Resumo: Este artigo aponta questões relevantes sobre a Psicologia

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Rodrigo Soares Santos
Psicólogo (CRP 08/7213) graduado pela UFPR; Mestre em Avaliação Psicológica pela
Universidade São Francisco; Especialista em Psicologia Clínica; Professor de Psicologia
Forense do curso de Direito da Universidade Positivo; Professor do curso de Psicologia da
FAE; Perito Louvado e Perito Assistente Técnico, com atuação nas áreas de Direito Penal,
Direito de Família, Direito Civil, Direito do Trabalho.
Michelli Miranda Andretta
Advogada Criminal (OAB-PR 56.566) e especialista em Direito Penal
e Processual Penal pelo Centro Universitário Curitiba.
Resumo: Este artigo aponta questões relevantes sobre a Psicologia do
Testemunho e suas contribuições ao Direito. São destacados assuntos como
a memória humana, seu funcionamento e o fenômeno das Falsas Memórias.
As entrevistas de crianças e adultos são abordadas de uma forma crítica,
identificando possíveis problemas e indicando técnicas mais adequadas para
não influenciar o depoimento, que, muitas vezes, é de extrema relevância
num procedimento judicial ou, até mesmo, a única prova. São, ainda, apontadas propostas, com base em dados e estudos científicos, de alteração para
o Código de Processo Penal Brasileiro de modo a evitar informações que não
correspondam à realidade e que possam gerar erros judiciais e suas graves
consequências.
Palavras-chave: testemunho, falsas memórias, elemento probatório,
Código de Processo Penal, Psicologia Jurídica, Direito Penal.
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A busca da verdade judicial esbarra em distintos fatores que interferem
na convicção do Juiz e em todo o procedimento judicial. Um processo, ao
tramitar em julgado, é resultado do caminho percorrido desde a produção
material da prova, o julgamento e seu desfecho.
É certo que se busca o justo e, caberão às partes, quando for o caso, a
organização dos meios de prova admitidos em direito para o êxito em sua
ação. Contudo, por mais que as partes atuem com legitimidade na produção
desse material, em alguns casos o que lhes restará serão provas subjetivas e
frágeis como a prova testemunhal.
É lícito afirmar que, por mais que tenhamos uma coleta competente de
provas, alguns fatos aconteceram há tanto tempo que não existem mais
meios de se buscar evidências concretas que configuram a materialidade do
crime. Some-se a isso que, em muitos casos, a única testemunha é a própria
vítima e, por vezes, quando esta ainda era uma criança, principalmente em
delitos de natureza sexual.
Em outros acontecimentos o evento é em demasia traumático e sua recordação traz consigo toda emoção negativa, podendo interferir no processo
de recordação. Mesmo sem que exista a intenção de uma falsa imputação,
sob algumas variáveis uma testemunha ou vítima pode fazer alegações muito
diferentes do que viveram e descrever coisas que nunca aconteceram ou não
ocorreram exatamente daquela forma.
O estudo da Psicologia do Testemunho mostra que a busca pela verdade judicial pode ser um caminho frágil e perigoso que pode acarretar consequências nefastas na vida dos envolvidos; ademais, no Brasil a prova testemunhal tem um peso imenso e uma credibilidade que vai de encontro às
pesquisas sobre o tema. Nesse sentido, ainda muitos juízes, promotores e
delegados de polícia simplesmente ignoram a temática das Falsas Memórias
e a sugestionabilidade testemunhal inerente ao armazenamento de informações – memória – a que todos nós estamos sujeitos.
Esta temática tem embasamento científico em estudos de mais de 30
anos. No nosso Código de Processo Penal encontramos procedimentos, para
a coleta da prova testemunhal, que há muito se comprova como ineficiente e
sugestivo, tanto no testemunho infantil e adulto, quanto no reconhecimento
de suspeitos pessoalmente ou por fotos.
As propostas de mudança nesses procedimentos visam reduzir o máximo possível o efeito da sugestionabilidade nos interrogatórios de crianças,
adolescentes e adultos e no reconhecimento de pessoas. O presente artigo
espera contribuir para uma reflexão sobre o uso da prova testemunhal, entendida por muitos pesquisadores como a prova mais frágil no curso da busca por justiça.
