U E M E

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QUEM É...
REVISTA MEDICINA 1991; 6
U E M
E ...
CARLETON GAJDUSEK
por J.F. DAVID-FERREIRA
"His encyclopedic memory, his familiarity with strange
places and primitive peoples have generated many legends.
He is the sort of man one might have expected to win a
Nobel Prize-and at the same time it is both a surprise and
a pleasure to find such a gentle and likeable man behind
the legends"
Cedric Mims
(In Nature: Oct. 28,1976)
O Doutor Carleton Gajdusek que foi galardoado com o Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia em 1976
nasceu em Yonkers (New York) em 1923 tendo-se licenciado em Medicina (MD) pela Harvard Medical School
em 1946.
Iniciou a suacarreira medica como interno em pediatria tendo de 1946 a 1948 feito o internato e residência
em pediatria no Columbia Presbyterian Medicai Center cm Nova York.
A partir de 1948 além do seu trabalho como pediatra interessou-se particularmente pelas doenças
infccciosas, iniciando a sua formação c actividade como microbiologista. Assim, em 1948-1949 trabalhou como
Post Doctoral Fellow no Califórnia Institute of Technology com Linus Pauling, John Kirkwood c Max Delbruck
e em 1952-1953 com J. Smadel no Walter Reed Army Institute of Research em Washington.
Depois de 1954 participou em várias missões e projectos, nomeadamente do Instituto Pasteur de Teerão
e do Departamento de Medicina da Universidade de Maryland com o objectivo de estudar diversos surtos
epidémicos provocados por vírus e ricketsias (raiva, febre hemorrágica, encefalites a vírus, febre Q) na Turquia,
Médio Oriente, Irão e Afeganistão.
É autor da primeira descrição comparativa das febres hemorrágicas na Ásia e da hipótese destas afecções
serem causadas por vírus. Contribuiu para a identificação e caracterização desses vírus e dos seus vectores e
demonstrou a ocorrência de vírus semelhantes na Europa e no Continente Americano. Publicou uma descrição,
considerada clássica, sobre os surtos de pneumonia, provocados pelo Pneumocystis carinii cm crianças sub-alimentadas.
Em 1955 já com uma sólida formação microbiológica trabalhou como Investigador Visitante no Walter
and Eliza Institute for Medical Research com Sir Mac Burnet. Durante os dezoito meses que permaneceu em
Melbourne estudou os auto-anticorpos do soro de doentes com hepatite crónica, lúpus eritematoso e mieloma
múltiplo e descreveu um teste de fixação do complemento que utilizou para estudo desses auto-anticorpos.
De regresso aos Estados Unidos em Fevereiro de 1957 c com o objectivo de recolher elementos para o
seu projecto sobre o crescimento, desenvolvimento e padrões de doença em crianças de populações primitivas.
J. F. DAVID-FERREIRA
visitou a Nova Guiné Oriental tendo tomado conhecimento, em Port Mosbery, de que lavrava nas regiões
montanhosas do interior a epidemia de uma doença do Sistema Nervoso. Dirigiu-se por isso aquela região e
contactou o Dr. Vicent Zigas, responsável pelo Serviço de Saúde naquela área e que descrevera a propagação
daquela doença de natureza então desconhecida.
Apesar de vários obstáculos de ordem administrativa e de dificuldades de ordem financeira, Carleton
Gajdusek decidiu permanecer na região com o objectivo de estudar o kuru. Durante nove meses realizou em
colaboração com Zigas um trabalho gigantesco em condições particularmente difíceis.
Para a realização desse trabalho de campo, foi necessário organizar expedições a pé em regiões
montanhosas e florestas tropicais e contactar com a população primitiva de grupos culturais e linguísticos muito
diferentes.
Dificilmente podemos imaginar todos os problemas inerentes ao percorrer uma região inexplorada em
terreno difícil, comunicar com as diferentes populações indígenas, obter informações para o estudo epidemiológico
e recolher material para o estudo laboratorial (colheitas de sangue, de líquido céfalo-raquideano, autópsias) tudo
executado com limitadíssima ajuda local. Além da caracterização clínica e epidemiológica da doença realizaram
variados ensaios terapêuticos para o seu tratamento, exploraram várias hipóteses sobre a sua etiologia. No seu
percurso diagnosticaram e trataram muitas doenças do foro médico e cirúrgico, daquelas populações carentes dos
mais elementares cuidados médicos. Foi ainda durante o período de Fevereiro a Dezembro de 1957, correspondente
à primeira campanha sobre o kuru, que foram redigidos e enviados para publ icação os três artigos em que é descrita
e dada a conhecer à comunidade científica aquela doença desconhecida da Medicina Ocidental.
