estudo sobre a educação kaingang na terra indígena ivaí

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ESTUDO SOBRE A EDUCAÇÃO KAINGANG NA TERRA INDÍGENA IVAÍ –
MANOEL RIBAS/PR.
LUCIANA CAMURRA1
LUZIA MARTA BELLINI2
RESUMO: Esta investigação trata-se de uma pesquisa acerca da relação dos Kaingang
com a escola existente na Terra Indígena Ivai, localizada no município de Manoel
Ribas/PR. Tendo em vista a inexistência de estudos sobre a percepção da comunidade
indígena Kaingang acerca das condições existentes (ambientais/construções) na Terra
Indígena Ivaí, investigamos o conhecimento que as crianças e adultos apresentam sobre a
escola; a participação desta na ambientação local e a noção que possuem de ensino para
refletirmos sobre a necessidade de propostas de ação educacional para a comunidade
indígena. Tivemos por objetivo efetuar um estudo acerca do projeto pedagógico para a
educação Kaingang; investigar a percepção das crianças, jovens e adultos Kaingang sobre a
escola e o processo de escolarização. Para tal, realizamos estudos teóricos, pesquisa de
campo com observações, entrevistas e fotografias das escolas locais. Para a investigação do
projeto pedagógico, levantamos os tipos de livros didáticos usados nas escolas (ambas de
ensino fundamental) e observamos as aulas. Quanto ao estudo da percepção, observamos a
conduta da escrita das lições e condutas de fala (entre eles e deles para com os brancosfalar Kaingang ou português). As observações das condutas dos alunos e professores nos
permitem indicar que as escolas locais atuam com as mesmas bases pedagógicas de escolas
“brancas”. Constamos que, embora as escolas tenham sido reivindicação dos caciques, já
que são símbolos de conquista política e de reconhecimento dos Kaingang na região, elas
não atendem aos mesmos, na medida em que imprimem a pedagogia padrão das escolas das
cidades.
Palavras-chaves: Indígena, Escola e Educação Diferenciada.
1
Universidade Estadual de Maringá. Graduada em Psicologia e Pós-Graduanda em Educação (Stricto Sensu).
E-mail: [email protected]
2
Universidade Estadual de Maringá. Profª Doutora do Departamento de Fundamentos da Educação. E-mail:
[email protected]
INTRODUÇÃO
A formação da consciência da cidadania, a capacidade de reformulação de
estratégias de resistência, a promoção de suas culturas e a apropriação das estruturas da
sociedade não-indígenas, pela aquisição de novos conhecimentos úteis para melhoria de
suas condições de vida, estão em pauta nas propostas relativas à educação escolar indígena.
A educação escolar indígena virou uma pauta política relevante dos índios. Deixou de ser
uma temática secundária e ganhou importância fundamental.
A extrema diversidade da realidade cultural do Brasil e a existência de milhares de
pessoas que se expressam em línguas diferentes, que têm outra visão de mundo, que se
relacionam com a natureza de forma diferente, exige que o processo educativo considere
toda esta multiplicidade não apenas ao nível declarativo, mas criando mecanismos que
possam viabilizar um trabalho pedagógico diferenciado em sala de aula.
Foi pensando nesta necessidade e na ausência de estudos sobre a percepção da
comunidade indígena Kaingang acerca das condições existentes em função da instituição
escolar presente na Terra Indígena Ivaí, localizada no município de Manoel Ribas/PR., que
realizamos o presente estudo acerca da relação da escola com os Kaingang.
No intuito de compreendermos o conhecimento que a comunidade apresenta sobre a
escola, a participação desta na ambientação local e a noção ensino, investigamos a
percepção das crianças, jovens e adultos Kaingang sobre a escola e o processo de
escolarização.
Para tal empreendimento, efetuamos, primeiramente, um levantamento teórico sobre
escola e educação indígena. Após essa busca bibliográfica, partimos para a pesquisa de
campo, método que nos possibilitou a observação e análise dos instrumentos e métodos
pedagógicos utilizados na educação Kaingang, por meio de observações das aulas,
entrevistas com alunos, pais e professores e levantamento dos tipos de livros didáticos
usados na escola.