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A memória se refere àquilo que armazena, conserva e evoca de sua
própria experiência pessoal com fortes componentes emocionais e sob intensa modulação hormonal. Existem muitos tipos de memórias, as de curta e
longa duração, a memória de trabalho, a episódica entre outras, e são localizadas em vários pontos do nosso cérebro atuando de forma concatenada
(Izquierdo, 2009). Baddeley (2011) informa que a Memória Autobiográfica
refere-se àquelas que mantemos em relação a nós mesmos e nossas relações com o mundo a nossa volta. Voltaremos a esse ponto mais tarde para
falar de seu valor probatório.
Muito do que vivemos na vida acabamos por esquecer, contudo algumas situações ficarão para sempre registradas. As Memórias Instantâneas
(ou Vívidas), por exemplo, (Gazzaniga e cols., 2006) são aquelas associadas
a circunstâncias de fatos chocantes ou emocionalmente carregadas. Um
exemplo é perguntar o que estava fazendo em 11 de setembro de 2001? A
maioria das pessoas pode dizer exatamente o que estavam fazendo, com
quem estavam, o local e talvez até a roupa que vestiam. Imagina-se, assim,
que essa memória seja mais precisa do que outras.
Alguns estudos (Neisser e Harsch, 1992 apud Gazzaniga e cols., 2006),
entretanto, afirmam que este tipo de memória não é mais preciso do que os
outros e podem trazer informações que não aconteceram de fato. Uma pesquisa foi realizada com estudantes universitários americanos sobre as notícias da explosão da nave Challenger em 1986. Eles foram entrevistados 24
horas após o incidente e até dois anos e meio depois. Os resultados mostraram variações significativas nas respostas em mais de 40% dos estudantes.
Feix e Pergher (2010) informam que boa parte dos indivíduos não está
acostumada a resgatar suas vivências de maneira detalhada, e o momento de
inquirir uma testemunha ou vítima pode ser equiparado a um teste de memória. Nesse sentido o uso de técnicas inadequadas para coleta de informações da memória de testemunhas pode resultar no comprometimento na
qualidade de um testemunho. Revelam, ainda, que muitas pesquisas sobre o
funcionamento da memória têm demonstrado que, ao vivenciarmos uma
situação, focamos apenas em alguns aspectos do evento. Sendo assim será
impossível lembrar-se de todos os detalhes que ocorreram, podendo até
acrescentar novos detalhes ao fato vivido. Este fenômeno é conhecido como
Falsas Memórias.
Esse processo de ‘falsificação de memória’ (Stein & Neufeld, 2001) é
descrito como a lembrança de fatos que não ocorreram, sendo objeto, há
muito tempo, de estudos motivados principalmente pelo contexto clínico e
forense, com vítimas ou testemunhas de um determinado evento.
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As falsas memórias podem se originar de duas formas, espontaneamente ou por sugestão. A falsa memória espontânea dá-se por autosugestão por meio de processos internos do indivíduo; enquanto as sugeridas se originam de uma informação externa ao indivíduo, de maneira intencional ou não. O fenômeno das Falsas Memórias, então, é uma distorção
mnemônica natural do processo de armazenamento de informações que não
se originam de mentiras, manipulações ou por pressão social.
Para entender a gênese das distorções mnemônicas é importante salientar uma das teorias que propõem o armazenamento de informações em
nosso cérebro. A TEORIA DO TRAÇO DIFUSO nos diz que a memória é não
em um sistema unitário, e sim dois sistemas independentes. Stein e Neufeld
(2001) explicam que um sistema armazena o conteúdo geral das informações, chamado MEMÓRIA DE ESSÊNCIA, enquanto que a MEMÓRIA LITERAL
guarda os conteúdos referentes aos detalhes específicos de um fato ou
evento.
A explicação do funcionamento da memória, a partir desses múltiplos
traços (Neufeld, Brust & Stein, 2010), trouxe novos contornos ao conhecimento do armazenamento de informações e duas variáveis foram importantes para isso. Uma delas se refere à relação semântica e a outra se deve à
evolução do estudo sobre raciocínio e as diferenças nas habilidades de memória.
Nosso processamento de informações busca o que é mais fácil para
agilizar a compreensão e dá preferência ao trabalho com o que é essencial
numa experiência, em contrapartida com o armazenamento dos detalhes
desta. Nesse sentido, segundo a Teoria do Traço Difuso, as pessoas armazenarão de diferentes formas o conteúdo de um mesmo evento, sendo que a
memória de essência tende a ser mais estável que a memória literal (Neufeld,
Brust & Stein, 2010). Em outras palavras, será mais fácil recordar o sentido
geral de um acontecimento que os detalhes nele envolvidos, já que a memória literal está mais sujeita a interferência por processamento de informações, enquanto a memória de essência é considerada mais robusta e duradoura (Brainerd, Howe & Reyna, 1996 apud Stein & Neufeld, 2001).
