- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XIII Congresso Brasileiro de Sociologia
29 de maio a 01 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)
GT16: Pensamento Social Brasileiro
Título da sessão: Tradições Intelectuais: recepção e recriação.
A geração de setenta da Escola do Recife e a Sociologia no Brasil
Ivan Fontes Barbosa – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
[email protected]
1
Introdução
A “geração de setenta” da Escola do Recife é tida por alguns autores como um
marco para pensarmos a inserção de idéias de natureza sociológica no Brasil1.
Embora tenha sido investigada, no que diz respeito as suas dimensões filosóficas,
jurídicas e literárias, o aspecto sociológico tanto no sentido histórico quanto
compreensivo, ficou relevado a um plano secundário. Em geral, isoladamente, estes
autores e suas idéias vão compondo um espectro onde tais reflexões vão
nebulosamente fazendo parte de um passado aristocrático e ideológico, confuso em
sua natureza, débil em seus diagnósticos.
Na história da sociologia no Brasil tal Escola ou o período na qual está inserida,
faz parte de uma sociologia enunciada e praticada por juristas filósofos (BEVILAQUA,
1977), tendo um caráter de filosofia social (SOUTO MAIOR, 2003) e marcando uma
fase transitória, no qual aleatoriamente os ecos do pensamento burguês se infiltravam
e de maneira “implausível”, ela ia galgando espaço no universo da restrita
possibilidade de pensar a sociedade brasileira. É este período da sociologia no Brasil
que este trabalho trata. Seu objetivo é apontar algumas considerações acerca da
relação imbricada entre o direito, a literatura e a sociologia no século XIX a partir de
preliminares reflexões sobre esta Escola e alguns de seus representantes.
A ossatura das proposições aqui suscitadas será orientada em função de três
dimensões: as determinações existenciais do tipo de reflexão e crítica social que se
desenvolveu no final do século XIX pela Escola do Recife; as razões da sociologia
conjurar como baliza fundamental para esta crítica; os “espaços” institucionais e
intelectuais que ela pôde manifestar os seus primeiros enunciados de natureza
“científica”.
A Sociologia no Brasil: observações
Os trabalhos voltados para a sociologia e história da sociologia no Brasil são
escassos. Boa parte da literatura que aborda as idéias sociológicas no Brasil, pertence
ao campo do direito2, da filosofia3, literatura e quando das ciências sociais4, tais
reflexões evidência os usos ideológicos dos aspectos raciais de tais sistemas de
pensamento. Outrossim, os livros de história das idéias filosóficas e jurídicas no Brasil
1
Segundo Pinto Ferreira (1969), os estudos sociológicos no Brasil começaram a se desenvolver após o movimento
crítico da Escola do Recife, sendo os precursores Tobias Barreto e Sílvio Romero. De acordo com Candido (1960)
“talvez” a primeira manifestação do seria sociologia no Brasil durante quase meio século se encontre na Introdução À
História da Literatura Brasileira (1881), onde Silvio Romero estabelece as diretrizes que orientaram por muito tempo os
estudos sociais no Brasil, e as Glosas Heterodoxas de Tobias Barreto, considerado um estudo teórico pioneiro sobre
esta disciplina. Para Vamireh Chacon (1977) o debate sociológico no Brasil foi inaugurado por Tobias e continuado por
Silvio Romero. Segundo Carneiro Leão (1953) os primeiro centros de estudo da sociologia foram as Faculdades de
Direito de Recife e de São Paulo. Souto Maior (2003) coloca que é possível estabelecer um período inicial tendo como
referência a Escola do Recife, onde se destaca Tobias Barreto. Nogueira (1978) afirma que Silvio Romero pode ser
considerado o primeiro estudioso da disciplina no Brasil.
2
BEVILAQUA (1977) FONTES (2003) MCHADO NETO (1969), REALE (1973)
3
CRUZ COSTA (1967), LINS (1969), MACHADO (1976), MARTINS (1977), Paim (1966, 1978, 1967).
4
DA MATTA (1981), LEITE (2002), ORTIZ (2003), SCHWARCZ (1993), SKIDMORE (1976).
2
sejam uma fonte e um registro das reflexões sociológicas dos autores do século XIX, a
ênfase, de certa forma idealista faz com que certos aspectos sociológicos da questão
das ideações intelectuais sejam negligenciados. Geralmente enfatizam a dinâmica
interna e autônoma da evolução das idéias sociológicas ou filosóficas.
