Biossociabilidade e esporte: o discurso fotográfico das corridas de

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)
Biossociabilidade e esporte: o discurso fotográfico das corridas de
obstáculos1
Renato Pezzotti 2
Mestrando do PPGCOM –ESPM/SP
Resumo
Este artigo tem como tema o discurso de biossociabilidade presente nas corridas de obstáculos.
Nosso objetivo principal é analisar comparativamente, a partir dos processos de conotação
descritos por Roland Barthes, fotografias capturadas por veículos de imprensa em etapas da
Bravus Race, modalidade de corrida de obstáculos realizada no Brasil desde 2014, com imagens
icônicas das Primeira e Segunda Guerra Mundial. Como se materializam os discursos
biopolíticos nessas imagens é a questão abordada no artigo. Para tanto, partimos do conceito
de culto ao corpo de Ana Lúcia Castro, da cultura somática, de Jurandir Costa e buscamos
aporte teórico nas práticas de ascese corporal abordadas por Francisco Ortega.
Palavras-chave: Biossociabilidade; Biopolítica; Culto ao Corpo; Esporte; Corridas de
Obstáculos
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Discursos da Diferença e Biopolíticas do
Consumo, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação – Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro
de 2016.
2
Mestrando em Comunicação e Práticas do Consumo do PPGCOM ESPM-SP, pós-graduado em Master
in Business Communication pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e
bacharel em Comunicação Social e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro
do Grupo de Pesquisa “Comunicação, discursos e biopolíticas do consumo”, da ESPM. Contato:
[email protected].
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Introdução
“Nosso corpo é o exemplo mais destacado do ambíguo”
(William James)
O objetivo do presente artigo é analisar comparativamente as fotografias
capturadas por veículos de imprensa em etapas da Bravus Race, corridas de obstáculos
realizadas no Brasil desde 2014, com imagens icônicas das Primeira e Segunda Guerra
Mundial, a partir dos processos de conotação descritos por Roland Barthes, com o
propósito de entender como se materializam os discursos de biopolítica e de
biossociabilidade nessas imagens.
Para tanto, partimos do conceito de culto ao corpo de Ana Lúcia Castro, da
cultura somática, de Jurandir Costa e buscamos aporte teórico nas práticas de ascese
corporal abordadas por Francisco Ortega.
Sucesso nos Estados Unidos, as corridas de obstáculos inspiradas nos exercícios
de treinamentos do exército americano já fazem parte do calendário de eventos no
Brasil. As provas envolvem músculos do corpo todo, trabalhando diferentes funções de
movimento. E o crescimento recente é algo assustador. Nos Estados Unidos, as corridas
de obstáculos já superam as maratonas.
No Brasil, a prova de corrida de obstáculos mais famosa é a Bravus Race.
Atualmente, conta com dez etapas em nosso país, em cidades como São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Para se ter ideia, uma etapa realizada no Jockey Club
de São Paulo, em abril de 2016, contou com mais de nove mil pessoas inscritas, que
passaram por 18 obstáculos. Para efeito de comparação, uma etapa do “Circuito das
Estações”, uma das provas de corrida de rua mais famosa do Brasil, costuma ter, em
São Paulo, cerca de 10 mil participantes.
A sociedade do corpo
"A luta pela boa forma é uma compulsão
que logo se transforma em vício"
(Zygmunt Bauman)
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A crescente preocupação com a forma física fez nossa sociedade ser identificada
como de “cultura somática” (FREIRE, 2004): uma cultura em que se enfatiza
sobremaneira o caráter performático do corpo.
Na biossociabilidade apresentada por Francisco Ortega, o corpo ocupa o lugar
da sexualidade como fonte potencial de ansiedade. São novas regras que norteiam os
critérios de mérito e reconhecimento, criados a partir de modelos ideais que surgem a
partir do desempenho físico (ORTEGA, 2003).
Na base desse processo está a compreensão do self como um projeto reflexivo.
