Baixe o Livro: Mundo dos Raros

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Claudia Canto
Bem-vindos
aomundodos
RaRos
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
C233b
Canto, Claudia, 1973Bem-vindos ao mundo dos raros / Claudia Canto. - São Paulo: Edicon, 2006.
ISBN 851. Conto brasileiro. I. Título.
06-3235.
CDD 869.93
CDU 821.134.3(81)-3
04.09.06 12.09.06 016040
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(Lei no 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
Impresso no Brasil/Printed in Brazil
Dedicatória
Aqueles que de alguma forma contribuem para
uma psiquiatria, mais humanizada, e por entenderem
que todos somos antes de tudo apenas gente.
E principalmente aqueles que assomam as clínicas
psiquiátricas e infelizmente os ultrapassados
manicômios.
ABAIXOASPRISÕESMANICOMIAIS,
QUEMAISDESCURAM!
VIVA A ARTE COMO LEGÍTIMA FORMA DE CURA.
Agradecimentos
Deixandodeladoqualquerintuitopiegas,agradeçodeantemão
àspessoas,queolharamsemassombramentoaidéiadestelivro.
Irineide F., ThomasMielenhausen, M. Alice, Ricardo
Gutauskas,JuanRubinGonzales
MariaCantoefamília;pelapaciênciadiantedeumaeterna
rebeldesemmuitacausa.
Dr.JoãoGuilherme:portermeemprestadoumpouquinhoda
suainteligênciaedisciplinaeprincipalmenteacreditado.
Àspessoasquenuncaduvidaramqueo“MundodosRaros”
pudessedefatosairdosonho.
Àartequemeobstinouaumcaminhodiferente.
ARobson Urahatapelafelizcaricatura.
ÀDra.LucianaMayumi,pelamaravilhosacontribuição.
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Apresentação
Mundo inatingível, pouco compreendido inaceitável absurdo mantido à distância.
Pensamentos perdidos, frouxos/soltos, lúcidos,
inteligentes, abstratos, revoltos, inseguros, medrosos,
ansiosos, nervosos, angustiosos, inomináveis.
Tudo misturado, arredio, num só momento por um
instante fragmentos.
Como uma rolha sendo retirada e do seu interior
saem muitas idéias a pulular desesperadas. Comunicando-se com o nada, com o abstrato, com o imaginário com o infinito.
Vida inteligente, de outra esfera
Vida flagelada sem retidão
Vida inacabada, interrompida, solta
E os outros a vão perdendo, sua importância, seus
adereços, suas identidades.
O carinhoso abraço, que se tornou frio sem raízes,
desconhecido.
Ou ao contrário o extremo: afeto desesperado, vulcânico, profundo, como se este abraço fosse a única
coisa que resta, o porto seguro.
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Como crianças menores teimosas, bagunceiras, que
precisassem ser vigiadas todo o momento, orientadas
com coleiras invisíveis.
Um gesto falho pouco intencional e depois o choro desesperado, as desculpas infindáveis
Coisas comuns rítmicas se tornam medonhas, lentas, perigosas.
Caminhar vago, sem destino a seguir, para
qualquer lugar, para lugar nenhum.
E lá escondido um mundo rico, inteligente, pouco
aproveitado, bem humorado.
Arte, Arte, Arte
As nossas mentes lúcidas aceitas, levianas, pouco
humoradas, nossas desgraças pequeno burguesas,
nossas contas a pagar, nossa boca a destilar venenos
imperdoáveis para pessoas normais
A falta de consenso o tempo todo, falta de
paciência, distúrbios aceitos.
Enquanto eles seguem para um mundo nebuloso,
impreciso, afoito, quase puro...
ClaudiaCanto
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Prefácio
No Sistema de Saúde atual, temos um grande desafio:
conseguir oferecer um atendimento mais humano e digno aos
nossos pacientes, os chamados “psiquiátricos” por alguns...
“PQs” por outros...
Este sonho pode parecer tão distante quanto era o de
Cláudia, uma jovem simples, que sonhava com um Brasil mais
justo, mais digno... o esforço e a garra foram seus maiores
aliados, e aqui está ela, publicando seu segundo livro...
Esta obra é um exemplo concreto de que nossos sonhos e
desejos podem se tornar realidade.
A psiquiatria é um lado bastante peculiar da medicina, ainda
pouco conhecido, “ainda” carregado de preconceitos e segredos.
Diferente das outras especialidades, é preciso haver um interesse
particular pelo que existe de mais abstrato em nós – trata-se de
um olhar bastante específico sobre o ser humano...
Nossa equipe foi composta, por sorte, por pessoas muito
interessadas em conhecer um pouco desse intrigante
funcionamento do ser humano, de nossas mentes, de nossas
emoções... foi neste contexto que tivemos a sorte de conhecer
Cláudia, uma pessoa especial, que com sua sensibilidade, sua
disponibilidade e carinho, pôde oferecer um contato único aos
pacientes que ajudou a cuidar.
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Nossa rotina nos coloca frente-a-frente com aquilo que
todos trazemos, geralmente de maneira mais velada que nas
“crises” de nossos pacientes: sentimentos, conflitos,
angústias... só que nas “crises”, isto vem cru, sangrando,
exposto... lidar com tudo isto realmente demanda que estejamos
emocionalmente disponíveis, isto é, uma das principais
ferramentas terapêuticas somos nós mesmos... tentamos ajudar
os nossos pacientes a se reestruturarem.
Por outro lado, observando com mais atenção, a cada
atendimento, conversa, contato, temos também a
oportunidade de aprendermos muitas coisas... a possibilidade
de conhecermos um pouco mais sobre nós mesmos, é única...
acho que esta é uma das experiências mais ricas e emocionantes
que podemos ter.
Cláudia tem o dom de colocar em palavras aquilo que não
se diz... aquilo que se sente, que passa tão velozmente por
nossas mentes e nossos corações, que por vezes nem
percebemos... transcrever a riqueza deste contato, o quanto
acabamos nos vendo na “loucura” do outro, a riqueza de cada
um dos pacientes, é um dos melhores presentes que poderíamos
ganhar.
Ninguém mais que você, Cláudia, merece enorme
admiração, pois você é um exemplo para todos, de garra e
determinação. Foi uma honra ter sido convidada para
participar desta introdução, e sou grata por você conseguir
ilustrar o Mundo dos Raros, como algo tão especial... como
ele realmente é para mim. É desta forma, Cláudia, que você
acaba contribuindo para o outro sonho também ser possível –
fazer uma psiquiatria diferente...
LucianaMayumiYamaguchi
Psiquiatra e coordenadora da
Psiquiatria do Hospital da UNIFESP
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Nota da autora
Em nenhum momento tive a intenção de revelar a
intimidade de cada paciente, busquei sim em primeira
instância relatar de forma fictícia, usando a linguagem
de contos.
Assim pude poupar as verdadeiras identidades,
usando codinomes e atributos líricos.
As familiaridades de cada diagnóstico, foram
cuidadosamente respeitadas, obedecendo assim a
rigorosidade da Ética profissional.
Meu principal objetivo é divulgar e oferecer uma
luz a estas milhares de pessoas que convivem com este
drama.
Por fim, o livro deve ser encarado acima de tudo
como um grande manual.
Espero desta forma ter contribuído, nem que seja
para o direcionamento de uma só família.
Alcançando meu intento, de pronto estarei plena.
Portanto, qualquer similaridade será absoluta
coincidência
ClaudiaCanto
As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão.
André Gide (1869-1951), escritor francês
Leia também “Morte às Vassouras - diário de uma jornalista que se
tornou empregada doméstica em Portugal” seu primeiro desatino.
Um livro que antes de tudo é uma lição de coragem e ousadia.
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Conto, que não se fez conto
Há quanto tempo se passou?
Não sei. O que sei é que a minha memória ainda
continua lá, como se estivesse vivendo aqueles
malditos momentos, como num cárcere, rediviva,
magnetizada...
A história aconteceu de uma forma abrupta, pouco
legítima para a época, foi ambientada num lar
humilde, sem o regozijo da mãe, e sem o afeto mais
exuberante do pai!!
Um pai antes alcoólatra, destes que se assemelham
aos micos de circo, que fazem rir a sociedade, e
antagonicamente chorar toda uma família.
Se disser que presenciei estes despautérios do seu
vício, ou como dizem da sua doença, estarei de fato
pouco contribuindo com a verdade, e esta nunca foi a
minha intenção.
Antes de brincar com as palavras como num
quebra-cabeça, encaixando uma aqui e outra acolá,
como fazem os verdadeiros escritores, aqueles
mesmos que estão por aí a contemplar a vida através
da literatura, açoitando de modo heróico as vidas das
celebridades.
Estes mesmos, que fogem do viés hipócrita e
medíocre através da arte.
Neste momento fujo até deles, dos meus grandes
ídolos, corro das suas influências líricas, românticas
ou sei lá o que, só sei que desta vez não os quero!
Esta será uma das poucas vezes que os renegarei,
escreverei como uma cronista, como uma narradora
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real da vida, coisa que não gosto, prefiro a pimenta
dos grandes romances, ou a relação agridoce dos
amantes suicidas!
Mas nesta história não tenho saída, é tudo muito
vivo, legítimo, com pouca poesia; nossa, como está
sendo difícil começar, a crise do papel em branco, o
fantasma da falta das palavras eruditas.
Oh, Meu Deus! Porque não estudei os grandes
cronistas, agora me pego aqui com dificuldade para
falar de uma forma limpa, sem o aconchego das
palavras, que não dizem nada, mas que preenchem
substancialmente.
Oh, querida mãezinha, me perdoe, por te fazer
relembrar, te trair, colocando nas letras, nossa vida,
nossa dinastia, nosso drama...
Olhando agora o seu lado, vejo que quem mais
sofreu foi tu, doce mulher, pouco letrada, que um dia,
mesmo sem saber qual a função de um psiquiatra,
procurou ajuda e ele sem descobrir qual era o
problema ofereceu ajuda errada, logo para você, que
só queria uma saída, que só queria seu doce menino
de volta, doce como fora...
É, mãezinha, preferi não dizer, para você não sofrer
mais, já bastava eu sofrendo tanto!
Sabe aquele dia? Ele me bateu, jogou uma madeira
bem grande nas minhas costas, enquanto eu corria,
louca também, desesperada, minhas perninhas magras
não corriam direito, ele corria muito.
Para mim, para nós, não tinha motivo, não
sabíamos que ele estava doente, que ele era um
esquizofrênico, eu não tinha nem coragem para encarar
o olhar dele, eu tinha apenas 5 anos de idade.
Se soubéssemos, né mãe?
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Que tinha remédios, que tinha tratamento, não
teríamos perdido tanto tempo, chorando, sofrendo,
mas o psiquiatra, preferiu dar o remédio para a
senhora, e a senhora, como acreditava que todos os
médicos eram deuses, tomou, como gotas
evangelizadoras de olhos fechados.
E ele ali do mesmo jeito, naquele sol de quarenta
graus, coberto com três cobertores de lã, com uma
expressão que não era do nosso menino!!
Foi de repente, ele tinha apenas 17 anos, o primeiro
tapa foi na mesa, com tanta violência! A senhora achou
que era problema na escola, rebeldia, até drogas, ele
que antes era um garoto excelente, se fez diferente,
violento, até a voz dele mudava, a fisionomia, quando
entrava em surto.
Hoje sabemos que era surto, antes não
conhecíamos nem esta palavra...
Nossa vózinha, consigo lembrar dela até hoje, foi
tão agredida, e agüentou firme, quando ela conseguia
gritar já era tarde demais...
De noite bem tardinha, quando você chegava do
trabalho, tinha sempre uma novidade, sofria, sofria
tanto, hoje consigo perceber muito melhor, de uma
forma mais transparente.
Seu sofrimento era físico, como as chagas dos
mutilados, lembro de algumas leituras que fizeram
parte da minha adolescência.
Lembrei dos apóstolos de Jesus, que foram
destroçados vivos nos grandes circos, nas arenas de Roma.
Se de fato aconteceram estas barbáries, isto não sei,
ou melhor, acredito que se houver todo este mistério,
que rodeia o nome de Deus, acho que ele iria gostar
de saber que duvido.
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Duvide sempre de tudo, questione, afinal foi para
isso que ele nos deu a inteligência!!
Sinto que estou fugindo do meu intuito, como se
eu estivesse com medo de lembrar, colocar tudo à tona;
por um instante associei esta página triste da história
a você, lembrei de você, como um grande apóstolo,
que veio com a missão de sofrer em nome dele, do
seu filho.
Caramba, acho que estou exagerando na retórica!
Queria poder dizer com poucas palavras, traduzir de
forma simples,
aquilo que na época foi um drama, mas que hoje...
Já parou para pensar, que podemos ajudar um
monte de gente? Me responda: você aceita esta
proposta? Eu conto tudo, às claras, tudo o que se
passou, e nós consequentemente, ajudaremos milhares
de pessoas, que passam pela mesma situação!
Eu sabia, que você iria aceitar, seu coração é grande
como sei lá, o céu, as nuvens, o mar, o infinito...
Ele tinha dezessete anos de idade, o futebol ficou
para trás, o beijo na boca que nunca foi dado, bailes
de adolescência nem pensar!!
O dia inteiro, coberto dos pés à cabeça, com um
sol de 40 graus, como já tentei dizer, e ele de negro
ficou com uma cor amarelada, cinzenta, uma sombra...
Ficava muito violento, naquela pequena casa de
dois cômodos, quebrava tudo, a nossa pequena TV, o
pouco que tínhamos.
Lembro, que papai vendia doces na porta da
escola, e isto era uma das nossas poucas alegrias, os
doces, as balas, os chicletes...
Acho que me tornei uma assaltante naquela época,
como o roubei, roubei para matar a minha fome de alegria...
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Ele ocupava um sofá, que ficava na cozinha, ou
melhor, que era sala, que era quarto, que era apenas
um pequeno compartimento pouco intitulado.
Não, não entendam mal, muito agradeço por ter
nascido com estes poucos recursos, acredito que só
vivendo assim, a gente valoriza o que tem.
Muitos lerão as minhas palavras, e suporão
demagógicas! Mas não se precipitem! Deixei bem
claro, que não seria uma história das mais poéticas.
Ainda há tempo para fugirem desta maçada,
fiquem à vontade, mesmo sabendo, que a falta de um
leitor, é a mesma coisa que a falta de nós mesmos.
Mesmo que alguns escritores digam que não.
Eu particularmente escrevo para ser lida, não
necessariamente admirada, mas sim para me entender,
ser entendida.
Gosto do sabor de brincar com as palavras, como
brincava com as nuvens quando era pequena,
sonhando em ser uma aeromoça.
Mentira! Não quero mentir, inventar histórias
mirabolantes, nunca sonhei com coisas ligadas à
profissão, sonhava sim, com uma casa grande e uma
caminha só para mim...
Hoje, como as coisas mudam, não gosto da solidão
da cama vazia.
Sinto que a minha crônica... Será ainda uma crônica?
Uma narração?
Ou virou apenas uma apoteose de palavras
perdidas de uma história, que de tão real, não parece
mais real, não consegue ter uma retidão, uma
seqüência, um ritmo; as palavras a seu bel prazer estão
caminhando como loucas, como andarilhos, como se
elas fossem minhas donas.
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Confesso, que não estou conseguindo fazer o que
me propus, vou parar um pouco, respirar, relembrar;
não, acho que vou tomar uma taça de vinho, brincar
com o meu cachorro!
Ouvir meu Chico, pensar nos meus amores, não
quero mais escrever sobre isto agora, não quero
lembrar de mais nada disto!!
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O vinho tem o poder de nos fazer esquecer
mágoas, inebriando as cores, transformando tudo em
poesia.
Oh, mas não posso, tinha decidido não escrever
de forma poética, nem lírica, nem nada disto...
É dele que preciso falar!
Foram necessários quase 30 anos, para
descobrirmos o motivo de tanta revolta, de tanta ira,
de tanta violência...
Não eram drogas, não era álcool, não era nada
destas coisas.
Precisei vir trabalhar em uma psiquiatria, para
descobrir que ele era um deles: Esquizofrênico.
Como este mundo dá voltas, gira em círculo, como
uma roda gigante, governada por algum juiz, destes
muito bons e imparciais.
Lembra mamãe?
Nossa casa parecia um templo ecumênico, a
senhora chamou praticamente todos os representantes
religiosos: mãe de santo, pastor, padre, espírita e outros
que não me lembro...
Todos com o mesmo intuito: expulsar o tal
“demônio” do corpo dele.
Mas que Demônio era aquele?
Que resistia a preces, novenas, promessas, passes
magnéticos, velas por todos os lugares da casa, lembro
de tudo, ou melhor, das piores coisas da minha
infância.
Somos como um arquivo ambulante, e no meu
caso, as coisas mais tristes ficaram registradas.
Não consigo lembrar das coisas saudáveis da
minha infância.
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Ah! Lembrei quando pela primeira vez comi
beterraba, no começo fiquei intrigada com aquele
vermelho vivo, mas depois, nossa que delícia!!
Foi na casa de uma vizinha, que todos acusavam
de ser uma gata de rua, ela era muito bonita e bem
novinha, era casada com um homem mais velho, que
morria de amores por ela, e não ligava para os seus
arroubos sexuais com os vizinhos.
Lembro também, que ela nos levava sempre a um
parque, para fazermos piquenique. E eu quase sempre,
não tinha nada para levar, mas quando lá chegávamos,
a balança era o meu reinado.
Me dividia entre a balança e a caixa de isopor com
os lanches, ficava com os olhos esbugalhados, só
esperando a hora de bem comer.
Minha mãe coitada, nem imaginava, que eu me
comportava desta maneira, tinha nos ensinado a
nunca aceitar nada dos outros, que era muito feio e
coisa e tal...
Enquanto isto, ele ali trancado, os anos passando,
as crises cada vez mais freqüentes e ferozes.
Até que um dia passou dos limites; a cena é viva
para mim, papai levando muitos socos na cara, sendo
impedido de entrar em casa, a polícia foi chamada,
lembro do barulho das sirenes, e o meu irmão e papai
sendo levados, eu chorava, num desespero que ainda
hoje me faz mal.
Então a senhora, que nunca tinha entrado numa
delegacia, correu aos prantos, desesperada, cansada
de tudo aquilo.
Quando a senhora conta, fico imaginando aqueles
caminhões antigos, cobertos apenas com uma lona,
todos sentados no chão, e o motorista a recolher todos
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os tipos de desamparados, ali todos juntos: ébrios,
drogados, doentes mentais de todas as ordens.
E a senhora ali com ele, indo sem saber para onde,
apenas indo, para onde o delegado os tinha mandado.
Hoje depois do mundo dos raros, consigo imaginar
o estado do local, um verdadeiro depósito de gente,
doentes de todos os tipos, lá confinados.
Foi lá que ele ficou, mas apenas por dois dias,
fugiu depois disto, voltou para casa, voltou para o seu,
para o nosso inferno.
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“Manoel!!! Foi para o inferno...”
Quando ele chegou no nosso mundo, em cima dos
seus 1m90, causou furor, inquietação, aprendizado...