Nos trabalhos voltados para a explicação sociológica da sociologia no Brasil, a
maioria das análises resvala em história da sociologia com periodizações5 seguidas
por incursões sobre as suas respectivas características. Isso se dá em Nogueira
(1978), Candido (1960), Filho (2005) Ramos (1995), Lins (1953), Menezes (1964),
Ferreira (1969), Souto Maior (2003), dentre outros. Uma exceção é a análise de
Florestan Fernandes, que se debruça sobre o universo das variáveis explicativas para
o entendimento das possibilidades estruturais do desenvolvimento da sociologia e da
ciência de uma maneira geral no Brasil. Argutamente estabelece os tipos ideais que
permitem com que sejam identificados os óbices que se interpuseram às
possibilidades da reflexão sociológica institucionalizada no Brasil.
Mas em
contrapartida, desmerece os conteúdos que dão sentido aos tipos ideais por ele
proposto. Direta ou indiretamente tais trabalhos fazem alusão a Escola do Recife, mais
especificamente Silvio Romero e Tobias Barreto, como leito das primeiras explicações
e debates sobre a sociologia no Brasil.
Os aspectos mais comuns das reflexões sociológicas e históricas sobre as
perspectivas que emergiram no último quartel do século XIX, estão em associá-las ao
bacharelismo (NOGUEIRA; 1978) a elite literária (MACHADO NETO; 1973), a uma
filosofia social (SOUTO MAIOR; 2003), ao direito e evolucionismo (CANDIDO; 1960).
Acrescenta-se ainda, a identificação desta a uma perspectiva parcial e dependente de
interpretação, cuja intenção não era fazer obra de investigação sociológica, mas de
esclarecer certas relações, mediante a consideração de alguns fatores – tais como
conexões entre o direito e a sociedade, a literatura e o contexto social, o estado e a
organização social etc. (FERNANDES; 1976)
Destes lugares comuns, há uma sugestão explícita que caracteriza esta Escola
dentro de uma fase pré-sociológica, marcada por uma perspectiva filosófica
evolucionista subsumida aos interesses da formulação conceitual de caráter científico
aplicadas ao direito, à literatura e a um projeto de nação. É esta é uma vereda
interessante para o estudo desta “pré-sociologia” brasileira. Posto quê, dá indícios da
trajetória pela qual a sociologia foi incorporada à estruturação da modernidade tardia
5
Segundo Antônio Candido (1960) existiram três fases: a de 1880-1930; 1930-40; 1940 em diante. Nogueira subdivide
em quatro fases: recepção das idéias sociológicas (1840-1870); incorporação de teorias e conceitos sociológicos ao
universo do discurso de políticos e intelectuais (1870-1889); transição com presença de especialistas autodidatas, as
primeiras iniciativas de pesquisa empírica e a implantação do ensino da disciplina em curso de não especializados
(1889-1930); formação da comunidade de sociólogos (1930-1964). Já para outros autores o surgimento da sociologia
pode ser buscado nas “sociografias” dos séculos XV e XVI, como é o caso de Andrade (1941) e Menezes (1964).
3
brasileira em um duplo aspecto: de um lado, uma reflexão sociológica sobre a
fundamentação das instituições jurídicas e sociais modernas, e por outro, numa
reflexão de mesmo teor aplicada à literatura e a cultura popular, cujo escopo explícito
é justamente a construção da nação6. É sob a tutela destes interesses que a
sociologia e suas explicações serão invocadas e utilizadas pela “geração de setenta”
da Escola do Recife.
A sociologia enquanto experiência ligada ao mundo moderno e industrial nasce
historicamente como uma teoria da sociedade burguesa, debatendo-se desde cedo
com a questão da passagem das sociedades pré-capitalistas ao capitalismo e sendo
invocada como “ciência” regeneradora e organizadora da sociedade. Estas dimensões
estão presentes em várias das obras sociológicas do século XIX. No Brasil, no esteio
de um grupo de intelectuais que estão maritimamente unidos a Europa, era plausível,
nos termos de modernizar, explicar e reorganizar, que a sociologia, a ciência do
processo civilizador ocidental, se adequasse em suas premissas e postulados aos
interesses de um grupo que buscava impor rupturas com as anti-modernas instituições
sociais vigentes.
A sociologia e as ciências de uma maneira em geral, só passaram a ser
sistematicamente solicitada no momento em que as condições existenciais do
pensamento brasileiro mudam. Durante a colônia, as possibilidades existentes
tornavam inviável o desenvolvimento da ciência: imprensa proibida, sistema escolar
deficiente, ausência de universidades, isolamento em relação aos centros mais
avançados, tudo concorria para que não houvesse nenhuma reflexão sistemática de
caráter científico.
