Pereira

Propaganda
Convergência dos lugares sintáticos de sujeito e objeto direto:
um enfoque enunciativo
Bruna Karla Pereira
Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
[email protected]
Abstract. This paper shows a hypothesis for the analysis of sentences such as
“Houve festas” and “Houveram festas”, in which the identification of
“festas” as either subject or direct object has been considered a problematic
issue in linguistic research. Thus, our hypothesis is not concerned with
determining whether “festas” is subject or object but with considering that
there is a convergence, in “festas”, of these two syntactic places: subject and
object. In order to show that, we will account for not only structural elements
of Portuguese, but also enunciative aspectcs. This point is relevant since we
consider that the enunciation governs the constitution and the conditions for
the production of sentences with convergence.
Keywords. Subject; direct object; convergence; enunciation.
Resumo. Neste artigo, apresentamos uma hipótese para análise de sentenças
como “Houve festas” e “Houveram festas”, em que a identificação de
“festas” como sujeito ou como objeto tem se apresentado como um problema
para pesquisas feitas no campo da Lingüística. Nossa hipótese, nesse sentido,
não consiste em determinar se “festas” é sujeito ou objeto, mas em considerar
que há convergência, em “festas”, dos lugares de sujeito e objeto. Para isso,
analisaremos tanto fatores de ordem estrutural quanto de ordem enunciativa,
que sustentam a constituição e as condições de ocorrências com
convergência.
Palavras-chave. Sujeito; objeto direto; convergência; enunciação.
1-Apresentação da problemática
Uma breve pesquisa a respeito de como as ocorrências com o verbo “haver” têm
sido abordadas mostra-nos que o status do SN que ocorre com este verbo é definido
como objeto direto. Assim sendo, a menção à impessoalidade desse verbo e à
posposição do SN é recorrente. Contudo, veremos que verbos como este não são
impessoais e que o SN pode ocorrer posposto ou anteposto. Estes fatos podem nos levar
a questionar o status sintático deste SN ou, ainda, a questionar os critérios que
possibilitam a definição das categorias sintáticas sujeito e objeto direto.
Dentro da abordagem tradicional, “o verbo haver, quando sinônimo de existir
(...) não tem sujeito” (Cunha e Cintra, 2001: 540), tendo em vista que, neste caso, não
“há um ser sobre o qual se faz uma declaração” (Cunha e Cintra, 2001: 122). Em
primeiro lugar, consideramos que a própria definição de sujeito destes autores é
questionável porque, em sentenças como “O futuro hospital estará pronto em 2010” e
“Nada o faz sorrir”, em que não há um “ser” a respeito do qual se faz uma declaração,
percebemos que a dimensão ontológica é secundária na definição dos fatos lingüísticos.
Isto porque, mesmo não havendo um ser a respeito do qual se faz uma declaração,
1
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 133 / 142
ambas as sentenças possuem sujeito. Em segundo lugar, se, em uma sentença como
(1)“Houve escravos no século XIX”,
o verbo está flexionado na 3ªpessoa do singular, não há motivos para dizer que o verbo
é impessoal.
Por sua vez, a partir de uma abordagem gerativista, Franchi et al. (1998) traçam
como características das construções com ter e haver:
I) a impessoalidade do verbo;
II) a posposição do SN (argumento interno).
Em relação a I, justificam o critério a partir de duas razões. A primeira é que o
verbo não estabelece concordância com o “SN-argumento”, por exemplo, “Ali havia
uns eucaliptos sendo plantados lá” (Franchi et al., 1998: 107). Assim, mesmo que, no
corpus pesquisado, tenha havido ocorrências de concordância, eles afirmam que foi uma
porcentagem ínfima: 5% de concordância contra 95% de não-concordância. A segunda
razão é que esses 5% são “resultado de superurbanismo na fala pública e em programas
de TV” (Franchi et al., 1998: 124). Logo, por se configurarem como a minoria de
ocorrências e como “superurbanismo”, esses 5% não são levados em conta, ao
postularem que os verbos ter e haver, nestes casos, são impessoais.
