Transferência: reabertura da situação originária

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Transferência: reabertura da situação originária1
Fábio Belo
Analista: Você me toma por um outro, eu não este que você crê.
Analisado: Mas justamente, o outro, aquele da relação originária, não era aquele que eu
acreditava. E, portanto, eu tenho razão de te tomar por um outro. (DT, p. 417)2.
Laplanche começa seu artigo “Du transfert: sa provocation par l’analyste” com a epígrafe
acima. O diálogo imaginário entre o analista e um analisado (bem analisado, diga-se de passagem)
salienta um dos pontos mais importantes do que se compreende por transferência a partir da teoria da
sedução generalizada. Que ponto é este? É o fato de a transferência ser uma reabertura da situação
originária. O que é a situação originária? É a situação do bebê frente ao adulto. Para Laplanche, é a
assimetria, a sedução e a passividade próprias da situação originária que são reencontradas na
experiência analítica.
Laplanche admite sua insatisfação com relação ao conceito de transferência e parece convidar a
comunidade psicanalítica a “fazer trabalhar” as fórmulas forjadas por ele acerca do tema:
“transcendência da transferência”, “transferência de transferência”, “transferência em oco”... Falarei
adiante sobre cada um destes conceitos.
O autor diz que a transferência é algo diabólico. No artigo “Considerações sobre o amor
transferencial”, Freud parece nos lembrar o quão explosivo é o material manipulado quando se pratica
o que se pode denominar “tratamento pelo amor”. Em Além do Princípio do Prazer, Freud também
aponta para este aspecto diabólico da transferência, dizendo que ela é a razão maior para admitir uma
“compulsão à repetição” que escaparia ao princípio do prazer. Laplanche ainda aponta que o texto
sobre o amor de transferência, de 1915, não traz nenhuma referência sobre o texto onde Freud introduz
o problema da paixão amorosa, isto é, o texto “Para Introduzir o Narcisismo” (1914).
Laplanche critica o artigo “La pratique: son cadre, ses interdits”, de Guy Rosolato, dizendo que
pode-se depreender da leitura deste texto uma passagem da análise da transferência para a análise na
transferência. Isto, segundo Laplanche, pressupõe uma transferência de base, que seria como um
“meio”, ao qual acabaríamos por nos habituar e não mais notar. A idéia que se desenha no artigo de
Rosolato é que a transferência deve se estabelecer, evoluir e desaparecer. Laplanche vai criticar
1
Fiz um resumo de algumas passagens na obra de Laplanche sobre a transferência. O objetivo é tornar acessíveis as ideias
do autor tendo em vista que a maior parte de seus textos ainda estão em francês. O texto é para uso em sala de aula.
2
As referências bibliográficas estão no final deste trabalho.
2
severamente esta idéia de que a transferência desaparece. Para ele, veremos mais adiante, ela será
transferida.
Um parêntese: Tenho ouvido – nas Universidades, nas supervisões e nas análises de pacientes
que são psicanalistas e psicólogos – que não se interpreta a transferência, mas na transferência. Penso
que isto é um problema grave. É preciso pensar sobre as possíveis causas deste “desvio hermenêutico”
que pode ocorrer na análise1. É importante lembrar – isto não está dito por Laplanche, é uma
interpretação minha – que a passagem da análise da para a análise na transferência é resultado de uma
postura clínica defensiva por parte do analista. 2 Tomar a análise como análise na transferência é reduzila a um sofisticado jogo hermenêutico. Recusar a interpretação da transferência é impedir que se reabra
a situação originária.
Interpretar a transferência não é dissolvê-la. Dissolver a transferência, pergunta Laplanche, não
é serrar o galho sobre o qual nos assentamos? A análise é análise até seu último segundo, o que implica
que, até seu último segundo, ela seja transferência. Laplanche é irônico com relação ao fim progressivo
da análise: por que não um divã à manivela que levaria o paciente a se sentar – ou a se deitar para
aqueles que julgam que a análise só começa depois de um certo tempo?
