encontro_1_30bienal - Em Nome dos Artistas

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Trigésima
Bienal de
São Paulo
A iminência
das poéticas
espaço do professor
encontro 1
A iminência das poéticas
Estamos sempre em contato com outras
vozes, com outras histórias, conteúdos e
percepções, com parceiros, mais íntimos ou
mais distantes. A vida é o campo das
trocas. E é assim que conhecemos e
entendemos o mundo, as coisas, os
sentimentos, as pessoas, nós mesmos. Para
o filósofo Espinoza, existir é como ter
uma infinidade de partes de si mesmo
sempre se deslocando em busca de outras.
Quando nesses deslocamentos acontecem
encontros, o corpo, isto é, o ser humano
aumenta sua potência de ser e existir.
A arte é uma dessas formas de encontro. Em
sua dinâmica, possibilita a transformação,
o despertar de olhares. Possibilita
modificar o contato com tudo o que nos
cerca, suspender o tempo, reavaliar o que
percebemos cotidianamente.
O desejo de encontro e de fazer viajar os
processos e poéticas dos artistas que se
apresentam por hora no Pavilhão da Bienal
pontuam as intenções propostas aqui no
Espaço do Professor. Em 8 módulos, serão
discutidas questões presentes na
exposição, que tem como “motivo” A
iminência das poéticas.
“(...) justamente é a atividade
artística que nos abre um dos caminhos
mais penetrantes de introdução ao ser”
(Mario de Andrade, 1938).
Cada encontro apresenta um breve
itinerário sobre os artistas, a forma como
foram pensados seus trabalhos, suas
relações com filósofos, poetas,
escritores, e ainda, pontua questões que
são próprias da vida e que a arte dá a ver
a partir de outras perspectivas. Os 8
encontros estão organizados da seguinte
maneira:
- uma pergunta, que define a temática do
encontro;
- um mito que traz uma discussão relativa
a essa pergunta;
- uma constelação de artistas a serem
abordados no encontro;
- alguns conceitos, que se relacionam com
as poéticas dos artistas;
- algumas pontuações e citações de
filósofos, escritores, teóricos;
- um exercício fALAR IMAGENS.
Sejam bem vindos ao Espaço do Professor!
Informações: O Espaço do Professor está em intenso
diálogo com a dinâmica do Material Educativo da 30ª
Bienal e com suas 7 constelações de artistas. Visite:
http://jogoeducativo.30bienal.org.br
Constelações de poéticas
O homem olha para o céu desde os
primórdios: encantado com as estrelas, com
o mistério de seu brilho ou em busca de
respostas para os tantos acontecimentos da
vida. No século II d.C., Ptolomeu tentou
descrever o movimento dos planetas em
relação ao ambiente praticamente imóvel
das estrelas que os cercavam. Assim, foram
batizadas as primeiras constelações:
desenhos feitos com linhas imaginárias que
ligavam estrelas próximas de brilho mais
intenso. As constelações passaram a servir
de guia para exploradores, navegadores,
homens à deriva, que identificavam no céu
um determinado traçado de estrelas e, a
partir disso, orientavam-se em suas rotas.
As constelações são também estratégias de
organização e seus componentes nos fazem
percorrer as relações ali presentes, nos
propõem critérios de entendimento sobre o
tema em questão, nos possibilitam ter a
noção do todo e de suas partes de maneira
complexa, tal como uma trama de conceitos,
de ideias, de informações.
O pensamento constelar está presente em
muitos lugares: nas bibliotecas, nos
arquivos históricos, nos museus e até
mesmo em nossas coleções mais íntimas. É
Constelação de Orion.
como se desenrolássemos um novelo em que
foram alinhavados distintos objetos,
histórias, conceitos. Cada elemento desses
reage em contato com outros, encontra-se
em estado de relação: seja por
proximidade, diferença, analogia. Nesse
movimento imaginário de desfazer o novelo,
ideias vêm à tona, critérios de coleção
surgem para nos falar sobre seu contexto,
nos informam sobre a dinâmica de suas
relações, enfim, nos dizem muito sobre sua
ordenação e sobre si mesmos.
