1 Será que nascemos todos Pinóquios?

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Será que nascemos todos Pinóquios?
¿Todo el mundo nace Pinóquios?
Carla Cristina BELLODI | Marta Maria DAUD
INTRODUÇÃO
Uma mulher de 40 anos entra na sala de análise com uma revista onde tem a
figura de uma marionete e diz: - Esta sou eu!
Surge na mente da analista a história do Pinóquio, o boneco de madeira que
sonha um dia, ser um menino de verdade e que pode ser também um modelo rico para
pensarmos alguns fenômenos atuais da clínica psicanalítica.
Na ficcção, Pinóquio “nasce”, ganha “vida”, começa a ter movimentos
independentes, mas continua uma marionete, mesmo sem a presença dos fios. Ele é
constantemente influenciado pelos estímulos externos e internos, reage a eles sem a
possibilidade de sonhar e pensar, sem possibilidade de ser de verdade.
Seria esta a nossa condição básica?
Nascemos com algumas características impressas como uma madeira que
traz em si a história de sua constituição?
Somos muitas vezes manipulados e usados pelo mundo interno e externo?
Acreditamos que somente no aprender com a experiência emocional, na relação
viva com uma outra mente, é que nascemos enquanto ser psíquico e começamos a
existir. Pinóquio tinha uma ânsia em se tornar logo um menino de verdade e pedia que a
fada azul, magicamente, o transformasse em um.
Assim chegam nossos pacientes, procurando sentido, com ânsia de existência,
mas muitas vezes esperando da “fada azul-psicanalista” uma transformação mágica e
sem dor. Até mesmo porque ainda não entendem a diferença entre estar vivo e existir,
entre ter pensamentos e pensar pensamentos.
A busca de saber quem somos de verdade e de transformações que nos
aproximem do nosso eu verdadeiro, o mais humano possível, passa pelas experiências
vividas e transformadas.
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Nascemos todos Pinóquio, originalmente de matéria bruta, com pensamentos
inconscientes nunca pensados, os quais aguardam a companhia de uma outra mente para
pensá-los.
Pinóquio nasce desta matéria e durante seu percurso em busca do tornar-se um
menino de verdade, passa por situações que muitas vezes eram definidas como mentira,
seu nariz crescia e ficou conhecido como um personagem relacionado ao conceito da
mentira.
Será que Pinóquio mentia, ou não sabia o que era ser de verdade?
Este é um questionamento importante para expandir nossa condição de
acompanhar nossos pacientes em histórias que muitas vezes parecem criações
fantásticas, imitações, estados alucinados. Mas que na realidade, são estados ligados ao
impedimento de pensar. A verdade seria o impedimento de pensar do menino, que
incapaz de pensar não pode se aproximar da verdade psíquica.
Segundo Grotstein (2010, p. 141), a função alfa, através da
transformação de elementos beta em alfa, capacita o indivíduo através
do desenvolvimento da mente (mentalização) a tornar pensamentos
oníricos, memórias em reforços para a barreira de contato, a qual
separa a consciência da inconsciência, a fim de garantir nossa
capacidade de dormir, de ficar acordado e de pensar.
A personagem fada azul tem uma participação muito importante nesta história,
ela inicialmente é uma figura idealizada que poderia transformar Pinóquio em um
menino de verdade. Entretanto, durante toda a história ela será a mente continente que
entra em cena e assume seu posto como precursora ou como facilitadora e promotora de
desenvolvimento da mente incipiente do boneco. Oferecendo sua “varinha-função alfa”,
ela é uma companhia viva na trajetória de Pinóquio no vir a ser um menino de verdade.
A partir destas idéias, gostaríamos de refletir sobre a relação entre Pinóquio e a
fada azul, e a transformação de boneco em menino de verdade, traçando um paralelo
com a relação analítica. Esta transformação , onde o paciente esta no processo de vir a
ser mais plenamente e o analista esta conhecendo a pessoa que o paciente está se
tornando através da experiência compartilhada e vivida entre paciente - analista verdade.
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“A visão emocional compartilhada, vivencia-se uma sensação de estar com a
verdade.” (Bion 1962/1994, p. 137).
