV, HERZOG, 1969; LABOV, 1972, 1994). 89 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Valores semânticos do Imperfeito e do Futuro do Pretérito Para realizarmos a análise das formas do PI e do FP do modo Indicativo com o verbo “gostar” encontradas em nosso corpus, tivemos que buscar embasamento teórico em estudos sobre as três categorias semânticas verbais: Tempo, Modo e Aspecto. O Tempo é uma categoria dêitica que expressa relações de anterioridade ou simultaneidade entre três momentos (Momento da Fala - MF, Momento do Evento ME, e o Momento de Referência - MR) (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2008); por outro lado, o Aspecto é uma categoria não-dêitica, que quantifica o evento expresso pelo verbo ou exprime a constituição interna de fases, momentos ou intervalos de tempo que se incluem nesse evento (CORÔA, 1985; BARBOSA, 2008). Por fim, o Modo é a categoria que expressa uma apreciação qualitativa em relação ao enunciado, uma tomada de posição do sujeito falante, a manifestação da vontade, sentimentos ou julgamento do sujeito gramatical (LOBATO, 1971). Estabelecidas tais definições adotadas neste trabalho para o PI e o FI, realizamos uma revisão bibliográfica em gramáticas e em outros estudos linguísticos. Bechara (2006), por exemplo, afirma que não podemos atribuir ao imperfeito a significação de passado, a não ser que ele seja considerado um “presente” do passado. Como o “presente”, que tem um “passado” (pretérito perfeito) e um “futuro” (futuro simples), o imperfeito também tem seu próprio “passado” (pretérito mais que perfeito) e seu próprio futuro (futuro do pretérito ou condicional presente). Segundo ainda Bechara (2006, p.277), “o imperfeito, sendo um termo neutro do plano ‘inatual’, pode ser empregado ‘em lugar’ do seu pretérito (passado) e de seu futuro”. 90 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Daí a variedade e a ambivalência deste tempo verbal na atividade do discurso; “geralmente uma forma verbal não está por outra ou em lugar de outra, mas sim no lugar de outra significação” (BECHARA, 2006, p. 277). De acordo com o gramático, emprega-se o PI quando: a) transportamo-nos mentalmente a uma época passada e descrevemos o que era então presente; b) nos pedidos e solicitações; c) duvidamos da realização de um dado fato; d) exprimimos um desejo feito com modéstia. Bechara (2006, p.278) destaca que o imperfeito “pode substituir, principalmente na conversação, o futuro do pretérito, quando se quer exprimir fato categórico ou a segurança do falante: Se me desprezasses, morreria, matava-me”.Outros gramáticos, como Cunha e Cintra (2007, p. 465), afirmam que “a própria denominação deste tempo – Pretérito Imperfeito– ensina-nos o seu valor fundamental: o de designar um fato passado, mas não concluído (imperfeito = não perfeito, inacabado)”. Para eles, existem sete situações de uso em que podemos empregar o PI no Português, sendo apenas uma delas que julgamos relevante para este estudo: o PI substituindo o FP para denotar um fato que seria consequência certa e imediata de outro que não ocorreu ou não poderia ocorrer. Já o Futuro do Pretérito (simples), segundo Cunha e Cintra (2007, p.476) pode ser empregado em cinco diferentes situações, das quais destacamos duas: como forma polida do presente, em geral denotadora de desejo e, nas afirmações condicionadas, quando se referem a fatos que não se realizaram e que, provavelmente, não se realizarão. Cabe ressaltar que os gramáticos fazem as seguintes observações a respeito deste tempo verbal: o FP pode ser substituído pelo PI nas afirmações condicionadas. Observemos os exemplos apresentados por Cunha e Cintra (2007, p.478): (01) Sem a sua interferência, eu estaria perdido. 