Claudia Canto Bem-vindos aomundodos RaRos CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. C233b Canto, Claudia, 1973Bem-vindos ao mundo dos raros / Claudia Canto. - São Paulo: Edicon, 2006. ISBN 851. Conto brasileiro. I. Título. 06-3235. CDD 869.93 CDU 821.134.3(81)-3 04.09.06 12.09.06 016040 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS _ É proibida a reprodução total ou parcial,de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei no 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Impresso no Brasil/Printed in Brazil Dedicatória Aqueles que de alguma forma contribuem para uma psiquiatria, mais humanizada, e por entenderem que todos somos antes de tudo apenas gente. E principalmente aqueles que assomam as clínicas psiquiátricas e infelizmente os ultrapassados manicômios. ABAIXOASPRISÕESMANICOMIAIS, QUEMAISDESCURAM! VIVA A ARTE COMO LEGÍTIMA FORMA DE CURA. Agradecimentos Deixandodeladoqualquerintuitopiegas,agradeçodeantemão àspessoas,queolharamsemassombramentoaidéiadestelivro. Irineide F., ThomasMielenhausen, M. Alice, Ricardo Gutauskas,JuanRubinGonzales MariaCantoefamília;pelapaciênciadiantedeumaeterna rebeldesemmuitacausa. Dr.JoãoGuilherme:portermeemprestadoumpouquinhoda suainteligênciaedisciplinaeprincipalmenteacreditado. Àspessoasquenuncaduvidaramqueo“MundodosRaros” pudessedefatosairdosonho. Àartequemeobstinouaumcaminhodiferente. ARobson Urahatapelafelizcaricatura. ÀDra.LucianaMayumi,pelamaravilhosacontribuição. 7 8 Apresentação Mundo inatingível, pouco compreendido inaceitável absurdo mantido à distância. Pensamentos perdidos, frouxos/soltos, lúcidos, inteligentes, abstratos, revoltos, inseguros, medrosos, ansiosos, nervosos, angustiosos, inomináveis. Tudo misturado, arredio, num só momento por um instante fragmentos. Como uma rolha sendo retirada e do seu interior saem muitas idéias a pulular desesperadas. Comunicando-se com o nada, com o abstrato, com o imaginário com o infinito. Vida inteligente, de outra esfera Vida flagelada sem retidão Vida inacabada, interrompida, solta E os outros a vão perdendo, sua importância, seus adereços, suas identidades. O carinhoso abraço, que se tornou frio sem raízes, desconhecido. Ou ao contrário o extremo: afeto desesperado, vulcânico, profundo, como se este abraço fosse a única coisa que resta, o porto seguro. 9 Como crianças menores teimosas, bagunceiras, que precisassem ser vigiadas todo o momento, orientadas com coleiras invisíveis. Um gesto falho pouco intencional e depois o choro desesperado, as desculpas infindáveis Coisas comuns rítmicas se tornam medonhas, lentas, perigosas. Caminhar vago, sem destino a seguir, para qualquer lugar, para lugar nenhum. E lá escondido um mundo rico, inteligente, pouco aproveitado, bem humorado. Arte, Arte, Arte As nossas mentes lúcidas aceitas, levianas, pouco humoradas, nossas desgraças pequeno burguesas, nossas contas a pagar, nossa boca a destilar venenos imperdoáveis para pessoas normais A falta de consenso o tempo todo, falta de paciência, distúrbios aceitos. Enquanto eles seguem para um mundo nebuloso, impreciso, afoito, quase puro... ClaudiaCanto 10 Prefácio No Sistema de Saúde atual, temos um grande desafio: conseguir oferecer um atendimento mais humano e digno aos nossos pacientes, os chamados “psiquiátricos” por alguns... “PQs” por outros... Este sonho pode parecer tão distante quanto era o de Cláudia, uma jovem simples, que sonhava com um Brasil mais justo, mais digno... o esforço e a garra foram seus maiores aliados, e aqui está ela, publicando seu segundo livro... Esta obra é um exemplo concreto de que nossos sonhos e desejos podem se tornar realidade. A psiquiatria é um lado bastante peculiar da medicina, ainda pouco conhecido, “ainda” carregado de preconceitos e segredos. Diferente das outras especialidades, é preciso haver um interesse particular pelo que existe de mais abstrato em nós – trata-se de um olhar bastante específico sobre o ser humano... Nossa equipe foi composta, por sorte, por pessoas muito interessadas em conhecer um pouco desse intrigante funcionamento do ser humano, de nossas mentes, de nossas emoções... foi neste contexto que tivemos a sorte de conhecer Cláudia, uma pessoa especial, que com sua sensibilidade, sua disponibilidade e carinho, pôde oferecer um contato único aos pacientes que ajudou a cuidar. 11 Nossa rotina nos coloca frente-a-frente com aquilo que todos trazemos, geralmente de maneira mais velada que nas “crises” de nossos pacientes: sentimentos, conflitos, angústias... só que nas “crises”, isto vem cru, sangrando, exposto... lidar com tudo isto realmente demanda que estejamos emocionalmente disponíveis, isto é, uma das principais ferramentas terapêuticas somos nós mesmos... tentamos ajudar os nossos pacientes a se reestruturarem. Por outro lado, observando com mais atenção, a cada atendimento, conversa, contato, temos também a oportunidade de aprendermos muitas coisas... a possibilidade de conhecermos um pouco mais sobre nós mesmos, é única... acho que esta é uma das experiências mais ricas e emocionantes que podemos ter. Cláudia tem o dom de colocar em palavras aquilo que não se diz... aquilo que se sente, que passa tão velozmente por nossas mentes e nossos corações, que por vezes nem percebemos... transcrever a riqueza deste contato, o quanto acabamos nos vendo na “loucura” do outro, a riqueza de cada um dos pacientes, é um dos melhores presentes que poderíamos ganhar. Ninguém mais que você, Cláudia, merece enorme admiração, pois você é um exemplo para todos, de garra e determinação. Foi uma honra ter sido convidada para participar desta introdução, e sou grata por você conseguir ilustrar o Mundo dos Raros, como algo tão especial... como ele realmente é para mim. É desta forma, Cláudia, que você acaba contribuindo para o outro sonho também ser possível – fazer uma psiquiatria diferente... LucianaMayumiYamaguchi Psiquiatra e coordenadora da Psiquiatria do Hospital da UNIFESP 12 Nota da autora Em nenhum momento tive a intenção de revelar a intimidade de cada paciente, busquei sim em primeira instância relatar de forma fictícia, usando a linguagem de contos. Assim pude poupar as verdadeiras identidades, usando codinomes e atributos líricos. As familiaridades de cada diagnóstico, foram cuidadosamente respeitadas, obedecendo assim a rigorosidade da Ética profissional. Meu principal objetivo é divulgar e oferecer uma luz a estas milhares de pessoas que convivem com este drama. Por fim, o livro deve ser encarado acima de tudo como um grande manual. Espero desta forma ter contribuído, nem que seja para o direcionamento de uma só família. Alcançando meu intento, de pronto estarei plena. Portanto, qualquer similaridade será absoluta coincidência ClaudiaCanto As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão. André Gide (1869-1951), escritor francês Leia também “Morte às Vassouras - diário de uma jornalista que se tornou empregada doméstica em Portugal” seu primeiro desatino. Um livro que antes de tudo é uma lição de coragem e ousadia. 13 14 Conto, que não se fez conto Há quanto tempo se passou? Não sei. O que sei é que a minha memória ainda continua lá, como se estivesse vivendo aqueles malditos momentos, como num cárcere, rediviva, magnetizada... A história aconteceu de uma forma abrupta, pouco legítima para a época, foi ambientada num lar humilde, sem o regozijo da mãe, e sem o afeto mais exuberante do pai!! Um pai antes alcoólatra, destes que se assemelham aos micos de circo, que fazem rir a sociedade, e antagonicamente chorar toda uma família. Se disser que presenciei estes despautérios do seu vício, ou como dizem da sua doença, estarei de fato pouco contribuindo com a verdade, e esta nunca foi a minha intenção. Antes de brincar com as palavras como num quebra-cabeça, encaixando uma aqui e outra acolá, como fazem os verdadeiros escritores, aqueles mesmos que estão por aí a contemplar a vida através da literatura, açoitando de modo heróico as vidas das celebridades. Estes mesmos, que fogem do viés hipócrita e medíocre através da arte. Neste momento fujo até deles, dos meus grandes ídolos, corro das suas influências líricas, românticas ou sei lá o que, só sei que desta vez não os quero! Esta será uma das poucas vezes que os renegarei, escreverei como uma cronista, como uma narradora 15 real da vida, coisa que não gosto, prefiro a pimenta dos grandes romances, ou a relação agridoce dos amantes suicidas! Mas nesta história não tenho saída, é tudo muito vivo, legítimo, com pouca poesia; nossa, como está sendo difícil começar, a crise do papel em branco, o fantasma da falta das palavras eruditas. Oh, Meu Deus! Porque não estudei os grandes cronistas, agora me pego aqui com dificuldade para falar de uma forma limpa, sem o aconchego das palavras, que não dizem nada, mas que preenchem substancialmente. Oh, querida mãezinha, me perdoe, por te fazer relembrar, te trair, colocando nas letras, nossa vida, nossa dinastia, nosso drama... Olhando agora o seu lado, vejo que quem mais sofreu foi tu, doce mulher, pouco letrada, que um dia, mesmo sem saber qual a função de um psiquiatra, procurou ajuda e ele sem descobrir qual era o problema ofereceu ajuda errada, logo para você, que só queria uma saída, que só queria seu doce menino de volta, doce como fora... É, mãezinha, preferi não dizer, para você não sofrer mais, já bastava eu sofrendo tanto! Sabe aquele dia? Ele me bateu, jogou uma madeira bem grande nas minhas costas, enquanto eu corria, louca também, desesperada, minhas perninhas magras não corriam direito, ele corria muito. Para mim, para nós, não tinha motivo, não sabíamos que ele estava doente, que ele era um esquizofrênico, eu não tinha nem coragem para encarar o olhar dele, eu tinha apenas 5 anos de idade. Se soubéssemos, né mãe? 16 Que tinha remédios, que tinha tratamento, não teríamos perdido tanto tempo, chorando, sofrendo, mas o psiquiatra, preferiu dar o remédio para a senhora, e a senhora, como acreditava que todos os médicos eram deuses, tomou, como gotas evangelizadoras de olhos fechados. E ele ali do mesmo jeito, naquele sol de quarenta graus, coberto com três cobertores de lã, com uma expressão que não era do nosso menino!! Foi de repente, ele tinha apenas 17 anos, o primeiro tapa foi na mesa, com tanta violência! A senhora achou que era problema na escola, rebeldia, até drogas, ele que antes era um garoto excelente, se fez diferente, violento, até a voz dele mudava, a fisionomia, quando entrava em surto. Hoje sabemos que era surto, antes não conhecíamos nem esta palavra... Nossa vózinha, consigo lembrar dela até hoje, foi tão agredida, e agüentou firme, quando ela conseguia gritar já era tarde demais... De noite bem tardinha, quando você chegava do trabalho, tinha sempre uma novidade, sofria, sofria tanto, hoje consigo perceber muito melhor, de uma forma mais transparente. Seu sofrimento era físico, como as chagas dos mutilados, lembro de algumas leituras que fizeram parte da minha adolescência. Lembrei dos apóstolos de Jesus, que foram destroçados vivos nos grandes circos, nas arenas de Roma. Se de fato aconteceram estas barbáries, isto não sei, ou melhor, acredito que se houver todo este mistério, que rodeia o nome de Deus, acho que ele iria gostar de saber que duvido. 17 Duvide sempre de tudo, questione, afinal foi para isso que ele nos deu a inteligência!! Sinto que estou fugindo do meu intuito, como se eu estivesse com medo de lembrar, colocar tudo à tona; por um instante associei esta página triste da história a você, lembrei de você, como um grande apóstolo, que veio com a missão de sofrer em nome dele, do seu filho. Caramba, acho que estou exagerando na retórica! Queria poder dizer com poucas palavras, traduzir de forma simples, aquilo que na época foi um drama, mas que hoje... Já parou para pensar, que podemos ajudar um monte de gente? Me responda: você aceita esta proposta? Eu conto tudo, às claras, tudo o que se passou, e nós consequentemente, ajudaremos milhares de pessoas, que passam pela mesma situação! Eu sabia, que você iria aceitar, seu coração é grande como sei lá, o céu, as nuvens, o mar, o infinito... Ele tinha dezessete anos de idade, o futebol ficou para trás, o beijo na boca que nunca foi dado, bailes de adolescência nem pensar!! O dia inteiro, coberto dos pés à cabeça, com um sol de 40 graus, como já tentei dizer, e ele de negro ficou com uma cor amarelada, cinzenta, uma sombra... Ficava muito violento, naquela pequena casa de dois cômodos, quebrava tudo, a nossa pequena TV, o pouco que tínhamos. Lembro, que papai vendia doces na porta da escola, e isto era uma das nossas poucas alegrias, os doces, as balas, os chicletes... Acho que me tornei uma assaltante naquela época, como o roubei, roubei para matar a minha fome de alegria... 