PINÓQUIO-MARIONETE
Pinóquio “nasce”, recebe o “dom da vida”. Mas que vida é essa? Ele não
consegue sonhar ou pensar. Segue seus impulsos de buscar somente o prazer e aquilo
que parece ser o caminho mais fácil. Não se responsabiliza nem por si e nem percebe a
existência do outro, como alguém a ser considerado por ele. Podemos dizer que ele
“nasce”, sem ter tido experiências prévias com uma outra mente que pudesse acolhê-lo
e assim, ajudá-lo a desenvolver a sua própria mente. Envolve-se em situações onde é
manipulado por outros, continuando assim sua condição de marionete, sem
discriminação do eu/outro e em situações onde é manipulado pelas próprias sensações,
sem discriminar dentro/fora.
Observando os pacientes que chegam em nossos consultórios hoje, percebemos
a grande dificuldade que apresentam em viver e expressar as emoções. Na verdade,
parece que não sabem como fazer isso. Muitas vezes não são capazes de sonhar e
pensar, e assim incapazes de realmente perceber seus sentimentos.
Ogden (2010, p. 18) nos coloca de forma clara: Uma pessoa
consulta um psicanalista porque está sofrendo emocionalmente; sem
saber, ela é incapaz de sonhar (isto é, incapaz de elaboração
psicológica inconsciente) ou fica tão perturbada com o que está
sonhando que seu sonho é interrompido. À medida que é incapaz de
sonhar sua experiência emocional, o indivíduo é incapaz de mudar, ou
de crescer, ou de tornar-se diferente de quem ele tem sido.
A Mimetização de Márcia
Márcia, uma jovem de 21 anos, quando procurou análise, não sabia dizer a
analista porque estava ali. Só sabia dizer, que outras pessoas aconselharam que ela
deveria iniciar uma análise. Não sabia falar sobre si mesma e chorava muito. A única
“emoção” que parecia “conhecer”, era ficar brava e tudo que acontecia com ela, era
sentido de forma muito exagerada. Depois de algum tempo em análise, relata na sessão
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que o namorado havia terminado com ela. Conta que num primeiro momento havia se
sentido triste, mas que estava conseguindo pensar sobre o que havia acontecido e estava
seguindo com sua vida de forma tranqüila, sem a necessidade habitual, de exagerar a
situação vivida. Entretanto, quando conta o ocorrido para suas amigas, estas ficaram
bravas com o tal namorado, Márcia passa a ficar brava com o namorado, dizendo: “ se
elas estão bravas, é assim que eu devo ficar”, a partir daí, não conseguia mais trabalhar,
e nem conseguia mais pensar.
Se considerarmos a marionete como um personagem teatral, podemos perceber
que apesar dela não mostrar emoções, ela está ali para comunicar algo, expressar uma
verdade, mesmo que esta verdade seja aquilo que não pode ser vivido.
Não há dúvidas que Márcia sofre, sofre por evitar desesperadamente entrar em
contato com seu caos interno. Ao evitar este contato com emoções tão caóticas, fica
impedida de pensar e se desenvolver. Paraliza-se no processo de conhecimento de si
mesma, pinoquiza-se, passa a imitar expressões de emoções.
Em Transformações, Bion (1983 citado por Andrade, 2013,
p.117) fala da hipérbole: “O aparecimento de hipérbole em qualquer
forma deve ser encarado como significativo de uma transformação na
qual rivalidade, inveja e evacuação estão presentes”. Diz ele “O
exagero é útil no esclarecimento de um problema – busca-se “ganhar a
atenção necessária para ter um problema esclarecido.
Andrade (2013, p. 118), em seu trabalho sobre Dramatização, coloca que “com
certeza seus exageros representam muito de seu desespero por se organizar
internamente, por se conhecer, por encontrar seu lugar. Além de ser uma exposição de
suas angustias, ele está mostrando também como vivencia seus relacionamentos.”
As Trovoadas de Bruno
Bruno lembra-se de situações “vividas” por ele, as quais chamou de trovoadas
em sua vida. Afirma que essas trovoadas são as emoções intensas, difíceis de serem
elaboradas por ele, que ecoam na sua vida mesmo depois de muito tempo. Surgem na
mente da analista, histórias contadas pela sua mãe. A mãe da analista viveu sua infância
numa fazenda, e quando vinha uma chuva forte e cheia de trovoadas, escondia-se junto
com seus irmãos em baixo de uma mesa grande na cozinha. Sentiam-se protegidos pela
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mesa de madeira e apesar do medo, muitas vezes, aquilo se tornava uma brincadeira
compartilhada entre os irmãos.