91 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. (02) Sem a sua interferência, eu estava perdido. No primeiro, o fato principal, ou seja, “estar perdido” é apresentado como consequência provável da condição que não ocorreu. Já na segunda, o fato principal aparece como efeito imediato e inelutável da condição. Esses autores destacam também que esta substituição é frequente com os verbos modais poder, dever, saber, querer, desejar, sugerir etc. Além disso, Bechara (2006, p.280) afirma que o Futuro, tanto o do presente, quanto o de pretérito, denotam uma ação que ainda vai se realizar, sendo que este é especificamente utilizado para denotar: a) que um fato se dará, agora ou no futuro, dependendo de certa condição; b) asseveração modesta em relação ao passado, admiração por um fato se ter realizado; c) incerteza. Já na gramática de Mateus et al. (2003), baseada no PP, “[...] o Imperfeito recebe a seguinte definição: é um tempo gramatical com informações de passado, mas que em muitas construções não apresenta características temporais”. Observemos os exemplos fornecidos pelas autoras (MATEUS et al., 2003, p.157): (03) A Maria lia o jornal quando a Joana chegou. (04) Ontem a Maria estava doente. No exemplo (03) verificamos que a chegada da Joana está incluída no tempo de ler o jornal, que pode ter continuado para além da chegada (MATEUS et al., 2003, p. 157). No exemplo (04), com verbo de estado, as autoras apontam que o advérbio está incluído no intervalo de estar doente. Mateus et al. (2003, p.157) ainda, seguindo essa definição adotada para o PI, ressaltam que esse tempo nem sempre apresenta características de tempo relativo a um ponto de perspectiva temporal do passado: (05) Eu, neste momento, bebia um cafezinho. (06) Estava à tua espera desde ontem. 92 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. (07) Se a Rita chegar/chegasse a tempo, íamos ao concerto. (08) Amanhã ia falar consigo ao escritório, está bem? Para as autoras, nos exemplos (05) e (06), o ponto de perspectiva temporal é o momento da fala -, através de “neste momento” e “desde ontem” (até agora). Entretanto, em (05), há uma projeção para um futuro eventualmente articulado com uma condicional e, em (06), o Imperfeito expressa um estado descrito – “estar à espera” –, não importante no momento da fala. Nos exemplos (07) e (08), o ponto de perspectiva temporal é um tempo posterior ao da enunciação, estabelecido, num caso, pela condicional (7) e, no outro, pelo advérbio “amanhã” (8) (MATEUS et al., 2003, p.157). Mateus et al. (2003), a partir desses exemplos, chamam a atenção para o fato de o PI nem sempre denotar um tempo do passado, podendo, também, expressar modalidade. Já o FP3, assume valor temporal (“Futuro do Passado”) desde que o ponto de perspectiva temporal do enunciador seja “passado” (exemplo 9). Se esse ponto for um tempo futuro, então o verbo conjugado no FP adquire um valor modal (exemplo 10): (09) Ontem o Rui encontrou a Maria e esta convidá-lo-ia posteriormente para presidir ao encerramento da sessão. (10) O Rui e a Maria têm um encontro dentro de dias e esta convidá-lo-ia (*posteriormente) para presidir à sessão, se não soubesse já que ele recusava. Já para Prista (1966), autor de uma gramática do português para estrangeiros, o PI é frequentemente usado no lugar do FP, em situações como: (11) Desejava ler este livro (PRISTA, 1966, p.57). Neste exemplo, o verbo “desejar” no PI é utilizado para uma solicitação; Rebello (2005), comentando a afirmação de Prista, argumenta que o verbo “gostar” também é usado com sentido similar ao “desejar” no português, à exceção do PB: 3 Designado por Mateus et al. (2003) como Futuro do Passado ou Condicional. 