E para fugir de nós todos, daquele ambiente, que
para ele era uma prisão, usava como rota de fuga, seu
arquivo musical.
Um refrão repetitivo discorria da sua voz rouca,
parecendo um brado de alerta.
“Manoel foi pro céu, Manoel foi pro céu...”
Enquanto uma orquestra singular o acompanhava:
pacientes, funcionários.
A sua dança sem ritmo, cada vez mais frenética,
agressiva.
“Manoel foi pro céu, Manoel foi pro céu...”
Cambaleante, delírios, arredio...
Mais troca de medicações,
Mais injeções,
Mais surtos,
O receio instalado, pacientes pouco pacientes,
funcionários em alerta.
E o Manoel vendo seu céu se transformar no seu
inferno.
Manoel, cadê o seu céu?
Cadê o seu céu, Manoel?
Ameaçador, prestes a agredir qualquer um a
qualquer momento,
Cara de desmazelo, socos, pontapés nas portas,
ameaças,
Troca de medicações,
Mais injeções,
Apelo verbal,
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Surto, que não tem hora, vem com a brisa da manhã,
com o entardecer do dia, o agitar da noite.
E ele a gritar impropérios, com sua mente em
desalinho.
Manoel perdido no céu!!!
Risco de queda, risco de agressão.
Embriaguez dos sentidos, pensamentos
misturados, pedido de ajuda ao irmão já falecido, filha
não reconhecida.
A contenção no leito se fez inevitável, sua retirada
estratégica do contato com os outros e de si mesmo.
E no leito, contido, muda seu refrão:
“Manoel foi pro inferno, Manoel foi pro inferno...”
Dias se seguiram, sem a sua música, apenas um
refrão triste ecoava do seu quarto: “Manoel! Foi pro
inferno. Manoel! Foi pro inferno...”
Aos poucos, a organização dos sentidos,
O medicamento acertado,
A calma estampada na face, um sorriso amistoso,
permanentemente,
As amarras desfeitas, de novo o convívio, o bom
humor, a pergunta inquisidora para mim:
Você acha mesmo que é normal?
E eu pensando na resposta, que até hoje não dei.
Aconchego, medicação, compreensão, melhora,
família
Bem aceito, bem visto, bem quisto...
Alta, Alta, Alta
Despedidas emocionadas, Manoel caminha pro
seu céu...
A porta se fecha por trás dele, mas de longe pude
notar uma lágrima teimosa a escapar dos seus olhos.
Obrigada, Manoel!!!
25
Um homem na estrada
Modelos animais são imperfeitos, mas é possível
obter informações úteis através de estudos de animais.
Macacos separados da mãe na infância ficam
psicóticos: seus cérebros se modificam em nível
fisiológico e desenvolvem níveis de serotonina muito
inferiores aos dos macacos criados pelas mães.
(Extraído do livro, “O Demônio do meio– dia, uma
anatomia da depressão”)
“Os grandes embates da vida são amenizados
diante de uma infância saudável.
As dificuldades da vida, originadas da pobreza e
da falta de perspectiva futura, sugerem grandes
dramas psicossociais.
Mas em contrapartida, as famílias arraigadas em
carinho e respeito, mesmo num patamar de pobreza
considerável, conseguem administrar problemas
vindouros de uma forma menos traumática.”
Ele chegou no nosso mundo absolutamente
contrafeito, agressivo...
De aspecto deprimente e extremamente hostil,
caminhava de um lado para o outro exasperado,
pedindo aos gritos seus óculos escuros, segundo ele
para amenizar a claridade que incomodava sua visão,
usando um boné que cobria seus olhos de tal maneira,
que impossibilitava enxergar a cor da sua íris.
“E aí mina, você conhece os Racionais?”
Ele era fã de Hip Hop, estilo musical que
exprimia todo o seu ódio contra a sociedade que
desprezava, sociedade de quem na sua opinião era
apenas vítima.
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Para minha sorte, sabia de cor o refrão da sua
música preferida, cantei de modo a ganhar sua
confiança.
“Um homem na estrada reconhece a sua vida, a
sua liberdade, que foi perdida subtraída” (Com direito
a coreografia e tudo).
“Nossa, esta música tem tudo a ver comigo!”
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“E quer mostrar assim mesmo, que realmente
mudou, e se recuperou”.
“Minha mãe, chama ela lá pra mim, pô, falaram
que eu iria trabalhar aqui, cadê o meu crachá?”
“Calma querido vamos cantar, vai Racionais!!!”
“Vamos cantar Racionais, vai canta comigo, eles
são os caras...”
“Sabe vou te contar um segredo, mina: Eu que fiz
as músicas dos caras, não conta pra ninguém, tou na
mó confiança em você...”
“Equilibrado num barraco imundo mal acabado e
sujo, porém seu único lar, se chover será fatal um
pedaço do inferno é aqui onde eu estou, até o IBGE
passou aqui e nunca mais voltou.”
“Nossa, mina essa música tem tudo a ver comigo,
é a minha vida.”
“É sério? Tá a fim de me contar? Só se você quiser!”
“Não, deixa quieto, melhor esquecer.”
“Você que sabe, mas acho que você não vai
esquecer nunca, está muito vivo aí dentro.”
O tempo concilia, promove a afinidade, ilustrando
amizades, no nosso caso o RAP foi nosso aliado, um
apelo musical comum na periferia das grandes
cidades.
Ele bem que poderia ter sido o autor da letra, ele e
mais um terço de crianças nascidas para sofrer.
Aos cinco anos de idade já saía de mochila nas
costa, não para ir à escola, mas para entregar
encomendas, não de doces e salgados, que a sua
madrasta poderia fazer para ajudar nas despesas da
casa, não para entregar as roupas, que ela poderia
também lavar.
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Saía sim, para entregar os papelotes de cocaína que
ela embrulhava com muito rigor, atenta sempre ao
peso, para não ir nenhuma grama a mais.
Ele era tipo aviãozinho; mas não tinha nenhum
aviãozinho de plástico sequer, ele era o próprio, e com
muita agilidade, subia e descia morro com os
papelotes na mochila da escola
De tanto apanhar, aprendeu rápido seu trabalho,
sabia quem eram os “fregueses”, e quanto tinha a
receber, até quem precisava ameaçar de chamar o
papai.
Fugiu de casa com nove anos de idade, foi morar
na rua debaixo de um viaduto, pedindo dinheiro na
rua e cometendo pequenos furtos.
“Pelo menos na rua tinha dinheiro para comer uma
coxinha e um guaraná, coisa que na minha casa não
tinha, era maior briga por um prato de arroz e feijão,
nove bocas disputando os restos da comida.
Os ratos tinham mais educação, um bando de
animais esfomeados, minha mãe me largou com o meu
pai, ela é doente: retardamento mental.
Claro que roubei, na rua precisava me virar, até
escutar estas malditas vozes me perseguindo, me
ameaçando de morte.
Dormia dentro de casa, com uma arma debaixo do
travesseiro, por isto que o meu pai me trouxe para cá,
queria ver quem iria me pegar
Se chegar perto eu mato...
Quero ver quem vai morrer primeiro, tá falando o
que?
Vai! Repete!
Quero ver quem vai me matar!”
E ao seu lado ninguém caminhava...
29
Monstros, vozes, e gargalhadas
“Vem cá, tá vendo estes monstros?
Tira eles daqui, por favor, eles não param de me
perseguir.”
“Saiam daqui, malditos!
Devolvam meu corpo, meu cérebro,
Devolvam minha linha da vida,
Saiam daqui, não agüento mais, tirem eles daqui,
pára de me beliscar, pára, chega, não quero mais
ouvir!!!”
Enquanto isto, ela corre para todos os lados de
olhos fechados, socos no ar, como se quisesse atingir
alguém, algo, depois cai na cama e grita:
30
“Não fui eu, eu juro, eles querem me matar, me
salva.”
Um grito ensurdecedor e desesperado.
“Que foi querida, o que você está vendo?
Estamos aqui para te ajudar, ninguém vai te fazer
mal...”
“Olha, você não está vendo?
Aqui, olha, é tão grande, feio, monstros, milhares
deles querendo me pegar...
Você não acredita?
Malditos, estão dizendo que querem me matar,
que eu sou a culpada, eu não roubei nada!
Tirem eles daqui, por favor!”
Em seguida, sai desesperada pelo corredor, olhar
perplexo, palavras aleatórias, mordazes.
Sozinha no seu mundo de terror, Maria é a
personagem principal do filme de terror criado pela
sua mente, subjugada, por quem está de fora, por quem
olha e não enxerga, por quem só vê a loucura
estampada na sua face.
São dezenas de monstros invisíveis, enormes, que
se apoderaram das entranhas do seu cérebro, algoz
dela própria, é conduzida para os mais ameaçadores
mundos por ela reproduzidos.
“Malditos são aqueles, que exploram as mentes
doentes, doutrinando e ameaçando, através de vozes
invisíveis, sagazes, imundas, levando a labirintos,
rochedos escuros, assoprando como se fossem ventos de
uma furiosa tempestade, palavras suicidas e mortais.
Malditos são aqueles, que se transformam em
monstros imaginários da baixa esfera, açoitando como
num auto-flagelo, transformando estes seres em
suicidas contumazes.”
31
Este era o cenário daquela mulher sombria que
chegou no nosso mundo, infeliz, pobre de carinho e
milionária de terror.
O amor aconchega, nutre, soma e acalma os
corações e mentes, das mais variadas esferas.
Olhos tristes, num recôndito feroz, Maria se
anulou, por toda uma vida, desfez histórias, e passou
a vida toda ouvindo e vendo fantasmas, como algozes
de toda uma existência.
A medicação, um carinho nas mãos, um leve toque
na cabeça, um olhar sereno confiante, palavras amigas,
foram aos poucos trazendo– a para o nosso mundo.
Risos desmotivados, irônicos:
“Que foi querida, do que você está rindo?
“As vozes, elas são tão engraçadas, me falam cada
coisa...”
“Fala para mim, o que elas estão te dizendo?”
Mais risos
“Não posso dizer de jeito nenhum, é pornográfico.
Você é a minha melhor amiga!
Me empresta o seu batom? Olha, o que achou?
Ficou bonito?
Nossa esta música é tão bonita, eu posso dançar?
Posso mesmo?”
“É preciso amar as pessoas, como se não houvesse
amanhã, porque se você parar, prá pensar, na verdade
não há...
Me explique a grande fúria do mundo.”
32
Sou genro do George Bush
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Meu nome é José Ribamar, sou casado com a filha
do Bush, há quatro anos, tenho 32 anos, e sou do signo
mais nobre do zodíaco: leão!
As pessoas para mim são como ratos de museus,
formiguinhas despreparadas, que precisam das
minhas ordens para sobreviver, é como se eu fosse o
dono do mundo, e elas como marionetes à minha
volta.
Apesar de ser genro do Bush, tenho amigos por
ele indesejados, como o Sadam Hussein, este mesmo
que foi encontrado no buraco, eu já sabia onde ele
estava escondido há muito tempo, mas como sou
amigo dos dois você sabe né? Não quis prejudicar nem
e nem outro, eles que se resolvam.
A cada dia que passa me sinto cada vez maior é
até um pouco injusto, tantas pessoas sem nada...
Aqui neste lugar eles insistem em me tratar como
um Zé Ninguém, estou deixando, um dia eles vão
perceber, a diferença entre eu e eles.
Pra falar a verdade, já traí minha mulher, a filha
do Bush, claro a Madonna me dando maior mole, ce
acha que eu não ia aceitar?
Ofereci a festa de aniversário do Julio Iglesias, no
meu transatlântico em consideração à família dele, que
é como se fosse a minha, maior respeito.
Minha história começou há trinta anos atrás,
quando Deus me avisou que eu iria nascer com a
missão de ajudar os necessitados, este país é muito
miserável, tive que blindar o meu carro importado, e
colocar cercas elétricas na minha mansão.
Em que país desigual vivemos! Eu com tanto e
outro sem absolutamente nada. Mas o que fazer? Faço
o que posso dou emprego para centenas de pessoas
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na BMW, além do Barateiro e vários shoppings, não
tenho culpa de ser milionário.
De calça jeans, tênis roto e com um linguajar cada
vez mais desassociativo, ele caminhava como um lorde
inglês, procurando sempre causar boa impressão,
principalmente nas mulheres...
Saiu do nosso mundo, com idéias menos
grandiosas, mas sempre à espera do tal telefonema do
tal sogro, presidente dos EUA.
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Fuga de mim
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“A única coisa que conseguia pensar, é que deveria
fugir, me isolar, isto é quando eles não estavam me
perseguindo.
Daí cavei um buraco de mais ou menos 3 metros
de profundidade, dentro da minha própria casa,
escondido de todos, fiquei lá trancado cavando, por
meses a fio, só parava para beber, nem fome tinha
mais...”
Quem olhava para aquele homem, não podia
imaginar. Há tempos não via um rosto tão harmônico,
angelical, sem rigidez, puro, sem nenhum sinal de
sofrimento, nada.
Não falava com ninguém, perdeu os amigos, e a
família toda no nordeste não imaginava que tudo isto
estivesse acontecendo, já que Mário sempre foi muito
ausente.
Menino precoce, saiu de casa com 14 anos para
ganhar a vida na cidade grande, e só deu notícias com
dezoito anos de idade.
Foi encontrado por uma vizinha, quando num
surto passou a gritar dentro de casa, como um cão
raivoso, a ofender seres imaginários, a burlar códigos
de éticas, num sofrimento atroz.
“– Sua casa era na verdade um depósito de
bactérias petrificadas, excrementos por todos os lados,
cheiro fétido de urina a exalar pelos poros das paredes,
papéis embolorados, estendidos no velho sofá,
garrafas de cachaça jogadas nos lugares mais díspares.
Este foi o ambiente no qual o encontrei: largado
num canto da casa, todo sujo de barro, a barba enorme,
com uma expressão de sofrimento agonizante, uma
miséria de alma tão grande.
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Foi uma das coisas mais chocantes que vi na minha
vida.”
Olhei no fundo dos seus olhos, e ofereci ajuda
como uma mãe, que oferece ajuda para um filho
agoniado e confuso.
A princípio pareceu não entender, depois com
muita calma, peguei a sua mão, acariciei sua fronte e
falei em nome de Deus.
Chamei o resgate, e ele sem resistência nenhuma
subiu na ambulância, parece que também já não
agüentava mais tanto sofrimento, acho que cheguei
quando ele estava com a corda no pescoço.
Chegou no nosso mundo amuado, tranqüilo,
emudecido, sem resistência, antes de vir ainda pediu
para fazer a barba.
Nada tinha daquele homem que ficou perdido na
floresta por meses, com a barba quase a inundar o
peito, comendo apenas frutos, fugindo de tudo, tudo
que tivesse vida.
Mas para ele está fuga era impossível, porque as
pessoas de quem ele fugia, as vozes que tanto o
incomodava, os monstros que ele via, estavam ao seu
redor, por onde quer que se encontrasse, na sua mente,
na sua paranóia, dentro dele mesmo.
Por mais que tentasse fugir, eles estariam ali,
juntos, como se fossem indivisíveis, era o personagem
principal desta dualidade de pensamentos e ações.
O ápice da crise se instalou no momento áureo do
seu casamento, e da sua carreira profissional.
Sem entender nada do que estava acontecendo com
ele próprio, apenas um desânimo instalado, uma
apatia sem razão, vaidade cada vez mais rota, e as
vozes que passou a escutar, achou no início que fosse
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alguma coisa espiritual, procurou ajuda, mas nada,
as malditas vozes o perseguiam, cada vez mais
gritantes, mais agudas, ameaçadoras.
“Vai se matar! Anda, você não serve para nada,
porque ainda insiste em viver?”
A primeira vez, que agrediu a sua mulher, foi como
se estivesse fora de si, bateu como se ela fosse um
homem, sem razão, sem motivo, sem raiva, sem ciúme,
sem nada.
Apenas uma fúria abstrata, que foi se desenvolvendo e o levando contra ela, e as vozes a pedir, a
implorar: vai lá, mata!
Já não trabalhava mais, vivia agora contraído, à
espera do nada, parado, absorto, fugaz, trêmulo, como
nunca fora antes.
A esposa cada vez mais assustada agora o evitava.
“Só podia ser coisa do demônio, ele nunca passou um
dia sem tomar banho. Agora começou a andar de um
lado para outro, sem rumo, na contra-mão, no meio
da rua, inerte.”
E ela, que há muito já não o queria mais, aproveitou
a deixa, e fugiu, sem se despedir, sem pedir licença,
fugiu para uma outra história, para um novo amor,
mais contundente, menos insano, saiu com marcas de
agressão e usou estas marcas para justificar sua fuga,
seus ditames, sua ventura, sua opção.
Nesta época, o buraco no quintal já tinha 2 metros
de profundidade. Passava dias calado a cavar, sem que
ela percebesse, de tão afoita que estava com o seu novo
romance.
A fuga dela o jogou cada vez mais para dentro do
mundo infernal, em que já estava mergulhado.
Amor que rima com dor, dor sem remédio...
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Sozinho, já não mais comia, como um animal
ferido. Sua alimentação se resumia a pequenas doses
de pinga, que antes nunca tomara.
O álcool o fazia fugir um pouco da sua realidade,
o deixava cada vez mais fora deste mundo.
Mundo que ele queria esquecer a qualquer preço.
Com o álcool as vozes não o incomodavam tanto.
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Feira das vaidades
No mundo dos raros
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Aquele dia que mais parecia ser um dia rotineiro,
se transformou num belíssimo espetáculo de auto–
estima.
Aquilo tudo mais parecia um camarote de estrelas
globais, do que uma clínica psiquiátrica.
Vaidade, frenesi, satisfação, substituindo por
algumas horas a vastidão das mentes em desalinho.
Secadores, cremes de massagens, esmaltes, gel,
pentes, maquiagens, e três abnegadas cabeleireiras,
que com amor trabalhavam voluntariamente.
A mulherada com a vaidade saindo pelos poros,
escolhia o penteado, a cor do esmalte, com algazarra,
parecendo crianças soltas num parque de diversões.
E do outro lado, os homens escolhiam o melhor
corte de cabelo, com sorrisos menos voluntariosos.
Pareciam todos enfeitiçados, a primeira “escova”
deu uma alegria nova, naquela que minutos antes,
sofria a angústia da separação dos filhos.
Aquela moradora de rua, que há muito não sabia
o que era um esmalte de unhas, via depois de muito
tempo, se não pela primeira vez, suas unhas com um
brilho colorido, e os cabelos maltratados ostentando
um belo penteado, parecido com os das mocinhas da
Telenovela (a mesma estava com alta marcada naquele
dia, para voltar a sua casa de origem, ou seja o albergue
mais próximo)
Até aquele outro, que só tomava banho depois de
muitas orações, neste dia cortou o cabelo, fez a barba
e quando menos esperávamos, apareceu vestido com
uma calça limpa por dentro da camisa pólo, desfilando
pelo corredor, querendo mostrar a sua elegância.
Fila no banheiro, todos a postos para olharem-se
no espelho.
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Caras, bocas e exaltação.
A música no velho rádio relógio, combinava com
o clima faceiro.
Os flashes da câmara fotográfica registraram
aquele momento.