“Àquelas naturezas que, ao se encontrarem,
se ligam de imediato, determinando-se
mutuamente, chamamos 'afins'. Nos álcalis e
ácidos essa afinidade é bastante evidente;
embora sejam opostos e talvez justamente
por isso, procuram-se e se agregam da
maneira mais decidida, modificando-se e
formando juntos um novo corpo. (...)Ocorre
com os negócios o mesmo que com a dança: as
pessoas que harmonizam os passos tornam-se
imprescindíveis uma à outra, resultando daí
necessariamente uma simpatia mútua (GOETHE,
1998, p. 66, em Afinidades Eletivas).
Vista do Pavilhão da Bienal, 2012.
A 30ª Bienal foi pensada como uma
constelação: de artistas, de vozes,
poéticas, intenções, processos, tempos e
lugares de criação. Este pensamento também
orientou a dinâmica do material educativo e
a disposição das obras no espaço expositivo,
traçando diálogos, aproximações, fricções,
vizinhanças entre linguagens.
Cada artista pode ser entendido como uma
estrela das muitas constelações que fazem
parte da mostra, com seu brilho, poética,
espaço. Salas individuais foram reservadas a
uma grande quantidade de obras de um mesmo
artista, o que nos dá pistas para nos
aprofundarmos em sua poética. Assim, se
estabelecem relações entre os processos,
linguagens ou temáticas, que compõem as
constelações. A curadoria optou por essa
forma de ajuntamento, pois acredita que os
vínculos entre artistas e as percepções não
são fixos, mas sempre passíveis de
renovação. Esses vínculos se dão de maneira
diferente a cada olhar, a cada voz, cada
palavra ou sensação ali intuída.
No “Espaço do professor” serão apresentadas as 7 constelações do Material Educativo, que
conjugam artistas, filósofos, escritores e poetas – todos em relação num compêndio que
discute temas disparados pelas seguintes questões:
-
o que acontece quando você anda?
como medir a distância que te separa do que você diz?
quando não há nada, o que vemos?
por que guardar?
o que acontece cada vez que você consente?
uma coisa significa outra coisa quando muda de lugar?
o que acontece cada vez que você festeja?
CONSTELAÇÃO 1
Uma coisa significa outra coisa
quando muda de lugar?
CONSTELAÇÃO 2
O que acontece cada vez que
você festeja?
CONSTELAÇÃO 3
Por que guardar?
CONSTELAÇÃO 4
O que acontece quando você
anda?
CONSTELAÇÃO 5
O que acontece cada vez que
você consente?
CONSTELAÇÃO 6
Como medir a distância que
te separa do que você diz?
CONSTELAÇÃO 7
Quando não há nada, o que
vemos?
“Guardo em mim um museu do que vi e amei
na vida”*: as Grandes exposições
Nossa civilização conhece uma diversidade
artística que nenhuma outra presenciou.
São linguagens, técnicas, práticas,
formas, procedimentos e materiais em pleno
estado de expansão, recombinação e trocas
intensas com a cultura e com a própria
história da arte. Temos o privilégio de
poder visitar e acessar – graças às
técnicas de conservação e museologia,
políticas de constituição de acervos e
coleções de museus, galerias e demais
espaços expositivos, além da veiculação de
imagens pelos meios de comunicação – um
rico inventário de obras que nos contam um
pouco sobre os percursos traçados pela
arte e uma crescente produção artística
contemporânea.
Nossa relação com os museus, com os
espaços destinados à arte, incluindo as
grandes mostras, como as Bienais que
acontecem no mundo todo, conferem
profundamente as condições de nossas
experiências com as produções artísticas.
Nesses espaços, curadores e artistas
apresentam um mapeamento da arte, em uma
trama de percepções, a partir de encontros
e de “avizinhamentos” entre as obras.
Assim, os trabalhos expostos se reavivam e
se iluminam uns aos outros, dinamizando
nosso percurso em uma exposição, e ainda
potencializam nossas significações e
sensações.