93 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. (12) Gostava de ler este livro. Como se pode observar, o PI substituindo o FP é previsto em gramáticas tradicionais da língua portuguesa, porém, tal substituição corresponderia às encontradas em nosso corpus do PP e do PB? Parece-nos que não. Marine e Barbosa (2008, BARBOSA, MARINE, 2009) já chamaram atenção para esse fato, enfatizando que, se fizermos uma revisão bibliográfica em gramáticas e em outros estudos linguísticos, verificar-se-á que, embora em algumas situações específicas, a substituição do PI pelo FP no português seja prevista, é importante se atentar aos contextos de uso em que tal substituição é possível. Cabe frisar que, ao analisarmos a substituição do FP pelo PI do verbo “gostar” na mesma amostra escrita do PP que estamos considerando como “menos formal” neste trabalho – as cartas das leitoras da revista Ragazza –, verificamos em pesquisa anterior (MARINE; BARBOSA, 2008) que essa troca em situações modais, representando “desejo” e/ou “desejo+solicitação”, foi bastante expressiva. Tal constatação, somada ao fato de que Hutchinson e Lloyd (1996) também atestam que o PI está sendo usado no lugar do FP e que esse uso ocorre quando o falante quer fazer solicitações de forma polida, levou-nos a um dos importantes questionamentos já mencionamos neste trabalho: o PI substituindo o FP é mais utilizado em situações de maior grau de polidez no PP e PB? Antes de tratarmos dessa questão, é interessante destacar que, conforme já apontado em Marine e Barbosa (2008), o uso do PI com valor modal está previsto na gramática do PP; entretanto, a alternância que ocorre entre o PI e o FP com o verbo 94 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. “gostar”, expressando sentido de “solicitação/desejo”, não é abordado, tampouco aspectos relacionados à polidez. Polidez: algumas reflexões Partindo de uma concepção sociodiscursiva de texto, a qual lhe confere uma natureza dialógica, acreditamos que todo texto, seja da modalidade falada, seja da escrita da língua, acaba promovendo ao pesquisador algumas reflexões acerca das condições materiais de produção desses textos, bem como a caracterização da relação estabelecida entre os enunciadores, já que nos parece inquestionável o fato de que o conhecimento da língua é insuficiente para a interpretação plena de um dado enunciado. Prova disso, são as inúmeras pesquisas linguísticas que surgiram nos últimos sessenta anos, baseando-se nas “leis do discurso”, propostas por Grice (1982), que constituem normas que devem ser respeitadas pelos enunciadores num ato de comunicação verbal e, que devem ter como grande norteador, o “princípio de cooperação”, denominado como “princípio de comunicação”, por Charaudeau (1984). Afinal, sabe-se que para que o enunciador atinja seus objetivos numa situação comunicativa – posto que todo texto possui um contexto e uma intenção –, é preciso que este saiba atuar de algum modo sobre o seu enunciatário, a fim de evitar “conflitos”. Além disso, ao considerar a existência de “leis do discurso” e de “princípios de cooperação e comunicação”, não podemos deixar de destacar também a “teoria da polidez” desenvolvida por Brown e Levinson (1987), já que a polidez pode ser 95 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. entendida como uma série de estratégias discursivas que têm por finalidade evitar ou amenizar conflitos entre os enunciadores.Reforçando tal ideia, podemos afirmar que [...] a comunicação verbal é uma atividade intencional dirigida para a obtenção de determinado objetivo e o uso adequado da linguagem pode constituir um elemento determinante para o êxito do objetivo pretendido. O locutor deve, assim, levar em conta que seu enunciado esteja de acordo com as suas intenções e, principalmente, com a categoria e o papel de seu interlocutor. Portanto, o uso conveniente de todos os meios de que a linguagem dispõe é fator primordial para a manutenção de uma interação cordial [...] (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2000, p.221). Este “uso conveniente de todos os meios de que a linguagem dispõe”, por parte do enunciador, implica no conhecimento de algumas regras sociodiscursivas que regem os padrões de polidez de uma dada cultura e da língua dessa sociedade, visto que, ainda segundo Fávero, Andrade e Aquino (1998, p.221), “[...] a polidez pode ser concebida como um conjunto de normas sociais que cada comunidade estabelece para regular o comportamento adequado de seus membros, ajustando