Enquanto isto, num canto, um dos raros olhava
tudo aquilo com um olhar desconfiado.
O surto se deu a seguir...
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A feira das doenças...
“Qual é o meio de transporte que você utiliza?”
“Autorama.”
A pesquisadora se afastou decepcionada com a
resposta, decidiu não perder mais tempo, não levou
minha resposta a sério. Mas de modo algum menti, os
trens dos subúrbios de São Paulo, têm muita
semelhança com um autorama; poderiam também
fazer as vezes de uma feira livre, um camelódromo,
templo religioso, purgatório, céu e também, porque
não, um inferno...
Na verdade, a situação é caótica: são centenas de
pessoas, com suas vidas sofridas, feridas expostas,
dores, amores, fome, roubo, droga, malícia, maldade
e muita, muita bondade.
Então, muitas vezes desisto daquele cenário e tento
admirar a paisagem, mas que paisagem?
“Milhares de casas amontoadas, ruas de terra, este
é o morro, a minha área me espera.”
Desisto, pego um livro, mas logo o cansaço me
pega, então me ajeito no banco desconfortável, fecho
os olhos e tento dormir.
De repente sinto um toque íntimo nas minhas
pernas, como se fosse algum conhecido, tentando me
dar um susto.
Abro os olhos assustada, mas era apenas mais uma
das dezenas de crianças, que ficam todos os dias no
“autorama” pedindo dinheiro.
Um menino de mais ou menos dez anos, implora
por uma moeda para comprar, segundo ele: “comida
para os meus irmãozinhos e para a minha mãe doente.”
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Pego uma moeda e ofereço, mas não sem antes
lhe dar um sermão, como se as minhas palavras
fossem mudar aquele cenário, aquela vida, aquele
destino...
Então perco o sono, olho para frente, e vejo alguns
homens curiosos, olhando obsessivamente para o lado,
todos na mesma direção, olhos a saltitar da órbita, como
lobos gulosos, tentando caçar uma presa.
Logo noto uma bela mulata, esbanjando sensualidade com uma minissaia. Ela está descontraída, nem
sequer nota que está sendo observada, desejada,
consumida.
Com as pernas cruzadas, sonha em ser uma das
modelos da revista, que lê tão interessada, sonha com
um dia que talvez nunca chegue.
Em casa, à sua espera, estão seus três filhos,
esperando as balas que todos os dias religiosamente
ela compra no trem.
Órfãos da sociedade fazendo malabarismo, são
verdadeiros artistas; balas, chicletes, chocolates,
cervejas, cafezinhos, dipironas, termômetros, caça
palavras, revistas de crimes, e mais, mais, tudo se
vende, inclusive doenças.
Bolsas de colostomia expostas, cadeiras de rodas
vagueiam por todo trem implorando por ajuda, que a
maioria também precisa.
Nestes momentos, bolsas são reviradas à procura
de moedas, mulheres e homens apiedados, doam seus
poucos recursos.
Uma realidade, que não aparece nas novelas da
tv, porque será?
Claro, não é agradável de se ver, não tem o glamour
dos belos rostos, não tem a beleza de Copacabana ou
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dos Jardins, seus rostos são comuns, falta maquiagem,
falta brilho, não, estes não dão ibope!
Com dificuldades de caminhar, ele vem se
aproximando, a calça jeans erguida mostra um resto
daquilo que um dia foram pernas: são na verdade
grandes rochedos inertes, purulentos, descamados,
edemaciados, já sem vida.
Se arrastando como num desfile de horror, olhares
são desviados, caras de assombro, asco.
Não é fácil olhar, pelo contrário, é deprimente,
então desvio o olhar...
Quando a recebemos no nosso mundo, ela estava
fora do peso, magra, desnutrida. Mas ainda podíamos
notar, que era uma bela mulher, chegou suja confusa,
perdida em desespero.
Aos poucos a melhora, a mansidão, o carinho,
comia como uma leoa, engordou, ganhou peso.
Era a primeira a correr para mesa nas horas da
refeição, irritava-se com os desperdícios.
“Se na minha casa tivesse todos os dias uma
comida como esta! Tanta gente passando fome,
pedindo esmolas.
Meu marido vem me buscar hoje, estou de alta,
quero que você o conheça.”
Quando ele chegou reconheci imediatamente
aquele olhar.
E os dois se foram num caminhar manco.
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Talentos perdidos
Um barraco com dois cômodos à beira de um
córrego imundo, onde os vermes eram os habitantes
mais “habitués” daquele esgoto a céu aberto.
Algumas crianças ainda tomavam banho na sua
margem, aproveitando o chafariz de água suja, que
corria de um cano; era a mesma água que vinha do
esgoto das suas casas.
No entanto ali naquela comunidade, a
solidariedade era companheira, muitas vezes o almoço
era compartilhado entre os vizinhos, onde uma asa de
frango virava o festejo vultoso de grandes sonhos, onde
uma garrafa de cerveja brindava os devaneios das
mentes, que mesmo vivendo como dejetos ainda
sonhavam.
Aliás, os sonhos eram assomados a grandes
promessas de ganhos na loteria, bingo, jogo do bicho,
sorteios dos mais diversos.
Neste cenário catastrófico ela deu a luz.
Açoitou seu ventre durante toda sua gravidez,
inconformada com aquele ser, que entrou na história
da sua vida sem pedir licença.
A cada movimento no seu ventre, ela se irritava e
em contrapartida agredia a própria barriga com força,
entre injúrias e palavrões, blasfemava aquele feto, que
para ela era um abjeto; não, não o queria.
Por isto não demorou em planejar tudo, combinou
com a sua vizinha, uma senhora solteira, que tinha
como sonho ter um filho, que quando o bebê nascesse,
o daria, mas queria a garantia que não teria devolução,
não queria o bebê de volta, em hipótese alguma.
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A cena se fez, a criança, um menino grande e
saudável, foi doada, sem palavras, sem remorsos, sem
emoção.
Era como se tivesse se livrado de uma roupa em
desuso, absolutamente resoluta seguiu sem rumo,
vendeu o seu velho barraco, e foi cumprir o destino
que se propôs.
Ainda acabrunhada olhou para trás, pensando que
havia feito um mau negócio, do meio do caminho voltou...
Tentando a qualquer custo ganhar mais vantagem,
desistiu logo, viu que não conseguiria nada, a mulher
era mais pobre que ela própria.
Trinta e quatro anos se passaram, sentada numa
cadeira rota, em volta de uma pequena mesa, onde se
encontrava uma velha TV, estava a mãe adotiva,
assistindo extremamente absorta, um programa de
auditório, que sorteava diversos prêmios, e entre eles
a sua tão sonhada casa; enquanto a roleta girava pra lá
e pra cá, em ritmo lento, seu coração disparava e os
tremores nas mãos eram cada vez mais intensos, em
cima da mesa um carnê de doze prestações, onde
ainda faltavam seis, eram todos os meses 15 reais, que
tirava do seu único salário, do salário da aposentadoria
do seu filho, pagava religiosamente, mas a sorte estava
demorando muito para bater no seu barraco, teve sorte
apenas com dois únicos números naquele dia, mas
pelos seus cálculos estava chegando perto.
“Viu filho, quase ganhamos, da próxima vez, vai
dar certo.”
Não terminou a frase, como um relâmpago, o filho
atravessou o pequeno barraco e foi direto para a
televisão, jogou-a com tanta força contra a parede, que
causou um estrondo gigantesco.
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Com os olhos arregalados, pegou o velho rádio e
deu o mesmo fim, destruiu a casa em menos de cinco
minutos, enquanto a mãe corria desesperada, gritando
por socorro, com o carnê do baú na mão, como se fosse
a única herança que restou.
Ele chegou no nosso mundo, de cadeira de rodas,
com um papel e uma caneta na mão; a primeira coisa
que observei, foi o desenho exposto naquela folha
amassada, uma verdadeira obra de arte, como poucas
que já presenciei, um verdadeiro artista, um gênio,
autodidata.
Deixou sua marca espelhada no nosso mundo, era
requisitado por todos, e não era só desenho, era todo
o contexto da palavra arte, moldava, esculpia, tatuava
fazia poesia, falava...
Um artista multifacetário do mais alto calibre,
simples, humilde, como só os grandes artistas
conseguem ser.
Capaz de se apaixonar por Fernando Pessoa, que
um dia lhe apresentei, ficou sob encantamento, e
chorou como um louco, chorou como só um louco é
capaz.
Souloucocomtododireitoaser,ouviram?
FernandoPessoa
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Os homens têm pesadelos
e as mulheres têm pesadelas
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Depois de dezenas de internações fracassadas, as
esperanças tornaram-se cômicas, enquanto a realidade
era revestida por um manto negro de luto e morbidez.
Com a agressividade à flor da pele e um linguajar
frouxo como os decrépitos excomungados do paraíso,
seu Roberto nos foi entregue como um embrulho
estragado e pouco útil para a sociedade, e que para
tranqüilidade geral, de preferência, não tivesse data
de devolução.
Violento e algoz, seus impropérios faziam fama
entre os vizinhos, que revoltos acionavam a polícia,
que já sabia de antemão do que se tratava.
Conhecido em todo o hospital, sua chegada no PS
já era esperada; cada vez eram variados surtos de
diferentes intensidades.
Totalmente psicótico, deixou marcas de agressão
em uma auxiliar de enfermagem, e uma luxação no
braço de uma experiente psiquiatra.
No PS era mantido amarrado e sedado por longos
períodos, até a atenuação da crise e o retorno ao lar.
Sua história familiar era imensamente desastrosa,
prejudicada principalmente pelo desconhecimento da
doença.
Tinha uma filha, que estava disposta a mandar
todos às favas, depois que viu a possibilidade de
arrumar um marido, após quase 30 anos de solteirice
e imaculação.
Possuía uma inveja mortal de suas amigas, que
tinham sido desvirginadas com 14 anos, enquanto ela
permanecia intacta.
Não. Não pode ser!
O ato mais heróico que ousaram com ela neste
sentido, foi uma passadinha de mão, muito de leve,
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na sua antecoxa e nas extremidades do seu abdômen
globoso, diferente dos abdomens das menininhas, que
ela admirava nas capas das revistas de fofoca.
Precisaria segurar de qualquer maneira aquele
homem! Tudo bem, que não era aquele príncipe, com
o qual havia sonhado.
Desta vez subiria ao altar, e para isto o agradava
de todas as formas: lavava e passava suas roupas, como
a sua sogra havia lhe ensinado.
Tinha aprendido a cozinhar todos os pratos, dos
quais ele mais gostava, a sogra a elogiava, não sem
um pouquinho de ciúmes, mas isto ela tirava de letra;
depois do casamento, daria um jeito de afastá–la, por
enquanto fingia que aceitava as suas intromissões.
Era a melhor coisa que podia fazer.
A sogra dizia orgulhosa: “agora sim, meu filho
encontrou uma mulher direita, uma perfeita dona de
casa.”
Nada a impediria, nem os defeitos do pai, muito
menos o estado senil da sua avó.
Agora a louca seria ela, “mas debaixo dos lençóis.”
Mostraria com uma pequena dose de perversidade
o belo produto, que ele havia comprado.
E que fosse logo, porque já não agüentava mais
fingir, que estava satisfeita com aquela relação insossa,
aqueles beijinhos sem estardalhaço, que ele achava
que ela adorava.
Sua mãe lhe ensinou, que a mulher só deve
demonstrar prazer depois do casamento, para o cabra
não correr...
“Ele pode achar que você é uma mulher fácil,”
dizia a velha senhora.
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As coisas depois iriam mudar, ela tinha muita
lenha prá queimar, aproveitaria o máximo, para
compensar o tempo perdido.
Seu futuro marido foi conseguido a duras penas,
literalmente penas.
Nos últimos tempos, havia percebido, que se
continuasse do jeito que estava, iria morrer solteirona,
no caritó, como sua tia Eugênia, que morreu pura com
cinqüenta anos de idade, sem sentir o cheiro de um
homem de verdade.
Para isto planejou tudo, comprou umas revistas de
fofoca, copiou os modelitos da moda e passou a costurar
suas roupas sempre com alguns centímetros a menos.
Eram variados tipos de blusas, que valorizavam
seu busto avantajado, pronto para amamentar os cinco
filhos que ele queria ter.
Transformou seu guarda-roupa, encheu de brilho,
com minissaias que de tão minis, cabiam na sua
pequena bolsinha de maquiagem.
Passou a tomar purgantes de todas as espécies,
ficava imensamente feliz quando o remedinho
começava a fazer efeito.Corria para o toalete como se
fosse ao parque de diversões.
Saía de lá, se sentindo sempre mais magra, enfiava
uma minissaia, e ia para os braços do noivo, que feliz
a abraçava, pensando na maravilhosa mulher que
conquistou.
Depois de ter procurado por tanto tempo, não
cansava de dizer com muito entusiasmo:
“Nossa, você é tão maravilhosa, tão parecida com
a minha mãe, quando nos casarmos você vai
praticamente substituí-la.”
E ela pensava: “isto é o que você pensa!”
53
Todo mês sua comissão na loja de sapatos onde
trabalhava, era descontada por conta dos sapatos de
salto alto, que havia se habituado a usar.
Seu chefe já começava a perceber a sua mudança,
nunca foi tão audaciosa, passou a buscar os clientes
da loja na esquina da rua.
Neste estado de coisas, digamos que apimentada,
seu pai, chegou no nosso mundo.
E numa cadeira de rodas, com um olhar
desavisado, aparentemente calmo, pela quantidade de
calmantes que havia tomado.
Com o tempo o psicotrópico começou a fazer efeito, aliado à terapia e à humanização por parte da equipe, e aos poucos foi modificando seu comportamento. A agressividade foi afastada e, no seu lugar, a
comicidade passou a caracterizar um novo homem.
Frases engraçadas faziam parte do seu vasto
repertório:
“Os homens têm pesadelos, e as mulheres têm
pesadelas.”
Depois de ficar internado por quase dois meses,
cansou daquela rotina diária, que se tornou enfadonha.
Implorava constantemente alta: Tenho saudades da
minha santa mãezinha, e da minha filhinha santa, quero
voltar para casa.
Foi concedida uma licença de dois dias para
readaptação e quando voltou, chegou com uma imensa
alegria estampada nos olhos.
“A sociedade o aceitava de volta.”
Orientações de alta, para a mãe de 86 anos, que
ora entendia que teria que lhe dar um comprimido
pela manhã, no mesmo instante esquecia e perguntava
se eram dois.
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O medicamento não poderia faltar sob hipótese
nenhuma.
Enquanto isto a filha ainda estava desfrutando sua
lua de mel, sem pai, sem mãe, sem avó e
principalmente sem remorso.
Casou-se com um tubinho branco, com
comentários maldosos de toda vizinhança, que dava
graças a Deus por ela mudar-se de bairro, só assim
seus esposos voltariam a ser o que eram antes.
Seu Roberto saiu do nosso mundo, em uma manhã
ensolarada de segunda feira, feliz como uma criança
inocente.
Sua mãe o acompanhou desamparada, arrastando
suas pernas inchadas
e quando saiu, ainda nos fez uma última pergunta:
“É à noite ou pela manhã, que ele toma aquele
amarelinho?”
Ele voltou para o nosso mundo, em surto duas
semanas depois, dizem que agrediu sua santa mãezinha.
Sua filha ainda estava em lua de mel.
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MalucoBeleza
Era apenas um rádio, que de um surto tomou um
susto, e agora andava manqueta soletrando migalhas,
mais do que qualquer outra coisa.
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Seu canto era desajeitado, como se fossem chiados,
quase gago, quase inaudível!
Já não tinha o teor de antigamente, época em que
foi inaugurado.
Sua voz agora era rouca, alguns ainda tentavam
escutá–lo, a meia luz, a meio ouvido...
Num golpe foi atirado no chão, com toda aspereza,
como um arco e flecha desgovernado.
Mas ainda sobrevivia, acalentando dramas,
servindo de testemunha ocular no
“Nosso mundo dos RaRos”
Quantas vezes, ainda fez o papel de ouvinte de
vozes, desconexas.
Quantas vezes, não observava ali do seu palco,
caminhadas lentas, olhares agoniados, sobressaltados,
num absoluto “salve-se quem puder.”
Sofria sempre com as tempestades de água, que
vira e mexe inundavam a sua fronte, causando uma
agonizante erupção, mas mesmo assim depois de
alguns safanões, voltava à ativa.
Um rádio, um simples rádio, ali à mercê de gostos
musicais diversos, tão sem importância, tão importante...
Como se um rádio, pudesse acobertar pecados,
redimir dívidas, saldar débitos...
Sofreu enxovalhos, amuado se desintegrou,
desistiu, pediu demissão.
Abandonou “nosso mundo” destroçado, vil, sem
se despedir.
Agora contávamos apenas, com o som de ritmos
perdidos de tempos áureos, quando eles podiam
sonhar com grandes amores.
Mas ainda num cálice de beatitude, agonizou, uma
última missão salva vidas.
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Mas quem podia adivinhar, que o seu canto
preferido, era um canto também maluco, que nas suas
entranhas pudesse ser também um deles.
Que nos seus fios, tivesse todo o gene ali
compartilhado.
Quem poderia crer, que o rádio, também fosse um
deles, ninguém tinha reparado seu mundo interior,
como se ele não tivesse vida, como se fosse um
mutante.
Serviu apenas como servo, para depois ser
esquecido no canto da pia.
Mesmo calado, foi psicólogo, mesmo açoitado,
transmitiu sua mensagem.
O que no fundo mais desejava, era uma sociedade
alternativa, onde todos fizessem o que bem queriam,
sem regras, sem leis.
E ainda ouvi um último refrão:
“Se eu quero e você quer, tomar banho de chapéu,
então vá, faça o que tu queres pois é tudo da lei...”
E em seguida, pude escutar o cântico, que se tornou
lenda, a metamorfose que causou.
“Do que ter aquela opinião formada sobre tudo.”
E no canto com a cabeça baixa, um dos nossos raros,
estava debruçado sobre o rádio; quem o via de longe,
pouco ligava.
“Transformando a minha maluquez, misturada
com a minha lucidez, vou ficar, ficar com certeza,
maluco beleza, vou ficar...”
E ele, com a cabeça baixa, como em desafeto, como
se tivesse encontrado a chave para o seu enigma.
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Erisipela versus Psicose
Sou Deus, Sou o Diabo,
Sou Santa, Sou Prostituta,
Sou eu, Sou você,
Quero tudo, Quero nada,
Quero liberdade.
Aquele paciente ao lado, separado por um biombo,
restringido ao leito em mais um surto psiquiátrico.
E eu ali ao lado com um curativo a ser realizado,
naquela perna, naquela erisipela dolorida, purulenta
de odor fétido.
Ferida que corrói, que deixa marcas, que não
deixava dúvida:
Amputação, Amputação...
Dor em diferentes estágios, diferente dor, mas
sempre dor...
Aprendizados, diferentes aprendizados, mas
sempre aprendizados, que me fazem mudar velhos
conceitos, a cada troca de plantão.
Sem eles, minha vida seria como um barco a vela,
sem porto, sem rumo.