Se interpretamos um movimento transferencial não é para atacá-lo como defesa, não é para
resolvê-lo; eventualmente para fazê-lo evoluir, ajudá-lo a evoluir. (DT, 420) O que Laplanche
entende por “evoluir” a transferência? De imediato, pode-se responder: evoluir para que a reabertura da
situação originária aconteça. Evoluir para uma relação melhor do sujeito com o enigma do outro. Por
“evoluir” não quero dizer progredir. Não creio no progresso. (Acho que esta é também a posição de
Laplanche). Acredito numa reconfiguração de forças psíquicas em jogo.
Segundo Laplanche, em Freud a especificidade da transferência é contígua à especificidade da
neurose. É a neurose – o conflito inconsciente não resolvido – que é criadora da transferência. Nem o
analista, nem a situação têm a ver. Daniel Lagache denuncia o que parece ser uma
“desresponsabilização” do analista. Já Ida Macalpine lembra que a situação analítica cria sim a
transferência. Para a autora, a situação analítica é infantilizante e regressiva. Na análise, o sujeito
regride para que ele se adapte a uma situação ela mesma regressiva. Situação inevitável que podemos,
no máximo, ajudar a evoluir.
1
Não nos enganemos: é uma forma de hermenêutica o incessante jogo de palavras feito pela interpretação do significante.
(cf. NF, 163).
2
Manoel Berlink diz que a contratransferência pode estar contra a transferência. Cf. Berlink, Manoel Tosta. A
contratransferência contra a transferência? In. ____. Psicanálise da clínica cotidiana. São Paulo: Escuta, 1988, pp.107-134.
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Laplanche comenta o termo Übertragungswiderstand, de Freud, que significa resistência de
transferência, isto é, a resistência que se opõe ao tratamento através da transferência: a transferência
como uma de suas maiores resistências. É um erro, segundo Laplanche, crer que Freud fale de uma
resistência à transferência. (DT, 420). Isso faz concluir que a transferência existe sempre, em qualquer
relação amorosa? Em qualquer relação humana? Em outras palavras, a transferência acontece sempre,
isto é, não é algo a que possamos opor resistência? Parece ser este o pensamento de Freud. A
transferência acontece sempre, em qualquer relação humana. Esta idéia deve ser melhor matizada, pois
não parece certo supor que a transferência seja o conjunto de afetos eliciados por qualquer relação
amorosa. A grande questão é: o que diferencia o amor de transferência do amor comum, de qualquer
relação?
Há diferenças entre as teses de Laplanche e as de Freud. No entanto, o primeiro mantém um
ponto fundamental do segundo: a especificidade, o caráter inaudito do que acontece na análise. Ao seu
caráter extraordinário permanece ligada a certeza de que é do sexual que se trata e não somente de uma
transferência psicológica, em geral. O que seria esta “transferência psicológica”? Laplanche não
explica, mas é provavelmente o que se tornou a transferência no discurso da psicologia. Fiquem atentos
aos usos que esta palavra tem. Geralmente, os estudantes de psicologia a usam para designar uma boa
relação com o paciente. “Fulano de Tal está transferido, tem uma boa transferência”, o que significa:
ele vai ao tratamento, ele confia em mim, ele parece gostar de mim. Ora, transferência não é sinônimo
de gostar ou de um certo tipo de rapport!1 Anotem portanto este ponto: o que torna a análise
extraordinária é o sexual, o enigma proposto pelo sexual, e ainda, a denúncia, através do método
analítico, de sua presença na relação e de seu funcionamento.
Laplanche lembra uma discussão que teve com outros psicanalistas sobre a psicanálise aplicada
– psicanálise extra-muros. Como fica a questão da transferência aqui? Laplanche inverte a discussão
padrão: ao invés de transpor o modelo da transferência no tratamento para aquele que está fora dela, ele
argumenta que a transferência já “está em casa” fora do tratamento. Ele explica: se se quer aceitar,
como dimensão fundamental da transferência, a relação com o enigma do outro, pode ser que, antes
da análise, fora da análise, depois da análise, o lugar maior da transferência, a transferência “ordinária”,
1
Laplanche cita em nota uma passagem de Daniel Lagache onde também se faz esta generalização da transferência.