18 Ele ocupava um sofá, que ficava na cozinha, ou melhor, que era sala, que era quarto, que era apenas um pequeno compartimento pouco intitulado. Não, não entendam mal, muito agradeço por ter nascido com estes poucos recursos, acredito que só vivendo assim, a gente valoriza o que tem. Muitos lerão as minhas palavras, e suporão demagógicas! Mas não se precipitem! Deixei bem claro, que não seria uma história das mais poéticas. Ainda há tempo para fugirem desta maçada, fiquem à vontade, mesmo sabendo, que a falta de um leitor, é a mesma coisa que a falta de nós mesmos. Mesmo que alguns escritores digam que não. Eu particularmente escrevo para ser lida, não necessariamente admirada, mas sim para me entender, ser entendida. Gosto do sabor de brincar com as palavras, como brincava com as nuvens quando era pequena, sonhando em ser uma aeromoça. Mentira! Não quero mentir, inventar histórias mirabolantes, nunca sonhei com coisas ligadas à profissão, sonhava sim, com uma casa grande e uma caminha só para mim... Hoje, como as coisas mudam, não gosto da solidão da cama vazia. Sinto que a minha crônica... Será ainda uma crônica? Uma narração? Ou virou apenas uma apoteose de palavras perdidas de uma história, que de tão real, não parece mais real, não consegue ter uma retidão, uma seqüência, um ritmo; as palavras a seu bel prazer estão caminhando como loucas, como andarilhos, como se elas fossem minhas donas. 19 Confesso, que não estou conseguindo fazer o que me propus, vou parar um pouco, respirar, relembrar; não, acho que vou tomar uma taça de vinho, brincar com o meu cachorro! Ouvir meu Chico, pensar nos meus amores, não quero mais escrever sobre isto agora, não quero lembrar de mais nada disto!! 20 O vinho tem o poder de nos fazer esquecer mágoas, inebriando as cores, transformando tudo em poesia. Oh, mas não posso, tinha decidido não escrever de forma poética, nem lírica, nem nada disto... É dele que preciso falar! Foram necessários quase 30 anos, para descobrirmos o motivo de tanta revolta, de tanta ira, de tanta violência... Não eram drogas, não era álcool, não era nada destas coisas. Precisei vir trabalhar em uma psiquiatria, para descobrir que ele era um deles: Esquizofrênico. Como este mundo dá voltas, gira em círculo, como uma roda gigante, governada por algum juiz, destes muito bons e imparciais. Lembra mamãe? Nossa casa parecia um templo ecumênico, a senhora chamou praticamente todos os representantes religiosos: mãe de santo, pastor, padre, espírita e outros que não me lembro... Todos com o mesmo intuito: expulsar o tal “demônio” do corpo dele. Mas que Demônio era aquele? Que resistia a preces, novenas, promessas, passes magnéticos, velas por todos os lugares da casa, lembro de tudo, ou melhor, das piores coisas da minha infância. Somos como um arquivo ambulante, e no meu caso, as coisas mais tristes ficaram registradas. Não consigo lembrar das coisas saudáveis da minha infância. 21 Ah! Lembrei quando pela primeira vez comi beterraba, no começo fiquei intrigada com aquele vermelho vivo, mas depois, nossa que delícia!! Foi na casa de uma vizinha, que todos acusavam de ser uma gata de rua, ela era muito bonita e bem novinha, era casada com um homem mais velho, que morria de amores por ela, e não ligava para os seus arroubos sexuais com os vizinhos. Lembro também, que ela nos levava sempre a um parque, para fazermos piquenique. E eu quase sempre, não tinha nada para levar, mas quando lá chegávamos, a balança era o meu reinado. Me dividia entre a balança e a caixa de isopor com os lanches, ficava com os olhos esbugalhados, só esperando a hora de bem comer. Minha mãe coitada, nem imaginava, que eu me comportava desta maneira, tinha nos ensinado a nunca aceitar nada dos outros, que era muito feio e coisa e tal... Enquanto isto, ele ali trancado, os anos passando, as crises cada vez mais freqüentes e ferozes. Até que um dia passou dos limites; a cena é viva para mim, papai levando muitos socos na cara, sendo impedido de entrar em casa, a polícia foi chamada, lembro do barulho das sirenes, e o meu irmão e papai sendo levados, eu chorava, num desespero que ainda hoje me faz mal. Então a senhora, que nunca tinha entrado numa delegacia, correu aos prantos, desesperada, cansada de tudo aquilo. Quando a senhora conta, fico imaginando aqueles caminhões antigos, cobertos apenas com uma lona, todos sentados no chão, e o motorista a recolher todos 22 os tipos de desamparados, ali todos juntos: ébrios, drogados, doentes mentais de todas as ordens. E a senhora ali com ele, indo sem saber para onde, apenas indo, para onde o delegado os tinha mandado. Hoje depois do mundo dos raros, consigo imaginar o estado do local, um verdadeiro depósito de gente, doentes de todos os tipos, lá confinados. Foi lá que ele ficou, mas apenas por dois dias, fugiu depois disto, voltou para casa, voltou para o seu, para o nosso inferno. 23 “Manoel!!! Foi para o inferno...” Quando ele chegou no nosso mundo, em cima dos seus 1m90, causou furor, inquietação, aprendizado... E para fugir de nós todos, daquele ambiente, que para ele era uma prisão, usava como rota de fuga, seu arquivo musical. Um refrão repetitivo discorria da sua voz rouca, parecendo um brado de alerta. “Manoel foi pro céu, Manoel foi pro céu...” Enquanto uma orquestra singular o acompanhava: pacientes, funcionários. A sua dança sem ritmo, cada vez mais frenética, agressiva. “Manoel foi pro céu, Manoel foi pro céu...” Cambaleante, delírios, arredio... Mais troca de medicações, Mais injeções, Mais surtos, O receio instalado, pacientes pouco pacientes, funcionários em alerta. E o Manoel vendo seu céu se transformar no seu inferno. Manoel, cadê o seu céu? Cadê o seu céu, Manoel? Ameaçador, prestes a agredir qualquer um a qualquer momento, Cara de desmazelo, socos, pontapés nas portas, ameaças, Troca de medicações, Mais injeções, Apelo verbal, 24 Surto, que não tem hora, vem com a brisa da manhã, com o entardecer do dia, o agitar da noite. E ele a gritar impropérios, com sua mente em desalinho. Manoel perdido no céu!!! Risco de queda, risco de agressão. Embriaguez dos sentidos, pensamentos misturados, pedido de ajuda ao irmão já falecido, filha não reconhecida. A contenção no leito se fez inevitável, sua retirada estratégica do contato com os outros e de si mesmo. E no leito, contido, muda seu refrão: “Manoel foi pro inferno, Manoel foi pro inferno...” Dias se seguiram, sem a sua música, apenas um refrão triste ecoava do seu quarto: “Manoel! Foi pro inferno. Manoel! Foi pro inferno...” Aos poucos, a organização dos sentidos, O medicamento acertado, A calma estampada na face, um sorriso amistoso, permanentemente, As amarras desfeitas, de novo o convívio, o bom humor, a pergunta inquisidora para mim: Você acha mesmo que é normal? E eu pensando na resposta, que até hoje não dei. Aconchego, medicação, compreensão, melhora, família Bem aceito, bem visto, bem quisto... Alta, Alta, Alta Despedidas emocionadas, Manoel caminha pro seu céu... A porta se fecha por trás dele, mas de longe pude notar uma lágrima teimosa a escapar dos seus olhos. Obrigada, Manoel!!! 25 Um homem na estrada Modelos animais são imperfeitos, mas é possível obter informações úteis através de estudos de animais. Macacos separados da mãe na infância ficam psicóticos: seus cérebros se modificam em nível fisiológico e desenvolvem níveis de serotonina muito inferiores aos dos macacos criados pelas mães. (Extraído do livro, “O Demônio do meio– dia, uma anatomia da depressão”) “Os grandes embates da vida são amenizados diante de uma infância saudável. As dificuldades da vida, originadas da pobreza e da falta de perspectiva futura, sugerem grandes dramas psicossociais. Mas em contrapartida, as famílias arraigadas em carinho e respeito, mesmo num patamar de pobreza considerável, conseguem administrar problemas vindouros de uma forma menos traumática.” Ele chegou no nosso mundo absolutamente contrafeito, agressivo... De aspecto deprimente e extremamente hostil, caminhava de um lado para o outro exasperado, pedindo aos gritos seus óculos escuros, segundo ele para amenizar a claridade que incomodava sua visão, usando um boné que cobria seus olhos de tal maneira, que impossibilitava enxergar a cor da sua íris. “E aí mina, você conhece os Racionais?” Ele era fã de Hip Hop, estilo musical que exprimia todo o seu ódio contra a sociedade que desprezava, sociedade de quem na sua opinião era apenas vítima. 26 Para minha sorte, sabia de cor o refrão da sua música preferida, cantei de modo a ganhar sua confiança. “Um homem na estrada reconhece a sua vida, a sua liberdade, que foi perdida subtraída” (Com direito a coreografia e tudo). “Nossa, esta música tem tudo a ver comigo!” 27 “E quer mostrar assim mesmo, que realmente mudou, e se recuperou”. “Minha mãe, chama ela lá pra mim, pô, falaram que eu iria trabalhar aqui, cadê o meu crachá?” “Calma querido vamos cantar, vai Racionais!!!” “Vamos cantar Racionais, vai canta comigo, eles são os caras...” “Sabe vou te contar um segredo, mina: Eu que fiz as músicas dos caras, não conta pra ninguém, tou na mó confiança em você...” “Equilibrado num barraco imundo mal acabado e sujo, porém seu único lar, se chover será fatal um pedaço do inferno é aqui onde eu estou, até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.” “Nossa, mina essa música tem tudo a ver comigo, é a minha vida.” “É sério? Tá a fim de me contar? Só se você quiser!” “Não, deixa quieto, melhor esquecer.” “Você que sabe, mas acho que você não vai esquecer nunca, está muito vivo aí dentro.” O tempo concilia, promove a afinidade, ilustrando amizades, no nosso caso o RAP foi nosso aliado, um apelo musical comum na periferia das grandes cidades. Ele bem que poderia ter sido o autor da letra, ele e mais um terço de crianças nascidas para sofrer. Aos cinco anos de idade já saía de mochila nas costa, não para ir à escola, mas para entregar encomendas, não de doces e salgados, que a sua madrasta poderia fazer para ajudar nas despesas da casa, não para entregar as roupas, que ela poderia também lavar. 28 Saía sim, para entregar os papelotes de cocaína que ela embrulhava com muito rigor, atenta sempre ao peso, para não ir nenhuma grama a mais. Ele era tipo aviãozinho; mas não tinha nenhum aviãozinho de plástico sequer, ele era o próprio, e com muita agilidade, subia e descia morro com os papelotes na mochila da escola De tanto apanhar, aprendeu rápido seu trabalho, sabia quem eram os “fregueses”, e quanto tinha a receber, até quem precisava ameaçar de chamar o papai. Fugiu de casa com nove anos de idade, foi morar na rua debaixo de um viaduto, pedindo dinheiro na rua e cometendo pequenos furtos. “Pelo menos na rua tinha dinheiro para comer uma coxinha e um guaraná, coisa que na minha casa não tinha, era maior briga por um prato de arroz e feijão, nove bocas disputando os restos da comida. Os ratos tinham mais educação, um bando de animais esfomeados, minha mãe me largou com o meu pai, ela é doente: retardamento mental. Claro que roubei, na rua precisava me virar, até escutar estas malditas vozes me perseguindo, me ameaçando de morte. Dormia dentro de casa, com uma arma debaixo do travesseiro, por isto que o meu pai me trouxe para cá, queria ver quem iria me pegar Se chegar perto eu mato... Quero ver quem vai morrer primeiro, tá falando o que? Vai! Repete! Quero ver quem vai me matar!” E ao seu lado ninguém caminhava... 29 Monstros, vozes, e gargalhadas “Vem cá, tá vendo estes monstros? Tira eles daqui, por favor, eles não param de me perseguir.” “Saiam daqui, malditos! Devolvam meu corpo, meu cérebro, Devolvam minha linha da vida, Saiam daqui, não agüento mais, tirem eles daqui, pára de me beliscar, pára, chega, não quero mais ouvir!!!” Enquanto isto, ela corre para todos os lados de olhos fechados, socos no ar, como se quisesse atingir alguém, algo, depois cai na cama e grita: 30 “Não fui eu, eu juro, eles querem me matar, me salva.” Um grito ensurdecedor e desesperado. “Que foi querida, o que você está vendo? Estamos aqui para te ajudar, ninguém vai te fazer mal...” “Olha, você não está vendo? Aqui, olha, é tão grande, feio, monstros, milhares deles querendo me pegar... Você não acredita? Malditos, estão dizendo que querem me matar, que eu sou a culpada, eu não roubei nada! Tirem eles daqui, por favor!” Em seguida, sai desesperada pelo corredor, olhar perplexo, palavras aleatórias, mordazes. Sozinha no seu mundo de terror, Maria é a personagem principal do filme de terror criado pela sua mente, subjugada, por quem está de fora, por quem olha e não enxerga, por quem só vê a loucura estampada na sua face. São dezenas de monstros invisíveis, enormes, que se apoderaram das entranhas do seu cérebro, algoz dela própria, é conduzida para os mais ameaçadores mundos por ela reproduzidos. “Malditos são aqueles, que exploram as mentes doentes, doutrinando e ameaçando, através de vozes invisíveis, sagazes, imundas, levando a labirintos, rochedos escuros, assoprando como se fossem ventos de uma furiosa tempestade, palavras suicidas e mortais. Malditos são aqueles, que se transformam em monstros imaginários da baixa esfera, açoitando como num auto-flagelo, transformando estes seres em suicidas contumazes.” 