Tortura, amenizada pela morfina, que corria
naquele organismo frágil, corrompido pela ferida.
Psicotrópicos a acalmar aqueles gritos uivantes, ali
ao lado.
E ele gritando:
Sou Santa, Sou Prostituta,
Sou Deus, Sou o Diabo,
Sou eu, Sou você,
Quero tudo, Quero nada,
59
Quero liberdade...
E eu ali apiedada pela dor daquele homem,
daquela ferida.
Que me levou a agradecer pelas minhas pernas,
que há algum tempo atrás, me deixavam frustrada, por
não serem tão bem torneadas, como as das modelos
expostas nas páginas das revistas de moda.
Enquanto aquele paciente, naquele surto, me fez
refletir:
Quem sou?
Ou quem são meus vários eus?
Morfina, que tranqüilizou a dor
Psicotrópico, que acalmou a fúria.
E eu indo para casa com as minhas pernas sadias,
tive somente uma certeza:
Sou Santa, Sou Prostituta,
Sou Deus, Sou o Diabo,
Sou eu, Sou você,
Quero tudo, Quero nada,
Quero liberdade
Em tempo: Nesta época nosso mundo dos raros
ainda não existia, a situação era no mínimo desastrosa...
60
Quem tem olhos para ver, que olhe!
Um outdoor na Av. Paulista anuncia um grande
evento.
“Você, que ainda é capaz de se emocionar com as
belas coisas da vida, este convite é para você.
Venha ser o espectador da mais brilhante
exposição dos últimos tempos, não perca este grande
evento: Anita Gomes em tela, a mais talentosa artista
plástica desde Pablo Picasso.”
Enquanto isto, no centro de um grande salão, uma
tela em moldura de ouro branco e prata envelhecida,
expunha um peculiar quadro de cores vivas, que expressava muito bem o estado de espírito da artista,
que naquele momento se preparava para a tão esperada noite. Vestia um longo, combinando com as cores da sua principal obra; em conjunto com este quadro vinham outros, com as mesmas nuances de cores
e delineamentos, parodiando uma grande família.
A autora da obra estava extremamente feliz, algo
exacerbada vinha há muito tempo esperando aquele
dia, havia pensado em tudo: croquetes de queijo, e
até vinho nacional, do qual havia adulterado os
rótulos.
“Agora sim, tinha cara de vinho francês.”
Tudo estava meticulosamente preparado, até num
informe publicitário no jornal do bairro havia pensado,
esperava mais ou menos 200 pessoas, incluindo meia
dúzia de amigos e alguns conhecidos.
61
Desta vez tinha que dar certo, já que talento tinha
de sobra, o que faltava mesmo era a maldita sorte, que
há tanto tempo vinha perseguindo sem muito sucesso.
“Só de pensar que tanta gente sem talento ganha
rios de dinheiro, e eu aqui contando as migalhas de
uma herança que há muito se desfez.
Não, desta vez iria dar certo, afinal o quadro é de
muita valia, com certeza, terá muitos admiradores.
Quem sabe, no futuro não coloco em leilão?”
Suas expectativas, com o passar das horas iam se
desvanecendo, e ao seu lado duas garrafas de vinho
vazias lhe faziam companhia.
A maquiagem aos poucos ia se contrastando com
a vermelhidão na face, provocada pelo vinho
consumido sem rédeas.
Pensamentos rápidos e loquazes, iam e vinham
sem dar a menor chance para algum raciocínio mais
lógico. Sua mente cada vez mais arbitrária, a confundia
por completo.
O evento marcado para as 18 horas, evidenciava
um fracasso completo. O salão quase vazio, ecoava
uma melodia triste, que contrastava com o ritmo alegre
e festeiro, das pessoas ébrias e sem limites, que
falavam alto num Rendez-vous.
Sozinha, Anita Gomes, com uma expressão
perplexa, olhava o vazio, pensava em uma maneira
de acabar com tudo.
62
O alienista
63
Você não vai acreditar na minha história?!
Claro que não, quem acredita em doido?
Doido fala e ninguém escuta, ou finge que escuta!!
Na verdade, internaram a pessoa errada, quem
deveria estar aqui é a minha mulher!
Ela não anda muito certa da cabeça, foge de mim,
como se eu fosse um lobo mau, na verdade não fazemos amor há seis meses, como se eu não fosse seu
marido.
Eu aqui todo cheio de desejo por ela, não quero
outra mulher de jeito nenhum, quero a minha feinha.
Te pergunto: pode uma mulher de 42 anos, não
ter vontade nem para dar um abraço?
O pior de tudo é que eu gosto dela, não quero trair, não tenho condições de ter outra mulher fora de
casa e se ela ficar grávida, como vou fazer para criar
mais um filho?
Ganho pouco, trabalho olhando carros, não chega
nem a um salário mínimo, só que tem uma coisa, não
guardo como muitos dizem, só olho, tem muita
diferença, só olho!!
Deixo isto bem claro, se alguém tentar roubar, vou
fazer o que?
Minha função é olhar, se me ameaçarem, até com
uma faca de cozinha, saio correndo.
Acha que vou lutar contra a tecnologia? Não sou
louco!
Outro dia, não faz muito tempo, chegou um cara
de terno e gravata, todo pomposo, pagou até adiantado.
Fiquei feliz, estava morrendo de sono, acordei na
hora quando vi aquela nota de 5 reais.
Pensei: “Caramba, hoje é o meu dia de sorte!”
64
Mas a sorte só durou por alguns instantes, foram
precisos somente alguns minutos, um vento, um piscar
de olhos, um empurrão e PUM o carrão sumiu...
Foi coisa do DEMO, não demorou dois minutos
para eu pegar minha sacola de plástico e vazar, sair a
milhão, correr, fugir...
Neste desespero peguei até ônibus errado, e lá se
foi quase todo o dinheiro que ganhei.
Vou fazer o que?
O carro sumiu, só faltava eu ter que pagar, não
sou louco!
Vocês prometem cuidar da minha mulher?
Ela está precisando de ajuda, coitada, minha
mulher que deveria estar aqui, perdeu todo desejo por
homem.
Já fiquei internado seis vezes, as seis vezes foi por
causa dela, ela inventa um monte de coisa e pronto
me internam...
Ontem à noite, pensei: “Hoje ela não escapa, tomei
um banho e fiquei na cama esperando, quando ela
chegou, comecei a lhe fazer carinhos com todo meu
amor.
Imediatamente começou a me dar chutes, igual
uma égua doida, solta no pasto, saiu correndo pela
casa, gritando que eu estava louco.
Meu filho veio desesperado, para ver o que estava
acontecendo, no outro dia ela me enganou e me trouxe
para cá dizendo que ia se internar junto comigo, no
fim ela foi embora e eu fiquei.
Mas a doida é a minha mulher.
65
À flor da pele
“Segura o tchan, amarra o tchan...”
“O povo de Deus no deserto andava, mas na sua
frente alguém caminhava...”
“Sexo, eu quero sexo...”
“Glória, glória aleluia, glória, glória aleluia...”
Quem mandou ele me trocar pela outra, depois
que fiquei gorda e maluquete, ele quis me jogar fora,
mas ele vai ter que me agüentar, vou infernizar a vida
deles prá sempre, vou sair daqui e vou fazer tudo de
novo, vou subir de novo no telhado dele, para todo
mundo ver o que ele me fez, quem não viu, vai ver, desta
vez vou dar sorte e vou cair em cima da cama dele, da
outra vez caí na cozinha, agora vou estudar direitinho
para cair em cima dos dois na cama, antes vou dar um
show no telhado de minissaia, tá pensando o que?
Que é só usar e depois jogar fora, como se eu fosse
uma máquina de lavar quebrada? Nada disso!
Me fala porque eu não posso colocar minha
minissaia aqui, me fala, existe alguma lei?
É a mesma que eu usei no forró, escondida da
minha mãe, se fosse depender da minha mãe eu iria
viver dentro da igreja, sem passar um batom na boca,
para ela tudo é coisa do inimigo; capeta sou eu, vocês
não me conhecem!
Vamos dançar, coloca o CD do é o tchan, põe a
garrafa de água no chão, afasta a mesa.
“Vai mexendo na boquinha da garrafa, é na
boquinha da garrafa...”
Aí, Cristiano quer namorar comigo, vamos namorar? Mas para casar, vou te contar um segredo eu dei
66
um beijo na boca do Cristiano, nossa estou com a maior vontade de transar, meu problema é tesão, estou
morrendo de tesão.
Doutora sabe qual é o meu problema?
Tesão falta de sexo, faz três anos que não transo,
estou cansada de me masturbar, quero um homem,
mulher não, eu gosto de homem, estou com tesão uma
vontade enorme de transar, beijar na boca.
Claudia, não tem um amigo para me apresentar,
mas que seja macho homem.
Aí tiozinho, o que você faz aqui no hospital, qual
a sua profissão, vamos sair para tomar um
bombeirinho?
Quer namorar comigo? Até que você é bonitinho.
Estou apaixonada pelo funcionário da tarde ele me
dá tanta atenção, é tão carinhoso, estou mesmo
apaixonada, agora é amor verdadeiro.
Sou evangélica desviada, mas tenho Deus no meu
coração, vou matar aqueles dois, malditos, aposto que
estão se matando de rir da minha cara; quando me
viram cair do telhado, quase em cima da pia, levaram
um susto, mas depois começaram a rir, chamaram o
resgate, e com a autorização da minha mãe, me
trouxeram à força para cá. Olha, entrega esta revista
para ele, e pergunta: se eu ficar com o corpo desta
mulher, ele volta para mim?
Nossa que tristeza me deu agora, maior vontade
de chorar.
É proibido chorar aqui?
Não acredito que fiz tudo isto, que falei tudo isto?
Não quero nunca mais ir embora daqui! Ai que
vergonha!
67
O químico
A química está em todos os lugares, em todos os
momentos.
No amor, na dor, no sexo, e até na esquizofrenia,
minha doença...
Meu nome há muito tempo deixou de ser Carlos,
para se tornar somente
Esquizo.
Agora me chamo: “Esquizo Carlos Silva”, como
muitos por aí.
“Sou louco, mas não sou doido – tem muita
diferença!”
O amor é pura química; entre a química e a mulher,
prefiro os dois.
A mulher é maravilhosa, sensível.
Maldito o homem, que agride uma mulher. A
química da mulher é gostosa demais. Quando eu sair
daqui, a primeira coisa que vou fazer, é matar aquele
homem; vou chegar de mansinho e, dizendo palavras
doces, amigas.
– Olá, Senhor, posso tirar uma foto?
– Aí saco a arma e Pum!!
Quem mandou ele fazer aquilo? Vou matar, se vou!
– Onde você vai comprar a arma?
– Em qualquer lugar! É a coisa mais fácil do
mundo...
(Neste dia o plebiscito, que deu a vitória para o
NÃO ao desarmamento, estava sendo realizado no
Brasil.)
68
“A mãe de santo dá tudo para os seus filhos: doces,
balas, chicletes, e o filho não agradece, vê se pode uma
coisa destas!”
Sou apaixonado pela química feminina, sei tudo
sobre a química das mulheres, principalmente a sua
fórmula principal: XAVASCAÍNA.
Esta é a química do bem, a fórmula do amor; só de
pensar que tem gente usando outro tipo de droga!
Quem tem Xavascaína, não precisa do êxtase.
Outro dia toquei fogo em um botijão de gás, no
quintal da minha casa, para ter certeza, do que já tinha
certeza...
Pum!
Foi como pensei! Formou-se um vulcão; quem
disse que não temos vulcões no Brasil?
“A mãe de santo dá tudo para os seus filhos:
doces, balas, chicletes, e o filho não agradece, vê
se pode uma coisa destas!”
Tenho uma receita maravilhosa de sabão, só que
neste caso, é preparado com purê de batata; é muito
melhor, porque conserva mais as roupas, não tem
cheiro e é muito mais econômico.
São necessários 10 quilos de batatas, silicato de
sódio, uréia, soda cáustica e corante cor de laranja.
Misture bem a soda cáustica com o corante, deixe
quarenta dias e quarenta noites repousando num
tambor fechado, até formar uma massa homogênea
azeda, depois, no terceiro dia, coloque a parafina.
Ficou pronto o melhor sabão da terra!
“A mãe de santo dá tudo para os seus filhos:
doces, balas, chicletes, e o filho não agradece, vê
se pode uma coisa destas!”
Quer saber um remédio melhor que o Viagra?
69
É um beijo afrodisíaco, que levanta até tubarão
morto.
Quem vai duvidar da masculinidade de um touro?
Não quero nem que ele me prove nada, se você
quiser, a preferência é sua; eu prefiro perguntar para
a mulher dele, a senhora dona Vaca.
Duvido até que elas troquem o touro por um
homem!
Bom, é só pegar o leite de vaca virgem, suco de
limão virgem, vinagre virgem, fel de galinha virgem,
sal de cozinha virgem, maizena (esta não precisa ser
virgem, não, pode ser já usada...)
Misture tudo num tacho, deixando dez dias e dez
noites, até formar uma massa, no final do ciclo, coloque
tudo num forno a lenha, mas tem que ser com pau
Brasil, e pronto! Depois de algumas horas estará
nascendo o maior afrodisíaco em forma de queijo dos
últimos tempos.
Depois é só comer, minutos antes da fome.
Que Einstein, que nada!
70
A tristeza profunda do eu
Então tudo se desfez, meu mundo corre por um
lago azul, recheado de nuvens negras, que a cada
instante me atemorizam mais, ameaçando– me como
nos meus infelizes tempos de criança.
A solução se fez tardia, os remédios só apareceram
na minha vida, quando tinha dezessete anos de idade,
era uma garota extremamente magra, alinhada para a
genética da minha família, onde todos eram muito
gordos e pouco estéticos, com exceção da minha mãe,
que possuía uma beleza tão singular que causava
comoção nos seus mais variados interlocutores,
provocando as mais temíveis desavenças.
Linda e jovem morreu aos trinta nos de idade,
suicidando-se num pequeno riacho, imergiu como
uma linda sereia.
Das trevas os gritos dos invejosos comemoravam
a vitória, conseguiram afastar da humanidade, uma
beleza rara, absoluta e contumaz.
Hoje sei que a minha mãe era uma depressiva
crônica como eu, talvez se tivesse descoberto os
remédios, o suicídio não tivesse acontecido.
Meu primeiro surto aconteceu quando eu tinha cinco
anos de idade; foi quando fiquei trancada no porão da
fazenda onde morava com os meus pais. Fiquei presa
dois dias, lembro do meu desespero, gritava tanto,
berros ensurdecedores, quanto mais gritava, mais me
enfraquecia, a noite chegava e uma escuridão cada vez
mais atemorizante tomava conta do ambiente.
De tanto terror, caí desmaiada, por quanto tempo
não sei, fiquei imóvel, bem quietinha, sem dar um
71
suspiro profundo, pensava que assim, pudesse afastar
os ratos e outros bichos que a minha mente produzia
a cada minuto.
Depois de tudo passado, caí numa depressão
mortal, nunca mais consegui dormir no escuro,
naquele momento uma grande tristeza se apoderou
para sempre de mim.
Nunca mais seria feliz por completo, medrosa e
tímida, pouco falava, vivi como num conto de fadas
com as minhas bonecas e os meus cachorros, somente
no meu quarto me sentia segura; aquele subterrâneo
para sempre ficará registrado na minha memória.
Cravei a solidão na minha alma, hoje meu único
companheiro é um coelhinho, com ele divido minha
existência.
Quando comecei a sentir de novo um pouco mais
de confiança nas pessoas, outro fato horrendo
aconteceu na minha vida: um empregado da fazenda,
um homem abjeto e sem escrúpulos, me arrastou para
um matagal, e acabou com o resto dos meus sonhos,
com o resto de esperança que tinha acumulado.
Me usou como um dejeto, depois me jogou
semimorta, no meio do mato, acabrunhada me arrastei
para casa, com a alma destruída.
Vivi um terror mental, o físico não acompanhava,
cada vez mais me afundava na vida miserável que o
destino me intitulava.
O tempo cicatriza as chagas abertas, e o que resta
são lembranças tênues de um passado, mas quando
são removidas provocam dor e solavancos.
Os traumas sintetizam a vida pregressa, autointitulando sua personalidade, e a sua maneira de
encarar as dificuldades.
72
Vivi num cárcere mental, que se estruturou ainda
mais na minha adolescência, quando a memória é mais
prodigiosa, e nos faz recordar com muito mais
intensidade os acontecimentos da vida.
A beleza juvenil desabrochava em mim, era como
um lindo bibelô, admirado e compadecido por todos
que me olhavam, como uma peça cara, fora do seu
alcance.
Na flor das minhas dezessete primaveras, o destino
me arrancou pela terceira vez dos meus lindos sonhos,
me jogando nas mãos de três bárbaros, que
violentaram o meu corpo, fazendo de tudo, que não
se pode fazer a uma mulher, da maneira mais brutal e
animalesca que se tem notícias, me empurrando cada
vez mais na lama da minha existência.
Nesta época, uma grande apatia tomou conta de
mim, o riso desapareceu dos meus lábios, e passei a
sentir uma tristeza profunda.
Já estava morta, vegetativa e abstrata.
Comecei a tomar os remédios nesta época.
Com o passar do tempo um novo ânimo se instalava
em mim, quando num certo dia acordei sobressaltada,
com um leve contentamento, era como se uma nova
brisa estivesse soprando nos meus pulmões.
Consegui cantarolar, me enfeitar e fazer novos
planos.
Quando já me sentia refeita, achei que podia
conseguir sem os remédios, fui largando aos poucos
como em um desmame de uma mãe irresponsável.
Tive mais um surto, só que desta vez de uma forma
mais aguda, perdi 15 quilos, em três semanas, não
conseguia reunir forças para tomar banho, ou para
cortar um pedaço de pão.
73
Largada, fui cedendo à vontade de morrer, e o
mesmo ímpeto da minha mãe tomou conta da minha
mente, tentei me suicidar três vezes, mas de novo o
destino foi contrário aos meus planos.
Como louca, vaguei na solidão da minha
existência, no inferno dos meus dias.
Sem condições de me levantar do abismo em que
me afundei, senti que não poderia vencer sozinha, por
isto estou aqui.
Depois de tudo que passei, sei que não posso ficar
sem os meus remédios, eles são os alicerces da minha
sobrevida, como um diabético que precisa da sua
insulina.
74
Fome de tristeza
“A depressão é como uma ferrugem, que aos poucos, vai minando as estruturas; na verdade ainda é um
grande enigma.
Mestre na infusão das mentes mais e menos astutas, antes se acreditava, que a depressão só atingia as
pessoas de mais status; com o advento das pesquisas
a respeito deste tema, descobriu-se que a depressão
faz vitimas em qualquer classe social.
Ela é capaz de desencadear doenças psicossomáticas,
paralisando ou desestabilizando órgãos vitais do nosso
corpo.”
- De repente uma tristeza profunda sem explicação, tomou conta do meu espírito, não tinha razão nenhuma para aquilo, estava trabalhando, estudando e
também muitos garotos queriam namorar comigo; sem
motivos comecei a sentir um vazio na minha vida, que
nada preenchia, nada, nem paqueras, nem baladas,
nada...