Ao nosso ver, diferentemente, estas ocorrências, mesmo sendo minoria, não
podem ser desconsideradas. Primeiro, porque uma análise de corpus é um recorte, e o
que parece ser minoria em um corpus pode não ser em outro. Segundo, porque, de
acordo com os próprios autores,
A desproporção dos contextos em que a concordância verbo-argumento
interno pode ser observada (...) decorre de predominar, largamente no corpus,
a forma do presente do indicativo que, no caso do verbo ter, não oferece
condições de avaliação de concordância, por não se distinguir, na terceira
pessoa, o plural do singular (Franchi et al 1998: 124).
Sendo assim, parece-nos incoerente estabelecer um critério de distinção que não
leva em conta ocorrências registradas na língua, mesmo que se apresentem em
porcentagem reduzida. Não é coerente também rotular ocorrências como “superubanas”
ou com qualquer outra caracterização que possa parecer pejorativa, pois, se assim nos
posicionarmos, incorremos no risco de criar paliativos que excluam determinadas
ocorrências justamente porque elas não se encaixam naquilo que estamos propondo.
Por conseguinte, tendo em vista as observações feitas em relação à abordagem
tradicional e à abordagem gerativa, não consideramos que os verbos “haver” e “ter”
sejam impessoais, em sentenças como “Havia uns eucaliptos” ou “Tinha uns
eucaliptos”, devido à presença de um morfema, indicando a pessoa gramatical. Além
disso, há, sim, casos em que a concordância se estabelece. Vejamos:
(2) “Houveram problemas com esta página, (…) e, sendo assim, perderam-se todos os
números de visitantes que já havia (…)”. (http://cineitalia.vilabol.uol.com.br)
(3) “Quando teve a corrida da categoria em Interlagos em 1999, tinham 40 mil pessoas
(…)”.
(http://autoracing.cidadeinternet.com.br/entrevistas/fogaca/djalma_fogaca_01.php)
Além disso, partimos da hipótese segundo a qual a relação de articulação (Dias,
2003) entre sujeito e verbo é manifesta por meio da flexão. Sendo assim, a concordância
não é necessária, dado que o que rege a flexão verbal não é um item lexical, mas o
2
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 134 / 142
próprio lugar de sujeito (Dias, 2002). Desse modo, a concordância é apenas uma das
formas de manifestação da articulação existente sujeito e verbo. Então, mesmo que não
haja concordância em número, como em “Existiu escravos no século XIX”, acreditamos
que “escravos” pode ser ocupante do lugar de sujeito.
Este posicionamento também pode ser defendido com base no fato de que,
mesmo verbos como “beber” e “matar”, que não favorecem a convergência, podem
apresentar oscilação na concordância, em variantes coloquiais. De acordo com Pontes
(1987: 26-7), no português coloquial, a flexão do verbo, em número,
está desaparecendo, chegando, em alguns casos, à completa ausência de
flexão (...) amava tanto pode se referir à 1ª pessoa do singular (eu amava),
como à 2ª p.s. (você amava), como à 1ª do plural (a gente amava) e até,
freqüentemente, às 2ª e 3ª do plural (vocês, eles amava) (...).
Assim, afirmar que “escravos”, em sentenças como “Existiu escravos no século
XIX” ou “Houve escravos no século XIX” não pode ser ocupante do lugar de sujeito,
porque não concorda com o verbo, não é um argumento suficientemente plausível.
Por sua vez, em relação a II, os próprios autores mencionam que Pontes (apud
Franchi et al., 1998: 124) já havia mostrado que é possível a ocorrência tanto de
anteposição, quanto de posposição. Esta possibilidade pode ser vista nos seguintes
exemplos:
(4) “É, indústrias químicas tinha bastante lá” (Franchi et al., 1998: 124);
(5) “A crise sempre houve, a crise sempre apareceu” (Franchi et al., 1998: 124).