As condições sociais e culturais que permitem o desenvolvimento do saber
científico emergem na sociedade brasileira a partir do segundo decênio do século XIX,
com a vinda da Corte. É neste momento que surgem as primeiras pressões no sentido
de habilitar um setor maior da população para o exercício de tarefas administrativas e
políticas ou para enfrentar as exigências que emergiam com a expansão da economia
e o crescimento demográfico. De fato, a criação das primeiras faculdades de Direito,
em 1823, estava umbilicalmente vinculada à necessidade de atender a demanda da
crescente organização burocrática (estamental e patrimonialista) brasileira e de prover,
segundo Schwarcz (1993), Santos (2002), Morel (1979) e Fernandes (1976),
autonomia às instituições de saber no Brasil.
De certa forma, a passos lentos, operava-se o desmonte da estrutura
monarquista e escravocrata e no seu bojo emergia a possibilidade da produção da
cultura brasileira, de sua memória e de um saber “positivo”. As manifestações desta
6
IANNI (1992) e SCHNEIDER (2005).
4
decadência começaram a saltar aos olhos com o colapso da economia açucareira e de
seu modelo escravocrata, a partir acirrados debates intelectuais que começavam a
ganhar fôlego na década de 1870. Estes debates7 eram modelados pela crença na lei
da evolução histórica, tendo a sociologia, inicialmente na vereda proposta por Comte e
posteriormente na de Heackel e Spencer, como as perspectivas intelectuais que mais
espaço tivera neste momento, sendo o instrumental intelectual que tornava justificável
a falência do regime monárquico e o advento “inexorável” do capitalismo brasileiro. Foi
por intermédio de reflexões balizadas por estas premissas que houve a possibilidade
de se pensar e projetar a nação brasileira (e suas especificidades) não mais em
função de um certo fatalismo teológico-histórico, mas à luz das teorias científicas
vigentes em terreno europeu. Articulando uma série de autores, teorias e conceitos
para explicar a especificidade da formação histórica brasileira, a geração de 1870 é
um “frágil” sintoma deste débil processo.
Essa geração emergiu no cenário nacional no Recife a partir do terceiro quartel
do século XIX. Neste momento, esta capital era uma das províncias mais
desenvolvidas do Brasil. A urbanização crescente, o forte comércio e contato com o
estrangeiro proveniente da economia açucareira, a existência da Faculdade de Direito,
a imprensa atuante, os cafés, os teatros, as repúblicas etc., concorreram para que
este clima intelectual florescesse8.
Estes intelectuais (que nem sempre ostentavam os vínculos diretos com a elite)
eram homens encantados com o racionalismo, com a ciência, com a possibilidade
positivista de controle racional do desenvolvimento. Era sobre a realidade brasileira
que estes desdobramentos iriam surtir efeito. O ambiente das possibilidades objetivas
que se impunham na escolha das opções teóricas e metodológicas do período está
vinculado, pelo menos no Recife do século XIX, à seleção de modelos que dessem,
em contraposição aos interesses da igreja, uma autoridade científica às proposições
alcançadas, para a construção de uma nova weltanschauung que ordenasse as
estruturas sociais “modernas” que emergiam naquele momento.
A Escola do Recife e os usos da explicação sociológica
O debate acerca da existência de uma Escola do Recife ou da pertinência no uso
da terminologia a esta “rede” como um movimento fechado, coeso, ordenado, com
postulados, princípios integradores, reciprocidade de perspectivas e outros critérios
fundamentais para a delimitação de uma escola de pensamento, está longe de ser
7
Acerca do impacto causado pela crítica de Romero, registramos o seguinte comentário: a impressão que lhe dera a
atitude do crítico (Silvio Romero) foi de quem visse aparecer, de repente, no meio de uma multidão pacífica, um
homem tomado da fúria a empunhar uma faca de ponta. Uma impressão de pânico. Os mais espertos viram,
entretanto, que o instrumento ameaçador não era nenhuma faca de ponta, mas o Curso de Filosofia Positiva de
Augusto Comte. (RABELLO, 1967, p. 40)
8
Ver BEVILAQUA (1977), AMADO (1956), NESTOR (1930), MERCADANTE (2006), RABELLO (1967), FERREIRA
(1981), CHACON (1969).