Buscamos compreender também, a percepção da comunidade acerca das duas
escolas de ensino fundamental presentes na aldeia.
A escola indígena, pensada em conjunto com os sujeitos envolvidos - professores,
alunos e comunidade - pode possibilitar a relação entre educação escolar e a vida em sua
dinâmica histórica na medida em que puder trabalhar com os conhecimentos provenientes
da comunidade intercambiados aos conhecimentos oriundos da sociedade na qual a
comunidade se insere.
DIREITO À EDUCAÇÃO DIFERENCIADA, INTERCULTURAL E BILÍNGUE
A escola indígena tem sido um lugar no qual ocorre a ruptura com o modo-de-ser
tradicional. Quando ela é incorporada de acordo com os parâmetros exclusivamente nãoindígenas, causa profundas rachaduras no alicerce cultural. Foi isso que aconteceu e vem
acontecendo com os povos indígenas no país, devido ao modelo de escola estabelecido pelo
poder dominante, com o objetivo de incorporar, assimilar e integrar os índios à sociedade
nacional.
Neste sentido, a história do Brasil tem sido testemunha de uma intervenção
sistemática e permanente de uma determinada classe, que, com seu poder econômico e sua
mentalidade mercantilista, tem imposto sobre a maioria da população uma cultura
etnocêntrica, fragmentadora e desestruturadora das relações sociais desenvolvidas por
grupos que se organizam segundo uma lógica diferente.
A escola é vista como uma instituição única, com os mesmos sentidos e objetivos.
Tem como função garantir a todos o acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente
acumulados pela sociedade. Tais conhecimentos, porém, são reduzidos a produtos,
resultados e conclusões, sem levar em conta o valor determinante dos processos.
materializado nos programas e livros didáticos. Desta forma, o conhecimento escolar se
torna “objeto”, “coisa” a ser transmitida. Ensinar se torna transmitir esse conhecimento
acumulado, e aprender se torna assimilá-lo.
No fundo, o mais importante não é o aprendizado do aluno, mas que ele se
enquadre aos padrões determinados pela escola e a sociedade. “Nessa lógica, não
faz sentido estabelecer relações entre o vivenciado pelos alunos e o
conhecimento escolar, entre o escolar e o extra-escolar, justificando-se a
desarticulação existente entre o conhecimento escolar e a vida dos alunos”
(DAYRELL, 2001, p.139).
O processo de ensino e aprendizagem ocorre segundo uma homogeneidade de
ritmos, estratégias e propostas educativas para todos, independentemente da origem social,
da idade do educando ou das experiências vivenciadas por cada um. É comum os
professores ministrarem uma aula com os mesmos conteúdos, recursos e ritmos para alunos
de uma mesma série de escolas diferentes, como uma particular do centro e outra pública,
localizada na periferia.
A diversidade dos alunos é reduzida a diferenças segundo a ótica da cognição (bom
ou mau aluno, esforçado ou preguiçoso etc.) ou na do comportamento (obediente ou
rebelde, disciplinado ou bagunceiro). Assim, o conhecimento é visto como produto, sendo
enfatizado os resultados da aprendizagem e não o processo. Explica-se então, a forma como
a escola organiza seus tempos, espaços e ritmos bem como e seu fracasso. Afinal de contas,
não podemos esquecer (o que essa lógica esquece) que os alunos chegam à escola marcados
pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos cognitivo, afetivo e social, evidentemente
desiguais, em virtude da quantidade e qualidade de suas experiências e relações sociais,
prévias e paralelas à escola.
Essas crianças e jovens que chegam à escola devem ser apreendidos como sujeitos
sócio-culturais. Deve-se superar a visão homogeneizante e estereotipada da noção de aluno,
dando-lhe um outro significado. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença, enquanto
indivíduo que possui uma historia, com visões de mundo, valores, sentimentos, emoções,
desejos, projetos, comportamentos e hábitos que lhe são próprios. Assim, o cotidiano se
torna espaço e tempo significativos. Em outras palavras, os alunos já chegam à escola com
um acúmulo de experiências vivenciadas em múltiplos espaços, através das quais podem
elaborar uma cultura própria. “Não há, portanto, um mundo real, uma realidade única,
preexistente à atividade mental humana” (DAYRELL, 2001, p.140).