O autogoverno e a formação de bioidentidades se dão através de toda uma série
de recursos reflexivos e de práticas de bioascese (manuais de autoajuda,
terapias, fitness). A reflexividade é o processo de taxação contínua de
informação e peritagem sobre nós mesmos. Não só o self, mas principalmente
o corpo, aparece marcado pela reflexividade. A dieta e o fitness seriam dois
exemplos básicos desse processo de reflexividade corporal. Os alimentos que
consumimos implicam uma seleção reflexiva, refletem um estilo de vida, um
“hábito” (no sentido bourdieuano de marca de distinção), um critério da
biossociabilidade. (ORTEGA, 2003, p. 64).
Para Ana Lúcia Castro (2003), o culto ao corpo é compreendido como uma
relação dos sujeitos com os seus corpos que tem, como preocupação básica, o seu
modelamento e envolve “não só a prática de atividade física, mas também dietas,
cirurgias plásticas, uso de produtos cosméticos e tudo o mais que responda à
preocupação em se ter um corpo bonito e/ou saudável” (CASTRO, 2003 p. 12).
Segundo dados do Global Report 2015, pesquisa realizada pelo IHRSA
(International Health, Racquet & Sportsclub Association), o Brasil é o segundo país
com maior número de academias por habitante no planeta. De acordo com o
levantamento, o país possuía, em 2014, cerca de 32 mil academias, com quase oito
milhões de alunos3.
O indivíduo somático trocou a relação com o outro pelo corpo – que se tornou
parceiro privilegiado, o lugar do discurso social (ORTEGA, 2003). “Encontramos em
HAYDÉE, Lygia. “Brasil é o segundo em número de academias”. Portal Ativo.com. Disponível em
<http://www.ativo.com/fitness/brasil-e-o-segundo-em-numero-de-academias>. Acesso em 07/05/2016.
3
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nós mesmos o parceiro complacente e cúmplice que falta perto de nós” (LE BRETON,
1999 apud ORTEGA, 2003).
Se as práticas ascéticas da Antiguidade visavam a liberdade da vontade, nas
modernas bioasceses, a vontade não está a serviço da liberdade; é uma vontade
ressentida, serva da ciência, da causalidade, da previsão e da necessidade, que
constringe a liberdade de criação e anula a espontaneidade. Ela está submetida
à lógica da fabricação, do homo faber, matriz das bioidentidades. (ORTEGA,
2003, p. 72).
Ainda segundo Ortega (2003), os critérios fisicistas definem a vontade na
bioascese, referindo-se, sempre, à superação dos limites físicos: “perdemos o mundo e
ganhamos o corpo” (ORTEGA, 2003). Jurandir Freire Costa reforça que se torna mais
fácil a definição de “cultura somática” para o atual momento sociocultural, no qual a
realidade corporal, este culto à superação de desafios, é tomada como paradigma de
garantia de bem-estar e de admiração moral (CAMPOS, 2006).
Bêbedos, glutões, fumantes e sedentários – agora chamados irrisoriamente de
‘batatas de sofá’ (couch potatoes) na nova gíria pejorativa da ideologia da
saúde – são vistos como uma classe inferior de pessoas, com certeza inaptos,
independentes, ineficientes e possivelmente sujos de mente e espírito assim
como de corpo. O sentimento de desconforto que o indivíduo saudável sente
em presença do indivíduo doentio parece assustadoramente semelhante à
experiência inquieta do passado do bom povo branco quando estava na
companhia de negros. (EDGLEY & BRISSET, 1990, p. 263; apud
CRAWFORD, 1994, p. 1363, in ORTEGA, 2003, p. 73).
Assim, diversas práticas contemporâneas de esportes, criadas na segunda
década do século XXI, são resignificadas em direção destas novas práticas de saúde. A
chegada recente de modalidades como a corrida de obstáculos – com etapas da Bravus
Race em diversas capitais do país, é um exemplo claro de uma dessas novas práticas de
biossociabilidade.
Os bravus em disparada
“Essa prova requer muito rigor físico. Foi tudo perfeito.
Vale muito a pena ser Bravus!” (José Lopes4)
BORGLIATO, Camila. “Rio recebe etapa Speed da Bravus Race”. Disponível em
<http://www.ativo.com/destaque/etapa-speed-da-bravus-race-chega-no-rio-de-janeiro>. Acesso em
12/05/2016.