Carleton Gajdusek compreendeu desde o início a importância potencial do kuru para o estudo de algumas
afccções de etiologia desconhecida do Sistema Nervoso. Assim, em Maio de 1957 numa carta dirigida a Joseph
Smadel sublinhava: "I still think kuru is one o f the most important problems in existence in medical research, for
it has all the earmarks o f one that may give a real lead into chronic degenerative neurological diseases". E um mês
depois: "This is a new disease, Joe, and an important one".
Pela sua coragem, preparação científica e excepcionais qualidades de trabalho e inteligência Carleton
Gajdusek tomou-sc no líder natural dos estudos sobre o kuru e conseguiu através de uma intensa correspondência
com o exterior associar a esta empresa científica e humanitária, especialistas das mais diversas áreas (genética,
toxicologia, neuropatologia, antropologia, linguística ...) c assegurar o apoio de várias instituições entre as quais
o National Institute of Health. Graças à correspondência então trocada e a um diário que manteve durante as
expedições que realizou, é hoje possível analisar a história científica do kuru. Conforme foi comentado por Judith
Farquhar: "Seldom has a major medical investigation begun so suddenly in such exotic surroundings under the
direction o f such scientific minds. Furthermore, the inception o f history - making research is most often recorded
in retrospect, subject to the revisions o f memory and a shortage o f written records. But since necessity ditacted that
Gajdusek and his colleagues conduct their intelectual discurse by mail, many ideas that might otherwise have been
forgotten or abandoned are preserved in this correspondence".
O problema etiológico do kuru não ficou resolvido durante o esforço épico de 1957, mas foi o muito
trabalho de campo então realizado e as várias tentativas frustadas para o resolver que determ inaram as investigações
realizadas nos laboratórios do NIH em Bethesda que culminaram em 1965 com a demonstração que a doença era
transmissível a chimpazés e que o agente que a provocava se caracterizava por um prolongado período de
incubação. Estes resultados conduziram à investigação de outras doenças crónicas degenerativas do Sistema
Nervoso de etiologia desconhecida e tiveram como consequência a demonstração, também nos laboratórios de
Bethesda, da natureza infecciosa da doença de Creutzfeld-Jacob.
As investigações sobre o kuru e o scrapie (uma doença crónica degenerativa do SN que atinge as ovelhas)
ambas transmissíveis após longos períodos de incubação, conduziram à hipótese ainda hoje em exploração de que
certas doenças "lentas” do Sistema Nervoso sejam provocadas por "agentes" de natureza proteica que se distingue
dos vírus por não conterem ácido nucleico.
Os trabalhos pioneiros realizados pelo Doutor Carleton Gajdusek nesta área fizeram progredir de forma
notável os conhecimentos sobre várias doenças do Sistema Nervoso e foram fonte inspiradora de novos conceitos
sobre agentes infecciosos de doença.
Para além da sua carreira científica muito fecunda o Curriculum Vitae do Doutor C. Gajdusek distingue-
QUEM É...
-se pelas motivações humanitárias que lhe estiveram sempre subjacentes, sendo notável a sua dedicação
"missionária" aos que sofrem, particularmente às crianças e populações desfavorecidas da Nova Guiné, a quem tem
dedicado alem da sua actividade profissional muito da sua vida pessoal. Ao longo da sua vida adoptou,
encaminhando e educando cerca de 44 crianças provenientes das regiões em que tem trabalhado.
O Doutor Carleton Gajdusek cujo trabalho e vida se tem inspirado nos grandes ideais humanitários da
Medicina foi já distinguido, além do Prémio Nobel da Medicina cm 1976, com doutoramento c outros cargos
honoríficos por Universidades e Academias Científicas do maior prestígio. Destacamos pelo seu significado
particular a "Linus Pauling Medal for Humanitarism" que lhe foi atribuída cm 1987.
Durante as suas várias estadias junto dos povos primitivos dos planaltos da Nova Guiné, o Doutor Carleton
Gajdusek, que conhece culturas e várias línguas da Nova Guiné, Mclanésia c Micronésia, participou em trabalhos
de natureza antropológica que revelam a forma como viviam essas populações, praticantes da antropofagia e a
forma como evoluíram após os contactos com os exploradores que penetraram na região.
Além dasuaextcnsaobracientí fica dispersa, por numerosos artigos nos jornais da especialidade, publicou
18 volumes num total de 5.000 páginas, de um jornal pessoal em que relata as explorações c expedições que realizou
durante o seu trabalho como virologista junto dos povos primitivos da Nova Guiné, Mclanésia e Micronésia.
Pela Obra realizada e pelo notável exemplo que representa, julgamos ser uma honra para a Faculdade de
Medicina e para a Universidade de Lisboa contar entre os seus Doutores com o exemplo de uma vida em que se
conjugaram tão harmoniosamente os valores da Ciência e da Cultura e os princípios humanitários da Medicina.
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