É neste contexto que se insere, também e principalmente, a escola para os índios. A
implantação da escola indígena diferenciada, bilíngüe e intercultural, a qual é garantida por
lei, sofre inúmeros obstáculos burocráticos. Se existem hoje leis bastante favoráveis quanto
ao reconhecimento da necessidade de uma educação específica, diferenciada e de qualidade
para as populações indígenas, na prática, entretanto, há enormes conflitos e contradições a
serem superados.
Em síntese, a escola deve ser um instrumento de afirmação da cultura indígena e
também de preparação dos índios para se relacionarem com a sociedade de fora. Para tal, é
de fundamental importância que a escola indígena seja pensada em conjunto com os
professores, alunos e principalmente com a comunidade. Essa necessidade está bastante
explícita nos depoimentos de alguns professores indígenas, obtidos pelo por Grupioni
(2001):
"Essa escola foi o governo quem construiu. Mas ela é da comunidade e é a
comunidade quem diz como ela vai funcionar. A escola pode contribuir muito
para a comunidade. No passado, a escola trouxe muita coisa ruim. Hoje,
queremos reverter essa história, fazendo com que a escola nos traga coisas boas,
coisas novas" (Prof. Enilton Wapichana/RR).
"A escola diferenciada também dá oportunidade a muitas de nossas crianças de
melhorar o seu aprendizado e conhecer os costumes do nosso povo. Eu, como
professora indígena, acho muito importante a oportunidade que tenho de
aprender a cultura e os costumes dos nossos antepassados" (Profa. Rita
Tapeba/CE).
"É importante discutir com toda a comunidade para a gente decidir o tipo de
escola que nós precisamos." (Prof. Paulo Galibi/ AP).
A proposta de uma escola indígena intercultural, bilíngüe, diferenciada e
comunitária só se realiza com a efetiva participação da comunidade indígena. É por meio
do envolvimento dos pais dos alunos, dos chefes da comunidade, das pessoas mais velhas
do local, discutindo e pensando junto com os professores índios e com os representantes do
sistema educacional, que a escola, pode ganhar uma feição indígena, atendendo às
demandas deste povo e servindo aos seus interesses, na busca da autonomia e de um melhor
relacionamento desses povos com os brancos.
Porém, não basta que o professor seja índio, ou mesmo que, o ensino seja bilíngüe,
é necessário que este ensino esteja comprometido com um projeto político mais amplo de
valorização cultural e soberania étnica. Além do professor indígena e do ensino bilíngüe (se
for o caso), uma proposta escolar indígena necessariamente deve estar comprometida com a
comunidade. Sendo assim, o ritmo, a intensidade, a forma e os procedimentos para a
efetivação do aprendizado, podem e devem ser discutidos com a comunidade, para que a
escola não funcione como uma instituição à parte da vida social, mas participe dela de
forma ativa e integrada.
As crianças indígenas são criadas num ambiente de muita liberdade, tendo uma
participação ativa em praticamente todas as atividades de sua comunidade, como as
domésticas (ajudando a cuidar dos irmãos menores ou a lavar as roupas, louças), atividades
de produção de alimentos, ir à roça ou à pescaria, atividades rituais. Esses momentos são
fundamentais para a aprendizagem.