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As corridas de obstáculos são inspiradas em exercícios militares e contam com
paradas nas quais o participante precisa passar por barreiras pré-definidas, como
rastejar sobre arame farpado, correr entre labaredas, cruzar barreiras de água com a
ajuda de uma corda ou a pé e escalar paredes, entre outros desafios. As barreiras são
desenvolvidas pensando no tipo de terreno do local e na distância que será percorrida.
O objetivo é sempre o mesmo: promover a superação individual diante dos desafios
propostos.
Nos Estados Unidos, o total de participantes de provas de corridas de obstáculos
já supera o de maratonas. Os números de seguidores nas redes sociais demonstram tal
fato: as maratonas de Nova York e Chicago, por exemplo, que são duas das principais
no calendário global de provas desse tipo, têm cerca de 500 mil fãs na rede social
Facebook. Provas estadunidenses como a Spartan Race e Tought Mudder ultrapassam
os 9 milhões de seguidores na mesma rede – número quase 20 vezes maior, se
comparado aos das maratonas citadas. Em 2015, as provas de corrida de obstáculos em
território brasileiro contaram com cerca de 70 mil participantes.5
A Bravus Race, uma das provas mais famosas no Brasil, já conta com 10 etapas
no país e é realizada em cidades como Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, São
José dos Campos e São Paulo. A organização do evento define a corrida desta forma:
A Bravus Race é a mais desafiadora corrida de obstáculos do País. Ela é
projetada para ser uma experiência única na sua vida. Você terá que superar e
redefinir seus limites a todo momento. Porque, a cada etapa, criaremos novas
metas físicas e mentais, para provar para si mesmo do que é capaz6.
As provas contam com obstáculos de mais variadas dificuldades e participam
dos eventos pessoas de ambos os sexos e de diferentes idades. Os próprios
organizadores incentivam que “atletas de fim de semana” façam parte, dando sempre
ênfase à colaboração entre os concorrentes e à diversão de participar de uma prova
dessa. Exemplo disso são os “Mandamentos da Bravus Race”, como podemos ver na
5
ESPORTE, Anuário do. Publicação comercial da Norte Mkt Esportivo. Disponível em
<www.nortemkt.com>. Acesso em 12/05/2016.
6
Citação retirada da página do evento Bravus Race 2016. Disponível em<www.bravusrace.ativo.com>.
Acesso em 12/05/2016.
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Figura 1. Metade das 10 regras são sobre superação de desafios e de medos – “Não
temerás nenhum obstáculo” e “Enfrentará todos os vossos medos” são os maiores
destaques.
Fonte: Página da rede social Facebook/Bravus Race
wwww.facebook.com.br/bravusrace
Figura 1: Mandamentos da Bravus Race
Processos de conotação: imagens de esporte e de guerra
“A fotografia de imprensa é uma mensagem”
(Roland Barthes)
Roland Barthes, em “O óbvio e o obtuso: ensaios críticos” (1990), visita noções
de denotação e conotação aplicadas à fotografia. Segundo o semiólogo francês, a
fotografia conta com uma “objetividade plena” – como defende o pesquisador Nelson
Soares Pereira Júnior:
Pensada como uma significação primeira, mais elementar, a denotação ganha
um valor muito forte quando se trata da fotografia. Enquanto outros tipos de
imagem têm uma mensagem analógica menos contundente - é o caso do
desenho, pintura e cinema -, a fotografia está quase totalmente preenchida
pelo seu valor denotacional. Isso pode ser explicado a partir da própria
evolução do pensamento acerca da imagem fotográfica e seu lugar social.
Contudo, a ideia de que a fotografia é um análogo mecânico do real faz com
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que a sua dimensão analógica, à primeira vista, tome toda sua significação garantindo-lhe, assim, uma “objetividade plena”. (PEREIRA JÚNIOR, 2006,
p. 05).