31 Este era o cenário daquela mulher sombria que chegou no nosso mundo, infeliz, pobre de carinho e milionária de terror. O amor aconchega, nutre, soma e acalma os corações e mentes, das mais variadas esferas. Olhos tristes, num recôndito feroz, Maria se anulou, por toda uma vida, desfez histórias, e passou a vida toda ouvindo e vendo fantasmas, como algozes de toda uma existência. A medicação, um carinho nas mãos, um leve toque na cabeça, um olhar sereno confiante, palavras amigas, foram aos poucos trazendo– a para o nosso mundo. Risos desmotivados, irônicos: “Que foi querida, do que você está rindo? “As vozes, elas são tão engraçadas, me falam cada coisa...” “Fala para mim, o que elas estão te dizendo?” Mais risos “Não posso dizer de jeito nenhum, é pornográfico. Você é a minha melhor amiga! Me empresta o seu batom? Olha, o que achou? Ficou bonito? Nossa esta música é tão bonita, eu posso dançar? Posso mesmo?” “É preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã, porque se você parar, prá pensar, na verdade não há... Me explique a grande fúria do mundo.” 32 Sou genro do George Bush 33 Meu nome é José Ribamar, sou casado com a filha do Bush, há quatro anos, tenho 32 anos, e sou do signo mais nobre do zodíaco: leão! As pessoas para mim são como ratos de museus, formiguinhas despreparadas, que precisam das minhas ordens para sobreviver, é como se eu fosse o dono do mundo, e elas como marionetes à minha volta. Apesar de ser genro do Bush, tenho amigos por ele indesejados, como o Sadam Hussein, este mesmo que foi encontrado no buraco, eu já sabia onde ele estava escondido há muito tempo, mas como sou amigo dos dois você sabe né? Não quis prejudicar nem e nem outro, eles que se resolvam. A cada dia que passa me sinto cada vez maior é até um pouco injusto, tantas pessoas sem nada... Aqui neste lugar eles insistem em me tratar como um Zé Ninguém, estou deixando, um dia eles vão perceber, a diferença entre eu e eles. Pra falar a verdade, já traí minha mulher, a filha do Bush, claro a Madonna me dando maior mole, ce acha que eu não ia aceitar? Ofereci a festa de aniversário do Julio Iglesias, no meu transatlântico em consideração à família dele, que é como se fosse a minha, maior respeito. Minha história começou há trinta anos atrás, quando Deus me avisou que eu iria nascer com a missão de ajudar os necessitados, este país é muito miserável, tive que blindar o meu carro importado, e colocar cercas elétricas na minha mansão. Em que país desigual vivemos! Eu com tanto e outro sem absolutamente nada. Mas o que fazer? Faço o que posso dou emprego para centenas de pessoas 34 na BMW, além do Barateiro e vários shoppings, não tenho culpa de ser milionário. De calça jeans, tênis roto e com um linguajar cada vez mais desassociativo, ele caminhava como um lorde inglês, procurando sempre causar boa impressão, principalmente nas mulheres... Saiu do nosso mundo, com idéias menos grandiosas, mas sempre à espera do tal telefonema do tal sogro, presidente dos EUA. 35 Fuga de mim 36 “A única coisa que conseguia pensar, é que deveria fugir, me isolar, isto é quando eles não estavam me perseguindo. Daí cavei um buraco de mais ou menos 3 metros de profundidade, dentro da minha própria casa, escondido de todos, fiquei lá trancado cavando, por meses a fio, só parava para beber, nem fome tinha mais...” Quem olhava para aquele homem, não podia imaginar. Há tempos não via um rosto tão harmônico, angelical, sem rigidez, puro, sem nenhum sinal de sofrimento, nada. Não falava com ninguém, perdeu os amigos, e a família toda no nordeste não imaginava que tudo isto estivesse acontecendo, já que Mário sempre foi muito ausente. Menino precoce, saiu de casa com 14 anos para ganhar a vida na cidade grande, e só deu notícias com dezoito anos de idade. Foi encontrado por uma vizinha, quando num surto passou a gritar dentro de casa, como um cão raivoso, a ofender seres imaginários, a burlar códigos de éticas, num sofrimento atroz. “– Sua casa era na verdade um depósito de bactérias petrificadas, excrementos por todos os lados, cheiro fétido de urina a exalar pelos poros das paredes, papéis embolorados, estendidos no velho sofá, garrafas de cachaça jogadas nos lugares mais díspares. Este foi o ambiente no qual o encontrei: largado num canto da casa, todo sujo de barro, a barba enorme, com uma expressão de sofrimento agonizante, uma miséria de alma tão grande. 37 Foi uma das coisas mais chocantes que vi na minha vida.” Olhei no fundo dos seus olhos, e ofereci ajuda como uma mãe, que oferece ajuda para um filho agoniado e confuso. A princípio pareceu não entender, depois com muita calma, peguei a sua mão, acariciei sua fronte e falei em nome de Deus. Chamei o resgate, e ele sem resistência nenhuma subiu na ambulância, parece que também já não agüentava mais tanto sofrimento, acho que cheguei quando ele estava com a corda no pescoço. Chegou no nosso mundo amuado, tranqüilo, emudecido, sem resistência, antes de vir ainda pediu para fazer a barba. Nada tinha daquele homem que ficou perdido na floresta por meses, com a barba quase a inundar o peito, comendo apenas frutos, fugindo de tudo, tudo que tivesse vida. Mas para ele está fuga era impossível, porque as pessoas de quem ele fugia, as vozes que tanto o incomodava, os monstros que ele via, estavam ao seu redor, por onde quer que se encontrasse, na sua mente, na sua paranóia, dentro dele mesmo. Por mais que tentasse fugir, eles estariam ali, juntos, como se fossem indivisíveis, era o personagem principal desta dualidade de pensamentos e ações. O ápice da crise se instalou no momento áureo do seu casamento, e da sua carreira profissional. Sem entender nada do que estava acontecendo com ele próprio, apenas um desânimo instalado, uma apatia sem razão, vaidade cada vez mais rota, e as vozes que passou a escutar, achou no início que fosse 38 alguma coisa espiritual, procurou ajuda, mas nada, as malditas vozes o perseguiam, cada vez mais gritantes, mais agudas, ameaçadoras. “Vai se matar! Anda, você não serve para nada, porque ainda insiste em viver?” A primeira vez, que agrediu a sua mulher, foi como se estivesse fora de si, bateu como se ela fosse um homem, sem razão, sem motivo, sem raiva, sem ciúme, sem nada. Apenas uma fúria abstrata, que foi se desenvolvendo e o levando contra ela, e as vozes a pedir, a implorar: vai lá, mata! Já não trabalhava mais, vivia agora contraído, à espera do nada, parado, absorto, fugaz, trêmulo, como nunca fora antes. A esposa cada vez mais assustada agora o evitava. “Só podia ser coisa do demônio, ele nunca passou um dia sem tomar banho. Agora começou a andar de um lado para outro, sem rumo, na contra-mão, no meio da rua, inerte.” E ela, que há muito já não o queria mais, aproveitou a deixa, e fugiu, sem se despedir, sem pedir licença, fugiu para uma outra história, para um novo amor, mais contundente, menos insano, saiu com marcas de agressão e usou estas marcas para justificar sua fuga, seus ditames, sua ventura, sua opção. Nesta época, o buraco no quintal já tinha 2 metros de profundidade. Passava dias calado a cavar, sem que ela percebesse, de tão afoita que estava com o seu novo romance. A fuga dela o jogou cada vez mais para dentro do mundo infernal, em que já estava mergulhado. Amor que rima com dor, dor sem remédio... 39 Sozinho, já não mais comia, como um animal ferido. Sua alimentação se resumia a pequenas doses de pinga, que antes nunca tomara. O álcool o fazia fugir um pouco da sua realidade, o deixava cada vez mais fora deste mundo. Mundo que ele queria esquecer a qualquer preço. Com o álcool as vozes não o incomodavam tanto. 40 Feira das vaidades No mundo dos raros 41 Aquele dia que mais parecia ser um dia rotineiro, se transformou num belíssimo espetáculo de auto– estima. Aquilo tudo mais parecia um camarote de estrelas globais, do que uma clínica psiquiátrica. Vaidade, frenesi, satisfação, substituindo por algumas horas a vastidão das mentes em desalinho. Secadores, cremes de massagens, esmaltes, gel, pentes, maquiagens, e três abnegadas cabeleireiras, que com amor trabalhavam voluntariamente. A mulherada com a vaidade saindo pelos poros, escolhia o penteado, a cor do esmalte, com algazarra, parecendo crianças soltas num parque de diversões. E do outro lado, os homens escolhiam o melhor corte de cabelo, com sorrisos menos voluntariosos. Pareciam todos enfeitiçados, a primeira “escova” deu uma alegria nova, naquela que minutos antes, sofria a angústia da separação dos filhos. Aquela moradora de rua, que há muito não sabia o que era um esmalte de unhas, via depois de muito tempo, se não pela primeira vez, suas unhas com um brilho colorido, e os cabelos maltratados ostentando um belo penteado, parecido com os das mocinhas da Telenovela (a mesma estava com alta marcada naquele dia, para voltar a sua casa de origem, ou seja o albergue mais próximo) Até aquele outro, que só tomava banho depois de muitas orações, neste dia cortou o cabelo, fez a barba e quando menos esperávamos, apareceu vestido com uma calça limpa por dentro da camisa pólo, desfilando pelo corredor, querendo mostrar a sua elegância. Fila no banheiro, todos a postos para olharem-se no espelho. 42 Caras, bocas e exaltação. A música no velho rádio relógio, combinava com o clima faceiro. Os flashes da câmara fotográfica registraram aquele momento. Enquanto isto, num canto, um dos raros olhava tudo aquilo com um olhar desconfiado. O surto se deu a seguir... 43 A feira das doenças... “Qual é o meio de transporte que você utiliza?” “Autorama.” A pesquisadora se afastou decepcionada com a resposta, decidiu não perder mais tempo, não levou minha resposta a sério. Mas de modo algum menti, os trens dos subúrbios de São Paulo, têm muita semelhança com um autorama; poderiam também fazer as vezes de uma feira livre, um camelódromo, templo religioso, purgatório, céu e também, porque não, um inferno... Na verdade, a situação é caótica: são centenas de pessoas, com suas vidas sofridas, feridas expostas, dores, amores, fome, roubo, droga, malícia, maldade e muita, muita bondade. Então, muitas vezes desisto daquele cenário e tento admirar a paisagem, mas que paisagem? “Milhares de casas amontoadas, ruas de terra, este é o morro, a minha área me espera.” Desisto, pego um livro, mas logo o cansaço me pega, então me ajeito no banco desconfortável, fecho os olhos e tento dormir. De repente sinto um toque íntimo nas minhas pernas, como se fosse algum conhecido, tentando me dar um susto. Abro os olhos assustada, mas era apenas mais uma das dezenas de crianças, que ficam todos os dias no “autorama” pedindo dinheiro. Um menino de mais ou menos dez anos, implora por uma moeda para comprar, segundo ele: “comida para os meus irmãozinhos e para a minha mãe doente.” 44 Pego uma moeda e ofereço, mas não sem antes lhe dar um sermão, como se as minhas palavras fossem mudar aquele cenário, aquela vida, aquele destino... Então perco o sono, olho para frente, e vejo alguns homens curiosos, olhando obsessivamente para o lado, todos na mesma direção, olhos a saltitar da órbita, como lobos gulosos, tentando caçar uma presa. Logo noto uma bela mulata, esbanjando sensualidade com uma minissaia. Ela está descontraída, nem sequer nota que está sendo observada, desejada, consumida. Com as pernas cruzadas, sonha em ser uma das modelos da revista, que lê tão interessada, sonha com um dia que talvez nunca chegue. Em casa, à sua espera, estão seus três filhos, esperando as balas que todos os dias religiosamente ela compra no trem. Órfãos da sociedade fazendo malabarismo, são verdadeiros artistas; balas, chicletes, chocolates, cervejas, cafezinhos, dipironas, termômetros, caça palavras, revistas de crimes, e mais, mais, tudo se vende, inclusive doenças. Bolsas de colostomia expostas, cadeiras de rodas vagueiam por todo trem implorando por ajuda, que a maioria também precisa. Nestes momentos, bolsas são reviradas à procura de moedas, mulheres e homens apiedados, doam seus poucos recursos. Uma realidade, que não aparece nas novelas da tv, porque será? Claro, não é agradável de se ver, não tem o glamour dos belos rostos, não tem a beleza de Copacabana ou 45 dos Jardins, seus rostos são comuns, falta maquiagem, falta brilho, não, estes não dão ibope! Com dificuldades de caminhar, ele vem se aproximando, a calça jeans erguida mostra um resto daquilo que um dia foram pernas: são na verdade grandes rochedos inertes, purulentos, descamados, edemaciados, já sem vida. Se arrastando como num desfile de horror, olhares são desviados, caras de assombro, asco. Não é fácil olhar, pelo contrário, é deprimente, então desvio o olhar... Quando a recebemos no nosso mundo, ela estava fora do peso, magra, desnutrida. Mas ainda podíamos notar, que era uma bela mulher, chegou suja confusa, perdida em desespero. Aos poucos a melhora, a mansidão, o carinho, comia como uma leoa, engordou, ganhou peso. Era a primeira a correr para mesa nas horas da refeição, irritava-se com os desperdícios. “Se na minha casa tivesse todos os dias uma comida como esta! Tanta gente passando fome, pedindo esmolas. Meu marido vem me buscar hoje, estou de alta, quero que você o conheça.” Quando ele chegou reconheci imediatamente aquele olhar. E os dois se foram num caminhar manco. 