Com objetivos como estes, começam a surgir
pelo mundo grandes exposições: Bienal de
Veneza, Documenta de Kassel, Bienal de São
Paulo. Tendo como intenção formular e
expor ao público um panorama das artes
decorativas, a Bienal de Veneza acontece
pela primeira vez em 1895, graças à
iniciativa de um grupo de intelectuais
venezianos. O evento foi adquirindo um
caráter internacional já nas primeiras
décadas do século XX e em 1907, vários
países se organizaram em pavilhões,
destinados a exposições de representações
nacionais. É a partir desse momento que
cresce o interesse dos organizadores da
mostra pelas produções da Arte Moderna.
*André Malraux, em O museu Imaginário, 2011.
“Como ponto de partida poderíamos dizer que
o museu de arte hoje é, simultaneamente,
uma tradição, um espetáculo, um lugar
político, uma promoção social, uma arena
para processos de ação sócio-cultural, uma
especulação, uma coorporação, uma
experiência, bem como alegoria ou metáfora
para a explanação, criação e manutenção de
outras dimensões de conhecimento. O museu
se configura assim como complexidade,
grandeza modelada por múltiplas dimensões”
( Martin Grossman, em O Museu de Arte hoje
— Forum Permanente, 2007).
Fachada da I Bienal de São Paulo, 1951.
A Bienal de Veneza é um importante marco na
história da arte por ter inaugurado uma
dinâmica de grandes exposições
internacionais, que realizam panoramas
artísticos contemporâneos. Inspirado por
esse projeto, em 1951, Ciccillo Matarazzo
organizou a 1ª Bienal do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, com o objetivo de
exibir ao público um panorama da arte
brasileira e discutir suas relações com os
acontecimentos e processos internacionais.
A 1ª Bienal de São Paulo foi um grande
evento realizado fora do eixo Europa-EUA, e
exatamente por isso, teve como uma de suas
grandes dificuldades convencer os artistas a
enviarem suas obras para o Brasil. Ainda
assim, contou com 685 artistas, dentre eles
Pablo Picasso, Giacometti, Magritte, Oswaldo
Goeldi, Lasar Segall.
“A cada dois anos a Bienal de São Paulo, esse
singular museu, volta a ocupar o terceiro e maior
prédio entre os três ligados pela marquise. Antigo
Pavilhão das Indústrias, desde 1957 ele sedia o
evento a ponto de ser uma marca registrada. A ideia
de um porta-aviões originou-se da contemplação desse
edifício imenso, de 33 mil metros quadrados
dispostos em três pisos, com formato de
paralelepípedo, de um lado com paredes de vidro, de
outro, onde o sol bate, metálico, graças a seus
pára-sóis móveis que lhe garantem uma textura
variável. Talvez a menção ao navio tenha se
originado do fato de que ao longo dos 250 metros de
extensão do prédio o terreno descai por 2 metros e o
grande volume acusa esse degrau como que se
desprendendo do chão, como se flutuasse” (Agnaldo
Farias, em O centro do coração Verde, 2001).
“Devemos
“Devemos
colocar
colocar
a arte
a arte
moderna
moderna
do do
Brasil
Brasil
em contato
em contato
vivovivo
com com
o resto
o resto
do do
mundo
mundo
e paralelamente
e paralelamente
tentar
tentar
conquistar
conquistar
parapara
a cidade
a cidade
de São
de São
Paulo
Paulo
a posição
a posição
de centro
de centro
artístico
artístico
mundial"
(BIENAL
mundial"
50 ANOS
(BIENAL
(1951-2001).
50 ANOS (1951-2001).
Edição de
Comemoração
Edição dedoComemoração
50º Aniversário
do 50ºda I
Bienal
Aniversário
de São Paulo,
da I Bienal
São Paulo:
de São Paulo,
Fundação
São Paulo:
BienalFundação
Internacional
Bienal de São
Paulo,
Internacional
2001).
de São Paulo, 2001)
Ao longo de seus 61 anos, a mostra tem uma
história marcada por grandes
acontecimentos:
- Em 1957 é construído O Pavilhão das
indústrias, no Parque do Ibirapuera
(conhecido como Pavilhão Ciccillo
Matarazzo), acolhendo a 4ª bienal;
- Em 1962 é criada a Fundação Bienal;
- Entre 1965 e 1973, a Bienal sofre os
impactos do golpe militar e o evento é
comprometido. Muitos artistas negam-se a
participar, assinando o “Manifesto Não à
Bienal”;
- Em 1981, com curadoria de Walter Zanini,
abolem-se as representações nacionais e
criam-se as analogias de linguagem (vídeo
com vídeo, pintura com pintura). Dessa
maneira, o curador pretendia ampliar o
território da arte e aliar história e
produção contemporânea. Com essas
propostas, Zanini recupera o apoio dos
artistas.