Contudo, também por representarem minoria (0.40% do corpus analisado), na
opinião dos autores, essas ocorrências podem ser desconsideradas no estabelecimento
do critério da posição do “SN-argumento”. Uma vez mais, discordamos deste
posicionamento que desconsidera a minoria, porque uma análise baseada em um corpus
possui suas limitações.
Então, a partir dos seguintes exemplos, que levam em conta a mobilidade no
posicionamento do SN,
(6)a)Problemas econômicos sempre houveram;
b)Problemas econômicos sempre houve;
(7)a)Sempre houveram problemas econômicos;
b)Sempre houve problemas econômicos,
notamos que, tanto em (6), quanto em (7), é possível haver concordância ou não,
independentemente da posição do SN. Notamos, também, que, embora “Problemas
econômicos” esteja no plural, em (6)b) e em (7)b), não houve concordância em número
com a forma verbal “houve”. Esta característica, além do fato de “haver” projetar um
lugar de objeto, pode levar “problemas econômicos” a ser interpretado como ocupante
do lugar de objeto. Diferentemente, em (6)a) e em (7)a), o lugar de sujeito é atualizado
pela ocupação por “problemas econômicos”, e o verbo é flexionado na 3ª pessoa do
plural, estabelecendo-se concordância. Podemos concluir, portanto, que, em (6)a) e em
(7)a), “problemas econômicos” traz características mais salientes de ocupante do lugar
de sujeito, tendo em vista que a concordância é uma das formas de manifestação da
relação de articulação existente entre sujeito e verbo. Diferentemente, em (6)b) e em
(7)b), o SN “problemas econômicos” pode ser compreendido como ocupante do lugar
de objeto projetado por “haver”. Contudo, sentenças como (8), a seguir, em que
3
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 135 / 142
“problema econômico” está no singular,
8) a)Problema econômico sempre houve;
b)Sempre houve problema econômico,
mostram-nos que “problema econômico” pode ser compreendido tanto como acionador
da flexão verbal em 3ª pessoa do singular, quanto como ocupante do lugar de objeto
direto. Assim sendo, não podemos considerar que a concordância seja um traço que
negue a presença do lugar de objeto e que determine o sujeito nas senteças (6)a) e (7)a)
porque, embora haja concordância em (8), não conseguimos determinar se “problema
econômico” é ocupante do lugar de sujeito ou do lugar de objeto. Por isso, em (6)a) e
em (7)a, não podemos afirmar que a concordância seja realmente capaz de promover
uma saliência na identificação do sujeito, tendo em vista que, em (8), ela não é capaz.
Contudo, devido à flexão (e, às vezes, à concordância), não podemos negar que
“problemas econômicos” e “problema econômico” sejam ocupantes do lugar de sujeito,
tendo em vista que a flexão é um marcador da articulação entre o lugar de sujeito e o
verbo.
Toda esta problemática apresentada, portanto, leva-nos a pensar que, ao invés de
determinar se o SN é sujeito ou objeto, uma análise da convergência, em (6), (7) e (8),
dos lugares de sujeito e objeto, nos SNs “problemas econômicos” e “problema
econômico”, pode mostrar-se profícua.
2-Análise da convergência a partir de um enfoque enunciativo
Nesta seção, faremos uma análise panorâmica dos conceitos com os quais
trabalhamos, tais como, sujeito, objeto direto e modo de enunciação. Além disso,
mostaremos como concebemos a convergência dos lugares sintáticos de sujeito e objeto
a partir de uma dimensão orgânica e enunciativa.
Nossa concepção de lugar sintático não está vinculada à posição dos
constituintes na estrutura linear de uma sentença, pois nem sempre ela é determinante na
distinção entre sujeito e objeto. Além disso, nossa concepção de lugar não está
vinculada à posição hierárquica dos constituintes como é a perspectiva gerativista,
porque, na estrutura arbórea, não se aceita a concomitância, isto é, a possibilidade de
convergência de duas categorias sintáticas em um mesmo sintagma. Só haveria a
possibilidade de um item lexical ocupar uma única posição na sentença, porque ela
representa uma função sintática. Por isso, em uma concepção de posições, como a
gerativa, um item se move para checar traços, quando a posição onde ele nasce não
oferece os traços de que necessita.