46 Talentos perdidos Um barraco com dois cômodos à beira de um córrego imundo, onde os vermes eram os habitantes mais “habitués” daquele esgoto a céu aberto. Algumas crianças ainda tomavam banho na sua margem, aproveitando o chafariz de água suja, que corria de um cano; era a mesma água que vinha do esgoto das suas casas. No entanto ali naquela comunidade, a solidariedade era companheira, muitas vezes o almoço era compartilhado entre os vizinhos, onde uma asa de frango virava o festejo vultoso de grandes sonhos, onde uma garrafa de cerveja brindava os devaneios das mentes, que mesmo vivendo como dejetos ainda sonhavam. Aliás, os sonhos eram assomados a grandes promessas de ganhos na loteria, bingo, jogo do bicho, sorteios dos mais diversos. Neste cenário catastrófico ela deu a luz. Açoitou seu ventre durante toda sua gravidez, inconformada com aquele ser, que entrou na história da sua vida sem pedir licença. A cada movimento no seu ventre, ela se irritava e em contrapartida agredia a própria barriga com força, entre injúrias e palavrões, blasfemava aquele feto, que para ela era um abjeto; não, não o queria. Por isto não demorou em planejar tudo, combinou com a sua vizinha, uma senhora solteira, que tinha como sonho ter um filho, que quando o bebê nascesse, o daria, mas queria a garantia que não teria devolução, não queria o bebê de volta, em hipótese alguma. 47 A cena se fez, a criança, um menino grande e saudável, foi doada, sem palavras, sem remorsos, sem emoção. Era como se tivesse se livrado de uma roupa em desuso, absolutamente resoluta seguiu sem rumo, vendeu o seu velho barraco, e foi cumprir o destino que se propôs. Ainda acabrunhada olhou para trás, pensando que havia feito um mau negócio, do meio do caminho voltou... Tentando a qualquer custo ganhar mais vantagem, desistiu logo, viu que não conseguiria nada, a mulher era mais pobre que ela própria. Trinta e quatro anos se passaram, sentada numa cadeira rota, em volta de uma pequena mesa, onde se encontrava uma velha TV, estava a mãe adotiva, assistindo extremamente absorta, um programa de auditório, que sorteava diversos prêmios, e entre eles a sua tão sonhada casa; enquanto a roleta girava pra lá e pra cá, em ritmo lento, seu coração disparava e os tremores nas mãos eram cada vez mais intensos, em cima da mesa um carnê de doze prestações, onde ainda faltavam seis, eram todos os meses 15 reais, que tirava do seu único salário, do salário da aposentadoria do seu filho, pagava religiosamente, mas a sorte estava demorando muito para bater no seu barraco, teve sorte apenas com dois únicos números naquele dia, mas pelos seus cálculos estava chegando perto. “Viu filho, quase ganhamos, da próxima vez, vai dar certo.” Não terminou a frase, como um relâmpago, o filho atravessou o pequeno barraco e foi direto para a televisão, jogou-a com tanta força contra a parede, que causou um estrondo gigantesco. 48 Com os olhos arregalados, pegou o velho rádio e deu o mesmo fim, destruiu a casa em menos de cinco minutos, enquanto a mãe corria desesperada, gritando por socorro, com o carnê do baú na mão, como se fosse a única herança que restou. Ele chegou no nosso mundo, de cadeira de rodas, com um papel e uma caneta na mão; a primeira coisa que observei, foi o desenho exposto naquela folha amassada, uma verdadeira obra de arte, como poucas que já presenciei, um verdadeiro artista, um gênio, autodidata. Deixou sua marca espelhada no nosso mundo, era requisitado por todos, e não era só desenho, era todo o contexto da palavra arte, moldava, esculpia, tatuava fazia poesia, falava... Um artista multifacetário do mais alto calibre, simples, humilde, como só os grandes artistas conseguem ser. Capaz de se apaixonar por Fernando Pessoa, que um dia lhe apresentei, ficou sob encantamento, e chorou como um louco, chorou como só um louco é capaz. Souloucocomtododireitoaser,ouviram? FernandoPessoa 49 Os homens têm pesadelos e as mulheres têm pesadelas 50 Depois de dezenas de internações fracassadas, as esperanças tornaram-se cômicas, enquanto a realidade era revestida por um manto negro de luto e morbidez. Com a agressividade à flor da pele e um linguajar frouxo como os decrépitos excomungados do paraíso, seu Roberto nos foi entregue como um embrulho estragado e pouco útil para a sociedade, e que para tranqüilidade geral, de preferência, não tivesse data de devolução. Violento e algoz, seus impropérios faziam fama entre os vizinhos, que revoltos acionavam a polícia, que já sabia de antemão do que se tratava. Conhecido em todo o hospital, sua chegada no PS já era esperada; cada vez eram variados surtos de diferentes intensidades. Totalmente psicótico, deixou marcas de agressão em uma auxiliar de enfermagem, e uma luxação no braço de uma experiente psiquiatra. No PS era mantido amarrado e sedado por longos períodos, até a atenuação da crise e o retorno ao lar. Sua história familiar era imensamente desastrosa, prejudicada principalmente pelo desconhecimento da doença. Tinha uma filha, que estava disposta a mandar todos às favas, depois que viu a possibilidade de arrumar um marido, após quase 30 anos de solteirice e imaculação. Possuía uma inveja mortal de suas amigas, que tinham sido desvirginadas com 14 anos, enquanto ela permanecia intacta. Não. Não pode ser! O ato mais heróico que ousaram com ela neste sentido, foi uma passadinha de mão, muito de leve, 51 na sua antecoxa e nas extremidades do seu abdômen globoso, diferente dos abdomens das menininhas, que ela admirava nas capas das revistas de fofoca. Precisaria segurar de qualquer maneira aquele homem! Tudo bem, que não era aquele príncipe, com o qual havia sonhado. Desta vez subiria ao altar, e para isto o agradava de todas as formas: lavava e passava suas roupas, como a sua sogra havia lhe ensinado. Tinha aprendido a cozinhar todos os pratos, dos quais ele mais gostava, a sogra a elogiava, não sem um pouquinho de ciúmes, mas isto ela tirava de letra; depois do casamento, daria um jeito de afastá–la, por enquanto fingia que aceitava as suas intromissões. Era a melhor coisa que podia fazer. A sogra dizia orgulhosa: “agora sim, meu filho encontrou uma mulher direita, uma perfeita dona de casa.” Nada a impediria, nem os defeitos do pai, muito menos o estado senil da sua avó. Agora a louca seria ela, “mas debaixo dos lençóis.” Mostraria com uma pequena dose de perversidade o belo produto, que ele havia comprado. E que fosse logo, porque já não agüentava mais fingir, que estava satisfeita com aquela relação insossa, aqueles beijinhos sem estardalhaço, que ele achava que ela adorava. Sua mãe lhe ensinou, que a mulher só deve demonstrar prazer depois do casamento, para o cabra não correr... “Ele pode achar que você é uma mulher fácil,” dizia a velha senhora. 52 As coisas depois iriam mudar, ela tinha muita lenha prá queimar, aproveitaria o máximo, para compensar o tempo perdido. Seu futuro marido foi conseguido a duras penas, literalmente penas. Nos últimos tempos, havia percebido, que se continuasse do jeito que estava, iria morrer solteirona, no caritó, como sua tia Eugênia, que morreu pura com cinqüenta anos de idade, sem sentir o cheiro de um homem de verdade. Para isto planejou tudo, comprou umas revistas de fofoca, copiou os modelitos da moda e passou a costurar suas roupas sempre com alguns centímetros a menos. Eram variados tipos de blusas, que valorizavam seu busto avantajado, pronto para amamentar os cinco filhos que ele queria ter. Transformou seu guarda-roupa, encheu de brilho, com minissaias que de tão minis, cabiam na sua pequena bolsinha de maquiagem. Passou a tomar purgantes de todas as espécies, ficava imensamente feliz quando o remedinho começava a fazer efeito.Corria para o toalete como se fosse ao parque de diversões. Saía de lá, se sentindo sempre mais magra, enfiava uma minissaia, e ia para os braços do noivo, que feliz a abraçava, pensando na maravilhosa mulher que conquistou. Depois de ter procurado por tanto tempo, não cansava de dizer com muito entusiasmo: “Nossa, você é tão maravilhosa, tão parecida com a minha mãe, quando nos casarmos você vai praticamente substituí-la.” E ela pensava: “isto é o que você pensa!” 53 Todo mês sua comissão na loja de sapatos onde trabalhava, era descontada por conta dos sapatos de salto alto, que havia se habituado a usar. Seu chefe já começava a perceber a sua mudança, nunca foi tão audaciosa, passou a buscar os clientes da loja na esquina da rua. Neste estado de coisas, digamos que apimentada, seu pai, chegou no nosso mundo. E numa cadeira de rodas, com um olhar desavisado, aparentemente calmo, pela quantidade de calmantes que havia tomado. Com o tempo o psicotrópico começou a fazer efeito, aliado à terapia e à humanização por parte da equipe, e aos poucos foi modificando seu comportamento. A agressividade foi afastada e, no seu lugar, a comicidade passou a caracterizar um novo homem. Frases engraçadas faziam parte do seu vasto repertório: “Os homens têm pesadelos, e as mulheres têm pesadelas.” Depois de ficar internado por quase dois meses, cansou daquela rotina diária, que se tornou enfadonha. Implorava constantemente alta: Tenho saudades da minha santa mãezinha, e da minha filhinha santa, quero voltar para casa. Foi concedida uma licença de dois dias para readaptação e quando voltou, chegou com uma imensa alegria estampada nos olhos. “A sociedade o aceitava de volta.” Orientações de alta, para a mãe de 86 anos, que ora entendia que teria que lhe dar um comprimido pela manhã, no mesmo instante esquecia e perguntava se eram dois. 54 O medicamento não poderia faltar sob hipótese nenhuma. Enquanto isto a filha ainda estava desfrutando sua lua de mel, sem pai, sem mãe, sem avó e principalmente sem remorso. Casou-se com um tubinho branco, com comentários maldosos de toda vizinhança, que dava graças a Deus por ela mudar-se de bairro, só assim seus esposos voltariam a ser o que eram antes. Seu Roberto saiu do nosso mundo, em uma manhã ensolarada de segunda feira, feliz como uma criança inocente. Sua mãe o acompanhou desamparada, arrastando suas pernas inchadas e quando saiu, ainda nos fez uma última pergunta: “É à noite ou pela manhã, que ele toma aquele amarelinho?” Ele voltou para o nosso mundo, em surto duas semanas depois, dizem que agrediu sua santa mãezinha. Sua filha ainda estava em lua de mel. 55 MalucoBeleza Era apenas um rádio, que de um surto tomou um susto, e agora andava manqueta soletrando migalhas, mais do que qualquer outra coisa. 56 Seu canto era desajeitado, como se fossem chiados, quase gago, quase inaudível! Já não tinha o teor de antigamente, época em que foi inaugurado. Sua voz agora era rouca, alguns ainda tentavam escutá–lo, a meia luz, a meio ouvido... Num golpe foi atirado no chão, com toda aspereza, como um arco e flecha desgovernado. Mas ainda sobrevivia, acalentando dramas, servindo de testemunha ocular no “Nosso mundo dos RaRos” Quantas vezes, ainda fez o papel de ouvinte de vozes, desconexas. Quantas vezes, não observava ali do seu palco, caminhadas lentas, olhares agoniados, sobressaltados, num absoluto “salve-se quem puder.” Sofria sempre com as tempestades de água, que vira e mexe inundavam a sua fronte, causando uma agonizante erupção, mas mesmo assim depois de alguns safanões, voltava à ativa. Um rádio, um simples rádio, ali à mercê de gostos musicais diversos, tão sem importância, tão importante... Como se um rádio, pudesse acobertar pecados, redimir dívidas, saldar débitos... Sofreu enxovalhos, amuado se desintegrou, desistiu, pediu demissão. Abandonou “nosso mundo” destroçado, vil, sem se despedir. Agora contávamos apenas, com o som de ritmos perdidos de tempos áureos, quando eles podiam sonhar com grandes amores. Mas ainda num cálice de beatitude, agonizou, uma última missão salva vidas. 57 Mas quem podia adivinhar, que o seu canto preferido, era um canto também maluco, que nas suas entranhas pudesse ser também um deles. Que nos seus fios, tivesse todo o gene ali compartilhado. Quem poderia crer, que o rádio, também fosse um deles, ninguém tinha reparado seu mundo interior, como se ele não tivesse vida, como se fosse um mutante. Serviu apenas como servo, para depois ser esquecido no canto da pia. Mesmo calado, foi psicólogo, mesmo açoitado, transmitiu sua mensagem. O que no fundo mais desejava, era uma sociedade alternativa, onde todos fizessem o que bem queriam, sem regras, sem leis. E ainda ouvi um último refrão: “Se eu quero e você quer, tomar banho de chapéu, então vá, faça o que tu queres pois é tudo da lei...” E em seguida, pude escutar o cântico, que se tornou lenda, a metamorfose que causou. “Do que ter aquela opinião formada sobre tudo.” E no canto com a cabeça baixa, um dos nossos raros, estava debruçado sobre o rádio; quem o via de longe, pouco ligava. “Transformando a minha maluquez, misturada com a minha lucidez, vou ficar, ficar com certeza, maluco beleza, vou ficar...” E ele, com a cabeça baixa, como em desafeto, como se tivesse encontrado a chave para o seu enigma. 