5
suprimida, sendo significativa à literatura destinada a dirimir essa imprecisão. Chacon
(1989) é o principal representante dos que manifestam simpatia quanto à possibilidade
de encarar a Escola do Recife como escola, seguindo ele Rabello (1967), Barreto
(1994), Paim (1975), Machado Neto (1969), Beviláqua (1977), Reale (1973), Machado
(1976) e Martins (1977). É necessário ressaltar que embora ensejem uma unidade,
todos reconhecem a fragilidade de uma suposta coesão dos postulados sociológicos
desta escola.
Do lado dos que não admitem a possibilidade de se mencionar a Escola do
Recife está Evaristo de Morais Filho. Segundo ele: temos por nós que não chegou a
existir propriamente uma escola no mais rigoroso sentido técnico da expressão, com
homogeneidade e unidade de doutrina, com coerência teórica interna entre seus
corifeus. (FILHO, 1985, p.41).
Não obstante toda a falta de unidade desta Escola, existem dimensões que
permitem a sua delimitação. A primeira seria circunscrever a Escola do Recife aos
grupos articulados em função da relação mestre e aluno, das amizades e por vários
mecanismos de reconhecimento de seus pares, como publicação dos trabalhos,
indicações para postos no magistério, dentre outros, em volta das figuras de Silvio
Romero, Tobias Barreto e Artur Orlando. Em função desta articulação anterior, advém
a identificação dos princípios formativos ou atitudes integradoras fundamentais desta
escola que girava em torno de questões como: a tendência Liberal burguesa; o
evolucionismo filosófico e sociológico que primeiramente assumiu a feição comteana;
o entendimento do direito e da literatura como fenômenos sociais (culturalismo), e a
crença na ciência como elemento de desmistificação e desenvolvimento do Brasil,
dentre outros.
Na lista dos mais destacados representantes da Escola do Recife temos os
nomes de: Tobias Barreto (1839-1889), Silvio Romero (1851-1914), Artur Orlando
(1858-1916), Clovís Beviláqua (1859-1944), Fausto Cardoso (1864-1906), Graça
Aranha (1868-1931), Martins Júnior (1860-1904), Gumercindo Bessa (1859-1913),
Araripe Junior (1848-1911), Raimundo Farias Brito (1862-1917) dentre tantos outros.
Quase todos publicaram críticas, livros, artigos em jornais, e é possível mapear em
suas obras, a sociologia e seus usos. O recorte deste trabalho fica restrito a algumas
reflexões, de caráter exploratório, perfiladas por Silvio Romero e Tobias Barreto sobre
as conexões entre a sociologia, o direito e a literatura. Foi em torno deles que se
propagagou, seja como professores, polemistas ou referências utilizadas para pensar
o Brasil, o cerne do debate sobre a sociologia9.
9
O mapeamento e o alcance da Escola do Recife, e, por conseguinte, o espraiar das reflexões sociológicas no Brasil é
tarefa ampla e bastante significativa. Autores como Schneider (2005), sugere certa afinidade e influência temática da
6
O espaço para a formulação conceitual de questões de natureza cientifica da
sociologia no nordeste do Brasil do século XIX, ocorreu no único universo institucional
que lhe era possível: a Faculdade de Direito do Recife. Esta possibilidade deve estar
estritamente articulada as demandas sociais que se intensificaram no decorrer do
século XIX: a necessidade de legitimação e interpretação intelectual da sociedade
moderna na sua forma jurídico-política e a construção da identidade nacional através
da análise da literatura e da cultura popular pelo mesmo viés. As instituições jurídicas
legitimariam as novas instituições políticas e republicanas e a construção da memória
e da identidade da nação brasileira daria uma feição e unidade simbólica à sociedade
brasileira e ao Estado-Nação.