Neufeld, Brust e Stein (2010) contam a história de assalto a um taxista
que acarretou sua hospitalização. Durante sua convalescência ele foi interrogado ainda no hospital, onde lhe foram mostradas duas fotografias de suspeitos e possíveis autores do delito. Nenhum deles foi reconhecido. Após
alguns dias a vítima foi à delegacia para realizar o reconhecimento de alguns
suspeitos e reconheceu dois deles que, “por ventura”, eram os dois homens
mostrados nas fotos ao taxista no hospital. Os suspeitos foram então acusados pelo crime. No julgamento o taxista relata que “eu tenho mais certeza
que foram eles, do que meus filhos são meus filhos” (p.22). Passado mais um
tempo dois outros homens foram presos em uma localidade próxima em
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decorrência de um assalto e, interrogados, confessaram vários delitos, incluindo o assalto ao taxista.
Esse exemplo nos esclarece que nossa memória não é infalível e precisa, uma lembrança continua sendo influenciada por outros eventos que vivenciamos mesmo após o fato lembrado; assim, juntamos situações, pessoas
e localidades distintas, algumas vezes, em uma só recordação. O taxista
lembrava-se do fato, mas foi influenciado pelo investigador que o interrogou
no hospital ao mostrar-lhe fotografias de duas pessoas. Ao passar pelo reconhecimento, o motorista de taxi lembra-se dos homens vistos nas fotografias mostradas no hospital e os associa ao evento traumático.
Esse evento é descrito como ERRO DE MONITORAMENTO DA FONTE.
Neufeld & colaboradores (2010) esclarecem que a teoria intitulada de Monitoramento da Fonte se deve ao local, pessoa ou situação onde determinada
informação é originada, e o resgate dessas informações implica em processos de monitoramento de uma realidade vivenciada. A base dessa teoria
concentra-se no julgamento da diferença entre a origem verdadeira da memória recuperada e outras fontes distintas. Tais fontes podem ser tanto internas ao sujeito quanto externas; as internas se referem às imagens, sentimentos e pensamento, enquanto as externas referem-se a qualquer outro
evento vivenciado. Pergher (2010) complementa essa ideia afirmando que, ao
passarmos por um determinado evento, nossa memória não codifica apenas
os dados em si, mas também informações acerca das circunstâncias em que
essa informação foi adquirida.
Ao recordarmos um fato não o fazemos como num filme ou uma foto,
e sim reconstruímos nossas lembranças sujeitando-as a todas as interferências de eventos que vivenciamos antes e depois do episódio em questão.
Nossa memória é armazenada em arquivos denominados de Traços de Memória, que não são independentes e unitários e, ao acessarmos informações,
seus conteúdos se misturam (Pergher, 2010).
Informações erradas têm o potencial de invadir nossas memórias
quando falamos com outras pessoas, quando somos sugestivamente interrogados ou quando lemos ou assistimos notícias a respeito da cobertura que a
mídia faz sobre um determinado evento que vivenciamos. As memórias são
mais facilmente modificadas conforme o tempo passa, permitindo que a
memória original desapareça. Basta um elemento para mudar um detalhe em
nossa memória, sendo também suficiente para que seja implantada uma
falsa memória de um evento que nunca ocorreu (Loftus, 1997).
Embora fortes sugestionamentos não sejam rotina em interrogatórios
policiais ou em sessões de psicoterapia, sugestões se fazem, às vezes, com
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um exercício de imaginação. Policiais quando desejam obter uma confissão
de um suspeito, muitas vezes podem reportar-se a ele como um efetivo participante do crime. No contexto clínico, muitos terapeutas incentivam seus
pacientes a imaginarem eventos escondidos em suas memórias (Loftus,
1997).
Nesses casos, os terapeutas sugestionam seus pacientes a acreditarem
que foram abusados sexualmente quando criança. A dimensão desses eventos chegou a tal ponto que existem associações americanas e inglesas 1 para
apoiar vítimas de falsas memórias de abuso sexual. Memórias essas que não
existiam antes do início das sessões psicoterápicas 2. Contudo, muitas pessoas foram processadas e presas, suicídios foram cometidos e famílias se
desfizeram sem qualquer elemento probatório além do testemunho.