58 Erisipela versus Psicose Sou Deus, Sou o Diabo, Sou Santa, Sou Prostituta, Sou eu, Sou você, Quero tudo, Quero nada, Quero liberdade. Aquele paciente ao lado, separado por um biombo, restringido ao leito em mais um surto psiquiátrico. E eu ali ao lado com um curativo a ser realizado, naquela perna, naquela erisipela dolorida, purulenta de odor fétido. Ferida que corrói, que deixa marcas, que não deixava dúvida: Amputação, Amputação... Dor em diferentes estágios, diferente dor, mas sempre dor... Aprendizados, diferentes aprendizados, mas sempre aprendizados, que me fazem mudar velhos conceitos, a cada troca de plantão. Sem eles, minha vida seria como um barco a vela, sem porto, sem rumo. Tortura, amenizada pela morfina, que corria naquele organismo frágil, corrompido pela ferida. Psicotrópicos a acalmar aqueles gritos uivantes, ali ao lado. E ele gritando: Sou Santa, Sou Prostituta, Sou Deus, Sou o Diabo, Sou eu, Sou você, Quero tudo, Quero nada, 59 Quero liberdade... E eu ali apiedada pela dor daquele homem, daquela ferida. Que me levou a agradecer pelas minhas pernas, que há algum tempo atrás, me deixavam frustrada, por não serem tão bem torneadas, como as das modelos expostas nas páginas das revistas de moda. Enquanto aquele paciente, naquele surto, me fez refletir: Quem sou? Ou quem são meus vários eus? Morfina, que tranqüilizou a dor Psicotrópico, que acalmou a fúria. E eu indo para casa com as minhas pernas sadias, tive somente uma certeza: Sou Santa, Sou Prostituta, Sou Deus, Sou o Diabo, Sou eu, Sou você, Quero tudo, Quero nada, Quero liberdade Em tempo: Nesta época nosso mundo dos raros ainda não existia, a situação era no mínimo desastrosa... 60 Quem tem olhos para ver, que olhe! Um outdoor na Av. Paulista anuncia um grande evento. “Você, que ainda é capaz de se emocionar com as belas coisas da vida, este convite é para você. Venha ser o espectador da mais brilhante exposição dos últimos tempos, não perca este grande evento: Anita Gomes em tela, a mais talentosa artista plástica desde Pablo Picasso.” Enquanto isto, no centro de um grande salão, uma tela em moldura de ouro branco e prata envelhecida, expunha um peculiar quadro de cores vivas, que expressava muito bem o estado de espírito da artista, que naquele momento se preparava para a tão esperada noite. Vestia um longo, combinando com as cores da sua principal obra; em conjunto com este quadro vinham outros, com as mesmas nuances de cores e delineamentos, parodiando uma grande família. A autora da obra estava extremamente feliz, algo exacerbada vinha há muito tempo esperando aquele dia, havia pensado em tudo: croquetes de queijo, e até vinho nacional, do qual havia adulterado os rótulos. “Agora sim, tinha cara de vinho francês.” Tudo estava meticulosamente preparado, até num informe publicitário no jornal do bairro havia pensado, esperava mais ou menos 200 pessoas, incluindo meia dúzia de amigos e alguns conhecidos. 61 Desta vez tinha que dar certo, já que talento tinha de sobra, o que faltava mesmo era a maldita sorte, que há tanto tempo vinha perseguindo sem muito sucesso. “Só de pensar que tanta gente sem talento ganha rios de dinheiro, e eu aqui contando as migalhas de uma herança que há muito se desfez. Não, desta vez iria dar certo, afinal o quadro é de muita valia, com certeza, terá muitos admiradores. Quem sabe, no futuro não coloco em leilão?” Suas expectativas, com o passar das horas iam se desvanecendo, e ao seu lado duas garrafas de vinho vazias lhe faziam companhia. A maquiagem aos poucos ia se contrastando com a vermelhidão na face, provocada pelo vinho consumido sem rédeas. Pensamentos rápidos e loquazes, iam e vinham sem dar a menor chance para algum raciocínio mais lógico. Sua mente cada vez mais arbitrária, a confundia por completo. O evento marcado para as 18 horas, evidenciava um fracasso completo. O salão quase vazio, ecoava uma melodia triste, que contrastava com o ritmo alegre e festeiro, das pessoas ébrias e sem limites, que falavam alto num Rendez-vous. Sozinha, Anita Gomes, com uma expressão perplexa, olhava o vazio, pensava em uma maneira de acabar com tudo. 62 O alienista 63 Você não vai acreditar na minha história?! Claro que não, quem acredita em doido? Doido fala e ninguém escuta, ou finge que escuta!! Na verdade, internaram a pessoa errada, quem deveria estar aqui é a minha mulher! Ela não anda muito certa da cabeça, foge de mim, como se eu fosse um lobo mau, na verdade não fazemos amor há seis meses, como se eu não fosse seu marido. Eu aqui todo cheio de desejo por ela, não quero outra mulher de jeito nenhum, quero a minha feinha. Te pergunto: pode uma mulher de 42 anos, não ter vontade nem para dar um abraço? O pior de tudo é que eu gosto dela, não quero trair, não tenho condições de ter outra mulher fora de casa e se ela ficar grávida, como vou fazer para criar mais um filho? Ganho pouco, trabalho olhando carros, não chega nem a um salário mínimo, só que tem uma coisa, não guardo como muitos dizem, só olho, tem muita diferença, só olho!! Deixo isto bem claro, se alguém tentar roubar, vou fazer o que? Minha função é olhar, se me ameaçarem, até com uma faca de cozinha, saio correndo. Acha que vou lutar contra a tecnologia? Não sou louco! Outro dia, não faz muito tempo, chegou um cara de terno e gravata, todo pomposo, pagou até adiantado. Fiquei feliz, estava morrendo de sono, acordei na hora quando vi aquela nota de 5 reais. Pensei: “Caramba, hoje é o meu dia de sorte!” 64 Mas a sorte só durou por alguns instantes, foram precisos somente alguns minutos, um vento, um piscar de olhos, um empurrão e PUM o carrão sumiu... Foi coisa do DEMO, não demorou dois minutos para eu pegar minha sacola de plástico e vazar, sair a milhão, correr, fugir... Neste desespero peguei até ônibus errado, e lá se foi quase todo o dinheiro que ganhei. Vou fazer o que? O carro sumiu, só faltava eu ter que pagar, não sou louco! Vocês prometem cuidar da minha mulher? Ela está precisando de ajuda, coitada, minha mulher que deveria estar aqui, perdeu todo desejo por homem. Já fiquei internado seis vezes, as seis vezes foi por causa dela, ela inventa um monte de coisa e pronto me internam... Ontem à noite, pensei: “Hoje ela não escapa, tomei um banho e fiquei na cama esperando, quando ela chegou, comecei a lhe fazer carinhos com todo meu amor. Imediatamente começou a me dar chutes, igual uma égua doida, solta no pasto, saiu correndo pela casa, gritando que eu estava louco. Meu filho veio desesperado, para ver o que estava acontecendo, no outro dia ela me enganou e me trouxe para cá dizendo que ia se internar junto comigo, no fim ela foi embora e eu fiquei. Mas a doida é a minha mulher. 65 À flor da pele “Segura o tchan, amarra o tchan...” “O povo de Deus no deserto andava, mas na sua frente alguém caminhava...” “Sexo, eu quero sexo...” “Glória, glória aleluia, glória, glória aleluia...” Quem mandou ele me trocar pela outra, depois que fiquei gorda e maluquete, ele quis me jogar fora, mas ele vai ter que me agüentar, vou infernizar a vida deles prá sempre, vou sair daqui e vou fazer tudo de novo, vou subir de novo no telhado dele, para todo mundo ver o que ele me fez, quem não viu, vai ver, desta vez vou dar sorte e vou cair em cima da cama dele, da outra vez caí na cozinha, agora vou estudar direitinho para cair em cima dos dois na cama, antes vou dar um show no telhado de minissaia, tá pensando o que? Que é só usar e depois jogar fora, como se eu fosse uma máquina de lavar quebrada? Nada disso! Me fala porque eu não posso colocar minha minissaia aqui, me fala, existe alguma lei? É a mesma que eu usei no forró, escondida da minha mãe, se fosse depender da minha mãe eu iria viver dentro da igreja, sem passar um batom na boca, para ela tudo é coisa do inimigo; capeta sou eu, vocês não me conhecem! Vamos dançar, coloca o CD do é o tchan, põe a garrafa de água no chão, afasta a mesa. “Vai mexendo na boquinha da garrafa, é na boquinha da garrafa...” Aí, Cristiano quer namorar comigo, vamos namorar? Mas para casar, vou te contar um segredo eu dei 66 um beijo na boca do Cristiano, nossa estou com a maior vontade de transar, meu problema é tesão, estou morrendo de tesão. Doutora sabe qual é o meu problema? Tesão falta de sexo, faz três anos que não transo, estou cansada de me masturbar, quero um homem, mulher não, eu gosto de homem, estou com tesão uma vontade enorme de transar, beijar na boca. Claudia, não tem um amigo para me apresentar, mas que seja macho homem. Aí tiozinho, o que você faz aqui no hospital, qual a sua profissão, vamos sair para tomar um bombeirinho? Quer namorar comigo? Até que você é bonitinho. Estou apaixonada pelo funcionário da tarde ele me dá tanta atenção, é tão carinhoso, estou mesmo apaixonada, agora é amor verdadeiro. Sou evangélica desviada, mas tenho Deus no meu coração, vou matar aqueles dois, malditos, aposto que estão se matando de rir da minha cara; quando me viram cair do telhado, quase em cima da pia, levaram um susto, mas depois começaram a rir, chamaram o resgate, e com a autorização da minha mãe, me trouxeram à força para cá. Olha, entrega esta revista para ele, e pergunta: se eu ficar com o corpo desta mulher, ele volta para mim? Nossa que tristeza me deu agora, maior vontade de chorar. É proibido chorar aqui? Não acredito que fiz tudo isto, que falei tudo isto? Não quero nunca mais ir embora daqui! Ai que vergonha! 67 O químico A química está em todos os lugares, em todos os momentos. No amor, na dor, no sexo, e até na esquizofrenia, minha doença... Meu nome há muito tempo deixou de ser Carlos, para se tornar somente Esquizo. Agora me chamo: “Esquizo Carlos Silva”, como muitos por aí. “Sou louco, mas não sou doido – tem muita diferença!” O amor é pura química; entre a química e a mulher, prefiro os dois. A mulher é maravilhosa, sensível. Maldito o homem, que agride uma mulher. A química da mulher é gostosa demais. Quando eu sair daqui, a primeira coisa que vou fazer, é matar aquele homem; vou chegar de mansinho e, dizendo palavras doces, amigas. – Olá, Senhor, posso tirar uma foto? – Aí saco a arma e Pum!! Quem mandou ele fazer aquilo? Vou matar, se vou! – Onde você vai comprar a arma? – Em qualquer lugar! É a coisa mais fácil do mundo... (Neste dia o plebiscito, que deu a vitória para o NÃO ao desarmamento, estava sendo realizado no Brasil.) 68 “A mãe de santo dá tudo para os seus filhos: doces, balas, chicletes, e o filho não agradece, vê se pode uma coisa destas!” Sou apaixonado pela química feminina, sei tudo sobre a química das mulheres, principalmente a sua fórmula principal: XAVASCAÍNA. Esta é a química do bem, a fórmula do amor; só de pensar que tem gente usando outro tipo de droga! Quem tem Xavascaína, não precisa do êxtase. Outro dia toquei fogo em um botijão de gás, no quintal da minha casa, para ter certeza, do que já tinha certeza... Pum! Foi como pensei! Formou-se um vulcão; quem disse que não temos vulcões no Brasil? “A mãe de santo dá tudo para os seus filhos: doces, balas, chicletes, e o filho não agradece, vê se pode uma coisa destas!” Tenho uma receita maravilhosa de sabão, só que neste caso, é preparado com purê de batata; é muito melhor, porque conserva mais as roupas, não tem cheiro e é muito mais econômico. São necessários 10 quilos de batatas, silicato de sódio, uréia, soda cáustica e corante cor de laranja. Misture bem a soda cáustica com o corante, deixe quarenta dias e quarenta noites repousando num tambor fechado, até formar uma massa homogênea azeda, depois, no terceiro dia, coloque a parafina. Ficou pronto o melhor sabão da terra! “A mãe de santo dá tudo para os seus filhos: doces, balas, chicletes, e o filho não agradece, vê se pode uma coisa destas!” Quer saber um remédio melhor que o Viagra? 