Percebam que o sexual não está em questão. A generalização da transferência agora se faz através da idéia da repetição: “Se
tomamos a transferência no sentido amplo, fica difícil de fixar seus limites. Toda conduta é com efeito uma dosagem de
assimilação da situação presente aos hábitos antigos e de ajustamento dos hábitos antigos à situação presente. No homem, a
idéia de uma conduta absolutamente nova, que não implicaria em nenhuma maneira de transferência de hábitos antigos, é
impensável; o que pode ser novo é a organização dos hábitos antigos no repertório daquelas onde o indivíduo está
mergulhado.” (D. Lagache, Oeuvres III. Le transfert..., op. cit., p. 80. Apud. DT, p. 425n6.)
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poderia ser situada na relação multipolar com o cultural, na criação ou mais precisamente na mensagem
cultural. Relação multipolar e a considerar com discriminação, mas sempre sob este ângulo da relação
com o enigma. (DT, 425-6). A discussão sobre a psicanálise extra-muros não nos importa no momento.
Só gostaria de apontar para este elemento importante que Laplanche traz ao pensar a transferência a
partir da teoria da sedução generalizada. Quando ele diz que uma dimensão fundamental da
transferência é a relação com o enigma do outro, ele está dizendo que a transferência começa antes da
análise. O papel da análise é colocá-la para funcionar de um determinado modo, dar um sentido a ela.
Um outro ponto muito importante que deve ser anotado é que o conceito de transferência, como
muitos outros na psicanálise, ainda é “centrado”. Dizemos de João e sua transferência – assim como de
sua projeção. Esta maneira de ver o conceito – exclusivamente a partir do sujeito – apaga a origem
mesma da transferência que é uma relação que começa com o outro, ou melhor, com o outro do outro.
Vamos tentar entender melhor esta idéia. No caso da projeção a idéia é bem clara: será que no delírio
de perseguição não há uma marca de uma perseguição que aconteceu de verdade? Será que a idéia de
que o ódio projetado volta contra o sujeito é suficiente para compreender o delírio de perseguição?
Laplanche, em outro artigo, conta uma piadinha para criticar esta concepção monadológica do
psiquismo. Trata-se da história do sujeito que vivia no campo e tinha medo de ser devorado pelas
galinhas, pois ele acreditava que era um grão de milho. O psiquiatra da cidade, comovido ao ver o
pobre coitado correndo, desesperado, das galinhas “assassinas”, resolveu tratá-lo. Explicou-lhe
direitinho: “veja, você não é um grão de milho. É você quem quer devorar a galinha, mas você projeta
seu desejo assassino na galinha e este desejo retorna contra você.” O paciente diz ter entendido tudo e
se diz curado. No entanto, ao sair pela rua, a primeira galinha que viu provocou o mesmo pavor. O
psiquiatra perguntou se ele não havia entendido suas explicações. O paciente diz que sim, que entendeu
perfeitamente, mas tinha sérias dúvidas quanto ao fato de a galinha saber se ele era ou não um grão...
O mesmo exemplo vale para a transferência. Quando dizemos ele transfere, eu transfiro, a
lógica do conceito fica monadológica, isto é, há a pressuposição de um fechamento do sujeito. Não é
bem eu transfiro, mas algo próximo de: uma transferência acontece e me afeta. Acontece no sentido de
o sujeito repetir padrões de sua vida, de ele encontrar um objeto de amor que faz com que ele
reencontre diversos afetos. A transferência enquanto reabertura da situação originária é muito mais do
que uma coisa que o eu faça. É algo que acontece com ele. Notem que é preciso passar o verbo para a
voz passiva, por assim dizer.