Não são raros também, os casos de pessoas que confessam crimes que
nunca cometeram. Em janeiro de 1988, Michel Crowe, um adolescente, na
época dos fatos com 14 anos, foi interrogado pela polícia como suspeito de
ter matado sua irmã de 12 anos de idade, durante a noite, a facadas. Ele foi
interrogado durante várias horas seguidas com perguntas indutivas e sugestionadoras. Ao final ele confessa o ocorrido. No julgamento sua confissão foi
descartada quando o juiz viu o vídeo que mostrava como o interrogatório foi
realizado. Tempos depois a polícia prendeu um homem que confessou ter
matado a garota.3
Se os adultos, que possuem sua memória completamente desenvolvida, já sofrem alterações sob pressão ao deporem em um tribunal, o que dizer de crianças quando estão nessa situação, com sistemas de memória ainda parcialmente desenvolvidos? O testemunho infantil muitas vezes é utilizado em casos em que a própria criança fora vítima de violência, contudo,
perguntas direcionadas podem induzir crianças a construírem testemunhos
(Gazzaniga, Ivry e Mangun, 2006).
Ao serem chamadas a prestar esclarecimentos, as crianças podem, assim como qualquer outra pessoa, fazer relatos de situações que elas nunca
viveram ou não viveram dessa maneira. Stein e Nygaard (2003) afirmam que
a demanda cognitiva e emocional, que recai sobre uma testemunha no momento do depoimento, é grande, sendo essa testemunha uma criança ou um
adulto.
Assim, o papel do entrevistador/investigador que inquirirá essas testemunhas é crucial, pois ele terá que engajá-las no processo de busca de
informações precisas contidas em sua memória. Ele precisará dispor estraté-
1
www.stopbadtherapy.com; www.fmsfonline.org; www.bfms.org.uk
Esse fenômeno é conhecido como SÍNDROME DAS FALSAS MEMÓRIAS. Ver mais em Pinto, Pureza e
Feijó, 2010.
3
www.michaelcrowecase.blogspot.com. Outros caso podem ser pesquisados: Peter Reilly (1973); Earl Washington Jr. (1975); e um caso de confissão coletiva que ficou conhecido como ‘The gang rape of Central
Park’.
2
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gias para motivar e auxiliar a descrever o evento em detalhes com a maior
precisão possível, pois, sem isso, provavelmente poucas informações serão
obtidas (Poole & Lamb, 1998, apud Feix & Pergher, 2010).
Mas como é possível que uma criança tenha relatado um fato que ela
não vivenciou? Dependendo de algumas variáveis, crianças e adultos podem
evocar falsas memórias de eventos nunca vivenciados ou não vivenciados
daquela maneira. Uma entrevista dirigida de forma inadequada poderá contribuir para isso.
Rovinski & Stein (2009) informam que, no contexto forense, a técnica
de entrevista ultrapassa a simples ‘confirmação de hipóteses’ para a busca
de uma verdadeira ‘testagem de hipóteses’, onde o psicólogo deve, a todo o
momento, questionar a validade de seus achados e métodos utilizados. Segundo as autoras, esta postura mais crítica traz uma maior exigência em
relação à validação científica dos dados levantados e uma maior limitação à
interpretação das condutas do entrevistado. Evidenciam que casos de falsas
acusações de abuso sexual em crianças estariam mais relacionados às entrevistas conduzidas de maneira sugestiva pelos adultos do que às possíveis
distorções produzidas por déficits cognitivos relacionados à maturação infantil (Poole & Lamb, 1998, apud Rovinski & Stein, 2009).
Goodman e cols. (1994) afirmam que um dos mais importantes fatores
preditivos da precisão da memória é a idade do avaliado. O desempenho de
memória para eventos traumáticos é significativamente pior em crianças entre de 3 a 5 anos em relação a crianças maiores. Para os autores, outras variáveis que afetam esse desempenho são o quanto o episódio traumático é
compreendido pela criança, o grau de suporte emocional e de comunicação
dos pais e os sentimentos da criança, positivos ou negativos.
A criança então seria incapaz de descrever detalhes de situações por
elas vividas? E, como realizar uma perícia psicológica forense numa criança
de tenra idade? É sempre importante lembrar que em muitas ocasiões não
existirão outras provas ou testemunhas da violação sexual, apenas o seu
relato; também acontece com frequência a criança não entender o ato como
uma violação, pois o fato pode envolver uma sedução com presentes, por
exemplo, e um vínculo afetivo com o agressor.