69 É um beijo afrodisíaco, que levanta até tubarão morto. Quem vai duvidar da masculinidade de um touro? Não quero nem que ele me prove nada, se você quiser, a preferência é sua; eu prefiro perguntar para a mulher dele, a senhora dona Vaca. Duvido até que elas troquem o touro por um homem! Bom, é só pegar o leite de vaca virgem, suco de limão virgem, vinagre virgem, fel de galinha virgem, sal de cozinha virgem, maizena (esta não precisa ser virgem, não, pode ser já usada...) Misture tudo num tacho, deixando dez dias e dez noites, até formar uma massa, no final do ciclo, coloque tudo num forno a lenha, mas tem que ser com pau Brasil, e pronto! Depois de algumas horas estará nascendo o maior afrodisíaco em forma de queijo dos últimos tempos. Depois é só comer, minutos antes da fome. Que Einstein, que nada! 70 A tristeza profunda do eu Então tudo se desfez, meu mundo corre por um lago azul, recheado de nuvens negras, que a cada instante me atemorizam mais, ameaçando– me como nos meus infelizes tempos de criança. A solução se fez tardia, os remédios só apareceram na minha vida, quando tinha dezessete anos de idade, era uma garota extremamente magra, alinhada para a genética da minha família, onde todos eram muito gordos e pouco estéticos, com exceção da minha mãe, que possuía uma beleza tão singular que causava comoção nos seus mais variados interlocutores, provocando as mais temíveis desavenças. Linda e jovem morreu aos trinta nos de idade, suicidando-se num pequeno riacho, imergiu como uma linda sereia. Das trevas os gritos dos invejosos comemoravam a vitória, conseguiram afastar da humanidade, uma beleza rara, absoluta e contumaz. Hoje sei que a minha mãe era uma depressiva crônica como eu, talvez se tivesse descoberto os remédios, o suicídio não tivesse acontecido. Meu primeiro surto aconteceu quando eu tinha cinco anos de idade; foi quando fiquei trancada no porão da fazenda onde morava com os meus pais. Fiquei presa dois dias, lembro do meu desespero, gritava tanto, berros ensurdecedores, quanto mais gritava, mais me enfraquecia, a noite chegava e uma escuridão cada vez mais atemorizante tomava conta do ambiente. De tanto terror, caí desmaiada, por quanto tempo não sei, fiquei imóvel, bem quietinha, sem dar um 71 suspiro profundo, pensava que assim, pudesse afastar os ratos e outros bichos que a minha mente produzia a cada minuto. Depois de tudo passado, caí numa depressão mortal, nunca mais consegui dormir no escuro, naquele momento uma grande tristeza se apoderou para sempre de mim. Nunca mais seria feliz por completo, medrosa e tímida, pouco falava, vivi como num conto de fadas com as minhas bonecas e os meus cachorros, somente no meu quarto me sentia segura; aquele subterrâneo para sempre ficará registrado na minha memória. Cravei a solidão na minha alma, hoje meu único companheiro é um coelhinho, com ele divido minha existência. Quando comecei a sentir de novo um pouco mais de confiança nas pessoas, outro fato horrendo aconteceu na minha vida: um empregado da fazenda, um homem abjeto e sem escrúpulos, me arrastou para um matagal, e acabou com o resto dos meus sonhos, com o resto de esperança que tinha acumulado. Me usou como um dejeto, depois me jogou semimorta, no meio do mato, acabrunhada me arrastei para casa, com a alma destruída. Vivi um terror mental, o físico não acompanhava, cada vez mais me afundava na vida miserável que o destino me intitulava. O tempo cicatriza as chagas abertas, e o que resta são lembranças tênues de um passado, mas quando são removidas provocam dor e solavancos. Os traumas sintetizam a vida pregressa, autointitulando sua personalidade, e a sua maneira de encarar as dificuldades. 72 Vivi num cárcere mental, que se estruturou ainda mais na minha adolescência, quando a memória é mais prodigiosa, e nos faz recordar com muito mais intensidade os acontecimentos da vida. A beleza juvenil desabrochava em mim, era como um lindo bibelô, admirado e compadecido por todos que me olhavam, como uma peça cara, fora do seu alcance. Na flor das minhas dezessete primaveras, o destino me arrancou pela terceira vez dos meus lindos sonhos, me jogando nas mãos de três bárbaros, que violentaram o meu corpo, fazendo de tudo, que não se pode fazer a uma mulher, da maneira mais brutal e animalesca que se tem notícias, me empurrando cada vez mais na lama da minha existência. Nesta época, uma grande apatia tomou conta de mim, o riso desapareceu dos meus lábios, e passei a sentir uma tristeza profunda. Já estava morta, vegetativa e abstrata. Comecei a tomar os remédios nesta época. Com o passar do tempo um novo ânimo se instalava em mim, quando num certo dia acordei sobressaltada, com um leve contentamento, era como se uma nova brisa estivesse soprando nos meus pulmões. Consegui cantarolar, me enfeitar e fazer novos planos. Quando já me sentia refeita, achei que podia conseguir sem os remédios, fui largando aos poucos como em um desmame de uma mãe irresponsável. Tive mais um surto, só que desta vez de uma forma mais aguda, perdi 15 quilos, em três semanas, não conseguia reunir forças para tomar banho, ou para cortar um pedaço de pão. 73 Largada, fui cedendo à vontade de morrer, e o mesmo ímpeto da minha mãe tomou conta da minha mente, tentei me suicidar três vezes, mas de novo o destino foi contrário aos meus planos. Como louca, vaguei na solidão da minha existência, no inferno dos meus dias. Sem condições de me levantar do abismo em que me afundei, senti que não poderia vencer sozinha, por isto estou aqui. Depois de tudo que passei, sei que não posso ficar sem os meus remédios, eles são os alicerces da minha sobrevida, como um diabético que precisa da sua insulina. 74 Fome de tristeza “A depressão é como uma ferrugem, que aos poucos, vai minando as estruturas; na verdade ainda é um grande enigma. Mestre na infusão das mentes mais e menos astutas, antes se acreditava, que a depressão só atingia as pessoas de mais status; com o advento das pesquisas a respeito deste tema, descobriu-se que a depressão faz vitimas em qualquer classe social. Ela é capaz de desencadear doenças psicossomáticas, paralisando ou desestabilizando órgãos vitais do nosso corpo.” - De repente uma tristeza profunda sem explicação, tomou conta do meu espírito, não tinha razão nenhuma para aquilo, estava trabalhando, estudando e também muitos garotos queriam namorar comigo; sem motivos comecei a sentir um vazio na minha vida, que nada preenchia, nada, nem paqueras, nem baladas, nada... Só queria ficar no meu quarto, sem receber ninguém, incontida sem perspectivas. Deixei-me levar pelo tempo, não queria mais me alimentar, a comida não tinha sabor, o que antes comia com prazer, já não me apetecia mais. Meu corpo passou a somatizar tudo que eu estava sentindo, meu coração disparava, meus pés congelavam, minha mão tremia desesperadamente, era como se estivessem me aplicando choqueoterapia, tinha medo do mundo, me via sendo observada, analisada por todos à minha volta. 75 A vergonha daquela situação me levou a não receber mais os amigos, não queria mais ver ninguém, era como se fosse minha culpa, como se sair daquela situação dependesse exclusivamente de mim, da minha vontade, mas era uma força, que eu não tinha, que não me pertencia, era como se o meu corpo não me pertencesse. Larguei o colégio, abandonei meu emprego, meu quarto era meu único refúgio, só lá me sentia protegida de todos aqueles olhares inquisidores. As lágrimas eram meu bálsamo, chorava o tempo todo, depois parava e ficava pensando em coisas, que para mim eram reais, numa esfera de tristeza, que só eu compreendia. “Geralmente os depressivos são cansativos, as pessoas em geral não têm paciência, talvez por não ser um problema palpável como o diabetes, ou a pressão alta. É uma doença somatória, com vários motivos, mas cujas conseqüências podem ser mais funestas “. Nosso mundo nunca havia recebido uma vítima deste mal, até ela chegar de cadeira de rodas, acompanhada pela mãe, uma menina de 24 anos, ainda transmitidos no seu olhar infantil. Com uma história grave de depressão: há um mês, Ana havia perdido 15kg, com 1m63 de altura, agora contava com 43 kg, era o raquitismo assombrando os mais incautos. Sentia dor nos rins, queda acentuada do cabelo, cobria de fios o seu travesseiro todos os dias, dores de cabeça, menstruação irregular, todos estes sintomas desencadeados a trouxeram para nós. 76 Sem brilho, emudecida, uma alegoria do que era. Da cama para o toalete, era assim o seu dia a dia, no nosso mundo, por exatas duas semanas. Quando a terceira semana se iniciou, ela começou a aparecer, cabisbaixa, sem brio, quase cadavérica, respostas monossilábicas, poucas perguntas, e um medo atroz dos outros, permanecendo o mais distante possível. Como se fossem capazes de quebrar o seu corpo frágil, a qualquer instante. 77 Malandroque é malandro não chora Nosso mundo o recebeu em estado de alerta, e quem nunca conversou com um malandro da velha guarda, abraçou a oportunidade. E sem querer caiu na sua ginga, e aprendeu um pouco mais sobre as histórias deste mundaréu. Sujo, uma barba emaranhada cobria sua tez negra, olhar destemido,sempre procurando alguma coisa. Os restos de uma roupa encardida cobriam seu corpo, que há muito não sentia o “glup, glup” da senhora água. Graduado na faculdade das ruas, oriundo dos confins da magistratura da malandragem. “Malandro é malandro, Mané é Mané. Malandro é um cara que sabe das coisas, Mané é um cara que não sabe o que quer...” Orgulhoso pela sua esperteza, era como um gato negro, sempre tentando abocanhar o primeiro pássaro indefeso. “E aí senhora, tem jeito de me arrumar um gole de café?” “É um malandro na praça outra vez, caminhando nas pontas dos pés.” Com oito anos de idade, já conhecia o viés da marginalidade, porão da história, o declínio foi provocado pela doença prematura. Amparado no esgoto do mundo, refugiado no malabarismo das incertezas. 78 Vida sofrida sem carinho, sem colo de mãe, sem o aconchego de um berço quente no entardecer da primavera. “Vinde a mim as criancinhas, pois delas será o reino dos céus.” Nos cafundós do Brasil, empurrava um carrinho, cheio de verduras: “Olha a couve, escarola, alface fresquinho, vai aí dona!” E ficou para trás a escola, a turma do colégio, a cultura que passou tão distante como as margens do Nilo. Perto mesmo é a encosta do rio poluído, que passa logo atrás do quintal da sua casa. Anestesiado pela cachaça, que se fez companheira, e pelo ópio sedutor. Nestes momentos tudo passa a ficar colorido. O desamparo menos dolorido, os vultos surgem para fazer companhia na dura solidão, que desespera sua mente em desalinho. O desequilíbrio mental instalado no gene, a falta de entendimento de todo. A sociedade, a família cada vez mais o aniquila, jogando-o para a margem. ESQUIZOFRENIA, PSICOPATIA, TRANSTORNO BIPOLAR, doenças desconhecidas, que permanecem no imaginário popular, subentendidas como loucura, preguiça, vagabundagem. “Corri com um martelo na mão, escondido da minha avó. Daí levei o menino para dentro do matagal, e desferi cinco marteladas na cabeça dele, que imóvel caiu no chão ensangüentado, sem entender absolutamente nada. 79 Quando cheguei em casa minha avó, viu minhas mãos sujas de sangue, e me perguntou assustada de onde vinha o sangue. Se me arrependo? É claro! Na hora fiquei fora de mim, não sabia o que estava fazendo, ainda bem que o garoto não morreu.” Largado na vida, aprisionado pelo vício. O caminho mais curto e contumaz de um doente mental, é a mendicância, o vício, a marginalidade. O desamparo da família, a incompreensão da sociedade. Mas lá no nosso mundo, a violência não tem morada. Malandro, que se integrou, se juntou, se uniu, se reformulou. O desmazelo perdeu lugar, o equilíbrio abriu caminho para a compreensão da doença, a aceitação das medicações. Vaidade recuperada: “Você me acha bonito.” Mas o malandro, acabou dando uma rasteira em todos nós: assaltou o mundo dos raros, e conquistou o que sempre lhe negaram: Carinho, Compreensão, Amizade... E num certo dia o malandro chorou emocionado. “Nunca mais vou esquecer este lugar, nunca mais vou esquecer vocês.” 80 Vidas flageladas! Sentado na cama de casal, cabeça baixa, olhar cismeiro, perdido num ponto distante, que só ele conseguia enxergar. Quem o via de longe não imaginava, não poderia crer, era algo horrendo, mas para ele extremamente justificável... Tanto que tomou o cuidado de ele mesmo chamar a polícia. Antes disto ainda se preocupou em arrumar as malas. Tomou o cuidado de antes tomar banho e fazer a barba, a roupa: um terno e gravata novo, que havia comprado há pouco tempo. Colocou os sapatos lentamente, o pé direito já havia calçado, iniciou o esquerdo numa espécie de ritual. Primeiro lavava os pés inúmeras vezes, até ter a certeza que estavam bem limpos, depois passava creme hidratante, por entre os dedos proporcionadamente, em seguida era a vez das meias; enrolava por completo até formar uma espécie de concha do mar, esticava até ficar sem nenhuma dobra, e por último colocava os sapatos, o ritual era mais ou menos parecido, com a diferença que após colocar, batia três vezes o pé no chão, para comprovar o que seus olhos já viam... Na ponta da escada, uma foto em tamanho 10x24, ilustrava a cena do casamento que já durava três anos. Ele é um reconhecido engenheiro diplomado internacionalmente, ela deixou a universidade de psicologia no segundo semestre, assim como ele preferiu... 