Em sua 30ª edição, a Bienal tem como motivo
“A iminência das poéticas” sob a curadoria
do venezuelano Luis Pérez-Oramas, dos
curadores associados André Severo e Tobi
Maier e de Isabela Villanueva (assistente
de curadoria). Para Oramas, a Bienal é como
um festejo de vozes plurais, que se
encontram e se repelem, de linguagens que,
em contato, aumentam suas potências de
existir, sabendo que o embate desses
confrontos é de natureza imprevisível, por
isso, extremamente rica e diversa.
Como e quando se elabora o dizível e de que
ele trata? Como se dá o tempo do silêncio
antes da voz? E do que é possível falar?
Parece que há sempre algo a ser dito e não
temos como sabê-lo até que ele se torne
passado, coisa dita.
A mostra traz artistas que também dialogam
com essas questões, ainda em aberto. E seus
processos estão a nossa espera e nós,
diante da expectativa do que a poética é
capaz, em estado de “iminência”.
Dessa maneira, a 30ª Bienal nos convida a
lidar com nossa necessidade de falar,
discorrer ou discutir quando estamos diante
de uma imagem.
"A função da arte é lidar com o que não
está previsto, entender o mundo em sua
condição de iminência. (...) o que está
a ponto de acontecer, a palavra na
ponta da língua, o silêncio imprevisto
que antecede a decisão de falar ou de
não falar, a arte como estratégia
discursiva e a poética em sua
pluralidade" (Luis Pérez-Oramas, 2012).
Pontuações: Giordano Bruno e Aby Warburg
Giordano Bruno
(1540, Nápoles Itália - 1600, Roma,
Itália)
A dúvida e a controvérsia sobre a
infinitude do mundo custaram muito a
Giordano Bruno. O filósofo foi condenado à
morte em 1600, pois se interrogava sobre o
que aconteceria se alguém conseguisse
atingir o limite do mundo – como seria se
a mão humana pudesse atravessá-lo?
Driblando a Inquisição, queria provar que
o universo seria dinâmico e estaria em
constante transformação, gerando vínculos
e mais relações, e, por isso mesmo, em
expansão.
"Nós"Nós
declaramos
esseesse
espaço
infinito,
declaramos
espaço
dadoinfinito,
que não há
qualquer
dado
que nãorazão,
há qualquer
conveniência,
possibilidade,
sentido ou
razão, conveniência,
possibilidade,
natureza
queoulhe
trace um
sentido
natureza
quelimite."
lhe trace um
(Giordano
Bruno,
AcercaBruno,
do Infinito,
o
limite."
(Giordano
Acerca do
Universo
e os oMundos,
1584).
Infinito,
Universo
e os Mundos,
1584).
O universo infinito imaginado por Bruno se
apresentaria de acordo com a perspectiva
de quem o observa. Para ele, haveria
inúmeras possibilidades de referenciais:
nenhuma seria certa ou errada, melhor ou
pior que as demais, mas todas confirmariam
a natureza diversa e complexa do universo,
do próprio homem e de suas vontades acerca
do mundo. Para o filósofo, o universo
poderia ser observado com uma lente
caleidoscópica, por onde veríamos todas as
suas intensas e distintas características,
tramas, cores e texturas.
“As pessoas dizem que muitas
“As pessoas dizem que muitas explicações
explicações convencem menos que uma
convencem menos que uma só, mas a
só, mas a verdade é que para quase
verdade é que para quase tudo há mais de
tudo há mais de uma razão” (Isidro
uma razão” (Isidro Vidal, personagem
Vidal, personagem central do Diário
central do Diário da Guerra do Porco, de
da Guerra do Porco, de Adolfo Bioy
Adolfo Bioy Casares).
Casares).