É difícil o encontro da mente humana com as “trovoadas de emoções” ou as
protoemoções. Este encontro ativa uma série de defesas, na tentativa de lidar com o caos
interno. Entretanto, se essas protoemoções encontram um continente capaz de acolhêlas, poderão ser transformadas, se não encontram, podem levar a um enrigecimento das
emoções, uma “Pinoquização”.
Ferro (2011, p. 23), usa o termo “Pinoquização” como modelo de enrigecimento
afetivo. Coloca que em “relações pacificadas, onde não há espaço mental para vivenciar
e expressar raiva, ciúmes, rivalidade, ou seja, intensas emoções,
observa-se uma
insuficiente função alfa ou insuficiente força do continente, das pessoas envolvidas”.
Esse termo encontra eco com o que estamos vivendo na clínica. Pacientes impedidos de
lidar com as intensas emoções (protoemoções), criam uma espécie de carapaça, um
distanciamento afetivo, para continuar a viver e constroem algumas “mentiras”, para
suportar a dor de existir e sentir.
Marcelo e sua armadura de Pinóquio
Lá pelo meio da sessão, a analista faz uma afirmação: - Eh, como é difícil
crescer! Marcelo dá um suspiro, solta seu corpo no divã e fala: - Como é engraçado, a
sessão vai acontecendo e eu vou escutando a sua voz, o que você está me dizendo e fico
relaxado. Muito diferente de como eu chego aqui. Chego tenso, ameaçado, com medo,
não sei bem do que, e depois isso muda.
Parece que eu chego aqui me agarrando em alguma coisa lá de fora, para não
entrar aqui (faz um gesto com a mãe que sugere de estar se agarrando em alguma
coisa). Surge na mente da analista a imagem de alguém segurando no galho de uma
árvore, no meio de uma enxurrada ou um rio, com muito medo de que se ele largasse
daquele galho, poderia se afogar.
FADA AZUL E SUA FUNÇÃO
A Fada Azul é uma personagem muito importante na transformação de Pinóquio
em menino de verdade. Sua companhia é fundamental nesta trajetória do vir a ser. O
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boneco idealiza a fada, como alguém muito poderosa que poderia transformá-lo
magicamente, projetando nela toda a esperança e responsabilidade de sua
transformação. Conforme a história vai transcorrendo, observamos a Fada como aquela
que acompanha Pinóquio em sua jornada, tentando refletir junto com o boneco, sobre
suas atitudes, exercendo a função continente. Ela o ajuda a perceber as diferenças e a
fazer discriminações, bem como lidar com as frustrações e a criar uma condição de
tolerância para alcançar o que deseja. A fada ajuda Pinóquio a perceber que a
transformação que ele deseja precisa acontecer dentro dele mesmo.
Na clínica psicanalítica, podemos comparar a função-fada com a função do
analista. Nossos pacientes chegam procurando sentido, ânsia de existência, mas muitas
vezes esperando da “fada azul-psicanalista” uma transformação mágica, rápida e sem
dor.
Até que ponto a idealização tem uma função importante e necessária no
processo de análise?
Seria importante, para o início da relação analítica, que o paciente
acreditasse que o analista é uma pessoa que possa dar conta de tudo?
Ou será que a idealização também não poderia ser usada como uma forma
de evitar viver emoções tão humanas?
A relação analítica é uma relação naturalmente assimétrica. Ogden em seu
livro A arte da psicanálise esclarece: “A metodologia analítica se baseia no
pressuposto de que existe um “diferencial“ (Loewald, 1960, citado por Ogden p. 24)
entre a maturidade emocional do analista e a do analisando, ou seja, que o analista
atingiu um nível de maturidade psicológica maior do que o analisando, ao menos nas
áreas de experiência mais problemáticas para o paciente”
A experiência concreta, sem nenhuma simbolização quando encontra com uma
mente continente vai se transformando, criando um significado, e com isso
desenvolvendo recursos internos, a subjetividade, que podemos então considerar como
sendo um caminho em direção ao crescimento. Pensando no modelo mãe/bebê, a mãe
sendo continente ao choro do bebê, vai transformando o desconforto do bebê em algo
com um significado. Assim, o bebê pode desenvolver recursos dentro dele para suportar
o desconforto e a frustração. Suportar a frustração é essencial para o desenvolvimento
do aparelho de pensar. Todos nascemos Pinóquio, com pensamentos e verdades que
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esperam companhia para torná-los toleráveis, possíveis de pensamento e existência.