81 Um amor que se iniciou nos primórdios da juventude, mas o destino retardou um pouco esta união; preferiu que ele fosse para além mar, indo morar na Europa, enquanto ela ficou no Brasil, trabalhando para pagar a tão sonhada faculdade, já que a vida não lhe proporcionou recursos financeiros como osdele. Mas enquanto ele esteve fora, continuaram se correspondendo, algumas vezes por cartas, outras por telefone. Não passavam mais de duas semanas sem conversarem, nestes quatro anos, que ele esteve fora. Enfim o destino se fez, o tão sonhado retorno aconteceu, e com ele os sonhos dourados de um casamento, e o que era a somatória de momentos felizes, se deflagrou! A tragédia foi eminente, ninguém esperava! As famílias nunca haviam percebido nada, sempre pareceram muito felizes. Ela escondia tudo, todos os arroubos dele, toda fúria, toda violência de que era vítima. Sempre o perdoava, afinal o amava mais que tudo, mais que ela... Quando D. Mara saiu de casa, no extremo da cidade, já deixou o almoço pronto para seus quatro filhos menores, a mais velha ainda florescia nas treze primaveras, era ela quem tomava conta de tudo quando D. Mara estava trabalhando. Naquele dia, tinha voltado duas vezes para casa, antes de sair definitivamente, como se pressentisse alguma coisa. Algo a segurava, um mau pressentimento a fazia adiar sua saída; quando suas pernas doíam, coisa boa não aconteceria, mas se dando conta de que já estava atrasada, saiu definitivamente... 82 Trabalhava como empregada doméstica há dois anos, desde que perdeu o emprego em uma fábrica de confecções; a empresa havia pedido falência, e seus trezentos funcionários acabaram perdendo todos os direitos, D. Mara ficou desesperada com quatro filhos para sustentar, mas agradecia sempre a Deus por ter aparecido aquele emprego, tudo bem que o seu patrão era meio estranho. “Batia na mulher com tanta violência, sem motivo, depois pedia desculpas, alegando que foram vozes que pediram, que não era ele, chorava feito uma criança, se trancava no quarto, dias a fio, sem deixar ninguém entrar, quebrava tudo, num desespero animal. Sabia que ele passava no psiquiatra, e tomava um monte de remédios, mas vez ou outra encontrava comprimidos boiando no vaso sanitário, ela, D. Vera, escondia tudo da família, tinha medo que eles o internassem...” De longe, já notou algo errado na casa, as janelas ainda estavam todas fechadas, D.Vera sempre as abria, dizia que gostava de ouvir o canto dos pássaros, e ver o sol raiar na sua janela. Quando abriu a porta da cozinha, estranhou ainda mais, a cozinha toda arrumada, não dava mostra de presença humana na casa, D.Vera gostava ela própria de fazer o café. Foi entrando devagarzinho pela casa, até que... Ao lado da cama, morta, ensangüentada, com os olhos ainda abertos, estava D. Vera; olhou um pouco mais e viu o Dr. Gustavo ao lado do corpo, com as malas prontas e a faca na mão. Desesperada, saiu correndo, quando a polícia se aproximou. 83 Pais e filhos – Pai, jura, jura, pelo amor de Deus, jura – Tá filho eu vou tentar – Tentar não! – Promete? – Você tem que jurar! – Eu vou tentar. – Já disse que tentar eu não aceito, não aceito esta palavra, quero que você prometa, prometa prometa... – Calma, filho, abaixa esta mão! Não aponta este dedo para mim! – Então promete! Você me conhece quando eu fico nervoso, sabe do que sou capaz, não brinque comigo! Vamos colocar no papel, espera... Tem uma folha aí? Vai escreve: Eu prometo, que vou levar meu filho para jantar nos jardins, comprarei roupas novas na Oscar Freire, depositarei a pensão normalmente sem retirar nem um centavo, vai escreve, isto... – Filho, você sabe que não temos dinheiro, você queimou todas as suas roupas! – Claro que temos, eu vi o extrato bancário da vovó! – Não acredito, que você fez isto! – Fiz, ela tem 10 mil reais no banco! Tem obrigação de me ajudar, sou o neto mais velho. – Falei para todo mundo que você é rico. – Nós somos ricos não somos papai? 84 – Filho, pára com isto, você sabe que não somos ricos! – Claro, que somos!! – Somos, não somos? Diga! Fala! – Não somos, filho, você sabe disto! – Sai daqui, tenho vergonha de você! – Vai, vai embora! – Te odeio! De repente um soco... funcionários a postos, restringindo, separando. – Corre, leva ele para o quarto! O pai num canto desesperado, com o rosto sangrando. – Calma, cuidado com ele, não sabe o que está fazendo. – Sai daqui sua negra, não coloque a mão em mim, tira esta mão suja de cima de mim! – Pai, você promete, promete? E na porta da enfermaria, o pai ainda tem forças para soletrar: – Eu te perdôo meu filho! 85 “Existe algo errado, estão querendo me matar, por favor me ajudem!” Ele morou dez anos no Japão, trabalhando como um suicida, em uma fábrica no setor de montagem, onde eram produzidas máquinas fotográficas digitais, o nicho do momento. Se tinha uma? Até tinha, mas a verdade é que as doze horas diárias de trabalho, o impediam de usá–la. Seus momentos de lazer eram escassos, para criar um álbum de fotografias, precisaria ter um sorriso legítimo na face, e naquelas circunstâncias, isto seria um feito quase cinematográfico. Poderia isto sim, tirar fotos com pose de operário na linha de montagem, como centenas de imigrantes robotizados, era assim mesmo que se sentia: um robô. Era somente mais um naquele cenário multifeito, um homem-robô, destes que só o Japão é capaz de produzir. Mais um imigrante brasileiro, que saiu do Brasil disposto a dar o sangue para vencer na vida, mais um nas estatísticas, fato que não queria dizer muita coisa. Ganhava o equivalente a 20 dólares por hora, claro que fora as horas extras, que ele não perdia nunca; era o número um, afinal estava lá para ganhar dinheiro, esta sempre foi sua meta. Com este salário já comprara casa, carro, e as mulheres não faltavam. Este era o seu vício, sua perdição, talvez fosse uma maneira que encontrou para driblar seu vazio interior, sentimento que descobriu 86 um pouco tarde demais; o dinheiro não o preenchia, pelo contrário, não tinha tempo para aproveitar os prazeres, que o dinheiro poderia lhe proporcionar. O vício de ganhar dinheiro já estava preconizado. Era um belo rapaz, constituído em 1m e 90 de altura, porte atlético, figura distinta, tinha no seu conjunto a arte das belas palavras, oratória bem estruturada. Mas o destino lhe pregou uma peça, levou uma rasteira da vida, caiu, se machucou, tortura mental. Foi preso por causa de um acidente de trânsito sem vítimas, ficou três longos dias sofrendo torturas psicológicas, como um terrorista. Sem dinheiro para a fiança seu desespero foi ainda maior, contou com o resto do amor de uma ex– namorada, que veio do Brasil, somente para este fim: libertá-lo. De volta ao Brasil, já estava judiado, triste, macambúzio; as noites que passou na cadeia, não saíam da sua mente perturbada. A vida é um grande “Big Brother” – somos vistos em todos os lugares: bancos, elevadores, lojas; nos fotografam sem que percebemos, sem que queiramos, nos colocam nos jornais, nas revistas, são milhares de câmeras instaladas em todos os lugares, uma grande paranóia. Mas na sua volta para casa, algo havia mudado – porque todos me olham deste jeito? Parece que querem me roubar, me seqüestrar... Em cada loja que entro, o telefone toca, é sinal de mau agouro, tão me perseguindo, serão eles? Mas quem, quem poderia? Grampearam nosso telefone, eu tenho certeza; louco eu não estou. 87 Olha só aquele carro parado na esquina. Vou ficar trancado dentro de casa, assim não corro o risco de ser assassinado. Será que é a polícia, como vou poder denunciar se for a polícia? Tenho certeza que mandaram investigadores do Japão, mas eu não fiz nada, meu Deus, estou no meu país, eles não têm este direito, miseráveis! E esta mulher sentada aqui do lado, está fingindo que não me olha, vou ficar louco! Acho que vou me trancar em casa, não, é melhor fazer um boletim de ocorrência, antes que eles consigam. – Como, não tenho prova? Será que as evidências não comprovam? – Seu delegado é verdade, não estou mentindo: cheguei na loja e o telefone tocou, é muita coincidência. Meu cachorro amanheceu morto, tenho certeza que o envenenaram, queriam a mim, eles queriam me matar. Vou escrever no meu muro uma mensagem, assim se acontecer alguma coisa, todos ficarão sabendo. “Por favor me ajudem!” As paredes têm ouvidos, fala baixo, eles podem nos escutar, por favor, vamos de novo à delegacia. Deu entrada no nosso mundo acompanhado por um policial militar. 88 Estupefação: pasmo, assombro, espanto... Estupefação, é, acho que esta é a palavra, que mais condiz, que mais ilustra, que mais demonstra... Nosso mundo tomou ares de uma penitenciária, vigilância rigorosa, risco de fuga, teatralização. Acabrunhado e desconfiado, fazia dois dias que ele havia chegado, fazia também dois dias, que não saía do quarto. Um mistério envolvia aquele homem, até que ponto tudo seria verdade? Quem era a vítima, quem era o algoz? Por mais que tentássemos um diálogo, um Boa Noite, o silêncio dominava a sua resposta. Sua alimentação era deixada na mesa de cabeceira, nada, nem sequer um olhar de agradecimento; depois que saíamos, o prato ficava vazio em menos de cinco minutos. Para muitos, um cachorro é como um integrante da família, mas para outros, um inimigo. Um velho cão, que quase não latia, mas que amava demais, se dedicava demais, endeusava demais, mas tão somente um único membro da família, e justamente aquele que por ele era o mais odiado: seu enteado. Um meninote de quinze anos de idade, visceral, ativo. Morria de ciúmes. Principalmente quando ele chegava perto dela, sua menininha, sua mente produzia os mais complexos sentimentos. 89 “Eu já estava cansado de sustentar a gula deles, dele principalmente. Aquele cachorro era mais amigo dele do que meu, mesmo sendo eu que o sustentava, obedecia mais a ele que a mim. Então tomei uma decisão: peguei um pedaço de pau e desferi incontáveis golpes no seu crânio, mateio na hora. Claro que não me arrependi, fiz o que era certo, quem paga as contas nesta casa sou eu, tenho todo direito de fazer o que quero, era muita bajulação em cima de um cachorro. Foi melhor assim, tanto que Deus, nos deu uma linda cadelinha, tão carinhosa. A primeira coisa que fiz foi sua castração, para macho nenhum chegar perto. Amei aquela vira-lata! Só comia ração de primeira, tudo do bom e do melhor, sentia que ela também me amava, tínhamos muita afinidade, assistia futebol em cima dos meus pés, torcia junto comigo, diferente daquele outro, que demonstrava com o seu olhar, que me odiava. Mas a minha linda menina, ficou enferma, uma doença sem cura, seu fim era inevitável, antes que ela começasse a sofrer, comprei veneno misturei num pedaço de carne, o impacto foi na mesma hora, então fiz uma grande cova e enterrei ela ainda respirando, foi melhor para ela, tenho certeza que está no céu me agradecendo.” Estava casada com ele há 17 anos, nunca sequer ousou discordar de alguma coisa que ele fizesse, nunca argumentava. Seu esposo, era incontido, irritadiço, mas tinha uma coisa de bom, era muito trabalhador, não deixava faltar nada na casa, e ainda sustentava dois filhos que não eram dele. 90 Por causa destas coisas, agüentava ele há tanto tempo; mas eram tantas esquisitices, tanta maldade. Era na igreja, que ela extravasava sua revolta. Pedia sempre a Deus, que a acalmasse nos piores momentos, não tinha outra saída, nunca trabalhou. A única coisa que sabia fazer, era limpar a casa e fazer comida, mais nada! Percebia a predileção dele pela caçula de nove anos; achava meio estranho, ele querer dar banho, oferecer comida na boca, e outras coisas mais... O pai do menino era o seu inimigo, seu ódio, tinha um ciúme doentio da esposa, e o menino era a representação deste passado. Sua linda menininha vinha aos poucos desabrochando, ganhando lindas curvas, seios que já pediam sutiã, boca acompanhando toda a malícia da juventude. Era como uma linda flor, cuidaria dela com todo zelo, não seria qualquer um que colocaria as mãos. Chegou no nosso mundo com os olhos roxos, e saiu direto para um manicômio judiciário... 