Só queria ficar no meu quarto, sem receber ninguém, incontida sem perspectivas.
Deixei-me levar pelo tempo, não queria mais me
alimentar, a comida não tinha sabor, o que antes comia com prazer, já não me apetecia mais.
Meu corpo passou a somatizar tudo que eu estava
sentindo, meu coração disparava, meus pés congelavam, minha mão tremia desesperadamente, era como
se estivessem me aplicando choqueoterapia, tinha
medo do mundo, me via sendo observada, analisada
por todos à minha volta.
75
A vergonha daquela situação me levou a não receber mais os amigos, não queria mais ver ninguém, era
como se fosse minha culpa, como se sair daquela situação dependesse exclusivamente de mim, da minha
vontade, mas era uma força, que eu não tinha, que não
me pertencia, era como se o meu corpo não me pertencesse.
Larguei o colégio, abandonei meu emprego, meu
quarto era meu único refúgio, só lá me sentia protegida de todos aqueles olhares inquisidores.
As lágrimas eram meu bálsamo, chorava o tempo
todo, depois parava e ficava pensando em coisas, que
para mim eram reais, numa esfera de tristeza, que só
eu compreendia.
“Geralmente os depressivos são cansativos, as
pessoas em geral não têm paciência, talvez por não
ser um problema palpável como o diabetes, ou a pressão alta.
É uma doença somatória, com vários motivos, mas
cujas conseqüências podem ser mais funestas “.
Nosso mundo nunca havia recebido uma vítima
deste mal, até ela chegar de cadeira de rodas, acompanhada pela mãe, uma menina de 24 anos, ainda
transmitidos no seu olhar infantil.
Com uma história grave de depressão: há um mês,
Ana havia perdido 15kg, com 1m63 de altura, agora
contava com 43 kg, era o raquitismo assombrando os
mais incautos.
Sentia dor nos rins, queda acentuada do cabelo, cobria de fios o seu travesseiro todos os
dias, dores de cabeça, menstruação irregular, todos estes sintomas desencadeados a trouxeram
para nós.
76
Sem brilho, emudecida, uma alegoria do que era.
Da cama para o toalete, era assim o seu dia a dia,
no nosso mundo, por exatas duas semanas. Quando a
terceira semana se iniciou, ela começou a aparecer,
cabisbaixa, sem brio, quase cadavérica, respostas
monossilábicas, poucas perguntas, e um medo atroz
dos outros, permanecendo o mais distante possível.
Como se fossem capazes de quebrar o seu corpo
frágil, a qualquer instante.
77
Malandroque é malandro não chora
Nosso mundo o recebeu em estado de alerta, e
quem nunca conversou com um malandro da velha
guarda, abraçou a oportunidade.
E sem querer caiu na sua ginga, e aprendeu um
pouco mais sobre as histórias deste mundaréu.
Sujo, uma barba emaranhada cobria sua tez
negra, olhar destemido,sempre procurando alguma
coisa.
Os restos de uma roupa encardida cobriam seu
corpo, que há muito não sentia o “glup, glup” da
senhora água.
Graduado na faculdade das ruas, oriundo dos
confins da magistratura da malandragem.
“Malandro é malandro, Mané é Mané.
Malandro é um cara que sabe das coisas,
Mané é um cara que não sabe o que quer...”
Orgulhoso pela sua esperteza, era como um gato
negro, sempre tentando abocanhar o primeiro pássaro
indefeso.
“E aí senhora, tem jeito de me arrumar um gole de
café?”
“É um malandro na praça outra vez, caminhando
nas pontas dos pés.”
Com oito anos de idade, já conhecia o viés da
marginalidade, porão da história, o declínio foi provocado pela doença prematura.
Amparado no esgoto do mundo, refugiado no
malabarismo das incertezas.
78
Vida sofrida sem carinho, sem colo de mãe, sem o
aconchego de um berço quente no entardecer da primavera.
“Vinde a mim as criancinhas, pois delas será o reino
dos céus.”
Nos cafundós do Brasil, empurrava um carrinho,
cheio de verduras: “Olha a couve, escarola, alface fresquinho, vai aí dona!”
E ficou para trás a escola, a turma do colégio, a
cultura que passou tão distante como as margens do
Nilo.
Perto mesmo é a encosta do rio poluído, que passa
logo atrás do quintal da sua casa.
Anestesiado pela cachaça, que se fez companheira, e pelo ópio sedutor. Nestes momentos tudo passa
a ficar colorido.
O desamparo menos dolorido, os vultos surgem
para fazer companhia na dura solidão, que desespera
sua mente em desalinho.
O desequilíbrio mental instalado no gene, a falta
de entendimento de todo. A sociedade, a família cada
vez mais o aniquila, jogando-o para a margem.
ESQUIZOFRENIA, PSICOPATIA, TRANSTORNO
BIPOLAR, doenças desconhecidas, que permanecem
no imaginário popular, subentendidas como loucura,
preguiça, vagabundagem.
“Corri com um martelo na mão, escondido da
minha avó.
Daí levei o menino para dentro do matagal, e desferi cinco marteladas na cabeça dele, que imóvel caiu
no chão ensangüentado, sem entender absolutamente
nada.
79
Quando cheguei em casa minha avó, viu minhas
mãos sujas de sangue, e me perguntou assustada de
onde vinha o sangue.
Se me arrependo? É claro! Na hora fiquei fora de
mim, não sabia o que estava fazendo, ainda bem que
o garoto não morreu.”
Largado na vida, aprisionado pelo vício.
O caminho mais curto e contumaz de um doente
mental, é a mendicância, o vício, a marginalidade.
O desamparo da família, a incompreensão da
sociedade.
Mas lá no nosso mundo, a violência não tem
morada.
Malandro, que se integrou, se juntou, se uniu, se
reformulou.
O desmazelo perdeu lugar, o equilíbrio abriu
caminho para a compreensão da doença, a aceitação
das medicações.
Vaidade recuperada: “Você me acha bonito.”
Mas o malandro, acabou dando uma rasteira em
todos nós: assaltou o mundo dos raros, e conquistou
o que sempre lhe negaram:
Carinho, Compreensão, Amizade...
E num certo dia o malandro chorou emocionado.
“Nunca mais vou esquecer este lugar, nunca mais
vou esquecer vocês.”
80
Vidas flageladas!
Sentado na cama de casal, cabeça baixa, olhar
cismeiro, perdido num ponto distante, que só ele
conseguia enxergar.
Quem o via de longe não imaginava, não poderia
crer, era algo horrendo, mas para ele extremamente
justificável...
Tanto que tomou o cuidado de ele mesmo chamar
a polícia.
Antes disto ainda se preocupou em arrumar as
malas.
Tomou o cuidado de antes tomar banho e fazer a
barba, a roupa: um terno e gravata novo, que havia
comprado há pouco tempo.
Colocou os sapatos lentamente, o pé direito já havia
calçado, iniciou o esquerdo numa espécie de ritual.
Primeiro lavava os pés inúmeras vezes, até ter a
certeza que estavam bem limpos, depois passava creme hidratante, por entre os dedos proporcionadamente, em seguida era a vez das meias; enrolava por completo até formar uma espécie de concha do mar, esticava até ficar sem nenhuma dobra, e por último colocava os sapatos, o ritual era mais ou menos parecido,
com a diferença que após colocar, batia três vezes o
pé no chão, para comprovar o que seus olhos já viam...
Na ponta da escada, uma foto em tamanho 10x24,
ilustrava a cena do casamento que já durava três anos.
Ele é um reconhecido engenheiro diplomado
internacionalmente, ela deixou a universidade de
psicologia no segundo semestre, assim como ele
preferiu...
81
Um amor que se iniciou nos primórdios da juventude, mas o destino retardou um pouco esta união;
preferiu que ele fosse para além mar, indo morar na
Europa, enquanto ela ficou no Brasil, trabalhando para
pagar a tão sonhada faculdade, já que a vida não lhe
proporcionou recursos financeiros como osdele.
Mas enquanto ele esteve fora, continuaram se
correspondendo, algumas vezes por cartas, outras por
telefone.
Não passavam mais de duas semanas sem
conversarem, nestes quatro anos, que ele esteve fora.
Enfim o destino se fez, o tão sonhado retorno
aconteceu, e com ele os sonhos dourados de um
casamento, e o que era a somatória de momentos
felizes, se deflagrou!
A tragédia foi eminente, ninguém esperava!
As famílias nunca haviam percebido nada, sempre pareceram muito felizes. Ela escondia tudo, todos
os arroubos dele, toda fúria, toda violência de que era
vítima. Sempre o perdoava, afinal o amava mais que
tudo, mais que ela...
Quando D. Mara saiu de casa, no extremo da
cidade, já deixou o almoço pronto para seus quatro
filhos menores, a mais velha ainda florescia nas treze
primaveras, era ela quem tomava conta de tudo
quando D. Mara estava trabalhando.
Naquele dia, tinha voltado duas vezes para casa,
antes de sair definitivamente, como se pressentisse
alguma coisa.
Algo a segurava, um mau pressentimento a fazia
adiar sua saída; quando suas pernas doíam, coisa boa
não aconteceria, mas se dando conta de que já estava
atrasada, saiu definitivamente...
82
Trabalhava como empregada doméstica há dois
anos, desde que perdeu o emprego em uma fábrica
de confecções; a empresa havia pedido falência, e seus
trezentos funcionários acabaram perdendo todos os
direitos, D. Mara ficou desesperada com quatro filhos
para sustentar, mas agradecia sempre a Deus por ter
aparecido aquele emprego, tudo bem que o seu patrão
era meio estranho.
“Batia na mulher com tanta violência, sem motivo,
depois pedia desculpas, alegando que foram vozes que
pediram, que não era ele, chorava feito uma criança, se
trancava no quarto, dias a fio, sem deixar ninguém entrar, quebrava tudo, num desespero animal.
Sabia que ele passava no psiquiatra, e tomava um
monte de remédios, mas vez ou outra encontrava
comprimidos boiando no vaso sanitário, ela, D. Vera,
escondia tudo da família, tinha medo que eles o
internassem...”
De longe, já notou algo errado na casa, as janelas
ainda estavam todas fechadas, D.Vera sempre as abria,
dizia que gostava de ouvir o canto dos pássaros, e ver
o sol raiar na sua janela.
Quando abriu a porta da cozinha, estranhou ainda
mais, a cozinha toda arrumada, não dava mostra de
presença humana na casa, D.Vera gostava ela própria
de fazer o café.
Foi entrando devagarzinho pela casa, até que...
Ao lado da cama, morta, ensangüentada, com os
olhos ainda abertos, estava D. Vera; olhou um pouco
mais e viu o Dr. Gustavo ao lado do corpo, com as
malas prontas e a faca na mão.
Desesperada, saiu correndo, quando a polícia se
aproximou.
83
Pais e filhos
– Pai, jura, jura, pelo amor de Deus, jura
– Tá filho eu vou tentar
– Tentar não!
– Promete?
– Você tem que jurar!
– Eu vou tentar.
– Já disse que tentar eu não aceito, não aceito esta
palavra, quero que você prometa, prometa
prometa...
– Calma, filho, abaixa esta mão! Não aponta este
dedo para mim!
– Então promete! Você me conhece quando eu fico
nervoso, sabe do que sou capaz, não brinque comigo!
Vamos colocar no papel, espera... Tem uma folha
aí?
Vai escreve: Eu prometo, que vou levar meu filho
para jantar nos jardins, comprarei roupas novas na
Oscar Freire, depositarei a pensão normalmente sem
retirar nem um centavo, vai escreve, isto...
– Filho, você sabe que não temos dinheiro, você
queimou todas as suas roupas!
– Claro que temos, eu vi o extrato bancário da
vovó!
– Não acredito, que você fez isto!
– Fiz, ela tem 10 mil reais no banco! Tem obrigação
de me ajudar, sou o neto mais velho.
– Falei para todo mundo que você é rico.
– Nós somos ricos não somos papai?
84
– Filho, pára com isto, você sabe que não somos
ricos!
– Claro, que somos!!
– Somos, não somos?
Diga!
Fala!
– Não somos, filho, você sabe disto!
– Sai daqui, tenho vergonha de você!
– Vai, vai embora!
– Te odeio!
De repente um soco... funcionários a postos,
restringindo, separando.
– Corre, leva ele para o quarto!
O pai num canto desesperado, com o rosto
sangrando.
– Calma, cuidado com ele, não sabe o que está
fazendo.
– Sai daqui sua negra, não coloque a mão em mim,
tira esta mão suja de cima de mim!
– Pai, você promete, promete?
E na porta da enfermaria, o pai ainda tem forças
para soletrar:
– Eu te perdôo meu filho!
85
“Existe algo errado, estão querendo
me matar, por favor me ajudem!”
Ele morou dez anos no Japão, trabalhando como
um suicida, em uma fábrica no setor de montagem,
onde eram produzidas máquinas fotográficas digitais,
o nicho do momento.
Se tinha uma?
Até tinha, mas a verdade é que as doze horas diárias
de trabalho, o impediam de usá–la.
Seus momentos de lazer eram escassos, para criar
um álbum de fotografias, precisaria ter um sorriso
legítimo na face, e naquelas circunstâncias, isto seria
um feito quase cinematográfico.
Poderia isto sim, tirar fotos com pose de operário
na linha de montagem, como centenas de imigrantes
robotizados, era assim mesmo que se sentia: um robô.
Era somente mais um naquele cenário multifeito,
um homem-robô, destes que só o Japão é capaz de
produzir.
Mais um imigrante brasileiro, que saiu do Brasil
disposto a dar o sangue para vencer na vida, mais um
nas estatísticas, fato que não queria dizer muita coisa.
Ganhava o equivalente a 20 dólares por hora, claro
que fora as horas extras, que ele não perdia nunca; era
o número um, afinal estava lá para ganhar dinheiro,
esta sempre foi sua meta.
Com este salário já comprara casa, carro, e as
mulheres não faltavam. Este era o seu vício, sua
perdição, talvez fosse uma maneira que encontrou para
driblar seu vazio interior, sentimento que descobriu
86
um pouco tarde demais; o dinheiro não o preenchia,
pelo contrário, não tinha tempo para aproveitar os
prazeres, que o dinheiro poderia lhe proporcionar.
O vício de ganhar dinheiro já estava preconizado.
Era um belo rapaz, constituído em 1m e 90 de
altura, porte atlético, figura distinta, tinha no seu
conjunto a arte das belas palavras, oratória bem
estruturada.
Mas o destino lhe pregou uma peça, levou uma
rasteira da vida, caiu, se machucou, tortura mental.
Foi preso por causa de um acidente de trânsito sem
vítimas, ficou três longos dias sofrendo torturas
psicológicas, como um terrorista.
Sem dinheiro para a fiança seu desespero foi ainda
maior, contou com o resto do amor de uma ex–
namorada, que veio do Brasil, somente para este fim:
libertá-lo.
De volta ao Brasil, já estava judiado, triste,
macambúzio; as noites que passou na cadeia, não
saíam da sua mente perturbada.
A vida é um grande “Big Brother” – somos vistos
em todos os lugares: bancos, elevadores, lojas; nos fotografam sem que percebemos, sem que queiramos, nos
colocam nos jornais, nas revistas, são milhares de câmeras
instaladas em todos os lugares, uma grande paranóia.
Mas na sua volta para casa, algo havia mudado –
porque todos me olham deste jeito? Parece que
querem me roubar, me seqüestrar...
Em cada loja que entro, o telefone toca, é sinal de
mau agouro, tão me perseguindo, serão eles?
Mas quem, quem poderia?
Grampearam nosso telefone, eu tenho certeza;
louco eu não estou.
87
Olha só aquele carro parado na esquina.
Vou ficar trancado dentro de casa, assim não corro
o risco de ser assassinado.
Será que é a polícia, como vou poder denunciar se
for a polícia?
Tenho certeza que mandaram investigadores do
Japão, mas eu não fiz nada, meu Deus, estou no meu
país, eles não têm este direito, miseráveis!
E esta mulher sentada aqui do lado, está fingindo
que não me olha, vou ficar louco!
Acho que vou me trancar em casa, não, é melhor
fazer um boletim de ocorrência, antes que eles
consigam.
– Como, não tenho prova? Será que as evidências
não comprovam?
– Seu delegado é verdade, não estou mentindo:
cheguei na loja e o telefone tocou, é muita coincidência.
Meu cachorro amanheceu morto, tenho certeza que
o envenenaram, queriam a mim, eles queriam me
matar.
Vou escrever no meu muro uma mensagem, assim
se acontecer alguma coisa, todos ficarão sabendo.
“Por favor me ajudem!”
As paredes têm ouvidos, fala baixo, eles podem
nos escutar, por favor, vamos de novo à delegacia.
Deu entrada no nosso mundo acompanhado por
um policial militar.
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Estupefação:
pasmo, assombro, espanto...
Estupefação, é, acho que esta é a palavra, que mais
condiz, que mais ilustra, que mais demonstra...
Nosso mundo tomou ares de uma penitenciária,
vigilância rigorosa, risco de fuga, teatralização.
Acabrunhado e desconfiado, fazia dois dias que
ele havia chegado, fazia também dois dias, que não
saía do quarto.
Um mistério envolvia aquele homem, até que
ponto tudo seria verdade?
Quem era a vítima, quem era o algoz?
Por mais que tentássemos um diálogo, um Boa
Noite, o silêncio dominava a sua resposta. Sua
alimentação era deixada na mesa de cabeceira, nada,
nem sequer um olhar de agradecimento; depois que
saíamos, o prato ficava vazio em menos de cinco
minutos.
Para muitos, um cachorro é como um integrante
da família, mas para outros, um inimigo.
Um velho cão, que quase não latia, mas que amava
demais, se dedicava demais, endeusava demais, mas
tão somente um único membro da família, e
justamente aquele que por ele era o mais odiado: seu
enteado.
Um meninote de quinze anos de idade, visceral,
ativo. Morria de ciúmes. Principalmente quando ele
chegava perto dela, sua menininha, sua mente
produzia os mais complexos sentimentos.
89
“Eu já estava cansado de sustentar a gula deles,
dele principalmente. Aquele cachorro era mais amigo
dele do que meu, mesmo sendo eu que o sustentava,
obedecia mais a ele que a mim.
Então tomei uma decisão: peguei um pedaço de
pau e desferi incontáveis golpes no seu crânio, mateio na hora. Claro que não me arrependi, fiz o que era
certo, quem paga as contas nesta casa sou eu, tenho
todo direito de fazer o que quero, era muita bajulação
em cima de um cachorro.
Foi melhor assim, tanto que Deus, nos deu uma
linda cadelinha, tão carinhosa. A primeira coisa que
fiz foi sua castração, para macho nenhum chegar perto.
Amei aquela vira-lata!
Só comia ração de primeira, tudo do bom e do
melhor, sentia que ela também me amava, tínhamos
muita afinidade, assistia futebol em cima dos meus
pés, torcia junto comigo, diferente daquele outro, que
demonstrava com o seu olhar, que me odiava.