atitudes às normas”. Dado o fato de as estratégias de polidez estabelecidas por Brown e Levinson (1987) – polidez positiva, negativa e indireta – terem tido como referência a teoria das faces de Goffman (1967), cabem alguns comentários acerca de tal teoria. Grosso modo, este estudioso propõe que todos temos uma auto-imagem construída socialmente; uma espécie de “fachada social” que tentamos apresentar aos “outros” e que necessita de aprovação e reconhecimento. Essa auto-imagem possui duas faces: uma negativa e outra positiva. Considerando que, segundo Goffman (1967), todo ato de enunciação pode constituir uma ameaça à face do indivíduo, surgem alguns “[...] procedimentos de facework necessários para neutralizar as ameaças à face, [os quais constituem] estratégias discursivas a fim de envolver, seduzir, comover, convencer e, 96 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. finalmente, influenciar as decisões dos interlocutores” (SAITO; NASCIMENTO, 2005, p.04, interpolação nossa). Acreditamos que essas questões sejam altamente relevantes à nossa pesquisa, e, por isso, pretendemos observar se a polidez está ou não relacionada aos empregos assumidos pelo verbo “gostar”. De acordo com Brown e Levinson (1987), as estratégias de polidez que marcam uma dada interação, cujas funções principais são assegurar a eficácia das informações compartilhadas e satisfazer as faces dos enunciadores que nada mais são do que procedimentos cujo interesse é impedir ou atenuar atos ameaçadores à face. Somando-se às estratégias de polidez propostas por Brown e Levinson (1987) e baseando-nos no estudo de Fernandes (2007), verificamos que muitas estratégias de polidez4 estão ligadas aos tempos verbais. Para Fernandes (2007, p.06, interpolação nossa), “[...] apesar de a delicadeza poder encontrar-se em todos os tempos verbais, existem três especialmente ligados à cortesia linguística: o Pretérito Imperfeito (do Indicativo), o Condicional [ou Futuro do Pretérito do Indicativo] e o Imperativo”. Em nosso estudo, dedicar-nos-emos aos dois primeiros tempos verbais e, tal escolha, foi pautada a partir de algumas considerações que poderão ser observadas a seguir. Para Fernandes (2007), os modais “querer” e “poder” são os mais recorrentes nos contextos de polidez, “[...] sendo utilizados pelo locutor para exprimir um desejo e/ou um pedido, de uma forma cortês [...]” (FERNANDES, 2007, p.06). O pesquisador argumenta que o Imperfeito do Indicativo, além de ser empregado para exprimir um 4 Cabe ressaltar que os linguistas portugueses empregam, preferencialmente, o termo “cortesia” ou “delicadeza”, para o que ora estamos denominando como “polidez”. 97 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. evento ainda não concluído, também é utilizado na expressão de polidez, timidez e amabilidade. Nessas situações de uso, o Imperfeito possui o mesmo valor do Presente do Indicativo, como forma de polidez, para atenuar uma afirmação ou um pedido, designado pelo autor como “imperfeito de cortesia” (FERNANDES, 2007, p.06): (13) Podia informar-nos onde fica a Rua Direita. (14) Queria um copo de água, se faz favor. O autor afirma ainda que no Português de Portugal também é possível exprimir a polidez com outros verbos além dos modais, citando, como exemplo, o verbo “gostar”: (15) Gostava que me acompanhasses à festa. O autor destaca que a polidez, por meio deste verbo, no Imperfeito, não ocorre no PB; já que, segundo Fernandes (2007), no PB, a “cortesia” ou a “delicadeza” na formulação de desejos ou pedidos e, até mesmo, de ordens, contribui para a diminuição da força ilocutória, privilegiando-se, assim, o uso do Futuro do Pretérito, tal como no exemplo abaixo: (16) Gostaria que me levasse ao cinema. Observamos também que o uso do verbo “gostar”, justamente em situações que expressa desejo e/ou pedido, tal como “querer” e “poder”, também é frequente no PP, tanto no Pretérito Imperfeito do Indicativo, quanto no Futuro do Pretérito. Entretanto, de acordo com Barbosa e Marine (2009), em tais contextos de uso, o FP é a forma mais utilizada pelos portugueses em situações de maior formalidade; por outro lado, o PI mostra-se mais “produtivo” em situações menos formais. 