O ponto alto do artigo de Laplanche é quando ele diz que é a oferta da análise, a oferta do
analista, que cria a transferência. Não, talvez, toda a transferência, mas esta que está na base, a alma e o
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motor, isto é, a reabertura de uma relação, da relação originária, onde o outro é primeiro com relação ao
sujeito. Uma reabertura, pois todo o movimento de constituição do sujeito se faz por um fechamento
que é justamente o recalcamento, a constituição das instâncias, a colocação do outro no interior e seu
fechamento sob a forma do inconsciente. (DT, 430).
Há três dimensões, três funções do analista e disto que ele instaura: o analista como responsável
da constância; o analista como piloto do método e acompanhador do processo primário; o analista
como guardião do enigma e provocador da transferência. (DT, 430).
As duas primeiras funções são correlativas: responsável pela constância e piloto do método.
Sem elas, nada de análise. É o que diz Freud: a análise é um método de acesso a fenômenos
inacessíveis de outra forma. O método é justamente a decomposição, sua pilotagem obedece ao
processo primário. O método dissolve, analisa. Ele coloca em movimento a dissolução de todas as
formações psíquicas, egológicas, ideológicas, sintomáticas. Mas, em contrapartida a este aspecto de
desligamento e liberação das energias psíquicas, o psicanalista se oferece como responsável pela
constância, manutenção: constância de uma presença, constância de uma solicitude, constância flexível,
mas atenta ao quadro. É preciso haver contenção para haver análise, isto é, para haver liberação de
energia livre. A metáfora de Laplanche de tratar o quadro analítico como uma tina tem este sentido: o
analista fornece a contenção para que a energia livre possa circular sem “vazar”. É porque o analista
mantém, na periferia, o princípio de constância, de homeostase, de uma ligação, que a desligação
analítica é possível. A transferência não é o todo da análise. (DT, 426). Para Laplanche, é fundamental
distinguir o campo da autoconservação e o campo do sexual. A clínica psicanalítica instaura um lugar
pulsional. (NF, 165). Laplanche usa uma analogia para esclarecer sua metáfora da tina: a análise é o
recinto apropriado, um ciclotron, onde partículas atômicas seria aceleradas. Sem este recinto, teríamos
uma bomba H. Laplanche ainda lembra que a idéia da tina é correlata à idéia de holding, de Winnicott.
Na análise, há um movimento cíclico: a presença de um recinto torna-se ainda mais necessária na
medida em que favorecemos, induzimos um discurso de desligamento. (NF, 168).
A terceira função do analista: guardião do enigma e provocador da transferência. Uma nota
importante sobre o que é a provocação do analista: é provocação no sentido de Reiz, ou seja, de
estímulo e de sedução. (DT, 431n13). O que é oferecido, é um lugar de palavra, de palavra livre, mas
não, propriamente dito, um lugar de troca. Há uma dissimetria essencial na relação. Esta dissimetria
deve ser sempre correlacionada com a prioridade do outro na constituição do sujeito sexual. Esta
dissimetria é ainda vista pela atitude do analista de proteger o método – seu saber sobre o método
analítico – e isto ser contrabalançado pela recusa radical de saber o bem de seu paciente. Benquerente
neutralidade (bienveillante neutralité): querer o bem do paciente, mas sem pretender jamais conhecê-lo,
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sem jamais manipular o paciente, mesmo que para seu suposto bem. Este bem, é claro, sempre
tangencia o autoconservativo – mesmo sob o disfarce da liberdade sexual, por exemplo. Trata-se,
sempre, da recusa do adaptativo, do autoconservativo. Lúcio Marzagão adverte que não há em Freud a
famigerada frase “um charuto, de vez em quando, é só um charuto”. De jeito nenhum! Um charuto, na
análise, nunca é só um charuto.1 O exemplo de Laplanche é claro: a propósito da ausência de uma
paciente, recusar-se a reduzi-la a uma discussão sobre os horários de trens. (NF, 166).