Mas a minha linda menina, ficou enferma, uma
doença sem cura, seu fim era inevitável, antes que ela
começasse a sofrer, comprei veneno misturei num
pedaço de carne, o impacto foi na mesma hora, então
fiz uma grande cova e enterrei ela ainda respirando,
foi melhor para ela, tenho certeza que está no céu me
agradecendo.”
Estava casada com ele há 17 anos, nunca sequer
ousou discordar de alguma coisa que ele fizesse, nunca
argumentava.
Seu esposo, era incontido, irritadiço, mas tinha uma
coisa de bom, era muito trabalhador, não deixava faltar
nada na casa, e ainda sustentava dois filhos que não
eram dele.
90
Por causa destas coisas, agüentava ele há tanto
tempo; mas eram tantas esquisitices, tanta maldade.
Era na igreja, que ela extravasava sua revolta. Pedia
sempre a Deus, que a acalmasse nos piores momentos,
não tinha outra saída, nunca trabalhou.
A única coisa que sabia fazer, era limpar a casa e
fazer comida, mais nada!
Percebia a predileção dele pela caçula de nove
anos; achava meio estranho, ele querer dar banho,
oferecer comida na boca, e outras coisas mais...
O pai do menino era o seu inimigo, seu ódio, tinha
um ciúme doentio da esposa, e o menino era a
representação deste passado.
Sua linda menininha vinha aos poucos
desabrochando, ganhando lindas curvas, seios que já
pediam sutiã, boca acompanhando toda a malícia da
juventude.
Era como uma linda flor, cuidaria dela com todo
zelo, não seria qualquer um que colocaria as mãos.
Chegou no nosso mundo com os olhos roxos, e saiu
direto para um manicômio judiciário...
91
Raul Seixas
“Quando eu te escolhi para morar dentro de mim, eu quis ter teu
corpo, tua alma, tudo enfim, mas compreendi que além de dois existem
mais ...”
Ele é verdadeiramente um belo homem, além de
possuir qualidades que a maioria das mulheres adoram: por ex. fidelidade.
Ainda é daqueles que tatuam o nome da mulher
amada no corpo, envolto num enorme coração.
Fiel como os discípulos do nazareno, manso como
um boi domado, vive sempre com um arco e flecha
em punho, pronto para apontar para qualquer homem,
que tentar se aproximar da sua presa.
Sai a hipnotizar a alma feminina, com galanteios
decorados, enrijecendo os músculos da face ao exaltar a importância da fidelidade num relacionamento.
Enquanto isto as amigas da irmã o escutam em
estado de excitação pública.
“Paulo, o irmão da Glorinha, é um exemplo de
homem, diferente do galinha do meu namorado, que
não pode ver um braço de mulher; é bonito e fiel, qualidades raras nas pastagens de hoje em dia.”
Entoava constantemente em voz alta, seu trocadilho preferido:
“felicidade/ fidelidade.”
Assomando a isto sua frase preferida.
“Traição nunca! É o pior dos pecados; o
desmantelamento de qualquer relacionamento, não
traio e muito menos perdôo uma traição; nestes assuntos sou parecido com o meu pai.”
92
E completava:
“Trabalhar fora é coisa para homem, minha esposa irá ficar em casa cuidando dos nossos filhos.”
Andava à procura de uma esposa, nada de brincadeiras, queria coisa séria, compromisso, aliança na
mão esquerda.
Tinha elaborado um caderno de perguntas e respostas, com o intuito de testar as variadas pretendentes, que escolhia na missa das oito, mas raras eram as
vezes em que ouvia o que gostaria.
Nestas ocasiões saía a blasfemar, principalmente
as mães daquelas que julgava as párias do sexo feminino.
Iniciava sempre com um tiro certeiro: “você teria
coragem de trair seu marido?
Acredita em amor eterno e na fidelidade?”
Depois de muito procurar, sua idealização de
mulher se personificou numa jovem de 28 anos, nem
bonita, nem feia, nem alta, nem baixa.
Mas íntegra, religiosa de uma família tradicional
do interior, com bons costumes, que eram apregoados pelo padre da cidade.
Seus pecados eram confessados semanalmente, e
o santo padre, para não parecer desinteressado, a punia sempre com 10 Ave Marias, era sua cota diária por
confissão.
A velha pergunta lhe foi feita, e a resposta veio de
forma determinante para sua escolha.
“Trair nunca, jamais! É um dos piores pecados!”
Paulo dava pulos imaginários e ao seu redor
cantos de louvor adocicavam seus ouvidos, que
há muito tempo sonhavam com uma resposta daquelas.
93
O casamento era a continuação da sua vida em família. preservava os costumes tradicionais apregoados pelo seu pai, um velho imigrante nordestino.
Mas o que eram planos, virou sonhos eróticos no
segundo ano de casamento. Jussara vinha aos poucos
revelando alguns desejos mais ardentes.
Paulo se mostrava surpreso e inseguro.
“Transar em lugares públicos, sexo a três,
lesbianismo.”
Incrédulo, tentava argumentar: E o respeito onde
fica? Nossos filhos, e se alguém ficar sabendo?
Enlouqueceu mulher? O que está te faltando?
Lembrou das promessas de fidelidade, amor eterno, a palavra amarga traição, mas tudo era em vão,
Jussara estava decidida.
“Isto não significa traição, sempre serei sua de corpo e alma.”
Paulo ficava cada vez mais confuso, como ela podia pensar nestas coisas?
“Transar com outro homem, outra mulher, não isto
nunca!”
A primavera chegou e com ela as flores do campo,
que trouxeram calma e tranqüilidade na vida do casal.
Quem os observava de longe os apontava como
um casal perfeito, Paulo acreditava que Jussara havia
esquecido aqueles absurdos, e de novo voltava a ser
sua doce esposa.
Mas notava, que algo tinha mudado no seu comportamento, Jussara agora vivia inventando posições
novas, sempre distraída, perfumes importados, novo
cheiro, novo gosto.
Não que não gostasse, pelo contrário estava adorando. Passou a contar as horas para chegar em casa,
94
sabia, que a sua Jussara o estava esperando afoita e
mais gostosa do que nunca.
“Foi a melhor fase do nosso casamento, nunca me
senti tão realizado, a amei como nunca, a desejei mais
do que qualquer outra.”
Paulo chegou no nosso mundo, absorto, arrogante, manipulador.
Dizem que o seu surto só não foi pior, porque o
socorro apareceu imediatamente; saiu correndo nu
pela rua, depois de quebrar tudo em casa; tentou fugir com os dois filhos, que sem entender nada, estranhavam a transformação do seu pai, na face, nas roupas, nos gritos, que saíam da sua garganta
enlouquecida.
Ameaçou a mãe dele, o pai ...
Na nossa enfermaria, chantageava os funcionários, com propostas milionárias, ofereceu um milhão de
dólares pela facilitação da sua fuga ...
Aquela era a sua primeira internação, ficou no nosso mundo por três semanas; com uma escuta telefônica havia descoberto a traição da sua mulher.
Traição esta, que não foi apenas com um homem,
mas com meia dúzia deles.
Um motorista de caminhão, um pastor evangélico, um carioca dançarino de funk, o leiteiro, um ateu,
e por último um presidiário, que ia visitar todas as
terças na penitenciária da cidade.
Paulo voltou para a mulher três meses e dez dias
depois, mais apaixonado que nunca.
95
Meu problema é gonorréia crônica
Meu problema é Urologia, mais claramente
Gonorréia, peguei há sete anos, de uma morena na
noite de São Paulo.
Era uma noite fria, eu largado nas ruas, já fazia
muito tempo que eu não saía com uma mulher, estava
louco por um cobertor de orelhas; tudo bem que o meu
sonho era uma loira, sabe como é, tenho esta pele
morena escura, meio bronze, sou tipo indiano, mas
preto eu não sou.
Sabe mina, preto é muito discriminado, olha nos
bancos das faculdades, é difícil ver um preto...
“Sai daqui negão, tira a mão de mim...”.
Que saco, detesto que coloquem a mão em mim.
Aí, tem um cigarro? Aí, me dá um cigarro!
Estou no lugar errado, as treze vezes que me
internaram, foi por engano, meu problema é outro,
mas ninguém acredita, você acredita?
Tenho Gonorréia, Gonorréia Crônica, olha a minha
perna, você está vendo esta mancha? Então, é da
doença, o meu esperma subiu para a cabeça, e fiquei
assim: TRILILI.
Fui preso no nordeste duas vezes: uma, porque
tirei a roupa na praia, fiquei peladinho, também quem
agüenta ver tanta mulher, desfilando pra lá e pra cá
de biquíni, e eu sem poder fazer nada, fiquei doido,
pirei, arranquei tudo.
Quando elas me viram daquele jeito, chamaram a
polícia, fiquei preso por dois dias, maior humilhação,
até explicar que eu não era muito certo.
96
Aí mina, sou muito feio?
Realiza um milagre em mim: faz nascer de novo
meus dentes, por favor!
Preciso de uma mulher na minha vida, nunca beijei
uma mulher de verdade, só a minha mãe, minha mãe
coitada é doente dos rins, se eu pudesse doava os
meus, mas estão mais estragados que os dela.
Quando eu sair daqui vou ajudá–la, vou entrar na
faculdade, mas será que eles vão rir de mim, sou meio
palhaço, gosto de brincadeira, mas eles riem sem dó,
vai ter uma hora que eu não vou agüentar, acho que
vou querer sair do sério.
Sou kardecista, acredito em reencarnação, vida
depois da morte, estas coisas.
Na segunda vez que fui preso, foi porque fui pedir
comida numa base militar. Cheguei lá colocando a mão
na barriga, gesticulado, tipo falando que eu estava com
fome, eles não gostaram acharam que eu estava de
brincadeira, incomodei, quando vi já estava na cadeia,
fiquei três meses preso.
Aí mina, tem um cigarro aí? Maior vontade de
fumar...
Preciso ir embora deste lugar, não agüento mais
ficar aqui, meu problema é urológico preciso de um
urologista, já disse que tenho gonorréia crônica.
E este doutor, porque ele quer conversar com ela
lá dentro, aposto que vai judiar, conversa aqui mesmo,
hein doutor, conversa com ela aqui mesmo...
Que mania que estes médicos têm de querer
conversar sozinho! Nossa! Não quero mais ficar aqui,
estou bom, não tenho nada.
Cadê minhas roupas?
97
Que roupas mais feias, quero as minhas roupas,
as que eu estava usando quando cheguei, pega lá pra
mim, estão lá naquela salinha, que sujas o que, são
minhas.
Pega lá, por favor, mina...
Valeu mina, que sujas, que nada, só passar uma
água morna no chuveiro, que ficam limpas.
Me dá um cigarro aí, só um, não tenho liberdade
nem para ficar com os meus cigarros, me dá um cigarro!
Aí mina, vamos fazer uma oração, chamar os
espíritos de luz, para abençoar este ambiente?
Vai, abre uma garrafa de água, coloca em cima da
mesa.
Que os espíritos de luz entrem neste ambiente, e
tragam muita vibração de luz e paz, para estes
corações, Alan Kardec, Chico Xavier, e os médicos aí
de cima, todo mundo aqui junto.
Muita paz a todos que estão presentes.
Agora cada um toma um gole da água; aí, seu Zé,
vem tomar a água!
Como eu já disse, prefiro as loiras, mas a morena
apareceu, estava com uma grana no bolso e resolvi
investir, mas não plastifiquei e olha só o que deu,
peguei Gonorréia, por isto que estou aqui.
Me levou para um quartinho minúsculo e foi logo
mandando eu tirar a roupa, sem o menor romantismo,
fiquei com muita vergonha, tava afim de curtir um
momento romântico, mas ela estava com muita pressa,
menos de 20 minutos e ainda saí com gonorréia.
Não conta para ninguém, mas eu já fiz contato com
um extra terrestre, não fala nada, se não eles vão achar
que eu sou doido, o E.T disse que sou Deus, filho não,
ele próprio: Deus.
98
Se Deus pega Gonorréia?
É claro que pega, Deus é humano.
Bom Dia, tem um cigarro aí? Não está na hora, tá
bom, eu volto depois, obrigado.
Nossa, estou muito ansioso, você não está
sabendo?
Eu vou embora amanhã, se lembro do que eu dizia?
Claro, lembro de tudo, é a doença mina, faz a gente
fazer coisas!
Qual o nome da minha doença?
Sou um Bipolar! Não, não tenho gonorréia, claro
que não sou Deus.
O que, você tem saudades daquele outro?
Daquele que todo mundo ficava rindo da cara,
daquele que sofria sem perceber.
Que é isto mina? Não se brinca com estas coisas, é
muito triste, não é brincadeira, só é engraçado prá
quem está de fora.
99
Por breves momentos,
a libertação através da música
Possuía longos cabelos brancos, sempre presos por
um grande coque no alto da cabeça, de semblante tranqüilo, tez descorada, tinha um olhar irônico e algo
persuasivo. Seu envoltório carnal ainda era bem delineado para o seus 74 anos de idade, ainda arrancava
suspiros dos velhinhos mais afoitos. Nestes momentos amaldiçoava-os com orações decoradas, que aprendeu desde de menina, na igreja que freqüentava, na
esquina de sua casa.
Da. Iracema tinha na religião seu grande refúgio,
que escondia os devaneios, que lhe causavam grande
angústia.
Sua mente aos poucos já dava sinais de problemas
maiores, que se manifestavam através do
esquecimento e de pensamentos soltos, que apareciam
nos momentos mais inoportunos.
A leiteira que antes exibia, orgulhosa pelo seu
brilho, há muito perdera o vigor, de tanto “banho de
leite fervendo”, que derramava todos os dias sem
exceção.
Certa vez um pequeno incêndio se prenunciou: só
assim ela se encorajou a comprar uma nova leiteira,
só que desta vez dotada de um acessório dos tempos
modernos: um apito, que passou a dar um alerta antes
do horror da erupção leitosa no seu fogão.
Outro problema eram as roupas, que estendia no
varal: ficavam ao sabor de tempestades e trovões,
secando e molhando em ritmo aleatório.
100
Já não era a dona de casa de antes, que angariava
elogios dos amigos do marido, que a comparavam com
suas esposas, nem tão cativas.
O certo e o errado agora se perdiam na sua mente,
como se fosse um enorme quebra-cabeça. Comportava–
se como uma marionete, perdida num labirinto de
idéias, que nunca foram as suas, com atitudes algo
demoníacas para a sua crença.
Neste grande labirinto era recepcionada por
grandes espelhos multicor, nos quais enxergava
sempre o pecado.
Agressividade, e um discurso cada vez mais
desconexo passaram a inundar sua vida, não tinha mais
nenhum resquício da mulher que foi um dia, era outra:
irônica, sagaz e irritadiça.
Chegou no nosso mundo absolutamente caótica,
inquieta e nada solícita!
Seus minúsculos pés possuíam apenas três dedos,
além de um solado perpendicular, que aparentemente
lhe dava pouca resistência e equilíbrio.
Nos seus dois primeiros dias no nosso mundo,
tomou posse de uma cadeira de rodas, mas quando
menos esperávamos no calar da noite, de um salto
ficou em pé, e saiu a correr como um coelhinho
assustado.
Com caras de bobos a olhávamos, surpresos,
assombrados.
Seus devaneios tomaram forma no nosso mundo;
por longos momentos imaginava em suas mãos um
revolver, atirando em todos que passavam na sua
frente, com pose de soldado em guerra num ritmo
incansável, os dois dedinhos minúsculos ficavam em
constante vai e vem, imitando o tiro fatal.
101
Por vezes saía a correr, atrás de alguém que
escolhia aleatoriamente, daí puxava os cabelos, ou
simplesmente “abraçava” por trás causando
desespero, pois seu “abraço” mais parecia um
enforcamento proposital.
Pouco falava, emudecida e arredia, seu prazer era
SACANEAR.
A recusa do banho se tornou sua reprimenda
favorita, todos os dias era a mesma luta, nos batia com
força, entre safanões, beliscões e empurrões a
encaminhávamos para o banho, era praticamente
arrastada.
Mas sua vingança era no próprio chuveiro, onde
quase sempre dava banho em quem a auxiliava,
cantando junto um refrão ofensivo:
“Sapatão, Sapatão, Sapatão”. Depois saía galante
sozinha, colocava a roupa, penteava os cabelos, e
seguia como se não tivesse acontecido nada...
Sua mente produziu ojeriza à alimentação,
enxergava ratos mortos e insetos, que a impediam de
comer, “veneno era o adubo daquela comida” segundo
as suas palavras, dizia provocativamente: coma você,
vai, coma!
Ficou por vários dias comendo apenas pão e leite.
Da. Iracema com o seu jeito arredio conquistou todos,
nascia dali um grande apego afetivo; com uma
maneira própria conquistava grande simpatia.
Como duas serelepes, ensaiávamos passos de
dança, treinávamos artes marciais, além de sair
correndo uma da outra, num grande show circense,
repetindo palavras, como um papagaio matreiro.
Da. Iracema se revelou receptiva à música,
passamos a usar hinos evangélicos para encaminhá–
102
la para o banho, cantávamos e ela nos seguia sem
resistência, o canto era como uma linha invisível, que
a puxava.
Numa de nossas terapias realizadas com música,
enquanto a viola reluzia ao som de Chico Buarque, a
emoção se fez presente, alguns choravam, enquanto
nos abraçávamos num grande canto gregoriano.
A música entoada magistralmente acaricia os
ouvidos, e acalma as mentes em desalinho.
Num canto, de olhos fechados, Da. Iracema,
comovida cantava em desacordo com a letra, era algo
que elaborava dentro do seu delírio: “A sua verdade”.
Era uma maneira que encontrara para desabafar
todo o terror que vinha passando, cantava em
desespero, como num açoite, como num auto-flagelo.
Entoando a música num ritmo que nunca havia
visto. Quando num lapso de brevidade e lucidez, no
refrão da música, rimou o nome da sua filha, como se
o nome de sua filha tivesse sido lembrado,
descoberto...
“Yolanda, Yolanda”, o Chico cantou, Suzana,
Suzana, Da. Iracema parafraseou. Foi como se tivesse
acordado por um momento daquele cárcere mental.
103
Sábias lambidas de um velho cão
Ela me olhou, o seio à mostra, num decote
absolutamente intencional, um olhar cheio de ironia
pedinte.
Fingi desinteresse, passei a olhá-la disfarçadamente,
como numa opereta, nossos olhares se encontravam
num ritmo fugidio, incansável, analisando-se orgulhosamente.
Aquela mulher estava começando a me deixar curioso, tinha algo de diferente não sabia dizer realmente o
que seria, estava me expondo a uma análise fria, exatamente igual aos malditos interrogatórios que já sofri.
104
Muito tempo depois, já cansado daquele cenário,
resolvi chamar a garçonete, que logo se mostrou
animada em lhe entregar meu telefone.
Ela não poderia imaginar, que aquela brincadeira
não era tão ingênua como estava parecendo.
Não poderia prever, que aquele homem, no qual
ela estava interessada, era um homem marcado pelo
cárcere com toda sua aspereza e agressividade.
Um homem bomba, que mantinha o coração preso
há exatos vinte e dois anos, que era capaz de explodir
nas mais delicadas situações.
Aquele primeiro contato iria mudar as nossas vidas, oito números, que iriam torturar nossos destinos.