Todos estes intelectuais eram bacharéis e estavam contaminados pelo
beletrismo. O literato, detentor do status de intelectual, se imbricava ao bacharel, que
passa a ser um elemento fundamental no aparelhamento racional-legal, tanto como
político, funcionário, intelectual. Esta geração, por intermédio de uma situação
existencial comum, ficou marcada pela ambigüidade de pensar o Brasil em função dos
modelos fornecidos pela Europa. Segundo Sevcenko, os mosqueteiros intelectuais
voltaram-se para o fluxo cultural europeu com a verdadeira e única tábua de salvação
capaz de apagar o passado obscuro, e abrir as possibilidades para um novo mundo. A
palavra de ordem da geração modernista de 1870 era condenar a sociedade
fossilizada do Império e pregar grandes reformas redentoras: a Abolição, a República
e a Democracia. (Sevcenko, 2003, p. 98)
O discurso, por assim dizer, foi fundamentado pela sociologia na perspectiva
Comteana e Spenceriana10, mas seu espaço de enunciação, ou as questões pelas
quais ela fora invocada para resolver e explicar foi o caráter cultural do Direito e da
Literatura. As dimensões que distinguem o jurista do literato são tênues, ao menos
naquele momento. Através das faculdades de Direito se conseguia o acesso às
produções literárias, e de certa forma o pensar literário. Enquanto sinônimo de status
de intelectual desde a colônia, com a incipiente “modernização” do aparato patrimonial
burocrático brasileiro, o literato vai começar a dividir espaço com o jurista, e cada vez
mais debates acerca da fundamentação intelectual e cientifica de suas posições
abordagem sociológica de Romero em Gilberto Freire e Mario de Andrade, poderíamos acrescentar Camara Cascudo,
dentre tantos outros. Sabemos com certeza que os ecos de suas influencias implicaram uma práxis política reformista,
como aponta Ângela Alonso (2000), e uma produção significativa sobre a cultura brasileira em várias localidades,
principalmente no nordeste. Segundo Antônio Paim: A receptividade encontrada pela pregação da Escola do Recife, no
período indicado, parece evidente, entre outras coisas, pela influencia exercida nas faculdades de Direito organizadas
na Bahia e no Ceará. Núcleo extremamente atuante forma-se também em Sergipe. No rio de Janeiro Silvio Romero
reúne em seu derredor expressivo grupos de intelectuais. (PAIM, 1967, p.161)
10
Acompanho a sugestão de Vamireh Chacon ao afirmar que a sociologia nasceu no Brasil, menos por obra de Comte
ou de Kant, que de Spencer. Foi este quem traçou um largo arco, da maturidade de Romero à juventude de Gilberto
Freire, ocupando meio século da vida intelectual brasileira numa das mais longas e profundas influências por ela
recebida. (CHACON, 1977, p. 29).
7
ganham espaço11. A questão literária estava intimamente articulada a questão da
nação, enquanto a questão do direito à crítica as instituições jusnaturalistas
monárquicas. O desencantamento do mundo e as suas correlatas automações das
esferas de valores da cultura, possibilitou o deslocamento tanto da questão jurídica
quanto literária, para um universo em que seja possível explicá-la racionalmente.
Indubitavelmente estas explicações emergiam das necessidades concretas de
consolidação dos estados nações burgueses sendo o direito e a literatura, facetas
deste processo12.
No Brasil, esta dinâmica, em consonância com as mudanças pelo qual o país
passava, se deu a partir da proeminência da sociologia enquanto fator explicativo da
autonomia, tanto do direito, quanto da literatura em contraposição a interpretação
religiosa e idealista existente. O fundamento de validade de determinadas instituições
e interpretações de nacionalidades, estariam ancorados na dimensão de uma
explicação racional de tais fenômenos. É importante salientar que a sociologia naquele
momento, em sua busca positivista da verdade, tinha modelos de análises que embora
inspirados nas ciências naturais, particularmente o darwinismo e a biologia, davam
conta da explicação dos processos históricos e da suposta evolução desigual das
sociedades. A este respeito, a observação de Nogueira (1978) sobre as razões da
sociologia e a aceitação da perspectiva de Spencer é sugestiva. Partindo do
pressuposto que a sociologia se desenvolveu em resposta as situações de crise, como
modalidade de consciência dessas situações – a autoconsciência cientifica da
sociedade burguesa que se percebe a si mesma como época critica – afirma que a lei
dos três estados infundia nos espíritos um fatalismo otimista, criando a expectativa da
passagem, mais cedo ou mais tarde, de um estado social menos evoluído a outro mais
evoluído, sendo que nisso consistiria basicamente o progresso ou a saída da crise.
A acepção da sociologia como a “grande” ciência é partilhada, sem ser opinião
unânime, pelos membros da Escola do Recife, e é por intermédio dela que os fatos
sociais passariam a ser explicados. Era a sociologia que projetava uma dimensão
explicativa da história e permitia a reflexão sobre a alteridade e as diferenças culturais
em seus vários desdobramentos. Quando ela é invocada, seus aspectos são aqueles
que possibilitam a projeção de uma singularidade nacional e da possibilidade
discursiva da implantação da modernidade.
11
Vale lembra que quase nenhum componente da “República das Letras” vivera exclusivamente da literatura
(MACHADO NETO, 1973), sendo o bacharelismo e o jornalismo o meio mais cobiçado e garantido para galgar a
sustentação financeira.
12
Vale lembra que algumas dimensões da sociedade moderna foram invocadas, enquanto outras, talvez mais
significativas para o desenvolvimento posterior da sociedade brasileira, não foram. É o caso da economia capitalista.