É preciso chegar a uma concepção positiva, criadora, da neutralidade, produtora da dimensão
enigmática. Laplanche completa o curto diálogo iniciado na epígrafe:
Analista: sim você pode me tomar por um outro, porque eu não sou o que eu creio,
porque eu respeito e mantenho o outro em mim. (DT, 432)
É a manutenção da dimensão da alteridade interior que permite a instauração da alteridade na
transferência. O analista tem que saber da existência do inconsciente – de seu caráter interno-externo –
para não perder de vista a prioridade do outro, a primazia da alteridade.
Ainda sobre as recusas do analista é importante juntar: o analista recusa a manipulação e o
conselho porque recusa rebaixar o plano do sexual sobre o plano do adaptativo. (TT, 270). A recusa do
saber é ainda mais importante. Recusar o saber é renovar o traumatismo e a situação originária;
traumatismo moderado ou violento, mas que permite recolocar em movimento o processo de
tradução e de simbolização. (TT, 271). Se recusar a saber, diz Laplanche, parece ser a regra
impossível, mas fundamental, que decorre de nosso saber teórico. (TT, 271).
Transferência em pleno, em oco
Afirmemos logo que tanto a transferência em pleno quanto a transferência em oco se
instauram... num oco. A neutralidade do analista é um aspecto desse oco.
Provavelmente o aspecto mais superficial, pois toma como essencial a banalização dos
traços do analista, teoria do espelho neutro, ou do receptor telefônico virgem. Para além
dessa interpretação da relação com o suposto saber (...) há o que designamos como
recusação do saber. É o que também formulei de outra forma, falando de
“transcendência da transferência”. Nesse oco, instaurado pelo analista e sua recusação
do saber, o que vem se instalar? Pode vir se instalar um pleno ou um oco. Um pleno, é
a repetição positiva dos comportamentos, das relações, das imagos infantis. Um
oco é também uma repetição, mas onde a relação infantil repetida reencontra seu
caráter enigmático e onde as imagos não estão mais totalmente plenas.
Transferência em pleno e em oco coexistem, é inevitável. Portanto, não pregamos pela
1
Uma nota para refletir: o analista tem que ficar um pouco paranóico, isto é, tudo tem a ver com ele e com a neurose de
transferência. É preciso refletir sobre o que é esta “paranóia”. Qual sua função? Qual seu perigo? (Para começar, observar o
perigo do narcisismo do analista).
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transferência em oco contra a transferência em pleno! Apenas afirmamos que, se só
existe a transferência em pleno (a situação tipicamente descrita por Freud, a
repetição de situações arcaicas, sem mistério), nada permitiria sair desse pleno.
Em tal caso, a interpretação num momento ou em outro só pode ter aspecto de
denegação: você me atribui tais traços da sua mãe, diz o analista (com o que o
analisado concorda tranqüilamente), mas eu não sou sua mãe. A etapa seguinte da
denegação é a projeção: não sou eu que, é você que. A projeção é a cruz do
psicanalista, é a cruz das transferências insolúveis. (NF, 170-1, grifos meus).
O analista oferece ao analisando um oco, nossa neutralidade benquerente no que concerne ao
nosso próprio enigma. O analisando pode alojar aí o pleno ou o oco. O pleno é derramar sua bagagem
(déverser sa besace). O oco é alojar um outro oco, o enigma de sua própria situação originária. É,
portanto, à situação originária infantil que somos reenviados. O enigma sexual é proposto pelo adulto à
criança, de forma enigmática, na medida em que o adulto não sabe tudo o que diz: ele é outro para ele
mesmo. É neste sentido que Laplanche fala de transcendência da transferência e de transcendência da
situação originária. Uma situação originária que podemos nomear, paradoxalmente, “transferência
originária”. É claro que ela não é transporte de outra coisa, mas entretanto, por um tipo de passagem no
limite, porque ela contém o motor da transferência, isto é, a diplopia que lhe é própria.1
Não há dissolução da transferência enquanto tal, há resolução ou dissolução das transferências
em pleno na transferência em oco. (DT, 434). A transferência em oco é a base da transferência, sua
dimensão irredutível de alteridade. (DT, 434n17).
