SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE COORDENAÇÃO DOS INSTITUTOS DE PESQUISA CENTRO DE REFERÊNCIA E TREINAMENTO DST/AIDS IMPACTO PSICOSSOCIAL DA LIPODISTROFIA Valvina Madeira Adão Psicóloga Clínica do Núcleo de Ambulatório Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids - SP Joselita M. M. Caraciolo Diretora do Núcleo de Ambulatório Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids - SP Maio de 2002 Este texto é baseado na observação do trabalho de grupo realizado no Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS - São Paulo, desde março de 2001, com pacientes da Instituição portadores de lipodistrofia. Após vinte anos de epidemia, o estigma criado em torno dos portadores de HIV/Aids ainda permanece presente na sociedade. Em parte, este comportamento deve-se ao fato da doença ser transmissível e incurável, característica esta que desperta na população diversos medos, em especial, o da possibilidade da morte. A dificuldade de grande parte das pessoas frente a questões suscitadas pela Aids, leva-as a reagirem das mais diversas formas. Por insegurança e por receio pelo que estas reações possam representar na sua vida, os portadores de HIV/Aids tendem a ocultar a condição de soropositivo e a temer qualquer situação que possa expô-la, e desta forma procuram intensamente se proteger destas situações, e evitar a discriminação e exclusão social. No início da epidemia, aparentar estar com Aids era tão temido quanto praticamente inevitável. Após a introdução de terapia potente, a Aids deixou de ser uma sentença de morte e os portadores do HIV/Aids passaram a respirar aliviados e buscar o tratamento para evitar a "cara da Aids", não adoecer e retornar a vida sem sentirem-se ameaçados. Entretanto para atingir este êxito, é imperativo o uso correto e regular dos antiretrovirais. A adesão satisfatória é entendida como uma conquista e um prêmio almejado por todos, tanto pacientes quanto profissionais, 1 desde o início do tratamento. Para se alcançar esta adesão é necessário coragem para enfrentar medos e efeitos colaterais, além das outras dificuldades inerentes ao processo de tomar os antivirais. A proposta de estabilidade clínica e sobretudo a proteção do anonimato, fazem valer a pena os enjôos diários, as diarréias, o jejum, a rigidez nos horários para dormir, acordar, alimentar-se, a ginástica muitas vezes necessária para tomar o medicamento escondido, etc. Mais que nunca é factível retomar projetos e convívio social. O uso adequado dos medicamentos possibilita afastar a imagem e a própria doença, tornando válido a luta para adaptar-se ao tratamento. Mesmo sem promessa de cura , é viável a melhoria da qualidade com aumento da sobrevida. A 'cara da Aids “não é mais realidade e sim lembrança”. O que parece ser conquista e prêmio, para muitos tem sido tortura e castigo, principalmente para aqueles em que o investimento na adesão é motivado pelo pânico de aparentar estar com Aids. Em sessões do grupo de adesão do CRT DST Aids –SP, um determinado paciente comentava "tomo o remédio para não ficar com a” cara da Aids “. Tempos depois o tema do grupo foi” tomei o remédio para não ter a cara da Aids e agora estou com a cara dela ““. Descobrir que os mesmos medicamentos que melhoram a perspectiva de vida provocam, a médio e longo prazo, uma disfunção que leva o paciente a desenvolver, entre outros sintomas, a temível "cara da Aids" é traumático e produz grande impacto negativo. Neste contexto, a lipodistrofia concretiza ou antecipa tudo o que se está arduamente tentando evitar. Interfere em todas as esferas da vida (psíquica, pessoal, afetiva, sexual, social, profissional), por trazer questões estéticas estigmatizantes, causando frustração e abalando não apenas a auto confiança, como também a confiança na vida, e no próprio tratamento. A esperança cede lugar para o desânimo, que marca o desaparecimento da gratificação e confiança depositadas no tratamento. O indivíduo percebe que “a cara da Aids”, ironicamente foi algo que ele ganhou por tornar-se aderente. Isto provoca uma série de questionamentos e conflitos pessoais, e a qualidade de vida esperada fica limitada aos resultados de exames laboratoriais, que não preenchem os sentimentos de desamparo, tristeza e desconfiança. Quando a lipodistrofia é muito acentuada ouvimos o paciente dizer que está feio, desfigurado, parecendo um monstrinho, etc. Estes sentimentos indicam o quanto é complexo ser portador de lipodistrofia numa sociedade onde o conceito