[...] é de uma maneira muito livre que as crianças aprendem a identificar os
limites que regem sua sociedade, abordando-os e vivenciando-os por todos os
lados e em todos os sentidos, dentro e fora, pública e privadamente, obtendo um
conhecimento pleno da vida naquele lugar e daquelas pessoas com as quais
interagem. É “a solta”, poderíamos dizer, que passam a conhecer as regras que
todos seguem e passam também a conhecer os temperamentos, as manias, as
capacidades, as dificuldades e as vontades de cada um[...] (LOPES DA SILVA,
2001, p.73)
Atualmente, em muitas das comunidades indígenas brasileiras, os processos
tradicionais de socialização das crianças dividem espaço com a instituição escolar. Neste
caso, ela deve cumprir funções específicas, sem competir com momentos importantes da
vida grupal. Escola e comunidade não podem estar desvinculadas do ritmo e do padrão da
vida indígena. Ela não é o único lugar de aprendizado, nem deve substituir momentos
formais e informais de transmissão de saber. Porém, como, de fato, não é isso o que
geralmente acontece, a relação entre escola e sociedade indígena nem sempre se dá de
forma pacífica e harmoniosa. Segundo Grupioni (2001, P. 53),
Normalmente são desencontros causados pela falta de diálogo entre os
responsáveis pela escola, os professores ou os agentes do sistema educacional, e
os representantes da comunidade, na figura dos chefes das aldeias, dos líderes,
dos xamãs, dos mais velhos e dos pais dos alunos. Para evitar tais desencontros,
é preciso que haja uma efetiva participação da comunidade em todos os
principais momentos da vida escolar, desde sua implantação até a sua gestão
cotidiana.
A comunidade tem uma importância fundamental para a instituição escolar, pois tem muito
a dizer sobre como a escola vai funcionar e que tipo de indivíduo ela vai formar. Nesse
sentido, o direito à educação escolar diferenciada não se refere somente ao direito à escola,
mas ao reconhecimento de processos próprios de aprendizagem, isto é, cada povo tem
direito à sua própria forma de aprender e ensinar na sua cultura.
Apesar de os indígenas reconhecerem que a escola não é o único lugar onde o
aprendizado acontece, há também, entre eles, o reconhecimento de que a educação escolar
diferenciada é indispensável para que sobrevivam. No início, as comunidades indígenas não
permitiam que suas crianças fossem "educadas" num espaço que não o da vida cotidiana,
até hoje muitas mães impedem seus filhos de irem à escola, entendem que a educação é de
responsabilidade da família. Porém, atualmente, de algo historicamente imposto, a escola
passou a ser reivindicada por comunidades indígenas, que pressentiram nela a possibilidade
de construção de novos caminhos para se relacionar e se posicionar frente aos
representantes da sociedade mais ampla, com a qual estão cada vez mais em contato.
Os povos indígenas no Brasil têm reivindicado uma escola indígena que lhes sirva
de instrumento para a construção de projetos autônomos de futuro, dando-lhes acesso a
conhecimentos necessários para um novo tipo de interlocução com o mundo de fora da
aldeia. Nesse processo, a escola ganhou relevância dentro do movimento indígena, e os
professores indígenas, organizados em uma nova categoria de profissionais, têm hoje uma
pauta própria de luta e reivindicações.
[...] cabe à escola propiciar às crianças indígenas momentos formalizados de
aprendizagem da escrita e da leitura, tanto em português, quanto nas línguas
indígenas, abrindo-lhes a oportunidade de desenvolver capacidades que lhes
permitam entender e lidar com o mundo moderno e adquirirem ferramentas que
lhes possibilitem obter e assimilar conhecimentos acumulados pela humanidade,
integrando-os aos conhecimentos construídos por seu povo (GRUPIONI, 1998,
p. 23).
Para os povos indígenas, mesmo sendo a escola uma instituição produzida pela
sociedade ocidental e que sirva para impor uma lógica de pensamento contrária à lógica
desses povos e uma organização social em nada semelhante à deles, ela é necessária e faz
parte da luta por autonomia. É nesse contexto, que Lopes da Silva (2001, p.57) afirma que
“a educação escolar é valorizada como instrumento para a compreensão da situação extraaldeia e para o domínio de conhecimentos e tecnologias específicos que a elas podem
favorecer”.
Para assegurar a escola indígena diferenciada, com currículos específicos, são
necessários também projetos de formação de professores que reconheçam seus próprios
processos de aprendizagem e especialmente os saberes de cada cultura para a educação
indígena. “O processo de reconstrução de uma nova identidade indígena se dá através da
síntese de saberes indígenas e não-indígenas, onde os professores exercem papel de
intelectuais da cultura” (CAPACLA, 1995, p. 30).