Consideramos, diferentemente, que o lugar sintático de sujeito se constitui a
partir de propriedades enunciativas, tendo em vista que é projetado pela sedimentação
de diferentes atualizações desses lugares em enunciações anteriores (Dias, 2002). O
lugar de objeto, por sua vez, é projetado pelo verbo e pode ser atualizado por predicação
centrada (sem preenchimento), por predicação dirigida paramétrica (com
preenchimento), por predicação dirigida pontual (com preechimento) e por elipse (sem
preenchimento) (Dias, 2005b). Nos dois primeiros casos, há produção de um domínio
amplo de referência1. Diferentemente, nos dois últimos casos, há produção de um
domínio restrito de referência.
Por isso, o verbo guarda uma memória de ocorrências do lugar de sujeito e do
lugar de objeto, sendo esta memória determinada pelo percurso enunciativo do verbo.
4
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 136 / 142
Ressaltamos, neste ponto, que a determinação de um caráter argumental específico para
cada verbo e, ainda, para cada acepção semântica de um verbo parece-nos uma
alternativa pouco generalizadora. Assim sendo, por mais extensa que seja a lista de
acepções do verbo, e, por conseguinte, por mais extensas que sejam as listas de
possibilidades de grades argumentais, esta lista não será completa o suficiente para
abarcar as possibilidades de ocorrência deste verbo. Esta lista, portanto, não será capaz
de abarcar as sentenças que são ou que podem ser produzidas.
Assim sendo, concebemos que todos os verbos guardam uma memória dos
lugares de sujeito e de objeto. Neste ponto, o que ganha um caráter de especificidade
maior são as condições de ocupação, tendo em vista que estas condições são
determinadas por questões de ordem enunciativa, como o modo de enunciação.
Portanto, uma observação como “o verbo existencial ter (...) guarda a memória
da estrutura sintática histórica de que deriva: uma posição de sujeito se manifesta”,
embora tenha sido afirmada “metaforicamente” por Franchi et al. (1998: 128), é crucial
para a perspectiva na qual nos posicionamos, mas sofre alguns deslocamentos. O
primeiro se refere à noção de posição, conforme discutimos anteriormente.
O segundo deslocamento se refere ao modo como a palavra “memória” é
concebida. Para nós, esta memória (Guimarães, 2002) é constituída a partir das
enunciações anteriores do verbo, e, portanto, é uma memória que não se relaciona a uma
capacidade inata humana. Trata-se de um saber constituído na relação entre os
diferentes significados e as diferentes ocorrências sintáticas detectadas no percurso
enunciativo dos verbos. Por isso, concordamos com Pêcheux (1998: 28) quando afirma:
“toda construção sintática é capaz de deixar aparecer uma outra, no momento em que
uma palavra desliza sobre outra palavra (...)”. Esse deslizamento ocorre na relação que
se dá entre a atualização dos lugares sintáticos em um enunciado presentemente
produzido e entre a história de atualização dos lugares sintáticos em enunciados
anteriormente produzidos. Em outras palavras, esse deslizamento se dá entre a
ocorrência atual e as ocorrências históricas (percurso enunciativo) do verbo.
Sendo assim, objetivamos mostrar um contínuo em que a convergência ocorreria
com mais dificuldade na presença de alguns verbos e ocorreria com mais facilidade na
presença de outros. No intermédio entre esses verbos, haveria aqueles que teriam a
possibilidade de ocorrer tanto em sentenças com convergência, quanto em sentenças
sem convergência.
Vejamos a seguinte proposta:
2.1 - Conjunto A: verbos que não parecem atuar em ocorrências com convergência
(9) a)Plantou vento, colheu tempestade.
b)Vento plantou, tempestade colheu.
(10)a)Beberam vinhos de alta qualidade.
b)Vinhos de alta qualidade beberam.