Como visto no início do texto, Baddeley (2011) afirma que a Memória
Autobiográfica refere-se àquelas que mantemos em relação a nós mesmos e
nossas relações com o mundo a nossa volta. Pergher (2010) relata que Memória Autobiográfica é o sistema de memória responsável pelo registro da
história de vida de um sujeito; são as lembranças que este possui sobre sua
própria história. Em outras palavras, o indivíduo é o protagonista do evento
lembrado; é auto-referente. Sendo assim, pesquisadores são unânimes em
afirmar que as memórias que temos do nosso passado não são um retrato
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fiel dos fatos como aconteceram, as lembranças da vida estão sujeitas a distorções. Para o autor, nossa memória é, por natureza, distorcida. 4
Conway (1997, apud Pergher, 2010) acrescenta que uma concepção
comum às teorias que estudam as Falsas Memórias Autobiográficas é que, as
nossas lembranças são em parte, uma reconstrução do passado e que não
temos um mecanismo que arquiva, armazena e recupera arquivos de maneira fiel. O estudo da Psicologia do Testemunho é indissociável ao estudo da
Memória Autobiográfica e de suas distorções, auxiliando, principalmente,
nos crimes em que não há evidências materiais ou físicas; uma prova consistente implica em uma entrevista bem conduzida (Pergher, 2010).
Herger e cols. (2002) realizaram uma pesquisa com 2384 crianças em
um hospital dos Estados Unidos que haviam buscado auxílio como consequência de suposto abuso sexual. Somente 4% delas apresentaram alguma
anormalidade no exame físico. Mesmo quando o abuso havia sido severo,
incluindo penetração, os achados somaram apenas 5,5% das crianças. Welter
e Feix (2010) acrescentam que o efeito da vivência de situações de estresse
crônico no desenvolvimento neurológico da criança vitima de maus tratos,
por exemplo, nem sempre são detectáveis durante o período da infância,
podendo sê-lo na fase adulta.
Eysenck (2011) por sua vez informa que, sobre a memória autobiográfica, alguns estudos sugerem uma escassez de lembranças que antecedem a
idade de 5 anos. Fenômeno esse conhecido como amnésia infantil. Além da
dificuldade de se obter informações, outra questão é a qualidade do que se
recorda; essas informações são do próprio indivíduo ou são fontes de informações de outras pessoas? Para o autor, uma das características básicas da
amnésia infantil é o fato de adultos tenderem a não conseguirem lembrar-se
de memórias autobiográficas no início de suas vidas.
A base da chamada amnésia infantil é a teoria freudiana (Freud, 1904
apud Baddeley, 2011) que propõe que tendemos a reprimir lembranças negativas. Essas lembranças geradoras de ansiedade seriam reprimidas pelo
ego e, como consequência, geraria uma série de sintomas na idade adulta
resultado da repressão a memória do abuso. Pinto e cols. (2010) esclarecem
que a Associação Americana de Psicologia, desde 1995, adverte que não há
nenhuma evidência científica comprovando que um conjunto de sintomas
seja capaz de indicar que uma pessoa foi abusada sexualmente. Contudo
Welter e Feix (2010) alertam, porém, que a falta de indicativos psicopatoló-
4
Pergher (2010) em seu excelente texto relaciona as Falsas Memórias Autobiográficas a Teoria dos Esquemas como uma maneira de explicá-la. Contudo descrevê-la nesse momento fugiria a o tema; fica então a
proposta de leitura.
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gicos não pode ser interpretada como evidência negativa da ocorrência de
situações de violência.5
Rohenkohl & Col. (2010) informam, sobre a emoção e o fenômeno das
Falsas Memórias, que quanto mais desagradável (VALÊNCIA) for o evento e
mais intenso (ALERTA), mais existe a probabilidade de evocação de uma falsa
lembrança ou Falsa Memória. Os autores citam estudos que indicam que
eventos emocionais não são mais resistentes à distorção que eventos neutros, pois, especialmente em eventos emocionais, o aumento no índice de
memórias verdadeiras vem acompanhado de memórias falsas. Afirmam, ainda, que “estímulos emocionais são recuperados em maior quantidade, mas
também podem ser mais falsamente reconhecidos” (p. 95). E concluem que
as memórias de eventos emocionais não são mais confiáveis e precisas do
que memórias de eventos não emocionais, contudo, sugerem que tendemos
a lembrar mais de eventos emocionais do que de eventos não emocionais.