Quanto aos livros didáticos e ao método e conteúdo de ensino, existem muitas
dificuldades de ensinar, quando utilizam uma língua desconhecida (quando muito, pouco
conhecida). As palavras e coisas que fogem do contexto da comunidade indígena. Assim,
torna-se necessário, a produção de cartilhas, livros, dicionários e coletâneas de histórias
escritas nas diferentes línguas indígenas. Nessas iniciativas, os professores indígenas têm
sido chamados a refletirem sobre sua própria língua, sobre como grafá-la e sobre como
ensiná-la às novas gerações.
No Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, do MEC, sugere-se
alguns usos para a língua indígena na escola:
Primeiramente, a língua indígena deverá ser a língua de instrução oral do
currículo. Chama-se de ‘língua de instrução’ a língua utilizada na sala de aula
para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações. Em segundo lugar,
a língua indígena deverá tornar-se a língua de instrução escrita predominante
naquelas situações que digam respeito aos conhecimentos étnicos e científicos
tradicionais ou à síntese desses com os novos conhecimentos escolares fora da
escola. Da mesma forma que acontece com a oralidade, os alunos aumentarão
sua competência escrita em língua indígena. Além de ser a língua de instrução, a
língua indígena deve também entrar no currículo, no caso de comunidades
bilíngües, como uma de suas disciplinas. Nesses casos, ela será objeto de
reflexão e de estudo, tanto no nível oral quanto no escrito, o que contribuirá para
que os alunos conheçam com mais profundidade sua própria língua e ampliem
sua competência no uso da mesma. (MEC, 1998).
Para que essa busca pela manutenção das línguas indígenas no processo educacional
seja alcançada, é preciso que professores índios e não-índios que atuam nas comunidades
indígenas, saibam trabalhar o educacional, cultural e politicamente para aumentar as
chances de sobrevivência das línguas e culturas indígenas.
De acordo com as idéias de Pourchet (1983, p. 89, 90),
[...] um trabalho de educação fundamental consistiria em fornecer ao índio,
elementos para que tomasse consciência de seu valor como pessoa, adquirindo
uma atitude crítica, ativa e de cooperação, uma vez despertado para os próprios
problemas e para os da comunidade.
Compreendemos, portanto, que as escolas indígenas necessitam de formação de
pessoal especializado, currículos mais próximos de suas realidades e mais condizentes com
as novas demandas de seu povo, capazes de promover junto aos alunos indígenas o
exercício pleno da cidadania e da interculturalidade, o respeito as suas particularidades
linguística-culturais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Com base nos resultados obtidos, percebemos que as escolas locais atuam com as
mesmas bases pedagógicas de escolas “brancas”, sobretudo no aspecto lingüístico. Os
professores não falam a língua kaingang (são todos brancos exceto um deles) e muitas
crianças não escrevem em português. Os alunos falam em Kaingang o tempo todo. Até
respondem ao professor em português, mas não são avaliadas como falantes bilíngües e,
sim, pelas respostas corretas ou não. A técnica de alfabetização não ultrapassa a repetição
de lições de cartilhas tradicionais do português com técnica de soletrar passo a passo letras
para formar sílabas. Resumidamente, a língua de instrução, tanto oral como escrita, não é a
Kaingang mas sim o português, e todo o material pedagógico, assim como o método de
ensino, em nada se distingue daquele usados nas escolas das cidades. . Certamente, esses
são alguns dos fatores responsáveis pelo insucesso da escola na alfabetização dessas
crianças, já que muitos chegam a 5ª série sem saber escrever o sobrenome, o nome da
professora, da escola, ou não sendo capaz de dizer a idade ou em que série se encontra.
As lições em português não alcançam a compreensão das crianças. Os professores
alegam que o insucesso na aprendizagem da língua portuguesa está localizado na
incapacidade intelectual das crianças. Por outro lado, as crianças não compreendem os
objetivos dos professores. Estes lamentam que na escola local não haja programa
pedagógico para criança com problema de déficit intelectual. Isso demonstra o quanto estes
professores apresentam-se despreparados para compreender a realidade de uma cultura, que
por se diferenciar da cultura “branca” necessita de uma pedagogia diferenciada, tanto em
conteúdo como método, e por isso, exija também, professores capacitados para exercer tal
tarefa.