O que podemos notar, neste conjunto A de verbos, é que a mudança de posição
do sintagma nominal pode vir, em um primeiro caso, não só a alterar o “conteúdo
proposicional” (Dias, 2006) da sentença, como, em um segundo caso, a construir
sentenças pouco aceitáveis na língua.
O primeiro caso pode ser ilustrado por (9)b), que, tendo os SNs antepostos,
apresentaria um conteúdo proposicional diferente de (9)a) e semelhante a “Pai plantou,
5
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 137 / 142
filho colheu” ou a uma paráfrase possível: Valério plantou, PT colheu. Assim, enquanto,
em (9)a), há uma demanda de saturação de referência do lugar de sujeito, em (9)b), há
uma demanda de saturação de referência do lugar de objeto. Por sua vez, o segundo
caso pode ser ilustrado por (10)b), que, ao ter o SN “vinhos de alta qualidade”
anteposto, torna-se uma sentença pouco aceitável na língua.
Portanto, os verbos “colher”, “plantar” e “beber” parecem ser verbos que não
favorecem a convergência, pois não admitem a mudança de posição do SN, sem que
haja alteração do conteúdo proposicional da sentença.
2.2 - Conjunto B: verbos que parecem atuar em ocorrências com convergência e
em ocorrências sem convergência
(11)a)Eu tenho um relógio;
b)“Bastante indústria química tinha lá”;
c)Quem mais tem, mais quer.
(12)a)Eu cheguei a mesa para o canto;
b)Chegaram alguns hóspedes;
c)Fernado de Noronha. Quem chega não quer sair;
d)Vozes de burro não chegam aos céus2.
Em observação aos verbos do grupo B, notamos que o que possibilita as ocorrências
b), de (11) e (12), com convergência, é o fato de que a mudança de posição do sintagma
nominal não altera o conteúdo proposicional da sentença: “Tinha bastante indústria
química lá” e “Alguns hóspedes chegaram”. Diferentemente, nas ocorrências c), de (11)
e (12), a convergência não ocorre porque, ao tentarmos mudar o SN para uma posição
posposta ao verbo, o conteúdo proposicional da sentença será alterado. Por exemplo, se
pospôssemos “Quem”, em (11)c), produziríamos algo como “Chega quem não quer
sair”. Nesta sentença, “quem” seria ocupante do lugar de sujeito da locução “querer
sair” e não mais do verbo “chegar”, o que causaria uma alteração no significado da
sentença.
Algo mais a ser observado quanto aos verbos deste grupo é que, tendo em vista
as sentenças a), de (11) e (12), percebemos que estes verbos guardam, em sua memória
de ocorrências, percursos enunciativos com atualização do lugar do sujeito e do lugar de
objeto separadamente. Isto prova que estes verbos projetam o lugar de objeto e se
configuram com um lugar sintático de sujeito sedimentado por esta história de percursos
enunciativos.
Ainda, a partir da observação dos verbos do grupo B, podemos dizer que,
quando o fenômeno da convergência não ocorre, a ancoragem dos lugares sintáticos de
sujeito e objeto se dá em campos distintos de referência. Então, em (12)a), percebemos
que a ancoragem do lugar de sujeito se dá em um campo de referência específico
designado por “Eu”. Por sua vez, a ancoragem do lugar de objeto se dá em um outro
campo de referência específico designado por “a mesa”. Portanto, a ancoragem dos
lugares de sujeito e objeto se dá em campos de referência distintos, e a sentença inserese em um modo de enunciação especificador. Nesse sentido, “modo de enunciação” é a
constituição do campo de referência dos lugares de sujeito e objeto. Este campo de
referência, por sua vez, pode se configurar de modo restrito (especificador), como
vimos, e de modo amplo (generalizador), como é o caso das sentenças c), de (11) e (12).