Desenvolver o aparelho de pensar, liberta a dor e percebemos que o desenvolvimento da
condição de pensar os pensamentos é LIBERTADOR.
Bion (1962 citado por Ogden, 1991, p. 25) introduziu o termo
função-alfa para se referir ao conjunto ainda desconhecido de funções
mentais que juntas transformam “impressões sensoriais brutas
relacionadas a uma experiência emocional”, as quais denomina de
“elementos-beta”,
em
elementos-alfa”.
Os
elementos-beta
–
impressões sensoriais não processadas – não podem ser ligados entre
si e, conseqüentemente, não podem ser utilizados para pensar, sonhar
ou armazenar na memória. Em contraste, os elementos-alfa são
elementos da experiência que podem ser ligados entre si no processo
consciente e inconsciente de pensar e de sonhar (tanto enquanto
acordados quanto dormindo).
Se entendermos que no inicio do processo analítico o paciente se apresenta com
a função alfa muito precária, e em alguns casos, quase nula, a idealização do analista
parece necessária para que o analisando possa investir sua esperança, na pessoa do
analista, acreditando na possibilidade de tornar-se de verdade. É também muito
importante para o paciente sentir o analista
capaz de suportar as evacuações de
elementos beta por parte do paciente, os quais serão desintoxicados pelo analista e
devolvido para o paciente de uma maneira mais tolerável . Desta maneira, paciente e
analista vão tecendo o continente, expandindo a possibilidade de sonhar e pensar,
aproximando-se o paciente da sua verdade.
Anne Alvarez em seu artigo “O anjo necessário”, faz referência a alguns autores
que colocam que a idealização além de sua função defensiva, é uma necessidade, ou
seja a crença no bons objetos é um passo intermediário essencial para o
desenvolvimento mental. Rosenfeld (1987 citado por Alvarez, 1994, p. 132) que
“salienta uma questão técnica, mas também teórica e quantitativa implícitas, quando diz
que o analista não deve desfazer a idealização muito rapidamente no caso de pacientes
muito vulneráveis, que talvez precisem idealizar o analista para criar uma atmosfera
benigna”.
Entretanto a idealização também pode atuar como um impedimento psíquico, e
enrigecer a relação analítica, evitando tanto o contato do paciente com analista quanto
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do paciente com suas emoções. Portanto, a percepção destes momentos e de funções
distintas da idealização por parte do analista torna-se essencial, para ajudar o paciente a
se libertar em direção ao crescimento psíquico.
Lucas – escravo da idealização
Lucas um rapaz muito insatisfeito com seu trabalho, referia-se ao mesmo como
“trabalho escravo”, dizia ser infeliz por isso e também não via perspectiva de mudar
esta situação. Mesmo porque não tinha nenhuma idéia do que poderia deixá-lo feliz.
Desde o início de sua análise, trata a analista de modo bastante formal. “Tudo bem com
a Senhora, Doutora?” Quando em uma sessão a analista investiga a função deste
tratamento, aparece um Lucas enfurecido. Todas as emoções que tentava evitar com
aquela formalidade/idealização vem a tona mostrando o quanto era difícil para ele viver
se aproximar mais intimamente de suas emoções. Entretanto, a possibilidade de vivê-la
em companhia da analista, promoveu uma experiência com emoções intensamente
violentas. Ter a analista como uma companheira para conhecer emoções que eram tão
temidas, foi retirando a analista e também seus temores, deste lugar idealizado e ao
mesmo tempo distante.
A MENTIRA E A VERDADE DE PINÓQUIO
Fauno e seu bisturi
Os pais de um Fauno de 15 anos procuram análise para o filho, ele esta se
cortando e mesmo prometendo que não se cortaria novamente, os pais descobrem que o
filho não consegue cumprir a promessa.