98 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Diante disso, nossa pesquisa procurou focar os usos do verbo “gostar”, no PP e no PB, em contextos de escrita considerados menos formais, a fim de, por meio de uma análise descritivo-comparativa, observar se também é possível encontrar a predominância de uso no PI, em situações de “pedido e/ou solictação”, no PB. O corpus Embora as opiniões sobre a utilização de corpus em pesquisas linguísticas sejam bastante divergentes, tal como aponta Sinclair (1991), acreditamos que um estudo baseado em corpus proporciona novas descrições e hipóteses teóricas, fortalecendo e tornando mais maduras as pesquisas linguísticas desenvolvidas. Isso porque sua utilização proporciona a realização de descrições linguísticas de base empírica, permitindo uma reflexão acerca de questões teóricas fundamentadas em usos reais da língua. Entretanto, há de se destacar que o linguista que compõe o seu próprio corpus – como é o nosso caso –, deve conhecer muito bem o tipo de texto e o gênero textual com o qual pretende trabalhar, já que cada tipo e gênero textual apresentam peculiaridades que implicam não apenas em aspectos estruturais caracterizadores, mas também em tipos de tema mais recorrentes, grau de formalidade, intenção, entre outros. O conhecimento dessas características conduz o pesquisador a um caminho mais adequado no tratamento do texto utilizado como corpus, seja este oral ou escrito, o que, por sua vez, garantirá uma análise mais fiel do objeto de estudo de sua pesquisa. 99 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Além disso, um estudo linguístico que tem por objetivo proceder a uma análise descritivo-comparativa de um dado fenômeno da língua deve levar em consideração o tipo de corpus que irá utilizar, inclusive porque a recorrência ou produtividade de determinado fenômeno linguístico está diretamente ligada ao gênero textual com o qual se está trabalhando. É importante destacar que a escrita, como se sabe, por muito tempo foi vista como uma manifestação da linguagem mais formal e, justamente por isso, estudos de variação e mudança linguísticas norteados pelo modelo teórico-metodológico laboviano (LABOV, 2006; 2008) inicialmente privilegiaram o estudo da modalidade falada da língua, em contextos de menor formalidade, já que esta, em geral, é tida como menos preocupada em se adequar à norma padrão e, portanto, mostra-se mais vulnerável a variações de uso. O fato de que contextos menos formais de fala - por exemplo, uma conversa do cotidiano entre colegas, amigos ou familiares que se vêem como “pares” - constitua um ambiente bastante favorável às variações linguísticas, parece-nos inquestionável. Afinal, nessas situações, o indivíduo se sente, em geral, tão à vontade diante de seus enunciatários, que acaba não se preocupando com a maneira com a qual fala. Além disso, os próprios temas e os ambientes em que se dão essas conversas proporcionam e acentuam ainda mais esse "clima" de despreocupação com o "como dizer". No entanto, acreditamos que as relações entre oralidade e escrita acabam refletindo “um dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua” (MARCUSCHI, 2007, p.34). Como destaca Koch (2007, p.78), “a escrita formal e a fala informal constituem pólos opostos de um contínuo, ao longo do qual se situam diversos tipos de interação verbal”. 100 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. A consideração de tal continuum nos levou a assumir uma perspectiva sóciodiscursiva5 dos fenômenos da linguagem – a qual volta sua atenção para os processos de produção de sentido situados sócio-historicamente –, marcada por atividades de negociação ou por processos inferenciais. Sob tal ótica, as categorias linguísticas não são dadas a priori, mas, [...] como construídas interativamente e sensíveis aos fatos culturais. Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos em sociedade. Tem muita sensibilidade para fenômenos cognitivos e processos de textualização na oralidade e na escrita, que permitem a produção de coerência como uma atividade do leitor/ouvinte sobre o texto recebido (MARCUSCHI, 2007, p.34). Diante dessas questões, acreditamos que a utilização de um corpus que represente um estágio intermediário entre oralidade e escrita, ou seja, um “gênero misto”, tal como propõe Marcuschi (2007), cuja concepção seja oral, mas o meio seja gráfico e que, por fim, seja caracterizado por um uso menos formal da escrita, seja tão eficiente quanto um corpus de língua falada. Sobretudo, em pesquisas que sigam o modelo teóricometodológico laboviano (cf. Labov, 2006; 2008) e que adotem uma perspectiva sóciodiscursiva da linguagem. Essa modalidade intermediária entre oralidade e escrita, caracterizada por uma escrita menos formal e fortemente marcada por traços típicos da oralidade também menos formal, denominada por Marine (2004; 2009) como língua oral-escrita, constitui a modalidade de escrita ora utilizada como corpus neste estudo. Situada no continnum entre a oralidade e escrita, tal “faceta” da linguagem pode ser notadamente observada, por exemplo, na seção de cartas de algumas revistas femininas, em especial nas revistas mais voltadas ao público jovem, como a brasileira Capricho e a portuguesa, Ragazza, 5 Entendida aqui, tal como Marcuschi (2007a, p.32-35) denomina “perspectiva sociointeracinista”. 101 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. dada sua concepção oral e sua realização gráfica6. Afinal, se o pesquisador puder observar variações linguísticas nesses textos, isso demonstrará que aquele dado fenômeno pesquisado está em um estágio avançado de variação, visto que já está "se mostrando" no universo do texto escrito. Análise dos dados: “gostava” vs “gostaria” no PB e no PP A partir do corpus utilizado, selecionamos as ocorrências do verbo “gostar” flexionadas no Imperfeito e no Futuro do Pretérito, encontrando os seguintes números de ocorrências: Tabela 1 - O número total de ocorrências GOSTAR Futuro do Pretérito Pretérito Imperfeito TOTAL No 18 72 90 % 20 % 80 % 100% Separando essas ocorrências de acordo com as variedades do Português – PB e PP –, obtivemos os seguintes resultados: Tabela 2 - Número de ocorrências no corpus GOSTAR Futuro do Pretérito PP No /% 10 / 13% PB No /% 08 / 57% Pretérito Imperfeito TOTAL 66 / 87% 76 / 100% 06 / 63% 14 / 100% Como podemos observar, já nesta primeira separação das ocorrências do verbo “gostar” no PI e no FP, do PP e do PB, encontramos dois resultados bastante relevantes 6 Para maiores detalhes, ver Marcuschi (2007a) e Marine (2009). 102 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. à nossa pesquisa: (i) no PP, encontramos uma expressiva predominância do verbo “gostar” no PI (87%); (ii) no PB, as ocorrências do verbo “gostar” no PI e no FP aparecem com um percentual de ocorrências mais equilibrado. Além disso, é importante ressaltar que para expressar pedidos e/ou fazer solicitações, no PB, observamos o emprego de outros tipos de verbos, tais como o verbo “querer” (Ex.: “Tenho 16 anos e queria entrar em uma boate”, Capricho). Acreditamos que esse fato pode justificar o baixo número de ocorrências do verbo “gostar” no PB (14 ocorrências vs. 74, no PP). Considerando a alternância entre o Futuro do Pretérito e o Imperfeito no PP e no PB, a fim de analisarmos as 90 ocorrências (Tabela 1) de maneira mais refinada, dividimos nossos dados da seguinte maneira: (a) Gostar + Futuro do Pretérito (temporal): ocorrências em que o Futuro do Pretérito expressa estritamente situações em que o evento, sob uma perspectiva passada (referência do falante), é previsto como “futuro”, ou seja, um evento que aconteceria, mas não aconteceu7: (17) Estou ficando com um garoto que amo muito. Acho que ele também gosta de mim e nos damos muito bem. Várias vezes deixei-o passar a mão, tipo no meu corpo todo, mas sem tirar a roupa. Porém, acho que não gostaria mais que ele fizesse isso. [...]