A transferência em oco (vazio, creux) é a reinstauração daquilo que Laplanche chama
transferência originária. (OP, 94). “A dimensão da transferência, uma vez liberada de seu aspecto de
engodo puramente projetivo, aparece diante de nós na sua verdade, como transferência em vazio, ou
seja, uma repetição da relação com o outro como mensageiro de enigmas.” (OP, 97).
Qual o destino da transferência em oco? É a transferência da transferência. A tese de Laplanche
é que a passagem do extraordinário da análise ao ordinário da vida se dá através da transferência. Ele
vai chamar isto de transferência da transferência.
Transferência da transferência
A análise é limitada: é limitada pelo inconsciente e, no inconsciente, pelo que
chamamos de objetos-fontes da pulsão. Podemos encetar esse limite inconsciente,
podemos vencê-lo, mas não podemos aboli-lo, contrariamente à esperança de Freud.
Nossa segunda proposição é que a análise, mesmo se é limitada, ou talvez justamente
1
É óbvio que a relação entre o bebê e o adulto que cuida dele é eivada de fantasias. O adulto já toma seu bebê como um
outro: como falo, como imagem dele mesmo, como ideal... O importante é notar que esta relação já é parasitada pela
alteridade do adulto, já é transferencial, já há reencontro.
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por ser limitada, é infinita. O processo auto-interpretativo é potencialmente infinito,
felizmente para o ser humano! O dia em que este processo secar será grave! Mas este
infinito não significa que a análise enquanto situação e enquanto tratamento deva ser
infinita. E é aqui que devemos introduzir o terceiro termo, o de término. Para se situar
na linha de tudo o que propomos, esse término não pode de forma nenhuma
significar a “dissolução da transferência”, na medida em que esta é a relação com
o objeto enigmático. Pode apenas significar a transferência desse processo de
transferência para um ou vários outros lugares, em uma ou várias outras relações. O
único término concebível da psicanálise é, portanto, a transferência da transferência.O
mais difícil, sem dúvida, é apreender o momento crítico em que essa transferência de
transferência é possível.( NF, 173, grifos meus).
O enigma sexual, provocador-traumatizante, do adulto, a criança não cessa de o controlar,
traduzi-lo, fazê-lo entrar numa constância. Toda evolução se faz então no sentido de um duplo
fechamento à mensagem do outro. Fechamento do lado daquilo que pôde ter sido traduzido, teorizado,
isto é, mais ou menos ideologizado; e também fechamento por confinamento, por recalcamento do
resíduo anamórfico das mensagens, isto é, daquilo que resistiu à simbolização.
A análise oferece uma reabertura da dimensão da alteridade. O que é novo na análise, com
relação à cultura, não é a transferência, é... a análise. A análise como método de acesso aos
processos inconscientes.
Laplanche termina seu artigo (DT, 434) dizendo que no final de análise acontece uma
transferência de transferência. Ele usa uma metáfora para explicar o que ele quer dizer. Primeiro, ele
lembra que a transferência tem um caráter cíclico. Não há nova tradução sem repassar primeiro pelas
traduções antigas, para destraduzi-las a favor de uma tradução nova. A metáfora de Laplanche é
representar este caráter cíclico no desenho de uma espiral em torno de um eixo:
Notem que a espiral só progride na medida em que repassa por vários significantes enigmáticos
(SE). A metáfora continua no desenho abaixo:
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Estas setinhas para fora da espiral são como as “janelas” orbitais. Para sair da análise deve-se
pensar em momentos oportunos. Os parâmetros em causa são, obviamente, complexos. As condições
internas do paciente, o contexto econômico, social e familiar. O paciente sai da análise para um outro
campo da cultura. Transfere-se a transferência, isto é, a relação com o enigma continua em outro lugar,
de uma outra forma.
Uma das tarefas mais difíceis do analista é propor o término da análise ou aquiescer a isto.
Laplanche lembra que o narcisismo do analista pode cegá-lo fazendo com que ele minimize o que se
oferece, no exterior, como perspectiva de elaboração a seguir, a continuar. Passar da análise à cultura.