Em um de seus livros, Os Vínculos (1591),
Giordano Bruno debruça-se sobre como são
incontáveis as potências dos vínculos – os
significados e as perspectivas sobre a
vida. “Vínculo”, segundo ele, é o que
conecta os sentidos às coisas. Assim,
haveria de existir tantas possibilidades
de enxergar e conectar sentidos às coisas
quantas fossem as variedades de desejos
dos homens.
Um mesmo tom de azul pode parecer mais
claro ou mais escuro se o enxergamos num
dia de sol ou numa tarde fria; o doce
provado na infância pode ter sabor
distinto daquele que guardamos na memória;
o mesmo lugar visitado tempos atrás pode
nos dar uma outra sensação: maior, menor,
mais escuro, mais aconchegante. Será que
mudamos e conosco também se transformam as
lentes pelas quais enxergamos o mundo? Que
movimentos nos guiam nesse infinito de
possibilidades de atribuição de sentido às
coisas?
Retrato de Giordano Bruno
Aby Warburg
(Hamburgo, Alemanha, 1866-1929)
Entende-se por história uma narração
escrita dos acontecimentos e atividades
humanas ocorridas no passado. É também um
ramo da ciência que se ocupa em registrar
cronológica e linearmente os
acontecimentos e eventos da humanidade,
que foram necessários para traçar
situações, mudanças, evoluções. O
historiador aprecia e procura explicar os
fatos do passado da humanidade em geral,
de maneira a inseri-los em percursos para
que nós possamos entender ou vislumbrar as
tramas de nosso presente.
Vista dessa forma, a história parece uma
linha reta onde se encontram os
acontecimentos – um após o outro. Aby
Warburg discordava dessa organização
oficializante. Preferia perceber a
história sem se prender a cronologias,
pensando as relações não temporais que os
eventos poderiam nos fornecer. Para ele, a
história é uma construção de relações que
sobrevivem e se vinculam para além de seu
tempo e espaço específicos.
Você já se pegou tentando voltar no tempo
para relembrar um fato? Nessa viagem,
provavelmente, imagens, pessoas e outros
fatos foram relembrados até que você
aportasse no instante que desejava
recordar. Isso acontece porque nossa
memória é dinâmica, não é uma caixa na
qual acumulamos objetos inertes. Muito
pelo contrário: armazenamos, guardamos,
retemos aquilo que nos marca e ao longo da
vida, acessamos esses afetos, momentos
marcantes, mais tristes ou felizes,
relacionando-os sempre com tudo que veio
antes ou um pouco depois de maneira não
necessariamente cronológica.
Era assim que Warburg pensava a história
da arte. Os processos dos artistas não
estão apenas localizados num tempo e
espaço específico, mas continuam
reverberando questões e fazendo ecoar
poéticas, buscas e linguagens em outros
artistas, outros tempos e lugares que não
necessariamente coincidem com a época em
quem viviam. Para Warburg, era preciso
pensar a história da arte como relações
que sobrevivem se transformando em outras
pessoas, em outros processos e até em
outros contextos.
Atlas Mnemosyne [do grego, memória] foi o
seu projeto mais ambicioso para investigar
a existências dessas relações entre
tempos, artistas e poéticas. Warburg criou
"cadeias de transporte de imagens": 63
pranchas com mapas conceituais em que
traçou linhas de comunicação, relação,
Recriação do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, 30a Bienal, 2012.
visuais que se vinculavam através dos
tempos. Infelizmente, ele não conseguiu
finalizar seu projeto. Sua morte precoce o
impediu de dar continuidade às pranchas e
conferir ainda mais relações aos artistas
e obras já citados. Seu biógrafo e também
historiador da arte, E.H. Gombrich, afirma
que esse projeto sempre seria inconcluso,
devido a sua abrangência temporal e a
infinidade de relações que sempre poderiam
ser retraçadas, reformuladas e ainda
criadas com o andar dos percursos
artísticos.
Como falar imagens?
O que se conhece sobre Filóstrato é um
tanto incerto. Sob esta autoria, muitas
obras chegaram até nós. Sabe-se que o
Filóstrato, o Velho, a quem se atribuiu
Vida de Apolônio, exerceu o ofício de
retórico em Atenas e Roma, aproximadamente
entre os séculos II e III. E sua coleção
de cartas e textos, as ekphrasis, são
descrições de objetos e imagens, que
tinham a intenção de os reapresentarem
ainda mais vívidos.