6
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 138 / 142
Assim, as sentenças c), de (11) e (12), diferentemente das sentenças a), de (11) e
(12), inserem-se em um modo de enunciação generalizador, embora a ancoragem dos
lugares de sujeito e objeto se dê também em campos de referência distintos, o que
caracteriza uma sentença sem convergência. Além disso, tendo em vista um modo de
enunciação gereralizador, o lugar sintático de objeto é atualizado de modo a favorecer a
produção de um amplo domínio de referência. Portanto, a ancoragem se dá em um
amplo domínio de referentes possíveis de ocupar o lugar, mas este domínio de
referência sofre recortes feitos no acontecimento da enunciação. De acordo com Dias
(2005a: 119),
na medida em que se estende o domínio de referência na ocupação, a relação
entre o campo de objetos passíveis de ocupar o lugar e o campo de
referências passíveis de exclusão do lugar passa a ser fortemente controlada
por fatores (...) que atuam na enunciação.
Por exemplo, a ancoragem do lugar de objeto em uma sentença como “Quem mais tem,
mais quer” pode sofrer o recorte de um domínio do senso comum. Neste caso, o campo
de referência do lugar de objeto poderá ser constituído por elementos como “dinheiro”,
“propriedades”, “bens”, “posse”, etc. Diferentemente, em um domínio de referência
reliogioso, este campo amplo de referência poderá ser recortado por uma memória
(Guimarães, 2002) de elementos, tais como “amor”, “paz”, “Deus” e assim por diante.
Quanto aos lugares de sujeito, tendo em vista a análise feita em Dias (2002), as
ocorrências c), de (11) a (12), são do tipo perfil porque o enunciado insere-se em um
modo de enunciação generalizador que produz efeito de verdade universal3. O lugar de
sujeito, nas setenças c, de (11) a (12), ancora-se, então, em um domínio amplo de
referência designado por “quem”.
Ao contrário do que vimos anteriormente, nas sentenças b), de (11) e (12), a
ancoragem tanto do lugar de sujeito quanto de objeto se dá em um único campo de
referência designado por “bastante indústria química”, em (11)b, e por “alguns
hóspedes”, em (12)b). Neste caso, o modo de enunciação é especificador, tendo em
vista que o campo de referência é delimitado e restringido pelas designações “bastante
indústria química” e “alguns hóspedes”.
Contudo, em um outro caso de convergência, pode haver ancoragem em um
amplo domínio de referência. Na sentença (12)d)“Vozes de burro não chegam ao céu”,
os lugares de sujeito e objeto são ocupados por um elemento lingüístico “Vozes de
burro” que funciona como parâmertro de ancoragem em um amplo domínio de
elementos possíveis de figurar nesses lugares. Por exemplo, “Vozes de burro” pode
sofrer um recorte, em um domínio enunciativo do senso comum, e ser compreendido
como “Reclamações de pobres”. Neste caso, teríamos algo do tipo: “Reclamações de
pobres não chegam ao céu (à câmara dos deputados)”. Também, pode sofrer um recorte
do domínio político, no qual entenderíamos “Vozes de burro” como “Reforma agrária”.
Neste caso, produziríamos algo como “Reforma agrária não chega ao céu (Brasil)”.
Portanto, a ancoragem referencial do SN “Vozes de burro” só é dada a partir de
um domínio de referência amplo constituído por elementos determinados no
acontecimento da enunciação (Guimarães, 2002). Além disso, a ancoragem dos lugares
de sujeito e objeto é condensada em um mesmo domínio de referência, que, neste caso,
é amplo.
A conclusão que podemos tirar desta análise é que as ocorrências de
convergência - e, por conseguinte, de condensação da referência dos dois lugares
sintáticos, em um só campo de ancoragem - permitem a ocorrência tanto de um modo de
7
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 139 / 142
enunciação generalizador, quanto de um modo de enunciação especificador. Sendo
assim, um modo de enunciação especificador determinará a ocupação, na convergência,
com um item lexical que se ancore em um domínio de referência restrito.
Diferentemente, um modo de enunciação generalizador determinará a ocupação com um
item lexical que se ancore em um domínio amplo de referência.