Começava naquele momento, uma história que
envolveria todos que estavam à nossa volta.
Quanto a mim, não poderia imaginar, que ali estava
alojada a criatura mais perspicaz, que encontrei na
minha vida bandida.
Fiquei esperando extremamente ansioso, como um
adolescente prestes a copular pela primeira vez.
Fiquei olhando absorto, estático, nervoso. Não
acreditei na sua reação!
Que gana arrogante, premeditada... Como pode ter
feito aquilo, um despropósito.
Pegou o telefone das mãos da garçonete, e como
se fosse um pedaço de entulho, depositou em cima
da mesa, sem ao menos ler, nenhum sinal de interesse,
como se tivesse acabado de receber um panfleto
qualquer de alguma propaganda mentirosa.
Aturdido, passei a me interessar desmesuravelmente por ela, inquieto e cheio de sobressaltos,
passei a olhá-la com mais cobiça, ameaçador, como um
cão, como meu cão Dick... Meu velho e querido Dick.
105
Nunca esqueci meu cachorro Dick, éramos como
dois gatunos à solta; quando Dick arrumava uma
cadelinha, eu ficava imensamente satisfeito, era como
se fosse eu próprio.
Exercia sobre mim, um grande magnetismo.
Pensava comigo: Quando eu crescer, vou ser macho
igual ao Dick. Dizem que os cachorros absorvem a
personalidade do seu dono, mas no meu caso, foi
diferente: eu absorvi completamente a personalidade
dele.
Ele agia diferente dos outros cães: cheirava a cadela
inteirinha, depois lambia seu corpo com muita gana,
um verdadeiro ritual dedicado a Vênus.
Sempre acreditei que ele conversava com as
cadelinhas, ficava observando de longe seu exorcismo,
com um sorriso vitorioso nos lábios...
Era um lindo vira-lata, inteligente e astuto como
poucos.
Íamos juntos buscar o jornal, o pão, estávamos
sempre unidos, unidos como dois foras da lei.
Nos entendíamos pelo faro, hoje sei que meu Dick
era um homem no corpo de um cachorro, astuto e viril,
mais até do que muitos que conheci na cadeia.
Como o Dick, gosto do cheiro do cio, do sangue,
do suor nas entranhas, da animalidade do ato.
Naquele dia o sol batia forte ali naqueles confins
de São Paulo, ruas de paralelepípedos eram o alicerce
de casas com rebocos incompletos e pássaros presos
em gaiolas; mais tarde viria a sentir na pele o gosto
amargo de estar preso como eles.
Inúmeras residências perpendiculares eram separadas por pequenas muralhas, que serviam de testemunhas nas rotineiras discussões entre os vizinhos.
106
Meu primeiro contato com a justiça aconteceu
quando tinha sete anos de idade; hoje ainda me lembro deste julgamento, cruel e genocida, que me trouxe profundas impressões.
Saí humilhado, embrutecido, em desamparo,
sozinho.
Foi também a primeira vez que tive contato com a
morte.
Das outras vezes, os golpes eram esquecidos com
muita rapidez, logo que cessava a dor, logo que saía a
passear com o meu pai, que minutos antes açoitara o
meu corpo frágil.
Aquele maldito travesseiro de penas estava de
novo ali reluzindo sob o sol.
O travesseiro era para o Dick, a própria personificação de um frango assado, pronto para ser saboreado.
Por diversas vezes atrapalhamos seu intento; se
pudesse se comunicar, jogar-nos-ia as mais sangrentas
pragas, por frustramos sempre as suas tentativas de
abocanhar o insidioso travesseiro.
São Paulo crescia desproporcionalmente naqueles
idos da década de sessenta, a poluição era a cortina
da cidade.
Chuva que inundava casas e atolava de lama, os
pés dos famigerados trabalhadores, na grande maioria
bravos imigrantes.
Aquele maldito travesseiro exposto ao sol...
Enquanto isto, os bares das redondezas fervilhavam de ébrios, que exaltavam sua masculinidade, comparando o tamanho dos pés, passavam longas horas a
contar mentiras vãs, sonhando com mulheres que não
eram as suas.
107
No outro lado da rua, suas esposas se queixavam
da falta do feijão com arroz, dos intervalos cada vez
maiores de carinho e principalmente da decadência
sexual do casamento.
Aquele maldito travesseiro exposto no sol...
A expulsar os sonhos insonháveis, daqueles que
seriam responsáveis por uma das maiores tristezas,
que tive na minha vida.
Um simples travesseiro tirou a vida do meu
melhor amigo, do melhor parceiro que já tive.
Voou pena para tudo quanto foi lado, com uma só
mordida, meu Dick, tinha acabado de assinar sua
sentença de morte.
Entre xingos, ameaças e gritos, ficou prometido ali
naquele momento, que o meu amigo teria seus dias
contados.
Foi terrível, a dor mais cruel que senti, não podiam
ter feito aquilo, me atingiram pelas costas, feriram o
âmago da minha alma.
A cena ainda é viva na minha mente, meu cachorrinho ali estendido no chão, agonizante, com um fio
de vida, me esperando, sofrendo, sujo de sangue, banhado de vômito, restos de um veneno mortal que lhe
deram.
Morreu também parte da minha inocência,
enterrou-se parte da minha pureza de menino.
Passei a me alimentar com raiva, ódio. Na minha
cabeça de criança, procurava um meio de me vingar,
sofri como um louco, eu era todo sofrimento, uma dor
palpável e lenta.
O quintal da minha casa era meu depósito de brinquedos e idéias, e foi ali naquele pequeno espaço, que
premeditei tudo: um velho tronco de uma árvore ser108
viu de base, preguei diversos pregos pontiagudos,
martelava cada um pensando na dor que meu Dick
sentira, foi com grande prazer que escondi de todos o
velho tronco, que agora se transformara na minha primeira arma que tive.
Num esconderijo esperei o grande momento, como
se ele fosse diminuir minha dor.
O filho da assassina, uma criança de dez anos de
idade, mais velho do que eu, veio como um passarinho
para minha armadilha. Sem piedade açoitei suas costas
num ritmo alucinante, o sangue jorrava, enquanto os
pregos ficaram encravados nas suas costas.
A fúria agressiva já estava incubada na minha
alma, sem que os meus pais percebessem.
O animal falou em mim, um animal de sete anos
de idade.
Meus pais não entenderam que minha reação, era
um sintoma do que eu seria anos mais tarde.
O castigo viria de maneira errada, não consigo
reproduzir toda a cena, juntando alguns pontos, lembro dos berros do meu pai, e aquela maldita cinta a
inundar minhas costas de sangue vivo, o meu tremor
infeliz.
Minha cabeça a rodar, e as lágrimas a cair, tinha
um único pensamento: não tinha mais meu amigo.
109
Minha primeira mordida
A pergunta que mais me fazem: mas você nunca
foi agredida?
Sempre respondo, claro que não, uso muito a
PAPOTERAPIA, sempre funcionou, ou melhor,
sempre havia funcionado.
Até que, no PRONTO SOCORRO, o esperado
aconteceu!
Num surto, num grito, força duplicada, 48k x 70k...
Ai, minha mão, larga a minha mão!!!
Saco, larga, ai, ai, ai...
Marcas dos dentes, encravados na minha mão!!!
– Lembra, o que você fez na minha mão?
Olhar cismeiro, olhando sempre para baixo.
– Lembro, desculpa!
– Tá arrependida?
– Tou.
Nossa, mas você nem olha para minha cara, nem
parece estar arrependida!
– Já pedi desculpa!
– Não vai fazer mais isto?
– Não sei.
Com o mesmo olhar inerte seguiu seu caminho,
num mundo solitário...
“A loucura é solitária”
110
Psiquiatria e religião
Não, não me pergunte nada, não me questione, não
exija respostas concretas...
Fujo de qualquer certeza, de qualquer afirmação,
fujo, porém com poucas, mas boas dúvidas; mas vou
me ater ao que vi, ao que meus olhos viram, o resto
são paisagens prostituídas.
O que vi, foram pessoas sendo internadas, em
surtos psicóticos, e saírem, tranqüilizadas, pedindo
desculpas e questionando suas atitudes; o que vi,
foram pessoas se encobrindo com o véu da razão,
através de medicamentos e terapias.
Se vi algo sobrenatural?
O que de fato é sobrenatural?
A mente humana é um abismo movediço, com
várias vertentes; não existe explicação para tudo que
a mente humana é capaz.
Vejo, ouço, falo, de acordo com a minha
sensibilidade, minha verdade, minhas crenças.
Respostas exatas tenho, ou melhor não as tenho...
O que tenho de fato, são os fatos?
De uma realidade que presenciei, abrupta e por
muitas vezes covarde.
Se Deus existe, por que então, as cenas que
presenciei, aquele desespero de alma contínuo e servil,
cadê ele?
EU SOU DEUS!
Esta foi a afirmação, que mais ouvi, e de certa forma
concordo com eles.
111
A montanha que removeu a fé
– Em nome do Espírito Santo, e do senhor Jesus
Cristo, meu filho vai se curar!!
“Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o
vosso nome...”
A tal da doutora até que é boazinha, me deu este
batalhão de remédios.
Me disse que o meu filho tem uma doença estranha, como chama mesmo?
Ah, lembrei: ESQUIZOFRENIA!
Mas os médicos são todos ateus, não acreditam no
poder de Deus, de Jesus, nosso pai.
Vou provar, que com a minha fé, ninguém pode,
nem o Satanás!
Sai em nome de JESUS, sai agora, sai do meu filho,
deixa ele em paz, sai demônio !
Sai, sai do meu caminho!
Vem filhinho, vai dormir agora, eu fico aqui em
vigília, em nome de Jesus...
Quem vai curar meu filho é o divino Espírito Santo, só ele tem o poder.
Dona Josefa, uma senhora de 76 anos de idade,
vivia de casa para a igreja, esta era a sua rotina de todos os dias, com sol ou com chuva, lá estava ela, pedindo aos céus, ajuda na cruel situação que vinha enfrentando.
Acreditava piamente que aquela doença do seu
filho: escutar vozes e ver vultos, era coisa do inimigo;
desta forma que denominava, o que para ela representava o mal.
112
O primeiro surto foi de repente, logo seu filho mais
velho, o mais querido, aquele que não a abandonou.
Restou apenas ele, da sua prole de 5 filhos, ele tinha preferido ficar com ela, ajudando-a no labor dos
seus últimos dias de vida.
Uma relação de co-dependência os unia, um era
prisioneiro dos vícios do outro.
Reinaldo, depois do primeiro surto, passou a proteger a mãe possessivamente; para ele todos queriam
lhe fazer mal, prejudicá-la de alguma forma.
Sempre de olhos abertos em cima dela, na feira,
no mercado, no açougue, lá estava ele. Como um guarda-costas, a perseguia, a manipulava; ela de certa forma gostava daquela relação, sentia-se protegida.
Tudo bem que às vezes reclama, era demais, nem
o finado marido a tratava daquele jeito.
Seu filho tinha ciúmes até do cachorro, um
buldogue velho, que há muito estava abandonado no
quintal.
Os dois mais pareciam marido e mulher, e quem
se intrometia, era capaz de sair com duas quentes e
vinte fervendo.
Por causa daquela situação, os outros filhos, raras
vezes apareciam, cada um levava sua vida e até agradecia o irmão, por estar cuidando da velha senhora.
“Era estranho mas fazer o que, os dois viviam assim há muito tempo, e depois que ele começou com
aquela mania de perseguição tudo piorou ainda mais.
Ele não arrumava nenhuma namorada, vivia a vida
da mãe, e ela vivia a vida dele, ou seja, em completa
reclusão, a não ser na hora de irem à igreja.
Mas ontem, quando, de surpresa, cheguei na casa
dela, achei muito estranho: estava tudo fechado, as
113
janelas cobertas de forma improvisada, com cobertores, o cachorro calado, deveria estar há muito tempo
sem ser alimentado ...
Os bombeiros foram chamados, e quando finalmente conseguimos entrar, tivemos mais surpresas:
ela estava deitada e amarrada na cama, tremendo, desesperada, e ele sentado ao lado dela, como se estivesse protegendo a mãe contra o ataque de um fantasma, que só ele via.
No armário da cozinha, encontramos todos os
medicamentos, que a psiquiatra, havia receitado, alguns já com a validade vencida, além de outras tantas
receitas ainda intactas.”
Dona Josefa confirmou com eloqüência:
“Ele confiou mais em Deus, do que nestes médicos!”
Quando o colocaram na ambulância, em estado
de choque, a mãe ficou ainda mais desesperada; foi
como se tivessem arrancado uma parte do seu corpo!
114
Glossário
Transtornos Psiquiátricos
Dr. João Guilherme Bórgio
“Não se brinca com estas coisas, é muito triste, não é brincadeira, só
é engraçado pra quem está de fora.”
(Meu problema é gonorréia crônica)
Introdução
Essas notas não têm a pretensão de ser uma aula de
psiquiatria. Servem para dar uma explicação a mais para o leitor
entender o que são alguns transtornos psiquiátricos e desmistificar
algumas concepções errôneas sobre os mesmos. Para quem gostou
dos contos, não será um peso aprender um pouco mais sobre os
quadros que eles descrevem.
Depressão
“Nossa, que tristeza me deu agora, maior vontade de chorar.”
(À flor da pele).
Ficar triste é uma característica normal do ser humano e ter a
capacidade de sentir– se emocionado é desejável e saudável. Ocorre
que há certos quadros em que a tristeza passa de um certo limite e
associa– se a outros sintomas, constituindo– se em uma doença,
que traz muitos prejuízos ao indivíduo e às pessoas próximas.
Estima– se que, dentro de 15 anos, a primeira causa médica de
prejuízos no trabalho (queda na produtividade, atrasos e faltas)
será a depressão. Portanto, reconhecê-la e tratá-la devidamente, é,
além de um problema de saúde, uma medida econômica.
Tristeza é doença?
A depressão pode assumir várias formas, desde um sintoma
único, até uma síndrome (conjunto de sintomas que aparecem em
conjunto) e um transtorno em si. Como sintoma, trata-se da tristeza,
que todas as pessoas estão sujeitas a sentir. Pode ser secundária a
algum evento (falecimento, rompimento de relacionamento
115
amoroso, demissão etc.) ou mesmo espontânea, ficar triste sem um
motivo aparente. Varia na sua intensidade, desde leve (seu time
perdeu um jogo), até mais grave, como por exemplo, o luto.
Como síndrome, está presente em vários quadros
psiquiátricos. Pessoas com síndrome do pânico, transtorno
obsessivo–compulsivo, ansiedade, podem em algum momento
sentir–se deprimidas, uma vez que essa co-morbidade (associação
de duas doenças) é comum. Como transtorno, a depressão se
diferencia da tristeza normal, além da intensidade, por apresentar
também outros sintomas além do humor deprimido, que serão
descritos a seguir.
O que o deprimido sente?
A apatia é uma característica quase universal. A pessoa não
tem vontade de trabalhar, estudar ou fazer qualquer coisa. As
queixas de ficar o dia inteiro dentro do quarto, sem querer levantar,
são comuns. Não há iniciativa e, mesmo quando forçada por
outrem a iniciar alguma atividade, não demonstra interesse. Além
da apatia, está presente a anedonia, que significa a incapacidade
de sentir prazer. Dessa forma, poderíamos distinguir a depressão
da “preguiça”, que é como alguns familiares descrevem o paciente.
Quando deprimido, o indivíduo não deixa apenas de fazer o que
é obrigado, mas não demonstra iniciativa em coisas que
habitualmente gostava, como passear, jogar bola. A pessoa se
queixa de que “nada está bom”.
O indivíduo passa a ficar mais lento, tanto para as atividades
físicas, como mentais. Mesmo que o rendimento escolar ou no
trabalho ainda não esteja prejudicado, ou seja, os professores e os
chefes ainda não notem nenhuma mudança, a pessoa diz que está
fazendo um esforço enorme para fazer o que geralmente fazia sem
problemas. A partir daí, cai a produtividade, o raciocínio fica mais
difícil, a concentração diminui e ocorrem problemas de memória.
As queixas de esquecimento são reflexo da diminuição da atenção,
mais do que da memória em si, e são totalmente reversíveis com o
tratamento.
O pensamento tende a ser pessimista, com uma visão alterada
do passado, presente e futuro. As idéias ruins podem aparecer
espontaneamente, chegando a delírios de ruína (tudo vai dar
errado), pensamentos nihilistas (não há sentido na vida, nada
116
vale a pena) e escatológicos (pensa no fim do mundo). As idéias de
morte são comuns, e devem ser muito bem avaliadas. A maioria
dos deprimidos pensa em como vai morrer, pode preferir estar
morto, mas alguns, mais graves, costumam pensar em se matar,
planejar o suicídio e chegar à tentativa. Infelizmente, não é raro
consumarem o ato.
O apetite diminui e a pessoa chega a emagrecer vários quilos,
mas pode ocorrer o contrário, um aumento de apetite. O sono se
altera, tanto para insônia ou hipersonia (excesso de sono).
Geralmente a insônia se apresenta como vários despertares durante
a noite e despertar precoce, de madrugada, sem conseguir pegar
no sono novamente. O interesse sexual diminui e isso compromete
o relacionamento amoroso.
Com o passar de semanas ou meses, a tendência da depressão
é piorar, levando a incapacidades cada vez maiores. Em alguns
casos os quadros podem melhorar, mesmo sem nenhuma
intervenção, mas geralmente isso não acontece. O tratamento é
necessário, não somente para aliviar os sintomas, mas também
com o objetivo de remitir o quadro, ou seja, eliminar todos os
sintomas e deixar a pessoa como ela se sentia antes. Mesmo nos
casos em que poderia haver uma cura espontânea, o tratamento se
faz necessário, para que a mesma seja precoce e completa. Logo,
atitudes dos familiares que dizem “isso é frescura, vai passar”
podem trazer graves prejuízos com o passar do tempo.
Drogas da felicidade
O tratamento engloba medicamentos e psicoterapia. Os assim
chamados antidepressivos formam uma classe vasta de
medicações, com diferentes modos de ação, mas que no geral têm
uma eficácia semelhante. O que ocorre é que um determinado
remédio que agiu bem em um paciente pode não ser efetivo para
outro. Atualmente dispõe-se de novos medicamentos, que
apresentam poucos efeitos colaterais e são bem tolerados pelos
pacientes. Falar em remédio psiquiátrico assusta, dá medo de ficar
dopado ou viciar. Mas os antidepressivos não viciam, não alteram
a capacidade mental, pelo contrário, agem positivamente em uma
doença, que prejudica e muito o raciocínio.
Vale ressaltar que o tratamento deve se prolongar muito além
do período de melhora dos sintomas, por no mínimo 6 meses. Ou
117
seja, se a medicação é suspensa logo que o paciente melhora, poderá
haver retorno dos sintomas logo em seguida. Em alguns casos
mais graves é necessário tomar remédio até a vida inteira. Isso
porque a chance de uma pessoa que já teve um quadro depressivo
ter novamente outro quadro é muito alta, e torna– se mais alta à
medida que vai tendo mais episódios. A chamada fase de
manutenção (quando o paciente não tem mais sintomas mas
continua tomando remédios) é necessária para diminuir essa
chance de recaída.