A performance retórica do Filóstrato
detinha-se, principalmente, em evocar
imagens ao espectador através de suas
palavras. Vale ressaltar que antes de
tornar suas descrições palavra escrita,
Filóstrato as fez itinerar. Sua voz corria
plateias. Um bordado, um ornamento, uma
pintura ou estátua eram descritas com o
intuito de apontar sua virtuosidade e o
esmero do artista que os criou.
Podemos pensar que Filóstrato queria
comover seu público, ambientar seus
espectadores em uma atmosfera onde o
espaço e a narrativa propostos pela imagem
se tornavam tão palpáveis quanto o lugar
em que se encontravam. Sua pretensão era
tornar visível o imaginável. E as palavras
eram sua estratégia, suas armas, seu
potente trampolim para um salto na
experiência da imagem.
“Tu não sentes o agradável perfume que
emana dos pomares? Terias tu o olfato
preguiçoso? Pois bem, escuta com atenção:
minhas palavras levarão a ti o aroma das
frutas” (Filóstrato, em “Os amores).
“Estamos em Nápoles; Filóstrato se hospeda
na residência de um amigo e explica aos
meninos as pinturas que figuram na stoa
(galeria). Um deles é convidado a formular
suas questões caso a exposição da
ekphrasis não seja clara. Desta maneira o
retórico consegue, estabelecendo uma
segunda pessoa, encontrar meios propícios
a fim de que devolva seus comentários,
varie o enfoque de suas descrições e
diversifique os pontos de vista. Indo além
de seu evidente interesse retórico (...)”
(Trecho de Introdução – Filóstrato).
Exercício Falar imagens
Processar e comunicar significados são
capacidades inerentes ao homem. Diante do
mundo, pensamos e realizamos percepções
com imagens e palavras, que se sucedem e
nos guiam rumo ao conhecimento de algo. A
linguagem poética, nas artes visuais, no
cinema, na literatura e em outras tantas
práticas, é uma maneira de pensar. E a
relação que estabelecemos com o que
produzem os artistas não é um predicado
constante para pessoas diferentes. Camadas
de leitura e de significado orbitam,
invertem-se, modificam-se sempre que
alguém se encontra em instantes de
percepção.
Para Marcel Duchamp, quando um artista
cria, o resultado ou a materialização da
obra nunca coincide plenamente com as
intenções pretendidas. Consequentemente,
quando vai a público, a obra potencializa
algo não previsto, ao passo que algo
precisamente manufaturado pelo artista
pode não ser percebido. A esses conflitos
e diferenças entre obra e suas
potencialidades de percepção e também
entre projeto e realização, Duchamp chamou
"coeficiente artístico".
Pensando nessas imprevisibilidades sobre
os conteúdos artísticos, naquilo que se
constrói para além das intenções do
artista, a proposta “Falar imagens” é de
esboçar e potencializar tentativas de
aproximação, interpretação, construção de
significados diante de trabalhos
artísticos.
Assim, “Falar imagens” é um convite a
percorrer e intuir sintaxes, sentidos,
percepções. Diante desses contextos, que
são, por vezes, diferentes dos nossos, o
que podemos construir? Que vozes e falas
essas imagens nos fazem despertar? Até
onde nosso olhar viaja em busca de
sentidos? Que mundos visitamos em contato
com esses ambientes artísticos? Quais as
sensações visíveis e táteis? Uma imagem
também tem um som? Ou pode ainda
potencializar outras imagens?
“Falar imagens” é uma experimentação.
Seremos tal qual Filóstrato: percorreremos
outros mundos visíveis, imagináveis,
outras tantas sensações para além da
imagem que se encontra diante dos nossos
olhos.
“Resumindo, o ato criador não é
executado pelo artista sozinho; o
público estabelece o contato entre a
obra de arte e o mundo exterior,
decifrando e interpretando suas
qualidades intrínsecas e, desta
forma, acrescenta sua contribuição
ao ato criador” (Duchamp, Ato
Criador, 1965).
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