Enquanto elemento fundamental para se pensar o processo de ideação no Brasil, é preciso levar em consideração o
fato de que, outras dimensões, que não a econômica, chegam primeiro e abrem espaços para a sua implantação. É o
caso da “ideologia” burguesa chamada sociologia que viria a minar o terreno infecundo para a consolidação do
capitalismo no Brasil. Mas não é possível somente pensar o debate sociológico como dependente desta variável.
8
Esta articulação acima descrita só é compreensível fazendo referência ao
universo de interesses em disputas nas interpretações divergentes da ordem das
coisas. Ou seja, por que o evolucionismo, o positivismo e o culturalismo? O
positivismo e o cientificismo forneceriam o critério de objetividade e verdade para o
entendimento e explicação dos fenômenos sociais e sob a égide da ciência minavam a
cosmovisão aristotélica da igreja. O evolucionismo permitia a compreensão da
evolução das sociedades possibilitando enquadrar objetivamente a situação do Brasil
e de certa forma antecipar, ou como sugeriu Nogueira (1978), amenizar o dilema de
ser brasileiro e ter que ver e explicar-se como um patamar inferior aos seus próprios
olhares europeus. O culturalismo galgou o reconhecimento da cultura enquanto fato
sociológico, permitindo que determinadas manifestações da cultura fossem explicadas
em função de seus aspectos sociais. O dualismo natureza e cultura, embora
biologizando em certa medida a cultura, permite dentro do rígido esquema
evolucionista, perceber a especificidade das manifestações culturais.
Na maioria dos escritos coligidos e analisados desta escola, está presente os
aspectos anteriormente colocados. Em alguns o enfoque é mais direcionado às
questões jurídicas ligadas ao fundamento de validade do direito, intentando a
elaboração de um arcabouço jurídico institucional moderno. Em outros o enfoque é
nitidamente sociológico.
O mais importante destaque desta geração é Tobias Barreto. Mestiço, preparado
para ser padre, nascera na província de campos, em Sergipe em 1839 e faleceu em
Escada, Pernambuco, em 1889. Foi o professor e aluno mais destacado da Faculdade
de Direito de Recife (conhecida como a Casa de Tobias) e o precursor da Escola do
Recife, e a ele é unânime a atribuição do pioneirismo do debate filosófico e sociológico
no Brasil.
Embora Tobias só vá confessar abertamente seu ímpeto positivista até meados
de 1880, sua primeira fase é marcada pela crença no poder de uma ciência social
capaz de regenerar ou ordenar as sociedades. Foi fundamental a influência de Comte
na concepção de mundo e da vida, principalmente social, neste autor.
Em seus primeiros escritos (1926) é perceptível à similaridade com os escritos
de Comte. Buscava a criação de uma ciência positiva capaz de reorganizar a
sociedade,
de
lhe
imprimir
desenvolvimento,
ordem,
mais
sem
ímpetos
revolucionários. Intentava construir uma lei do progresso social, capaz de explicar e
orientar os fatos isolados. Segundo Tobias o mal da nossa política e dos nossos
políticos, reside na falta de conhecimentos teóricos, na ausência de uma doutrina
cientifica da realidade social brasileira. Necessária se faz uma análise científica do
9
meio social a partir do rigor científico aplicado ao problema da vida social sob a
verificação da experiência.
Este ímpeto se manifestava principalmente no estudo do direito. Tobias, num
tempo ainda “jusnaturalista”13, analisava-o como um fenômeno social, criado pela
própria sociedade, no intuito de promover a sua perpetuação e coexistência. Segundo
ele é antes de tudo, uma disciplina social, isto é, uma disciplina que se impõe a si
mesma, na pessoa de seus membros, como meio de atingir a convivência harmônica
entre os seus associados. Já não mais era entendido como uma extensão da
natureza, mas como uma criação humana. O direito não é filho do céu, afirmou ele. É
simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade. Serpis nisi
serpentem comederit non fit draco14. A força que não vence a força não se faz direito.
O direito é a força que matou a própria força.
Embora Tobias nas Glosas Hetedoxas a um dos motes do dia, ou variações antisociológicas (1962), primeiro texto de caráter teórico sobre a sociologia de acordo com
Antonio Candido (1960), tenha negado a possibilidade da sociologia, numa crítica
arguta no estilo dos neo-kantianos ao positivismo. A crítica feita a sociologia era
justamente a confusão entre fenômenos que obedeciam a lei da causalidade (típica
das ciências naturais) e os da finalidade (ciências culturais), que nublavam o objeto de
estudo da sociologia a partir de um determinismo mecanicista. É importante lembrar
que o diálogo de Tobias Barreto com Kant e a cultura alemão foi muito intenso, o que
propiciou familiaridade com as discussões que posteriormente culminariam nas
escolas de Baden e de Marburgo.