Contudo, algo se destaca deste contexto de educação “indiferenciada”, existente nas
escolas da Terra indígena Ivaí. Existe uma disciplina voltada para o estudo da língua local,
que é ministrada por um professor Kaingang. No entanto, há menos de cinco livros
diferentes que tratam da disciplina. Buscando superar essa realidade, o professor, às vezes,
se baseia em pequenos textos em Kaingang feitos por ele.
Quanto a sua didática, ele escreve na lousa, conversa com os alunos e os incentiva a
copiar:
a) Né ny nenh ky ko há tígtí? (O que é bom de cozinhar e de comer? R: feijão)
b) E py ky ég ky ne kran ti? (O que mais plantamos na roça? R: feijão)
c) Ne my eg vene he tí gí? (Para quem nós vendemos? R: para os brancos)
Notamos a empolgação das crianças durante esta aula, a qual acontece apenas na 5ª
série. O professor diz que elas não apresentam dificuldades de leitura ou escrita em
Kaingang e que realmente, como pudemos observar, são bastante participativas, o que
indica que, diferentemente do que pensam alguns professores “brancos” da escola local,
essas crianças não possuem dificuldades de aprendizagem mas sim, necessitam de um
projeto pedagógico que esteja voltado para a cultura local, com professores indígenas,
materiais específicos que abordem também, conteúdos relativos à cultura local e que sejam
escritos em Kaingang, facilitando, assim, a eficiência no processo de aprendizagem.
Com relação aos educadores, há aproximadamente 20 professoras nas escolas. A
professora de português (5ª série), diz que ensina as vogais, pois é o método mais adequado
para os Kaingang. A professora da 4ª série trabalha a estória do “Índio Peri”, em português.
Ressalta que há quatro alunos que repetiram três vezes a mesma série, dizendo que eles não
saem muito da sala, mas também não prestam atenção, conversam muito e se recusam a
ouvi-la quando ela fala diretamente com algum deles. Há dez anos que leciona na escola e
prefere trabalhar com crianças kaingang a crianças brancas, apesar de a maioria deles ter
grande dificuldade em aprender. Recomenda aos alunos “virem bem limpos à escola” e
para não faltarem porque “quem faltar não receberá a bolsa-escola”.
Tudo indica que realmente existe uma confusão entre deficiência e diferença
cultural. Os professores responsabilizam os alunos pelo insucesso na alfabetização, não
visualizando as carências do processo como um todo, nem refletindo sobre o fato de que a
estrutura educacional não atende as necessidades de um povo específico, que possuem seus
próprios meios para aprender e ensinar, de produzir e transmitir os conhecimentos e por
isso exige que todo o processo educacional seja distinto para que, de fato, seja bem
sucedido.
A professora da 4ª série faz anotações diárias nos cadernos dos alunos e escreve na
lousa, todos os dias, o nome da escola, da aldeia, dia da semana, do mês e ano, cidade,
estado, país, estação, nome do professor e da diretora, do prefeito, governador e presidente,
do aluno, série e disciplina. Faz muitos exercícios de língua portuguesa e de matemática.
Na sala da 3ª série a professora dá aulas de completar as palavras. Na sala de educação
infantil, a professora trabalha com massinhas e enfatiza as cores de cada massa. Na sala da
1ª série, a professora usa a lousa para explicar o calendário. Faz muita atividade com
desenho e comenta que, na primeira série, há duas crianças de oito anos, que farão testes
psicológicos porque apresentam muitas dificuldades de aprendizagem; provavelmente iriam
para a APAE. Nota-se aqui que, todo o processo educacional, incluindo os professores, não
ultrapassam a visão homogeneizante e estereotipada da noção de aluno. Eles não são
compreendidos nas suas diferenças, enquanto indivíduos que possuem uma historicidade,
com distintas visões de mundo, escala de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos,
com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios. Percebemos, então, a
importância da existência de projetos voltados para formação de professores que
reconheçam os processos de aprendizagem de um determinado povo, e que permitam uma
síntese de saberes indígenas e não-indígenas, para que assim, possam exercer o papel de
intelectuais da cultura.