de saúde e beleza está associado a ter corpo perfeito. Ser portador de lipodistrofia é ser objeto de estigma e preconceito. Assim, quando ela ocorre, o encanto vai dando lugar ao desencanto pelo tratamento e pela vida conquistada por ele. Surgem sentimentos de fracasso, frustração, vergonha e raiva, que ameaçam a qualidade de vida conquistada, agravam e abalam, também, a relação médico paciente e do paciente com a Instituição. Portanto é fácil sentir-se prejudicado. A lipodistrofia leva o portador do HIV/Aids a se defrontar novamente com a possibilidade de morte social, e a enlutar-se antecipadamente com medo do preconceito e discriminação, causando assim, alteração no sentido da vida e da própria existência. Freqüentemente o indivíduo acaba por afastar-se do convívio social para evitar situações semelhantes às já vivenciadas na ocasião do diagnóstico. Na realidade, o estranhamento começa pelo paciente em relação a si mesmo. Dependendo do grau de comprometimento da lipodistrofia, seu portador vive um conflito psíquico diante da nova imagem corporal: ele não se reconhece. A imagem, a consciência corporal e a identidade elaborada desde os primeiros anos de vida, de repente, mudam. A nova imagem que surge não 2 lhe é familiar. O novo corpo não é reconhecido, nem pelo paciente ao se olhar no espelho, nem pelas pessoas de seu convívio social. Esta rejeição comumente traz sofrimento e grande tristeza, e especialmente nas mulheres, tradicionais vítimas da ditadura da beleza, o transtorno ocasionado pela lipodistrofia é bem mais devastador. Além de verem seu corpo masculinizar-se, com pernas e braços finos e veias proeminentes, são freqüentemente questionadas sobre gravidez devido ao acúmulo de gordura no abdome e seios. Ao se dar conta da transformação física e com a visão de si próprio estereotipada, a maioria tende apresentar transtornos psicológicos, que podem ter influência direta e indireta no quadro orgânico. A implicação psíquica associada à perda da identidade corporal ocasiona stress constante, tensão, isolamento, medo, angústia, ansiedade, insegurança, depressão e sentimento de irreversibilidade do quadro. A situação é delicada e demanda cuidados para que o paciente consiga continuar lutando pela manutenção de sua saúde como um todo, assim como pela adesão ao tratamento. Minimizar os danos do impacto da lipodistrofia é essencial. Por tudo que representa, e pelo grande desencorajamento que provoca, a lipodistrofia certamente é o novo desafio que se apresenta para todos. Enfrentá-la exige trabalho em equipe. Por alterar corpo e mente, comprometer e modificar a auto imagem e auto estima interferindo diretamente na adesão, independente da estratégia adotada, a abordagem do paciente, mais que nunca deve ser interdisciplinar, integrando os diversos saberes necessários para a condução do caso (clínico, psicólogo, dematologista, nutrição, fisioterapeuta, educador físico, etc). Deve-se estar atento para iniciar as intervenções o mais precocemente possível. O ideal é atuar de modo preventivo, antes da instalação da lipodistrofia e suas conseqüências. As estratégias vão para além de encaminhamentos para procedimentos corretivos em face (abordados em outro capítulo), incorporando o desenvolvimento de atividade física regular e a abordagem da subjetividade do indivíduo. O objetivo é buscar harmonia entre a aparência física e estado emocional do indivíduo, trabalhando de forma combinada corpo e mente, viabilizando diminuição das tensões, desbloqueio e equilíbrio. É vital trabalhar as condições físicas e emocionais apresentadas, e para isto, abordar o tema quando perceber o processo, informar e orientar sobre a lipodistrofia, encaminhar para realização de atividade física, são atitudes importantes tanto para prevenção quanto para o tratamento. A prática regular de exercícios personalizados, de resistência aliada à aeróbica (condicionamento e modelagem física), exercícios de expressão corporal e facial (bioenergética e psicomotricidade) e o trabalho em grupo têm se apresentado como possibilidade de reconstrução corporal, psíquica e social. O trabalho em grupo é oportuno pois proporciona ajuda mútua, troca de experiências relacionadas a cuidados pessoais, saúde, filhos, sexualidade, orientações médica, entre outros temas. O apoio do grupo propicia melhora significativa da qualidade de vida, facilita a reintegração, diminui sintomas como insônia e desânimo, além de facilitar o resgate da vida afetiva, sexual e do desejo de viver. 3