. (Capricho) (b) Gostar + Futuro do Pretérito (desejo/solicitação): ocorrências em que o Futuro do Pretérito exprime, também, além de valores semânticos temporais, a noção de “desejo” ou “solicitação +desejo”8 (16). Além disso, em nosso corpus, percebemos que, nessas 7 Em nosso corpus, não encontramos nenhuma ocorrência de “gostaria” com valor estritamente temporal no PP e, apenas uma ocorrência no PB. 8 Partilhamos das concepções de Marine e Barbosa (2008) que diferenciam: (i) situações em que o falante expressa somente “desejo” (modalidade); (ii) situações em que o falante expressa o valor modal de 103 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. ocorrências, tal noção, muitas vezes, estava associada à ideia de “desejo” ou “solicitação+desejo” de modo mais polido (17): (18) O meu problema é que a minha mãe tem um namorado, embora pense que eu não sei; e eu gostaria que ela casasse com ele para poder ter um pai. Como é que o posso conseguir? Maria-Lisboa (...) (Ragazza) (19) [...] estou me sentindo pronta para ficar, mas o meu jeito exigente afasta os meninos que se interessam por mim. Gostaria de saber o que posso fazer? / Este parece ser um típico caso de auto-sabotagem. Comece a observar mais o seu comportamento e da próxima vez que perceber, tente mudar de comportamento. (Capricho) (c) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo): ocorrências em que o Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valor temporal de passado e aspecto imperfectivo: (20) O meu primeiro encontro foi demais. Eu gostava do Pedro e ele de mim, por isso uma amiga comum planeou o nosso ‘arranjinho’. Encontrámo-nos na casa onde costumava reunir-se o nosso grupo de amigos. (...). (Ragazza) (21) A distância me mostrou que eu sentia a falta do Paulo, gostava mesmo dele. Então tentei manter contato por email. Na volta, comecei a planejar como iria pedi-lo em namoro na minha festa de retorno. Desta vez ele topou na hora. (Capricho) (d) Gostar + Pretérito Imperfeito (desejo/solicitação)9: ocorrências em que o Pretérito Imperfeito expressa, predominantemente, valores como “desejo” ou “solicitação+ desejo”. (22) Tenho 22 anos e ainda sou virgem. Nunca andei com nenhum rapaz e nunca beijei ninguém. Sinto-me muito angustiada por causa disso, porque faz com que pareça um bicho raro ao pé das minhas amigas e da minha irmã. Gostava de encontrar o homem da minha vida e assim deixar de sofrer desta maneira. (...). (Ragazza) Com base nessa classificação, obtivemos os seguintes quadros de resultados: Tabela 3 – Usos de “gostava” e “gostaria” no PP e no PB “desejo” + “ato ilocutório de pedido” (solicitação). 9 Em nosso corpus, não encontramos nenhuma ocorrência de “gostava” com valor de “desejo” ou “solicitação+desejo” no PB. 104 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Gostava vs. Gostaria Gostar + Futuro do Pretérito (temporal) Gostar + Futuro do Pretérito (desejo/solicitação) Gostar + Pretérito Imperfeito (temporal/imperfectivo) Gostar + Pretérito Imperfeito (desejo/solicitação) TOTAL PP No /% 10 / 13% 34 / 45% 32 / 42% 76 PB No /% 01 / 7% 07 / 50 % 06 / 43% 14 / 100% O uso do verbo “gostar” no FP com valor eminentemente temporal se mostrou irrelevante em nossos dados, aparecendo apenas uma vez no PB e nenhuma no PP. Já conjugado no PI, expressando “desejo/solicitação”, embora seja bastante produtivo no PP, respondendo por 42% das ocorrências, no PB, essa forma verbal se mostrou improdutiva, visto que não encontramos nenhum exemplo desse tipo. Por outro lado, é interessante destacar que a forma “gostava” no PP, além de ser bastante usada como expressão de “desejo/solicitação”, mostra-se tão expressiva quanto no seu uso temporal, visto que corresponde a 45% das ocorrências. Este semelhante equilíbrio da forma “gostava” no PP em usos distintos – 43% (“desejo/solicitação”) e 45% (temporal) - só confirmam nossa tese quanto à importância da utilização de corpus para uma análise mais eficiente dos mecanismos linguísticos, visto que somente a observação dos contextos de uso desta forma (“gostava”) é que nos permitiram diferenciá-las. Outro ponto que merece destaque em nossa análise, refere-se ao uso do verbo “gostar” conjugado no FP, expressando “desejo/solicitação: no PB, tal uso corresponde a 50% das ocorrências, sendo que, como já dito anteriormente, essa expressão no PB com o verbo “gostar” só é possível por meio do FP, visto que a forma “gostava” é utilizada apenas para expressar tempo (43% dos dados). 105 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. Por fim, a análise de nossos dados demonstra que, se no PB a expressão de “desejo/solicitação” por meio do verbo “gostar” só se mostrou produtiva no FP, o mesmo não ocorre no PP, já que tal expressão se mostrou muito mais produtiva no PI (42%) do que no FP (13%). Considerações finais O levantamento e a análise dos dados, em amostras escritas “menos formais” – de cartas de leitoras da revista Ragazza e Capricho – do PP e do PB, conduziram-nos aos seguintes resultados: 1º) a substituição do Futuro do Pretérito (FP) pelo Pretérito Imperfeito (PI) com o verbo “gostar” em situações expressando “desejo” ou “desejo+solicitação” são frequentes no PP, já no PB esse uso não foi encontrado, pois as formas do PI estão sempre vinculadas a questão temporal, localizando o evento no passado; 2º) por outro lado, as formas do PI, no PP, além de serem bastante utilizadas expressando “desejo/solicitação”, mostram-se também rentáveis expressando temporalidade (45% das ocorrências); 3º) o emprego do verbo “gostar” no FP com valor estritamente temporal se mostrou irrelevante em nossos dados, aparecendo apenas uma vez no PB e nenhuma no PP. Entretanto, ao expressar desejo/solicitação, seu uso corresponde a 50% das ocorrências no PB, visto que tal expressão, na variedade brasileira, com verbo “gostar”, só foi encontrada, em nosso corpus, flexionada no FP. Diante desses resultados, pautados em usos reais da língua a partir de textos escritos cuja formalidade é baixa e que apresentam de maneira evidente traços de uma oralidade menos formal, tanto no PB quanto no PP, dada a natureza “mista” do gênero 106 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 23 – Estudos sobre o Português dos séculos XX e XXI. discursivo que nos serviu de amostra – cartas de leitoras de revistas femininas destinadas ao público jovem -, concluímos que as diferenças de usos do verbo “gostar” no PI e no FP são marcantes ao compararmos as variedades portuguesa e brasileira do Português. Sobretudo quando tal verbo expressa “desejo/solicitação”, é interessante notar que embora a forma “gostava” seja perfeitamente aceitável e produtiva no PP, no PB este uso simplesmente não ocorre, já que tal variedade da língua utiliza apenas a forma “gostaria” para manifestar “desejo/solicitação”. Já no PP, embora seja possível verificar este uso com o “gostar” no FP, nota-se claramente que, ao menos em nosso corpus, privilegia-se a forma “gostava”: 43% desta forma expressando “desejo/solicitação” e, apenas, 13% da forma “gostaria” expressando a mesma ideia. Referências BARBOSA, J, B. Tenho feito/fiz a tese: uma proposta de caracterização do Pretérito Perfeito no português. 2008. 282f . Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. BARBOSA, J. B.; MARINE, T. de. C. Reflexões sóciodiscursivas do uso do verbo gostar no Português de Portugal. In: RESENDE, L. M.; SILVA, B. C. D.; BARBOSA, J. B. (Org.). Léxico e gramática: dos sentidos à construção da significação. São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009, p. 223-253. (Série Trilhas Linguísticas, 16). BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. (edição revista e ampliada). BEZERRA, M. A. 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