Tudo isto indica, portanto, que o fenômeno da convergência não está
relacionado apenas a uma questão de ordem orgânica (mobilidade na posição,
flexibilidade na concordância e verbo na 3ª pessoa), mas a questões de ordem
enunciativa, tendo em vista que a ocorrência de convergência é determinada pela
constituição de um campo de referência dado no acontecimento da enunciação
(Guimarães, 2002). Além disso, o próprio critério da possibilidade de posposição e
anteposição está relacionado à enunciação, tendo em vista que a alteração do conteúdo
proposicional da sentença produz um enunciado impertinente para as condições de
produção dadas no acontecimento.
2.3 - Conjunto C: verbos que parecem atuar, com mais regularidade, em
ocorrências com convergência.
(13) Houve uma manifestação.
(14) Ocorreu uma reunião.
(15) Fugiu um ladrão.
A partir dessas sentenças, observamos que os verbos do grupo C não favorecem
ocorrências com atualização dos lugares de sujeito e de objeto separadamente, por
exemplo, uma sentença como “A fábrica ocorreu uma reunião” não seria muito bem
aceita por falantes de português. Contudo, são verbos que projetam o lugar sintático de
objeto, tendo em vista uma memória de ocorrência em enunciações anteriores nas quais
houve atualização tanto do lugar sintático de sujeito quanto do lugar de objeto
separadamente. Por exemplo:
a)“logo os Noronhas houveram notícia da sua prisão” (Houaiss, 2001);
b)“ele sentia que todos o fugiam” (Houaiss, 2001).
Estas sentenças, embora tenham ocorrência restrita ou quase nula atualmente,
pelo menos, no português do Brasil, permitem perceber que “haver” e “fugir” já
ocorreram, em algum momento enunciativo, com os lugares de sujeito e objeto
ocupados separadamente. Isto é um indício de que esses verbos guardam a memória de
ocorrência desses lugares.
Porém, um verbo como “ocorrer” não parece ter apresentado ocorrências com os
dois lugares atualizados separadamente. Neste caso, levantamos a hipótese segundo a
qual ele se insere nas possibilidades que a língua oferece de todos os verbos projetarem
o lugar de objeto. Logo, é possível a análise de “uma reunião”, em (14), não apenas
como sujeito, mas também como objeto.
Assim sendo, os verbos do grupo C são aqueles que dificilmente ocorrem ou
ocorreram com os lugares de sujeito e objeto atualizados separadamente, isto é, parte
expressiva de suas ocorrências apresenta-se como mono-argumental. Por isso, esses
verbos favorecem, com mais regularidade, a convergência.
3 - Considerações finais
Avaliamos os critérios da posição do SN e da concordância verbal em sentenças
8
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 140 / 142
com verbos como “haver”, “ter” e “ocorrer” e concluímos que estes critérios não são
suficientes para determinarmos um único status sintático para este SN. Assim sendo,
levantamos a hipótese segundo a qual este SN possui um status sintático duplo, pois há
uma convergência, neste SN, tanto de traços de sujeito quanto de objeto. Além disso,
observamos que o fenômeno da convergência entre os lugares de sujeito e objeto não
está relacionado apenas a questões de ordem estrutural, mas também a questões de
ordem enunciativa. Nessa perspectiva, a convergência dos lugares de sujeito e objeto
pode ser identificada quando:
a. Há possibilidade de posposição e anteposição do SN ao verbo, sem alteração do
conteúdo proposicional da sentença;
b. Há possibilidade de concordância ou não do verbo com o SN, sem alteração do
conteúdo proposicional da sentença;
c. O verbo é flexionado na 3ª pessoa;
d. O verbo apresenta-se como mono-argumental, havendo um único SN para
ocupar tanto o lugar de sujeito quanto o lugar de objeto;
e. A ancoragem dos lugares de sujeito e objeto se dá, de modo condensado, em um
único campo de referência, que pode ser amplo ou restrito.