Acerca de Sílvio Romero o consenso, embora esse não seja o último, como o
pioneiro da reflexão sociológica no Brasil é incontestável. Perfila neste momento como
o mais eufórico e exaltado intelectual da “geração de setenta”, preocupado a partir dos
modelos fornecidos pela ciência “vigente” em entender e investigar a sociedade
brasileira em todos os seus aspectos. Os esforços iniciais de Romero estão
inicialmente voltados para a literatura, e é neste intento que desenvolve suas
perspectivas sociológicas, buscando o entendimento do texto literário como fruto das
relações sociais e históricas vivenciadas por cada sociedade em sua dinâmica de
desenvolvimento.
No início de sua atividade intelectual, Sílvio Romero, como tantos outros desta
geração, fora positivista e seguidor de Augusto Comte, embora mais tarde tenha
cindido com as idéias deste para se aproximar da perspectiva evolucionista de Herbert
13
... nos meus anos de curso acadêmico ainda alcancei a notícia de um fato, que dizia ter-se dado numa sabatina.
Certo estudante, respondendo a argüição de um seu colega, não sei sobre que matéria, entendeu dever apelar para a
história, e disse convicto: não precisa ir muito longe, basta o exemplo de adão e Eva; ao que o lente acudiu: - e poderia
lembrar uma época mais remota? (BARRETO, 1962, p. 170/171)
14
a serpente, que não devora a serpente, não se faz dragão.
10
Spencer e Ernest Haeckel. Os interesses de Silvio Romero, como da escola, como
observado, estão inicialmente voltados para a literatura e para o direito, e é neste
intento que desenvolve suas perspectivas filosóficas e sociológicas, buscando o
entendimento do texto literário e a norma jurídica como fruto das relações sociais e
históricas vivenciadas por cada sociedade em sua dinâmica de desenvolvimento.
Segundo Roberto Ventura (2001), Romero voltava a sua atenção, em demasia, para
os aspectos históricos-sociais da criação literária. Ganhava, assim, como investigador
da sociedade e da cultura o que perdia como crítico literário.
O momento dos interesses dos intelectuais brasileiros sobre a história literária
como esboço ou desenvolvimento histórico de um povo, surgiu no século XIX e estava
ligada ao fortalecimento das línguas e dos estados nacionais. Influenciados pelo
historicismo, os filólogos conceberam a história literária como processo complexo,
determinado por diversos fatores. As grandes obras seriam medidas em função da
cabal manifestação da nacionalidade. O estudo da literatura passa então a ser
dominado pela perspectivas das ciências naturais, a partir de bases cientificas e
objetivas, adotando um ideal de objetividade histórica, que privilegiava um conceito
linear e cumulativo de literatura, reforçando a introdução da perspectiva positivista e
naturalista da crítica literária na Europa e no Brasil do século XIX15.
Extremamente influenciados pelo positivismo e darwinismo social (este de uma
maneira geral, representando a tradução das leis da evolução das espécies como
aplicáveis à evolução das sociedades), buscavam uma literatura nacional, com obras e
autores originais, entendendo que esta permitiria a afirmação da autonomia e da
soberania da nação brasileira. Era a busca sociológica da identidade nacional (latente)
e quiçá cultural da sociedade brasileira a partir de um sinal externo, de um sintoma
manifesto: as obras literárias.
Em seu livro Ensaios de filosofia do direito (2001), deixa patente esta
apropriação da sociologia como ciência geral da sociedade. Ele divide as ciências em
particulares, físicas e naturais, que se ocupam dos fenômenos mecânicos regidos pela
lei da causalidade, alheios a fatos conscientes e voluntários. O segundo tipo se
encarregará de todos os fenômenos os quais se achem inerentes à consciência e à
vontade, regidos pela lei da finalidade, e se divide nessa série de ciências chamadas
sociais ou morais, que são outras tantas ramificações particulares do grande todo, a
teoria sociológica geral.
Em relação ao Direito, a abordagem de Romero (2001) desmerece-o enquanto
emanação da providência divina ou em sua acepção jusnaturalista. O Direito seria
fruto do processo da evolução social e suas bases estavam assentadas em raízes
15
Ver Ventura (2001) e Candido (1988).