O tratamento medicamentoso deve começar a ser encarado
com mais naturalidade pela população. Como qualquer doença
crônica, como diabetes ou hipertensão, a depressão precisa ser
tratada por um tempo prolongado e, quanto ao fardo de ter que
tomar remédio, pode– se fazer a seguinte consideração: é melhor
passar alguns meses com a medicação do que com a depressão.
“Freud explica”
Várias formas de psicoterapia foram desenvolvidas e são
eficazes no tratamento da depressão. Podem ser breves ou mais
prolongadas, focadas em sintomas específicos ou mais
abrangentes. Como única forma de abordagem terapêutica, são
eficazes apenas para casos mais leves; mesmo assim, a associação
da terapia com os remédios demonstrou ser mais eficaz do que o
tratamento apenas com remédios.
Transtorno Afetivo Bipolar
A história típica de um portador deste transtorno caracteriza–
se pela alternância entre dois quadros clínicos distintos, ou pólos
(daí o nome da doença). Um deles é a depressão e o outro é a
mania.
“É como se eu fosse o dono do mundo” (Sou genro do George
Bush)
A mania poderia ser facilmente resumida como o “contrário
da depressão”. O indivíduo apresenta aumento da auto– estima,
alegria extrema, ri bastante, está sempre animado, não sente
cansaço, chega a ficar vários dias sem dormir porque não tem
necessidade de sono. Há um aumento da energia, seja física ou
mental, a pessoa age de uma forma acelerada, com idéias de
grandeza, perde o medo e a vergonha. Não consegue prender a
118
atenção em um assunto e se distrai facilmente. Com o pensamento
acelerado, facilmente perde o “fio da meada”, misturando vários
assuntos, sem chegar a uma conclusão, interrompe os outros. Pode
ficar agressivo e mesmo delirante.
Admirável mundo novo
Vivemos em uma sociedade que valoriza a energia física, a
alegria, a desinibição no contato social e a versatilidade. Como
são sintomas desejáveis, às vezes o paciente acredita que não há
nada de errado consigo, e inclusive seus familiares, que podem
estar acostumados aos quadros depressivos que apresentava antes.
“Chamaram o resgate e, com a autorização da minha mãe, me
trouxeram à força para cá.” (À flor da pele)
Nos casos mais graves, freqüentemente é necessária a
internação, uma vez que, achando que não há nada de errado, o
paciente não aceitará facilmente o tratamento. Ora, mas se é um
quadro aparentemente desejável, muitas vezes instalado em uma
pessoa que já sofreu de depressão, por que tratar então? Acontece
que nesse quadro, sem crítica ou julgamento correto da realidade,
usualmente o indivíduo se envolve em atitudes arriscadas, tais
como praticar sexo sem proteção, dirigir perigosamente, contrair
dívidas enormes. Além disso, quanto mais episódios uma pessoa
apresentar, pior fica o seu quadro e a evolução da doença.
A hipomania apresenta um quadro de mania com sintomas
mais leves, por isso menos evidente, chegando a passar
despercebido ou encarado como um período “iluminado”, de
“bom humor”. Pode haver quadros em que há uma mistura de
sintomas depressivos e maníacos, o chamado “episódio misto”.
Nesse estado, o paciente pode ter humor depressivo, mas
aceleração do pensamento e agitação psicomotora, ou mesmo
estar lentificado mas eufórico. Entre esses episódios, o paciente
volta ao normal, recuperando o humor estável e melhorando dos
outros sintomas.
“Tenho muitos períodos tristes”
O quadro de depressão no transtorno bipolar não difere muito
dos episódios depressivos do transtorno depressivo “unipolar”,
já descrito. O que ocorre é que muitas pessoas que tem o transtorno
bipolar se apresentam no primeiro quadro com um episódio
119
depressivo. Como saber se esse paciente irá desenvolver TAB?
Alguns dados sugerem essa evolução, mas não são fielmente
preditivos: história de TAB na família, início precoce, depressão
com muita sonolência ou aumento de apetite.
Cura milagrosa da depressão
A recuperação de um episódio depressivo, seja com ou sem
tratamento, geralmente se dá gradualmente, com a melhora de
alguns sintomas antes dos outros, durante algumas semanas.
Deve-se estar atento a quadros de depressão que melhoram muito
rápido (poucos dias) e quando a pessoa deixa de estar deprimida
para sentir uma alegria extrema (está com muita energia). Pode–
se tratar de um episódio de hipomania/mania iniciando, e nesses
casos chamamos de “virada”, ou seja, mudança de um pólo da
doença para outro.
Será que eu tenho tenho transtorno afetivo bipolar?
Cerca de 1% da população apresenta o transtorno bipolar
clássico. Hoje em dia considera– se que haja mais pessoas
portadoras desse distúrbio, de uma forma mais leve, formando
um espectro, ou seja, pessoas que têm quadros leves e transitórios
de euforia e depressão, e que muitas vezes nem chamam muito a
atenção dos outros e por isso geralmente não procuram um
tratamento; também poderiam ser chamadas de bipolares. Assim,
quem tem variações de humor nos extremos, mesmo que durem
poucos dias, pode achar que não tenha nenhum transtorno, e que
isso faça parte da sua personalidade, mas poderia se beneficiar
com o tratamento.
Dentre as doenças psiquiátricas, o TAB é uma das que
apresenta maior associação genética, ou seja, familiares de um
paciente portador têm maior chance de desenvolver o transtorno.
É um transtorno recorrente, quer dizer, após um episódio,
virão outros, e cada vez mais graves. Com o tratamento, a tendência
a apresentar esses episódios diminui e, mesmo que a pessoa entre
em crise, esta tende a ser mais leve. Muito importante é orientar o
paciente e a família sobre os sintomas e a natureza da doença,
para que, logo que percebam alterações no comportamento,
procurem ajuda médica.
120
Esquizofrenia
A visão popular desse transtorno é do indivíduo sem crítica,
inadequado, largado em um hospício ou pelas ruas, sujo, dizendo
ser Napoleão ou que alguém quer lhe matar. Essa imagem negativa
tem que mudar, uma vez que, com os novos tratamentos, o paciente
consegue ficar livre de muitos sintomas que o incomodam e lidar
com os outros sintomas que ainda possam persistir. A
esquizofrenia é uma doença grave, que acomete as pessoas na flor
da idade, e pode deixá-las muito comprometidas, se não for
reconhecida e tratada devidamente.
Acomete aproximadamente 0,7% da população brasileira e tem
uma prevalência (número de casos em uma determinada população)
semelhante no mundo inteiro. Suas causas ainda não estão bem
determinadas, mas certamente há um componente genético, ou seja,
familiares de um paciente têm risco maior de apresentar a doença.
Além do fator biológico, há os chamados “estressores” psicossociais,
que determinam o aparecimento de uma crise.
Começa geralmente entre o fim da adolescência e o início da
idade adulta, com uma média de idade de aparecimento entre 15 e
22 anos para homens e 18 a 25 anos para mulheres. Porém, em
alguns casos pode mesmo surgir na infância, ou na idade adulta
(por volta dos 40 anos).
“As vozes que passou a escutar, achou no início que fosse
alguma coisa espiritual” (Fuga de mim)
Geralmente há um intervalo de tempo muito grande entre o
aparecimento dos primeiros sintomas e o diagnóstico feito por um
psiquiatra. Isso deve-se ao próprio quadro, que é insidioso, ou
seja, vai aparecendo lenta e gradualmente, e também ao fato de
que normalmente há uma demora em procurar-se o atendimento
médico. A família, reconhecendo que o jovem está com um
comportamento diferente do seu habitual, vai achando que é “coisa
da idade”, que “vai passar”, ou então procura outras explicações
(possessão espiritual, pirraça, uso de drogas), por simples
desconhecimento ou mesmo medo de acreditar que seu filho
padeça de uma doença grave e crônica.
“O dia inteiro, coberto dos pés à cabeça, com um sol de 40
graus” (Conto, que não se fez conto)
Há alguns sinais “prodrômicos”, quer dizer, aparecem antes
da doença, tais como isolamento social, esquisitices, variações de
humor, alterações do apetite e do sono, irritabilidade,
121
comportamentos inadequados. Como se pode perceber, são
comportamentos que qualquer adolescente normal pode
apresentar. Daí vem a dificuldade em reconhecê-los, porque,
mesmo presentes, podem fazer parte do desenvolvimento normal
dessa fase da vida, caracterizada por experimentações, mudanças
constantes e comportamentos desafiadores, sinais da mudança
de uma postura de criança para adquirir uma personalidade
adulta. Mesmo que esses sinais prodrômicos apareçam com uma
intensidade suficiente para serem reconhecidos como um
transtorno, eles podem fazer parte de outros quadros psiquiátricos,
como depressão, ansiedade, mania, uso de drogas e outros.
Alguns meses depois do início dessas alterações do
comportamento, geralmente após um evento estressor importante,
mas nem sempre, acontece uma crise psicótica. Chama-se assim
pelo afloramento de certos sintomas, estes agora mais
característicos da esquizofrenia, chamados “psicóticos”, que são
secundários a uma quebra, um rompimento entre o mundo real e o
mundo mental do indivíduo.
“A vida é um grande ‘Big Brother’” – (Existe algo errado,
estão querendo me matar, por favor me ajudem!)
Esses sintomas são principalmente os delírios e as
alucinações. Delírios são idéias super-valorizadas, irreais, que não
podem ser desmentidas com argumentação por outras pessoas,
inabaláveis. A pessoa acredita piamente naquela idéia que surgiu
em sua mente e sofre com isso. O conteúdo dos delírios geralmente
é persecutório (alguém quer lhe fazer mal) e de auto-referência (ao
ver duas pessoas conversando na rua, acha que estão falando
dele).
“As vozes a pedir, a implorar: vai lá, mata” (Fuga de mim)
“Malditos, estão dizendo que querem me matar” (Monstros,
vozes e gargalhadas)
Alucinações são sensações falsas, mas percebidas como reais
pela pessoa. As alucinações auditivas mais comuns são conversas
de outras pessoas comentando seus atos, pessoas chamando seu
nome e seus inimigos fazendo comentários negativos. Podem ser
visuais, como ver pequenos animais andando pelo corpo, monstros
na parede, pessoas em atitude ameaçadora. Mais raramente há
outros tipos de alucinações, como as cenestésicas (sensação de
animais se mexendo no seu corpo), olfativas e paladares.
122
Como dá para perceber, o contexto da alucinação tem muito a
ver com o conteúdo dos delírios. Ou seja, quando uma pessoa
acha que seu vizinho quer lhe matar, vai começar a ouvir conversas
do mesmo planejando seu assassinato e pode vê–lo, de repente,
dentro do seu quarto. Na esquizofrenia as alucinações mais
freqüentes são as auditivas. Alucinações visuais sugerem causa
orgânica, ou seja, uma doença clínica com alteração psiquiátrica.
Esses sintomas tendem a melhorar bastante com os remédios e
ficam mais leves durante as crises.
Há outros sintomas que acompanham o paciente por mais
tempo, mesmo entre as crises e melhoram pouco com os remédios.
Entre eles aparece uma diminuição da afetividade, parece que a
pessoa está mais distante e alheia às emoções à sua volta. Pode
ficar sem graça ao contar uma piada, e rir em momentos
inapropriados. Aparece também apatia, falta de disposição e
iniciativa para realizar suas tarefas, que é muitas vezes confundida
com preguiça. Com o tempo, há um comprometimento de outras
áreas da mente, mas geralmente é muito gradual e varia bastante
de pessoa para pessoa. Esses sintomas são pouco percebidos pelo
paciente e pela sua família, mas geralmente são os que trazem
mais prejuízos para o seu desempenho social.
Com a evolução do quadro, o paciente vai tendo mais crises
psicóticas e, entre elas, melhora, mas a família percebe que, ao
contrário do transtorno bipolar, ele nunca volta ao normal.
Permanecem alguns sintomas, que são suficientes para alterar a
personalidade e o comportamento do indivíduo. Sem tratamento,
a tendência é o deterioramento de diversas funções psíquicas, como
a afetividade, o pensamento e a inteligência.
“Com o álcool as vozes não o incomodavam tanto” (Fuga de mim)
Muitas vezes o paciente começa a procurar algum meio de se
ver livre dos sintomas, e começa ou intensifica o uso de álcool e
drogas. Realmente, por um curto período, essas substâncias
aliviam muitos sintomas, mais por seu efeito sedativo, mas está
comprovado que o álcool e as drogas não só pioram as doenças,
como podem desencadear um quadro psicótico.
Como tratar da “loucura”?
O tratamento se baseia nos medicamentos chamados de
antipsicóticos, que devem ser tomados por tempo indeterminado.
123
Esse fato assusta muito os pacientes, porque se sentem frágeis e
não aceitam ter que manter a medicação. Porém, criando um bom
vínculo médico-paciente, pode– se contornar esses conflitos e
incluir o paciente nas decisões sobre seu tratamento. Há vários
casos em que uma pessoa estável pode ir reduzindo a dose de
remédio e levar uma vida totalmente normal. Antigamente os
antipsicóticos disponíveis apresentavam muitos efeitos colaterais,
mas agora dispõe-se de medicações novas, com eficácia superior
em alguns aspectos, que são mais bem toleradas.
Mesmo em tratamento, o paciente pode apresentar crises, mas mais
leves. O importante é que ele tenha um bom vínculo com seu médico e a
equipe de saúde mental, para que fique à vontade para pedir ajuda em
qualquer momento, em que se sinta inseguro, e que todos à sua volta
(família, amigos, colegas) percebam as alterações, que geralmente
antecedem as crises e o convençam a procurar seu tratamento.
Transtornos da personalidade
Dentro da classificação dos transtornos mentais, os
transtornos da personalidade fazem parte de um grupo de
diagnósticos separado dos outros. Essa diferença se faz necessária
porque eles não se caracterizam por episódios, crises ou surtos,
mas sim, são quadros nos quais ocorre um comprometimento do
desenvolvimento da personalidade, que pode aparecer como
dificuldade em relações interpessoais, impulsividade,
“esquisitices” e outros sintomas, que diferem dos sintomas dos
outros transtornos por serem na maioria dos casos
“egossintônicos”, quer dizer, o indivíduo que os apresenta não os
reconhece como anormais, mas sofre e faz sofrer por causa desses
sintomas, que representam alterações no modo de existir no
mundo, que fogem às regras gerais da maioria da população; mas
não é só isso: a pessoa se torna refém de seus próprios traços,
inflexíveis e permanentes.
Essas alterações são constitucionais, ou seja, não se instalam
na pessoa, mas se desenvolvem junto com ela. Não refletem a
maneira de estar naquele momento no mundo, mas a maneira de
ser no mundo. O processo começa, portanto, na adolescência e
“cresce” junto com o indivíduo. As principais manifestações se
dão na regulação dos impulsos, na modulação afetiva, na
organização cognitiva e no controle da ansiedade.
124
Os pacientes acreditam, que estes traços são parte inerente de
sua personalidade e, portanto, não causam nenhum sofrimento; a
queixa geralmente vem dos acompanhantes. Quando questionado,
o paciente acha que estão “implicando” com seu jeito de ser, que
ele está certo e todos os outros estão errados, ou então, mesmo que
ele possa estar errado, acha que aquilo não lhe traz problemas e
que não vai mudar.
Há vários transtornos da personalidade característicos, mas
na prática usualmente não se encontra um indivíduo com um
único quadro típico, dentre os descritos, mas sim, um quadro com
um misto de algumas características de cada transtorno. Ou seja,
cada personalidade disfuncional é única e as tentativas de
classificação são meramente didáticas.
Tipos:
Esquizóide – pessoa que tem pouco contato social, prefere se
isolar, fala pouco e tem dificuldade quando precisa se expor.
Esquizotípica – pessoa excêntrica, tem hábitos estranhos, se
veste de forma diferente, com isso gera algum desconforto nos
outros à sua volta.
Paranóide – sempre desconfiada, evita se expor por medo de
ser prejudicada, quando acredita que alguém esteja invadindo
seu espaço pessoal, fica irritada.
Histriônica – quer chamar a atenção, é expansiva, faz
“drama” por qualquer coisa e a famosa “chantagem emocional”.
Borderline – explosiva, agressiva, intolerante, irritável, com
tendência a manipular pessoas, a capacidade de planejar pode
ser mínima e os acessos de raiva intensa podem, com freqüência,
levar a explosões comportamentais e de violência.
Narcísica – pessoa egoísta, vê seus interesses sempre em
primeiro lugar. É capaz de demonstrar afetuosidade somente para
depois poder tirar proveito. Preocupa-se muito com a própria
aparência, é muito vaidoso.
Dependente – sente-se frágil e sempre deposita todas suas
esperanças e desejos em outra pessoa, assim, faz coisas extremas
para agradá–la e não consegue sequer imaginar perder esse ponto
de apoio. Não necessariamente trata-se de um relacionamento
amoroso, pode ser um parente ou amigo. Mesmo após um
rompimento, ele procura outro para ser seu objeto de amor
incondicional.
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Esquiva – apresenta fobia intensa à exposição social, no
entanto, diferentemente do tipo esquizóide.
Anancástica – tudo em sua vida tem que ser organizado, tanto
seus objetos, como seus relacionamentos etc. Sente-se muito
inseguro com qualquer ameaça, mesmo imaginária, de perder o
controle da situação.
Transtorno da personalidade anti-social
“Sem piedade açoitei suas costas” (Sábias lambidas de um
velho cão)
Há muitas dificuldades em se conceituar esse transtorno,
desde o diagnóstico até as formas de tratamento, devido,
principalmente, às suas implicações legais, uma vez que as
pessoas que o apresentam cometem muitas infrações criminosas.
Tanto é verdade que o outro nome para este transtorno é sociopata.
Essas pessoas estão entre os “loucos” e os deficientes mentais.
São indivíduos diferentes da maioria da população em termos de
comportamento, e conduta moral e ética; não adquiriram certos
conceitos necessários para a vida em sociedade.
Radicalmente, diz-se que se encontram mais próximos da
animalidade. Quanto mais vulnerável à animalidade, menor o
sentido (e sentimento) ético da pessoa. Apresentam sintomas de
auto-referência excessiva, grandiosidade, tendência à
superioridade, exibicionismo, dependência excessiva da
admiração por parte dos outros, superficialidade emocional, crises
de insegurança que se alternam com sentimentos de grandiosidade.
Despertam um encanto nos outros, mas é superficial; com
isso, pretendem manipulá-los. Têm uma absoluta falta de
escrúpulos para com seus semelhantes ou para com os sentimentos
dos outros. Mentem freqüentemente e agem seguindo suas
fantasias. O que mais assusta em seu comportamento é a
imoralidade. São impulsivos e, mesmo com todas as abordagens
terapêuticas tentadas, se mostram incorrigíveis.
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Leitura recomendada
Temperamento forte e bipolaridade– Diogo Lara
Uma mente inquieta – Kay Jamison
Canto dos Malditos – Austregésilo Bueno
O demônio do meio-dia – Andrew Solomon
Filmes:
Mr. Jones
Garota – Interrompida
As horas
Bicho de sete cabeças
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