Assim sendo, verificamos que há um grupo de verbos que não favorecem a
convergência, o grupo A. Os verbos deste grupo não possibilitam a mudança na posição
do SN sem que haja alteração no significado. Além dos verbos do grupo A, há os verbos
do grupo B, que podem tanto ocorrer em sentenças com convergência quanto em
sentenças com atualização dos lugares de sujeito e objeto separadamente. Neste caso,
trabalhamos com a hipótese segundo a qual a condensação das possibilidades de
referência do lugar de sujeito e do lugar de objeto em um único campo de referência é
determinante no favorecimento de sentenças com convergência. Por fim, os verbos do
grupo C são aqueles que ocorrem, com mais regularidade, em sentenças com
convergência, pois se apresentam como mono-argumentais na maioria ou na totalidade
de seus percursos enunciativos.
Ressaltamos, por fim, que nos propomos a discutir e a desenvolver aspectos
relacionados ao impasse existente na caracterização sintática do SN, nos casos
exemplificados. Assim sendo, sugerimos uma abordagem dessa questão levando em
consideração a possibilidade de convergência de duas categorias sintáticas em um único
constituinte, tendo como base a abordagem enunciativa. Esta análise, com certeza, não
tem um caráter definitivo, mas não deixa de ser um ponto a se considerar no estudo de
tais ocorrências.
Notas
1. “Partimos da hipótese segundo a qual a constituição da referência não é algo da
relação entre a linguagem e o real, nem é algo relativo ao gesto singular do
sujeito na locução. Na nossa perspectiva, a referência se constitui na relação
entre o acontecimento e o domínio histórico da constituição desse
acontecimento” (Dias, 2005a: 118). Assim sendo, o referente se constrói a partir
do entrecruzamento dos dizeres que o designam (Guimarães, 1995).
2. Sentença proverbial selecionada em arquivo de 506 páginas (documento de
Word), constituído somente de provérbios. Este arquivo foi organizado pelo
Prof. Dr. Luiz Francisco Dias (UFMG), em 2005.
9
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 141 / 142
3. O enunciado é de caráter universalizante, porque este “quem” permite a inserção
de qualquer referente em seu lugar, desde que este referente se encaixe na
proposição enunciada. Esse tipo de sujeito é representado, dentre outros, por
expressões como “aquele que” e “todo aquele que”.
Referências bibliográficas
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do Português Contemporâneo. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
DIAS, L. F. A sintaxe em novas dimensões. In: TOLDO, C. S. (Org). Questões de
Lingüística. Passo Fundo: UPF Editora, 2003. p. 57-69.
_____. Fundamentos do sujeito gramatical: uma perspectiva da enunciação. In:
ZANDWAIS, A. (Org). Ensaios: relações entre pragmática e enunciação. Porto
Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 47-63.
_____. Problemas e desafios na constituição do campo de estudos da transitividade
verbal. In: SARAIVA, M. E.; MARINHO, J. H. (Orgs.). Estudos da língua em uso:
relações inter e intra-sentenciais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
2005a. p. 101-122.
_____. Textualidade e gramática: relações em construção. In: SCHONS, C. R.;
RÖSING, T. M. (Orgs.). Questões de escrita. Passo Fundo: UFP editora, 2005b. p.
30-41.
_____. DIAS, L. F. Enonciation et grammaire: le champ de production de grammaires
dans le Brésil contemporain. In: GUIMARÃES, E. (Org.). Un dialoque atlantique.
Paris: ENS Editions, 2006. No prelo.
FRANCHI, C.; NEGRÃO, E.; VIOTTI, E. Sobre a gramática das construções
existenciais com TER/HAVER. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 14, n. especial, p. 105131, 1998.
GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação.
São Paulo: Pontes, 2002. p. 11-31.
_____. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. São
Paulo: Pontes, 1995.
HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
http://autoracing.cidadeinternet.com.br/entrevistas/fogaca/djalma_fogaca_01.php.
Acesso em: 14 set. 2005.
http://cineitalia.vilabol.uol.com.br/. Acesso em: 14 set. 2005.
PÊCHEUX, M. Sobre a (des-)construção das teorias lingüísticas. Línguas e
Instrumentos Lingüísticos, Campinas, n. 2, p. 7-31, jul./dez. 1998.
PONTES, E. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987.
10
Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 142 / 142
Download