Para Barthes, a fotografia é única. É por definição, “a própria cena, o real literal”
(BARTHES, 1990). Mesmo assim, ela pode contar com interferências na construção de
seus sentidos, principalmente a partir da aplicação de algumas técnicas, que serão
utilizadas para a análise da empiria neste artigo, a saber:
- trucagem: processo que interfere no plano de denotação, o sentido surge a
partir da união, artificial, de duas imagens, que sozinhas teriam sentido diverso;
- pose: aqui, a leitura dos significados de denotação dependem da posição do
indivíduo fotografado na imagem, e, em muitas vezes, não se pode definir se foi
algo combinado previamente ou se foi realmente espontâneo;
- agrupamento de objetos: o sentido conotado, na verdade, pode surgir da
inserção de objetos, excelentes elementos de significação das fotografias;
- fotogenia: desta vez, a conotação da imagem está presente numa possível
alteração da imagem, modificada a partir de recursos de iluminação e
impressão;
- estetismo: recurso que permite tratar a fotografia como “arte”;
- sintaxe: por último, Barthes insere o “contexto” em que a fotografia está
encaixada: se ela é solitária ou se faz parte de um agrupamento de outros
registros, montando uma sequência com explicação própria.
Barthes ainda acrescenta o próprio texto que acompanha a fotografia aos
processos de conotação:
No obstante, es imposible (esta será la útima observació a propóito del texto)
que la palabra “duplique” a la imagen; ya que, al pasar de una estructura a
otra, aparece fatalmente una elaboració de significados segundos. ¿Qué
relación explicitación, es decir, un énfasis, hasta cierto punto; en efecto, la
mayoría de las veces el texto no hace sino amplificar un conjunto de
connotaciones que ya están incluidas en la fotografía; pero, también a
menudo, el texto produce (inventa) un significado enteramente nuevo que,
en cierto modo, resulta proyectado de forma retroactiva sobre la imagen.
(BARTHES, 1990, p. 22).
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Discurso de “Guerra e Paz” nas imagens analisadas
“A nova guerra não pode ser comparada às do passado,
sem necessidade de perturbar o apocalipse” (Norberto Bobbio)
Para entendermos os processos de produção de sentido a partir dos quais os
discursos de biossociabilidade se materializam nas fotografias da Bravus Race, iremos
compará-las com imagens das Primeira e Segunda Guerra Mundial. O processo de
escolha de tais fotos foi orientado pelo modo como elas dialogam interdiscursivamente
com as imagens de guerra.
A primeira fotografia escolhida remete às provas da Bravus Race. A Figura 2
mostra os participantes da etapa paulistana, disputada no Jóquei Clube de São Paulo,
num bairro nobre da capital paulista.
Fonte: Revista Veja – Ricardo Matsukawa/VEJA.com
http://veja.abril.com.br/multimidia/galeria-fotos/a-bravus-race-e-a-mais-desafiadora-corrida-deobstaculos-do-pais-2016
Figura 2: “A Bravus Race é a mais desafiadora corrida de obstáculos do país”
Agora, aqui, incluímos outra fotografia, que mostra mais um obstáculo da
Bravus Race – realizada, desta vez, no Jóquei Clube do Rio de Janeiro, também
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localizado em um bairro nobre de uma das capitais mais importantes do país. Nele, os
cerca de sete mil participantes da prova teriam que atravessar um dos lagos do local
com um saco de 10 quilos de areia nas costas (Figura 3).
Fonte: Portal Ativo.com – Daniel Werneck
http://www.ativo.com/destaque/etapa-speed-da-bravus-race-chega-no-rio-de-janeiro
Figura 3: Rio recebe etapa Speed da Bravus Race
Por outro lado, a primeira fotografia escolhida para comparação é da Batalha do
Somme, o conflito mais letal da Primeira Guerra Mundial, com mais de 1,2 milhão de
vítimas – entre mortos e feridos (Figura 4). Com cerca de cinco meses de duração, a
batalha teve início em julho de 1916 e contou com uma investida dos exércitos da
França e da Grã-Bretanha contra a linha de defesa alemã.
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Fonte: G1/Globo.com – Reuters/Archive of Modern Conflict London
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/07/entenda-1-guerra-mundial-em-20-fotos-da-epoca.html
Figura 4: “Tropas britânicas avançam durante a Batalha do Somme, em 1916”
Outro exemplo que pode ser utilizado é uma das fotos mais famosas da Segunda
Guerra Mundial (Figura 5). No dia 06 de junho de 1944, o fotógrafo Robert Capa
acompanhou o desembarque das tropas norte-americanas na Normandia – conhecido
como o “Dia D” para o fim daquela batalha, que já durava mais de seis anos e que fora
o conflito mais letal da história da humanidade, resultando entre 50 e 70 milhões de
mortes7.