Contudo, podemos notar que a escola indígena não é pensada em conjunto com os
professores, alunos e com a comunidade, pois em praticamente nenhum aspecto, se
diferencia da escola “branca”, o que demonstra que ainda estão distante de serem
instrumento de afirmação da cultura indígena, e de preparação dos índios para se
relacionarem com a sociedade de fora.
As duas escolas atendem o ensino fundamental e uma sala de ensino pré-escolar.
Elas existem desde 1994 e foram reivindicações dos caciques Kaingang. São importantes
para a comunidade, representam conquista política e reconhecimento dos kaingang na
região. Isso nos permite constatar que de fato, a escola é valorizada como instrumento para
a compreensão da situação extra-aldeia e para o domínio de conhecimentos e tecnologias
específicos que a elas podem favorecer, ou seja, os Kaingang reconhecem a importância de
oferecer uma educação formal á suas crianças e seus jovens para que possam lutar pelos
seus direitos e assim, contribuir para a manutenção de suas culturas.
Para os pais é muito bom estudar. O pai de R. afirmou que ele parou na 4ª série,
com 14 anos, porque quis ajudar o pai a trabalhar no artesanato. Gostaria de voltar a
estudar, mas trabalha de vigia da escola durante o dia inteiro e como não têm aulas à noite,
não é possível. Diz que a escola melhorou muito porque era de madeira e só tinha dois
professores. Hoje têm muitos e a escola é mais bonita.
As escolas são para a Terra Indígena Ivaí uma propriedade branca que valoriza a
comunidade, mesmo não atendendo aos Kaingang quando imprimem a pedagogia padrão
das escolas das cidades.
Sendo assim, medidas devem ser tomadas para que o direito à diferença seja
garantido. É preciso que haja um engajamento entre o sistema educacional e a comunidade.
É por meio do envolvimento dos pais dos alunos, dos chefes da comunidade, das pessoas
mais velhas do local, discutindo e pensando junto com os professores índios e com os
representantes do sistema educacional, que a escola, pode ganhar uma feição indígena,
atendendo às demandas daquele povo e servindo aos seus interesses, na busca da autonomia
e de um melhor relacionamento desses povos com os brancos.
CONCLUINDO...
Considerando os resultados obtidos por meio desta pesquisa, podemos dizer que as
escolas locais não ultrapassam a tarefa de propiciar às crianças indígenas, momentos
formalizados de aprendizagem, na medida em que não estão referenciadas no território, na
língua, na cultura Kaingang, não respeitando, tanto quanto deve, o direito à educação
bilíngue, diferenciada e intercultural.
Sendo assim, é necessário inúmeras transformações em todo o processo educacional
- programas disciplinares específicos; professores indígenas que reconheçam as
necessidades locais; materiais didáticos diferenciados, tanto em conteúdo como em língua
escrita – para que enfim, a escola indígena possa atingir verdadeiramente seu objetivo de
contribuir para o desenvolvimento de capacidades que permitam aos Kaingang, entender e
lidar com o mundo “branco”, para assim, poderem lutar em função da manutenção e até
mesmo, recuperação de suas culturas.
REFERÊNCIAS
CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a educação indígena no Brasil (1975-1995).
Resenhas de teses e livros. Brasília/São Paulo: MEC/MARI, 1995. Disponível em:
<http://www.unir.br/~primeira/artigo151.html>. Acesso em: 14 de dezembro de 2004.
DAYRELL, R. (org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 2001.
GRUPIONI, Luís Donisete B. Coleção de livros didáticos do Referencial curricular
nacional para as escolas indígenas: informações para o professor. Brasília: MEC/SEF,
1998.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi, Vidal, Lux e Fischmann, Roseli (orgs.). Povos
Indígenas e Tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo:
Edusp e Unesco, 2001.
LOPES da Silva, Aracy e FERREIRA, Mariana Kawall (orgs.). Antropologia, História e
Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp, 2001.
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Brasília:
MEC,
1998.
Disponível
em:<http://www.tvebrasil.com.br/salto/cronograma2003/eei/eeitxt2.htm>. Acesso em: 02
de dezembro de 2004.
POURCHET, M. J. Ensaios e pesquisas Kaingáng: antropologia, física, anticoncepção e
ação indigenista. São Paulo: Ática, 1983.
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