Na avaliação psicológica de crianças com suspeita serem vítimas de violência, Welter e Feix (2010) sugerem que os profissionais envolvidos na
busca pelos indicativos de ocorrência dos fatos, devem reunir o maior número de elementos disponíveis sobre a suspeita de violação. Assim deve ser
incluso o relato da criança, o exame de suas condições físicas e psicológicas,
entrevistas com os responsáveis por ela, entre outros. Desta forma, objetiva
reduzir o risco do erro nesta situação. 6
No Rio Grande do Sul, o projeto DEPOIMENTO SEM DANO 7 tenta reduzir
a ansiedade de crianças e adolescentes vítimas de abuso físico e sexual, aumentando a qualidade de seus depoimentos. Assim, possibilitam um ambiente adequado, que será útil tanto na busca de informações quanto na possibilidade do contraditório ao acusado. Verificando o vídeo produzido é possível saber se a testemunha/vítima foi sugestionada durante a entrevista. 8
As crianças estão cada vez mais sendo solicitadas a fornecer relatos de
suas experiências em tribunais; na Inglaterra e País de Gales o Ministério do
Interior e Departamento de Saúde, em 1992, decidiram que as entrevistas em
vídeos, com crianças, eram admissíveis em casos de crimes. Portanto, é preciso saber a precisão e confiabilidade dos relatos de crianças a respeito dos
5
Welter e Feix citam Alberto, 2004, 2006. I) Alberto, I.M. (2004). Maltrato e Trauma na Infância. Coimbra: Almedina. II) Alberto I.M. (2006). Abuso Sexual de Crianças: o psicólogo na encruzilhada da ciência
com a justiça in Fonseca, A.C., Simões, M.R, Simões, M.C.T. & Pinho, M.S. (org.). Psicologia Forense (p
437-470), Coimbra: Adrenalina.
6
Santos, R.S., Andretta, M.M. & Couto, G. (no prelo) Avaliação Psicológica e Ética Profissional, PsicoFAE: Revista do Curso de Psicologia da FAE (Curitiba-PR) discutem as conseqüências das avaliações psicológicas em casos de suspeita de abuso sexual de crianças e a produção de Laudos Psicológicos sem qualquer
fundamentação técnica e científica, com resultados devastadores aos envolvidos. Há relato de caso onde o
Psicólogo assina um Laudo sem nem ter visto ou ouvido a criança envolvida.
7
Ver Dobke, V. (2001). Abuso Sexual: a inquirição das crianças: uma abordagem interdisciplinar, Porto
Alegre: Ricardo Lenz.
8
Infelizmente há propostas para impedir que o psicólogo participe de inquirições de crianças e adolescentes.
Estas sugestões, muitas vezes, são de profissionais que não possuem experiência e conhecimento em Psicologia Jurídica, Avaliação Psicológica e Falsas Memórias.
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crimes alegados e como se pode maximizar a precisão desses relatos. Crianças novas possuem uma razoável memória de eventos específicos, principalmente se fornecidos estímulos adequados (Eysenck, 2011). A questão é
que a idade, na época dos acontecimentos, parece ser um fator determinante
na capacidade de acessar, de forma consciente, a memória de eventos traumáticos (Córdon, 2004).
Bruck e Ceci (1997, 1999) explicam que a sugestionabilidade é maior
em crianças nos primeiros anos da infância que nos últimos e que crianças
de 3 e 4 anos são mais sugestionáveis que as maiores. As de 10 a 12 anos,
contudo, não são mais sugestionáveis que adultos. Para Eysenck (2011), uma
preocupação é que depoimentos de crianças como testemunhas podem conter erros, entretanto, quando o entrevistador é neutro em seu questionamento, as memórias infantis tendem a ser, em geral, mais precisas. Dois
fatores estão envolvidos nesse processo; o primeiro seria a questão da submissão social e o outro é a imaturidade cognitiva da criança.