11
sociológicas. Não se tratava de justificar o Direito posto, mas de explicar as suas
dimensões sociológicas. Segundo ele, o Direito seria o processo pelo qual a força da
razão expele e reprime a força do braço. Seria, em suas palavras, o complexo de
condições criadas pelo espírito de várias épocas, que servem para, limitando o conflito
das liberdades, tornar possível a coexistência social. (ROMERO, 2001, p.160)
As noções de raça e natureza, de trópicos e miscigenação, literatura, o atraso e
devir do Brasil são pautas da ordem do dia em todo o século XIX. Segundo Laurent
Mucchielli (2001), nas décadas que precederam o nascimento da sociologia
universitária na França, o estudo científico das condutas humanas era, sobretudo,
tarefa das ciências biomédicas: antropologia, psiquiatria, psicofisiologia.16 As questões
em voga eram: Um povo branco ou mestiço? Cultura ou barbárie? Poderia haver
civilização? São dilemas que se impõem aos críticos e intelectuais que buscavam
entender o resultado deste processo nos vários aspectos destas sociedades. Os tipos
de literatura e os estilos criados no meio tropical passam então a serem entendidos e
explicados a partir da singularidade da formação brasileira: a miscigenação.
Segundo Romero (2002), a própria literatura romântica e a indianista eram
reflexos de uma imitação, uma vez que desmereciam o componente negro e mestiço
no processo de inspiração de obras que manifestassem a autenticidade da situação
nacional. Ou seja, o que se tem como realidade a ser modeladora da nossa
autenticidade não está no português, muito menos no índio ou no africano. Essa
realidade é o mestiço. Foi um tropeço nos afastarmos da influência lusitana e
enveredar pelo indianismo por causa do romantismo. Logo, pregavam o retorno às
tradições nacionais, e como não as podiam encontrar no branco foram buscá-las no
índio.
A questão da identidade nacional e da construção da nação são temas que vêm
sendo amplamente trabalhados na literatura acadêmica. Em relação a Silvio Romero,
podemos dizer que são expressivos os trabalhos que buscam estabelecer a conexão
entre as suas reflexões e esse sentimento de pertencimento que o termo identidade
implica. Romero dá um passo significativo na busca de compreensão da singularidade
da formação nacional, por intermédio da inserção de variáveis e métodos sociológicos,
o que era uma novidade naquele momento. Vários outros temas foram pesquisados
pelo autor e pela sua plêiade de seguidores da Escola do Recife.
Partindo de um velho axioma da sociologia do conhecimento, buscamos lançar
mão de algumas questões que são importantes para pensar a inserção da sociologia
16
De acordo com ele: Globalmente, estas ciências funcionavam no quadro de um paradigma naturalista, explicando os
comportamentos sociais pela natureza biopsicológica dos indivíduos e dos grupos de indivíduos. As noções de raça,
hereditariedade, constituição cerebral, são centrais nestas abordagens que consideram as sociedades como somas de
indivíduos. Os anos 1860-1890 foram o momento de apogeu destes modelos naturalistas aplicados às ciências sociais.
(Mucchielli, 2001, p. 06)
12
no Brasil. A idéia fundamental é a de que todo o pensamento da Escola do Recife
esteve
vinculado
a
determinadas
situações
existências
comungadas
pelos
participantes daquela geração, marcada pela busca de uma autoconsciência social
nos moldes modernos. Sociologia, raça, nação, progresso, civilização, direito, literatura
eram temas cruciais para pensar a erosão do sistema monárquico e implantação da
República à brasileira. Enquanto “teoria da sociedade burguesa”, a sociologia
corroborou este processo, e encontrou espaço na Faculdade de Direito do Recife nos
últimos decênios do século XIX. Atrelada as demandas e as verdades de seu tempo,
ela contribuiu para forjar, positiva ou negativamente, a sociedade brasileira. Toda a
discussão sociológica que se inicia sobre o que é o Brasil e as possibilidades de sua
(re) construção na República, emerge no esteio do literato e do jurista. É dentro destas
circunstâncias que podemos entender outras dimensões do que foi a sociologia
naquele momento – alargando o tradicional exercício intelectual “paradigmático”
estigmatizante, que tornam implausíveis tais autores – e de seu espraiar pelo Brasil,
aumentando os horizontes de possibilidades de compreensão da matizada afirmação
de Vamireh Chacon de que a nascente burguesia brasileira procurava, através da
Escola do Recife, armar-se com instrumentos ideológicos laicos, tornados anticlericais
pela reação teológica-ultramontana. (CHACON, 1969, p. 53)
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