AGUIAR, Lívia. “Os 12 conflitos armados que mais mataram pessoas”. Portal Super Interessante.
Disponível em < http://super.abril.com.br/blogs/superlistas/os-12-conflitos-armados-que-maismataram-pessoas>. Acesso em 12/05/2016.
7
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Fonte: Revista Vanity Fair – International Center of Photography/Magnum Photos
http://www.vanityfair.com/culture/2014/06/photographer-robert-capa-d-day
Figura 5: Dia D – Invasão da Normandia – “Robert Capa’s Longest Day”
Como primeira comparação, podemos relembrar Francisco Ortega, que coloca
os dados de desempenho com conotação quase moral. Vencer cada obstáculo da Bravus
Race remete a um prazer maximizado: quanto mais difícil o desafio, maior a satisfação
em superá-lo. É um dos resultados da otimização do corpo, que buscam saúde e
vitalidade para enfrentar provas que levam à superação física:
Poder-se-ia afirmar a partir do conceito de otimização que, frente às
possibilidades de manipulação do ser humano por ele mesmo as finalidades
do uso das biotecnologias não residem mais em curar doenças ou melhorar a
saúde, mas em maximizar, realçar e incrementar as funções do seu próprio
organismo a partir dos interesses e critérios de seus 'clientes'. (MANSK, 2013,
p. 300).
Relembrando as técnicas de análise de Barthes, as poses representadas nas
Figuras 2 e 4 são extremamente parecidas. Nas provas de obstáculos, os participantes
se ajudam a passar por mais um desafio, não se preocupando com o rastro de terra e
lama que deixarão para trás, em busca do próximo obstáculo. Na guerra, avançar sobre
as trincheiras inimigas era uma maneira de ganhar território e se mostrar vencedor
daquele pequeno momento da batalha.
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A sintaxe também é importante nesta primeira análise. Na Figura 2, o momento
é de total diversão: os competidores se revezam no auxílio àqueles que têm mais
dificuldade em superar o obstáculo e, em meio à lama, dão risadas de seus tombos e da
sujeira que fica impregnada em seus uniformes. Já na Figura 4, por sua vez, os soldados
passam por este momento após uma dura batalha, com a perda de vidas humanas. Além
disso, eles “limpam” a trincheira inimiga, recolhendo armas, água, alimentos e corpos
abandonados no local.
Na comparação entre as figuras 3 e 5, a técnica de análise da pose também é
extremamente relevante. Na Figura 3, os participantes da Bravus Race se esforçam para
atravessar um dos lagos do Jóquei Clube do Rio de Janeiro. Na Figura 5, a pose é
semelhante – mas, ali, os soldados “aliados” 8 desembarcam de navios e entram na
gelada água do Canal da Mancha, localizado entre a Inglaterra e a França, com o
objetivo de chegar à costa francesa e estabelecer um importante ponto de contato para,
dali, partirem para expulsar os nazistas de Paris. É importante perceber, ainda, que até
a altura da água é semelhante entre as fotos.
O agrupamento de objetos de Barthes também é extremamente importante:
enquanto os soldados carregam mochilas e suas armas, toda a subsistência para uma
nova batalha que virá, os competidores andam no meio da água com sacos de areia nas
costas. Podemos, aqui, exibir um quadro com uma pequena lista de “objetos de guerra”
em comparação com os das práticas de exercício físico contemporâneas:
Objetos de guerra
Objetos de academias
Armas
Halteres
Cantil
Squeeze/Coqueteleira
Bolsa para munição
Cinto de hidratação
Kit limpa-arma
Porta-celular
Bolsa para remédios
Nécessaire completa
Protetor auricular
Fones de ouvido
SCHILLING, Voltaire. “Do Dia-D ao Fim da Guerra 1944-45”. Portal Terra. Disponível em
<http://noticias.terra.com.br/educacao/historia/dia-d>. Acesso em 14/05/2016.