Eysenck (2011) propõe que o entrevistador não faça perguntas orientadas, e alerta que sua influência pode se manifestar de forma mais sutil,
como reforçando as respostas desejadas e criticando as respostas não desejadas. A repetição de perguntas também exercerá influência no depoimento
infantil. Uma das formas de melhorar o desempenho de crianças é solicitando que elas desenhem o que se lembrem de um evento antes de lhe pedir
um relato verbal (Gross & Hayne, 1999, apud Eysenck, 2011). Nesse sentido,
então, produzir desenho permite a criança gerar as suas pistas de recuperação exclusivas enriquecendo seus relatórios verbais (Eysenck, 2011).
Welter e Feix (2011) ressaltam que a qualidade da memória não é um
produto cognitivo puro sem relação com o contexto no qual a pessoa é solicitada a realizar a tarefa. A criança poderá sofrer influência da forma como é
questionada, o ambiente físico, o número de entrevistas realizadas entre
outros fatores.
Feix e Pergher (2010) listam alguns passos ao realizar entrevista em
testemunhas, que seriam indicadas para uma melhor recuperação da memória e uma redução na sugestionabilidade9. Entre as indicações estão a construção de um ambiente acolhedor, recriação do contexto original, narrativa
livre, questionamento e fechamento da entrevista.
Em resumo, a hipótese de que “reprimimos” e esquecemos eventos negativos em nossa memória não se justifica, existem indicativos científicos de
que eventos estressantes tentem a ser lembrados mais que eventos emocionalmente neutros. Entretanto, a busca dessas informações deve ser feita com
cautela e por profissional treinado, para evitar a sugestão em depoimentos
infantis e, como consequência, o aumento na produção de Falsas Memórias.
9
Mais detalhes de técnicas para minimizar os efeitos das Falsas Memórias durante a entrevista de testemunhas
estão contidos no texto original dos autores.
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É possível que crianças testemunhem mesmo quando são vítimas e que seu
relato seja confiável, contudo, as falhas em sua memória não devem ser encaradas como uma mentira e sim como um funcionamento normal do processo de armazenamento de informações. Lembrando sempre que crianças
pequenas são altamente sugestionáveis.
E, por fim, Stein & Nygaard (2003) lembram que a prova testemunhal é
tida como a mais perigosa a ser utilizada num Tribunal, principalmente pela
convicção que desperta e a evidência do testemunho, por meio da identificação de criminosos, não é infalível, independente da honestidade da testemunha.
Existe uma proposta de alteração do Código de Processo Penal Brasileiro. Entre as discussões estão pontos que são há muito estudados pela
Psicologia no Brasil e em outros países. Um dos mais polêmicos é o testemunho de crianças e adolescentes que, por um lado, possui um valor probatório
imenso e, por outro, sua precisão nem sempre é confiável.
Mostramos que é possível colher informações de crianças de forma
mais segura, de modo que possam ser utilizadas num processo para esclarecimento dos fatos e responsabilização dos autores de crimes. Por outro lado,
existem muitas acusações infundadas que emergem geralmente de separações conjugais onde o genitor é afastado apenas com base em uma mera
denúncia da outra parte.
Nesse sentido as propostas objetivam garantir que as provas sejam
produzidas de forma técnica, com embasamento em pesquisas científicas,
para que se possa garantir um ambiente seguro ao infante, evitando sua revitimização e reduzindo os efeitos das Falsas Memórias. Por outro lado, a
produção de Laudos Psicológicos sem fundamento tem sido responsável por
transtornos imensos aos envolvidos em ações judiciais.
O acusado, por sua vez, terá a oportunidade de ver a produção desta
prova e, com auxílio do assistente técnico, avaliar se o depoimento da testemunha/vítima é valido.
As propostas são:
Que todos os depoimentos e perícias de crianças e adolescentes, que
instruem processos criminais, sejam gravados em áudio e vídeo;
Que conste na lei o alerta aos profissionais psicólogos, que deve ser
tomada cautela para se evitar os efeitos da sugestionabilidade;
10
Algumas propostas também foram feitas no sentido de minimizar o sugestionamento de testemunhas durante o reconhecimento de pessoas, seja ‘ao vivo’ ou por fotografias. Essas propostas são tema de outro artigo
ainda em produção.
RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 7, n. 1 jan/jun 2011
131
Que depoimentos de crianças e adolescentes não possam ser realizados em Delegacias de Polícia e sim, apenas em locais adequados realizados
por Psicólogos Peritos do Instituto de Criminalística.
Que a inquirição em juízo seja feita em ambiente reservado, monitorados por áudio e vídeo e realizado por Psicólogo Perito preferencialmente
concursado.
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