Qual lugar da cultura pode oferecer espaço para o respeito ao enigma, à primazia da alteridade?
Laplanche não diz e acredito ser algo interessante a se pensar quais lugares seriam estes. Quais lugares
podem manter viva a revolução copernicana?
Transcendência da transferência
Entendo por transcendência da transferência que a transferência está além de qualquer relação
humana particular. Ela começa na relação humana – a relação do bebê com o adulto que cuida dele –
mas não se restringe a apenas uma relação, ela transcende a particularidade das relações, apesar de não
existir fora delas. Só há transferência numa relação com um objeto – seja ele real ou imaginário (Deus,
por exemplo) – mas ela nunca é restrita a uma relação ela se transfere de uma relação a outra. No
fundo, a relação é sempre com o enigma vindo do outro ou que outro faz movimentar em mim.
É transcendência da situação originária – esta relação da criança com um adulto que significa
aquilo que ele não sabe – que será traduzida, transportada, transferida com mais ou menos restos, mas
jamais reduzida. (TT, 269). O que vem se alojar no oco da análise não é um pleno que viria para aí se
dissolver: é um outro oco. Na transcendência da transferência, a transcendência da situação originária.
(TT, 270).
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É preciso articular a pulsão e a transferência. O sujeito suposto saber, de início, é o adulto para a
criança. Pode-se dizer que a situação originária da pulsão é uma relação – de transcendência e de
transferência. Transcendência, por um lado, porque há um vazio de significância ou uma falta de
significado que constitui o caráter enigmático da mensagem adulta. Transcendência e transferência, por
outro lado, porque todo o movimento de simbolização consiste em juntar significantes novos com fins a
deslocar, de transportar e, também, de ligar os significantes mais traumáticos. A transferência – no
sentido analítico – não pode ser outra coisa senão o prosseguimento ou a retomada deste movimento de
simbolização. Neste sentido, longe de ser este tipo de jogo de papéis e de desilusão que se quer às
vezes localizar nela, a transferência seria a reabertura da transferência originária, e seu destino, por sua
vez, só pode ser ela mesma transferida. (OS, 241). Esta passagem deixa clara uma das conseqüências
de se pensar a transferência a partir da teoria da sedução generalizada. A articulação entre a
transferência e a pulsão: a análise da transferência é uma maneira de explicitar a maneira com que o
sujeito lida com o enigma. O enigma antes era externo, vindo do outro, agora é interno, emitido pelo
que Laplanche chama de objeto-fonte da pulsão.
A teoria analítica não pode de forma alguma se impor, nem mesmo interferir, no processo de
simbolização individual tal qual ele se opera desde as origens e tal qual a prática do tratamento
pretende prossegui-lo. A teoria diz que é oportuno ajudar o paciente a “teorizar” em seus próprios
termos, com os elementos que sua história individual dispõe. A teoria da pulsão é um convite a
manter a teoria analítica à distância do tratamento e de seu processo de transferência. (OS, 242).
Bibliografia
DT – “Du transfert: sa provocation par l’analyste”. In. Laplanche, Jean. La révolution copernicienne
inachevée. Paris: Aubier, 1992, pp. 417-437.
NF – Laplanche, Jean. Novos Fundamentos para a Psicanálise. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
OP – Laplanche, Jean. “Objetivos do processo psicanalítico”. Trad. Pedro H. B. Rondon. In. Cadesnos
de Psicanálise, SPCRJ, v. 14, n. 17, 1998, pp. 78-101.
OS – “La pulsion et son objet-source: son destin dans le transfert”. In. Laplanche, Jean. La révolution
copernicienne inachevée. Paris: Aubier, 1992, pp. 227-242.
TT – “Traumatisme, traductinon, transfert et autres trans(es)”. In. Laplanche, Jean. La révolution
copernicienne inachevée. Paris: Aubier, 1992, pp. 255-272.
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Janeiro de 2009
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