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Considerações Finais
“Na nossa cultura somática,
a aparência virou essência”
(Francisco Ortega)
Os organizadores da Bravus Race reforçam, em suas comunicações
publicitárias, que o evento pode ser feito por pessoas de diferentes idades que “queiram
redefinir seus limites”10. A ideia de “redefinição de limites” sugere que qualquer pessoa
pode fazer uma gestão de seu próprio corpo, definindo metas de condicionamento
físico, de superação física e mental. Mas é evidente que os obstáculos são criados
especificamente para serem superados apenas pelos praticantes de atividades físicas,
como treinamento funcional, musculação e fitness.
A formação da bioidentidade acontece por meio de práticas de bioascese, como
terapias e fitness – que é apresentado como um remédio universal, que nos garante a
independência da medicina e a proteção de todos os males da sociedade moderna
(ORTEGA, 2003):
As práticas ascéticas implicam em processos de subjetivação. As modernas
asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da
biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais,
médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades pessoais, das
bioidentidades. (ORTEGA, 2003, p. 64).
O sujeito, a partir daí, se “autocontrola, autovigia e autogoverna” (ORTEGA,
2003, p. 64). Quando um participante não consegue vencer por algum obstáculo, ele
deve executar uma série de “burpees”11, movimento também popular entre os militares.
É ali que renasce a biossociabilidade dentro da prova, descrito por ORTEGA como
“critérios de mérito e reconhecimento” e “criação de modelos ideais de sujeito baseados
no desempenho físico” (ORTEGA, 2003, p. 63): quem não supera o obstáculo, seja por
FUJIMORI, Ana Clara. “Bravus Race: chega a São Paulo corrida de obstáculos”. Portal Ativo.com.
Disponível em < http://www.ativo.com/corrida-de-obstaculos/bravus-race-chega-a-sao-paulo-corridade-obstaculos>. Acesso em 14/05/2016.
11
JUNIOR, Newton Siqueira. “Burpees: treinamento funcional e CrossFit”. Portal Dicas de Treino.
Disponível em <http://www.dicasdetreino.com.br/burpees-treinamento-funcional-crossfit>. Acesso em
14/05/2016.
10
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)
incompetência física ou medo, deve se colocar ao lado do obstáculo e ser punido à
frente dos “vencedores”.
A vida proposta nas imagens da Bravus Race é de uma vida saudável, dedicada
à performance corporal e mental, à superação de limites, à otimização do corpo por
meio de práticas dedicadas a preparação do corpo.
Sem a intenção de esgotar as comparações fotográficas entre as imagens de
guerra e da Bravus Race, buscamos, aqui, uma aproximação inicial com o objeto.
Referências
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
CAMPOS, Márcia Regina Bozon de. “Distúrbios da imagem do corpo na
contemporaneidade”. II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental – 2006.
PUC/São
Paulo.
Disponível
em
<http://psicopatologiafundamental.org/uploads/files/ii_congresso_internacional/cursos/ii_con
._curso_disturbios_da_imagem_do_corpo_na_contemporaneidade.pdf>.
Último
acesso:
15/05/2016.
CASTRO, Ana Lúcia de. Culto ao corpo e sociedade: mídia, cultura de consumo e estilos
de vida. São Paulo: Annablume, 2003.
FREIRE, Jurandir. O vestígio e a aura. Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio
de Janeiro: Garamond Universitária, 2004.
JÚNIOR, Nelson Soares Pereira. Do Referencial ao Conceitual: os Conceitos de Conotação
e Estereótipo como Operadores de Análise para a Fotografia Publicitária Contemporânea
e o Estudo da Marca. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UnB – 2006.
Disponível
em
<http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/121820305581315702475882749718039944822.p
df>. Último acesso: 15/05/2016.
MANSKE, George Saliba. Atletas do século XXI: ou das fusões biotecnológicas nos atletas de
alto rendimento. Revista Movimento. Porto Alegre, v. 19, n. 01, p. 289-308, 2013. Disponível
em <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/32434/24011>. Último
acesso: 16/05/2016.
NORTE MKT ESPORTIVO. Anuário do Esporte. Mídia Kit. Novembro 2015. Disponível em
<www.nortemkt.com>.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)
ORTEGA, Francisco. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades.
Cadernos de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 11 n.1, p. 59-77, 2003. Disponível em
<http://www.iesc.ufrj.br/cadernos/images/csc/2003_1/artigos/2003_1%20FOrtega.pdf>.
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