- Ele é mentiroso e ardiloso. Diz o pai.
O jovem relata logo no primeiro encontro: - Me corto pra sentir na pele a dor
que estou sentindo, não penso em me cortar, quando vejo estou me cortando.
O que os pais chamam de mentira, revela a verdade do garoto que nos apresenta
sua impossibilidade de sentir e pensar suas emoções.
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É exatamente nesta “impossibilidade” psíquica que o adolescente se assemelha
ao menino-marionete. Ele promete que vai parar, pois acredita que não vai se cortar, que
controla seus movimentos, mas de repente esta repetindo aquela ação. Não existe um
pensamento, existe uma ação quase “automática”, como uma ação que responde as
linhas que mexem com a marionete. Ele deixa claro que não entende o que sente,
precisando muitas vezes “sentir na pele”, sensações que possam dar existência a
emoções e sentimentos.
O cortar-se pode atuar como um estímulo sensorial que se choca com a fronteira
emocional, registrando-se como um elemento beta que através da função alfa, irá
aumentando a capacidade de mentalização para tornar os pensamentos oníricos e as
memórias em um reforço para a barreira de contato – cicatrização da pele psíquica.
O rasgo na pele que o adolescente faz, pode ser um modelo de um rasgo na
barreira de contato, onde se misturam os estados de consciência e inconsciência,
trazendo caos e confusão. Mas também sugere idéia de um corte cirúrgico, uma cesárea,
de onde pode nascer o produto bruto, original ( o próprio sangue) para ser pensado,
conhecido e sentido.
Estes pacientes apresentam um funcionamento onde predomina o impedimento
psíquico e em grande parte do tempo apresentam um pensamento do tipo operacional,
isto é, mais próximo da marionete de madeira do que de um menino de verdade.
Segundo Ogden (2010, p. 21) existem pacientes que apresentam um transtorno
caracterizado pelo
impedimento psíquico. “São pacientes com transtornos
psicossomáticos e perversões graves, encapsulação autista em sensações corporais,
estados de “des-afeto” nos quais os pacientes são incapazes de “ler” suas emoções e
sensações corporais, (...) Nos transtornos que envolvem impedimento psíquico, o
pensamento do paciente é, em grande medida, de tipo operacional.
Antonino Ferro (2011, p. 49, 50), utiliza de uma narrativa com uma adolescente
que levava consigo uma bombinha paralisante e utiliza como analogia da mentira, este
modelo: a mentira seria um spray paralisante para emoções muito forte, com o qual
estes pacientes tentavam paralisar emoções muito fortes que não conseguiam vivenciar.
Ele ainda faz uma reflexão muito importante sobre a mentira e a verdade, que
podemos nos aproximar da verdade psíquica progressivamente, mas sempre tolerando
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aquela quantidade de mentira, que em diferentes doses, nos é necessária para
sobreviver.
A TRANSFORMAÇÃO DE PINÓQUIO EM MENINO DE VERDADE
Ana e seu caça palavras
Ana, uma jovem de 23 anos, procurou análise há quatro anos, apresentava crises
onde ficava totalmente paralisada e só voltava a se mexer após ser internada e medicada
com remédios bem fortes.
Quando chegou para análise, estava fazendo tratamento com medicamentos
psiquiátricos e durante um longo tempo teve muita dificuldade em se organizar no
tempo e espaço para chegar às sessões. Esquecia totalmente das sessões, desaparecia por
alguns dias e após longo período retornava.
Durante os primeiros três anos de trabalho, as crises foram se espaçando, os
medicamentos sendo retirados e Ana ficando muito ligada á analise. Após as férias de
final de ano, Ana retorna muito assustada com o que sentiu durante as férias, teve muita
vontade de ligar pra analista, pois sentia a agitação que normalmente precedia as crises
de paralisação. Entretanto, aguardou o retorno no dia combinado.
Neste primeiro dia após as férias relata o seguinte sonho:
- Eu era a palavra de um caça palavras. Procurava onde eu caberia e não
conseguia encontrar um lugar. Acordo assustada do sonho e me vejo, espremida e dura
no canto da cama, como a palavra no sonho que tentava se encaixar no quadrado do
caça palavras.
Ana sentiu pela primeira vez após 4 anos de análise, a separação da analista e a
abstinência da análise. Ela estava num caça palavras, buscava a palavra, o sentido. Ao
mesmo tempo ela era a própria palavra, a palavra concreta. Ana e sua analista começam
a construir uma ponte entre o concreto e o simbólico. Inicia um movimento de
transformação de partes sem sentido, enrigecidas em busca de sentido e que através da
palavra, pode libertar as emoções, torná-las vivas e pensáveis. A psicanálise como um
relicário de palavras.
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“Existe algo verdadeiro na experiência emocional humana que um analista pode
sentir e comunicar com precisão ao paciente em palavras que o paciente possa ser capaz
de utilizar” (Ogden, 2010, p. 89).
Na ficção, parece existir um momento em que a fada transforma o boneco em
menino de verdade. É o que a maioria acredita, entretanto o fato é que Pinóquio
conquista ao longo de sua trajetória o condição humana, pois a transformação vai
acontecendo a cada experiência vivida e compartilhada com a fada, momentos de
conversa e reflexão durante toda a história, pontes construídas entre o concreto e o
simbólico.
Assim, compartilhamos na clínica estas transformações de estados mentais“Pinóquio” em estados mentais “Menino de verdade”. Quando podemos acompanhar
estados de impedimento psíquico, onde predomina a evasão das emoções, presenciamos
um enrigecimento e um estado marionete. Por outro lado, quando podemos viver as
emoções e compartilhar estas experiências acompanhamos o processo de vir a ser mais
verdadeiro do paciente.
Segundo Ferro (2011, p. 45-46) o mental deriva da transformação do que é
sensorialidade em elementos alfa. A psique seria algo que nasce da transformação de
tudo aquilo que é percebido como perturbador e que, conseqüentemente, torna-se o
“percebido evacuado”. Uma vez que este percebido evacuado é acolhido e transformado
por uma mente que tenha uma função alfa que funcione, inicia-se o processo que leva ao
elemento alfa e a introjeção progressiva da função alfa.
Desta maneira, o analista, não transforma seu paciente em alguém de verdade. O
paciente, através de sua relação com o analista, é que vai desenvolvendo sua condição
de ser verdadeiramente ele, isto é, a partir da introjeção da função alfa da fada-analista.
Segundo Ogden (2010, p. 91) o analista, ao fazer uma interpretação (que encerra
alguma verdade e é utilizável pelo paciente) dá “forma” verbal à experiência que antes
era não verbal e inconsciente. Ao fazer isso, o analista cria o potencial para uma nova
experiência do que é verdadeiro que deriva da experiência inconsciente inarticulada do
paciente.
Portanto, ser um menino de verdade, nascer psiquicamente, depende
obrigatoriamente da passagem através da mente do outro. É preciso ao menos duas
pessoas para pensar (Bion, 1963 citado por Ogden, 2010, p. 90). Depende de encontrar
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uma fada azul, com sua varinha-função pensante e que esta relação funcione de forma
suficientemente boa para que através da introjeção desta função, o Pinóquio-marionete
possa deixar nascer o Pinóquio-menino de verdade. A verdade pode então vir a tona
através da relação entre duas pessoas.
O menino de verdade, a verdade do menino, esteve sempre presente no
Pinóquio-marionete, aguardando uma outra mente-fada azul, para poder nascer.
Referências:
Alvarez, A. (1994). Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas,
borderline, carentes e maltratadas. (p. 132). [s.l.]: Arte medica.
Andrade, S. H. (2013). A dramatização na situação analítica. Bergasse 19, III(2), 117,
118.
Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência. (p. 25, 26). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1962).
__________. (1994). Estudos psicanalíticos revisados (second thoughts). (p. 137). Rio
de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)
Ferro, A. (2011). Evitar as emoções, viver as emoções. (p. 23, 40, 45, 50). Porto Alegre:
Artmed.
Grotstein, J. S. (2010). Um facho de intensa escuridão: o legado de Wilfred Bion à
Psicanálise. (p. 141). Porto Alegre : Artmed.
Ogden, T. H. (2010). Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos
interrompidos. (p. 18, 21, 24, 89, 91). Porto Alegre: Artmed.
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