91 Raul Seixas “Quando eu te escolhi para morar dentro de mim, eu quis ter teu corpo, tua alma, tudo enfim, mas compreendi que além de dois existem mais ...” Ele é verdadeiramente um belo homem, além de possuir qualidades que a maioria das mulheres adoram: por ex. fidelidade. Ainda é daqueles que tatuam o nome da mulher amada no corpo, envolto num enorme coração. Fiel como os discípulos do nazareno, manso como um boi domado, vive sempre com um arco e flecha em punho, pronto para apontar para qualquer homem, que tentar se aproximar da sua presa. Sai a hipnotizar a alma feminina, com galanteios decorados, enrijecendo os músculos da face ao exaltar a importância da fidelidade num relacionamento. Enquanto isto as amigas da irmã o escutam em estado de excitação pública. “Paulo, o irmão da Glorinha, é um exemplo de homem, diferente do galinha do meu namorado, que não pode ver um braço de mulher; é bonito e fiel, qualidades raras nas pastagens de hoje em dia.” Entoava constantemente em voz alta, seu trocadilho preferido: “felicidade/ fidelidade.” Assomando a isto sua frase preferida. “Traição nunca! É o pior dos pecados; o desmantelamento de qualquer relacionamento, não traio e muito menos perdôo uma traição; nestes assuntos sou parecido com o meu pai.” 92 E completava: “Trabalhar fora é coisa para homem, minha esposa irá ficar em casa cuidando dos nossos filhos.” Andava à procura de uma esposa, nada de brincadeiras, queria coisa séria, compromisso, aliança na mão esquerda. Tinha elaborado um caderno de perguntas e respostas, com o intuito de testar as variadas pretendentes, que escolhia na missa das oito, mas raras eram as vezes em que ouvia o que gostaria. Nestas ocasiões saía a blasfemar, principalmente as mães daquelas que julgava as párias do sexo feminino. Iniciava sempre com um tiro certeiro: “você teria coragem de trair seu marido? Acredita em amor eterno e na fidelidade?” Depois de muito procurar, sua idealização de mulher se personificou numa jovem de 28 anos, nem bonita, nem feia, nem alta, nem baixa. Mas íntegra, religiosa de uma família tradicional do interior, com bons costumes, que eram apregoados pelo padre da cidade. Seus pecados eram confessados semanalmente, e o santo padre, para não parecer desinteressado, a punia sempre com 10 Ave Marias, era sua cota diária por confissão. A velha pergunta lhe foi feita, e a resposta veio de forma determinante para sua escolha. “Trair nunca, jamais! É um dos piores pecados!” Paulo dava pulos imaginários e ao seu redor cantos de louvor adocicavam seus ouvidos, que há muito tempo sonhavam com uma resposta daquelas. 93 O casamento era a continuação da sua vida em família. preservava os costumes tradicionais apregoados pelo seu pai, um velho imigrante nordestino. Mas o que eram planos, virou sonhos eróticos no segundo ano de casamento. Jussara vinha aos poucos revelando alguns desejos mais ardentes. Paulo se mostrava surpreso e inseguro. “Transar em lugares públicos, sexo a três, lesbianismo.” Incrédulo, tentava argumentar: E o respeito onde fica? Nossos filhos, e se alguém ficar sabendo? Enlouqueceu mulher? O que está te faltando? Lembrou das promessas de fidelidade, amor eterno, a palavra amarga traição, mas tudo era em vão, Jussara estava decidida. “Isto não significa traição, sempre serei sua de corpo e alma.” Paulo ficava cada vez mais confuso, como ela podia pensar nestas coisas? “Transar com outro homem, outra mulher, não isto nunca!” A primavera chegou e com ela as flores do campo, que trouxeram calma e tranqüilidade na vida do casal. Quem os observava de longe os apontava como um casal perfeito, Paulo acreditava que Jussara havia esquecido aqueles absurdos, e de novo voltava a ser sua doce esposa. Mas notava, que algo tinha mudado no seu comportamento, Jussara agora vivia inventando posições novas, sempre distraída, perfumes importados, novo cheiro, novo gosto. Não que não gostasse, pelo contrário estava adorando. Passou a contar as horas para chegar em casa, 94 sabia, que a sua Jussara o estava esperando afoita e mais gostosa do que nunca. “Foi a melhor fase do nosso casamento, nunca me senti tão realizado, a amei como nunca, a desejei mais do que qualquer outra.” Paulo chegou no nosso mundo, absorto, arrogante, manipulador. Dizem que o seu surto só não foi pior, porque o socorro apareceu imediatamente; saiu correndo nu pela rua, depois de quebrar tudo em casa; tentou fugir com os dois filhos, que sem entender nada, estranhavam a transformação do seu pai, na face, nas roupas, nos gritos, que saíam da sua garganta enlouquecida. Ameaçou a mãe dele, o pai ... Na nossa enfermaria, chantageava os funcionários, com propostas milionárias, ofereceu um milhão de dólares pela facilitação da sua fuga ... Aquela era a sua primeira internação, ficou no nosso mundo por três semanas; com uma escuta telefônica havia descoberto a traição da sua mulher. Traição esta, que não foi apenas com um homem, mas com meia dúzia deles. Um motorista de caminhão, um pastor evangélico, um carioca dançarino de funk, o leiteiro, um ateu, e por último um presidiário, que ia visitar todas as terças na penitenciária da cidade. Paulo voltou para a mulher três meses e dez dias depois, mais apaixonado que nunca. 95 Meu problema é gonorréia crônica Meu problema é Urologia, mais claramente Gonorréia, peguei há sete anos, de uma morena na noite de São Paulo. Era uma noite fria, eu largado nas ruas, já fazia muito tempo que eu não saía com uma mulher, estava louco por um cobertor de orelhas; tudo bem que o meu sonho era uma loira, sabe como é, tenho esta pele morena escura, meio bronze, sou tipo indiano, mas preto eu não sou. Sabe mina, preto é muito discriminado, olha nos bancos das faculdades, é difícil ver um preto... “Sai daqui negão, tira a mão de mim...”. Que saco, detesto que coloquem a mão em mim. Aí, tem um cigarro? Aí, me dá um cigarro! Estou no lugar errado, as treze vezes que me internaram, foi por engano, meu problema é outro, mas ninguém acredita, você acredita? Tenho Gonorréia, Gonorréia Crônica, olha a minha perna, você está vendo esta mancha? Então, é da doença, o meu esperma subiu para a cabeça, e fiquei assim: TRILILI. Fui preso no nordeste duas vezes: uma, porque tirei a roupa na praia, fiquei peladinho, também quem agüenta ver tanta mulher, desfilando pra lá e pra cá de biquíni, e eu sem poder fazer nada, fiquei doido, pirei, arranquei tudo. Quando elas me viram daquele jeito, chamaram a polícia, fiquei preso por dois dias, maior humilhação, até explicar que eu não era muito certo. 96 Aí mina, sou muito feio? Realiza um milagre em mim: faz nascer de novo meus dentes, por favor! Preciso de uma mulher na minha vida, nunca beijei uma mulher de verdade, só a minha mãe, minha mãe coitada é doente dos rins, se eu pudesse doava os meus, mas estão mais estragados que os dela. Quando eu sair daqui vou ajudá–la, vou entrar na faculdade, mas será que eles vão rir de mim, sou meio palhaço, gosto de brincadeira, mas eles riem sem dó, vai ter uma hora que eu não vou agüentar, acho que vou querer sair do sério. Sou kardecista, acredito em reencarnação, vida depois da morte, estas coisas. Na segunda vez que fui preso, foi porque fui pedir comida numa base militar. Cheguei lá colocando a mão na barriga, gesticulado, tipo falando que eu estava com fome, eles não gostaram acharam que eu estava de brincadeira, incomodei, quando vi já estava na cadeia, fiquei três meses preso. Aí mina, tem um cigarro aí? Maior vontade de fumar... Preciso ir embora deste lugar, não agüento mais ficar aqui, meu problema é urológico preciso de um urologista, já disse que tenho gonorréia crônica. E este doutor, porque ele quer conversar com ela lá dentro, aposto que vai judiar, conversa aqui mesmo, hein doutor, conversa com ela aqui mesmo... Que mania que estes médicos têm de querer conversar sozinho! Nossa! Não quero mais ficar aqui, estou bom, não tenho nada. Cadê minhas roupas? 97 Que roupas mais feias, quero as minhas roupas, as que eu estava usando quando cheguei, pega lá pra mim, estão lá naquela salinha, que sujas o que, são minhas. Pega lá, por favor, mina... Valeu mina, que sujas, que nada, só passar uma água morna no chuveiro, que ficam limpas. Me dá um cigarro aí, só um, não tenho liberdade nem para ficar com os meus cigarros, me dá um cigarro! Aí mina, vamos fazer uma oração, chamar os espíritos de luz, para abençoar este ambiente? Vai, abre uma garrafa de água, coloca em cima da mesa. Que os espíritos de luz entrem neste ambiente, e tragam muita vibração de luz e paz, para estes corações, Alan Kardec, Chico Xavier, e os médicos aí de cima, todo mundo aqui junto. Muita paz a todos que estão presentes. Agora cada um toma um gole da água; aí, seu Zé, vem tomar a água! Como eu já disse, prefiro as loiras, mas a morena apareceu, estava com uma grana no bolso e resolvi investir, mas não plastifiquei e olha só o que deu, peguei Gonorréia, por isto que estou aqui. Me levou para um quartinho minúsculo e foi logo mandando eu tirar a roupa, sem o menor romantismo, fiquei com muita vergonha, tava afim de curtir um momento romântico, mas ela estava com muita pressa, menos de 20 minutos e ainda saí com gonorréia. Não conta para ninguém, mas eu já fiz contato com um extra terrestre, não fala nada, se não eles vão achar que eu sou doido, o E.T disse que sou Deus, filho não, ele próprio: Deus. 98 Se Deus pega Gonorréia? É claro que pega, Deus é humano. Bom Dia, tem um cigarro aí? Não está na hora, tá bom, eu volto depois, obrigado. Nossa, estou muito ansioso, você não está sabendo? Eu vou embora amanhã, se lembro do que eu dizia? Claro, lembro de tudo, é a doença mina, faz a gente fazer coisas! Qual o nome da minha doença? Sou um Bipolar! Não, não tenho gonorréia, claro que não sou Deus. O que, você tem saudades daquele outro? Daquele que todo mundo ficava rindo da cara, daquele que sofria sem perceber. Que é isto mina? Não se brinca com estas coisas, é muito triste, não é brincadeira, só é engraçado prá quem está de fora. 99 Por breves momentos, a libertação através da música Possuía longos cabelos brancos, sempre presos por um grande coque no alto da cabeça, de semblante tranqüilo, tez descorada, tinha um olhar irônico e algo persuasivo. Seu envoltório carnal ainda era bem delineado para o seus 74 anos de idade, ainda arrancava suspiros dos velhinhos mais afoitos. Nestes momentos amaldiçoava-os com orações decoradas, que aprendeu desde de menina, na igreja que freqüentava, na esquina de sua casa. Da. Iracema tinha na religião seu grande refúgio, que escondia os devaneios, que lhe causavam grande angústia. Sua mente aos poucos já dava sinais de problemas maiores, que se manifestavam através do esquecimento e de pensamentos soltos, que apareciam nos momentos mais inoportunos. A leiteira que antes exibia, orgulhosa pelo seu brilho, há muito perdera o vigor, de tanto “banho de leite fervendo”, que derramava todos os dias sem exceção. Certa vez um pequeno incêndio se prenunciou: só assim ela se encorajou a comprar uma nova leiteira, só que desta vez dotada de um acessório dos tempos modernos: um apito, que passou a dar um alerta antes do horror da erupção leitosa no seu fogão. Outro problema eram as roupas, que estendia no varal: ficavam ao sabor de tempestades e trovões, secando e molhando em ritmo aleatório. 100 Já não era a dona de casa de antes, que angariava elogios dos amigos do marido, que a comparavam com suas esposas, nem tão cativas. O certo e o errado agora se perdiam na sua mente, como se fosse um enorme quebra-cabeça. Comportava– se como uma marionete, perdida num labirinto de idéias, que nunca foram as suas, com atitudes algo demoníacas para a sua crença. Neste grande labirinto era recepcionada por grandes espelhos multicor, nos quais enxergava sempre o pecado. Agressividade, e um discurso cada vez mais desconexo passaram a inundar sua vida, não tinha mais nenhum resquício da mulher que foi um dia, era outra: irônica, sagaz e irritadiça. Chegou no nosso mundo absolutamente caótica, inquieta e nada solícita! Seus minúsculos pés possuíam apenas três dedos, além de um solado perpendicular, que aparentemente lhe dava pouca resistência e equilíbrio. Nos seus dois primeiros dias no nosso mundo, tomou posse de uma cadeira de rodas, mas quando menos esperávamos no calar da noite, de um salto ficou em pé, e saiu a correr como um coelhinho assustado. Com caras de bobos a olhávamos, surpresos, assombrados. Seus devaneios tomaram forma no nosso mundo; por longos momentos imaginava em suas mãos um revolver, atirando em todos que passavam na sua frente, com pose de soldado em guerra num ritmo incansável, os dois dedinhos minúsculos ficavam em constante vai e vem, imitando o tiro fatal. 101 Por vezes saía a correr, atrás de alguém que escolhia aleatoriamente, daí puxava os cabelos, ou simplesmente “abraçava” por trás causando desespero, pois seu “abraço” mais parecia um enforcamento proposital. Pouco falava, emudecida e arredia, seu prazer era SACANEAR. A recusa do banho se tornou sua reprimenda favorita, todos os dias era a mesma luta, nos batia com força, entre safanões, beliscões e empurrões a encaminhávamos para o banho, era praticamente arrastada. Mas sua vingança era no próprio chuveiro, onde quase sempre dava banho em quem a auxiliava, cantando junto um refrão ofensivo: “Sapatão, Sapatão, Sapatão”. Depois saía galante sozinha, colocava a roupa, penteava os cabelos, e seguia como se não tivesse acontecido nada... Sua mente produziu ojeriza à alimentação, enxergava ratos mortos e insetos, que a impediam de comer, “veneno era o adubo daquela comida” segundo as suas palavras, dizia provocativamente: coma você, vai, coma! Ficou por vários dias comendo apenas pão e leite. Da. Iracema com o seu jeito arredio conquistou todos, nascia dali um grande apego afetivo; com uma maneira própria conquistava grande simpatia. Como duas serelepes, ensaiávamos passos de dança, treinávamos artes marciais, além de sair correndo uma da outra, num grande show circense, repetindo palavras, como um papagaio matreiro. Da. Iracema se revelou receptiva à música, passamos a usar hinos evangélicos para encaminhá– 102 la para o banho, cantávamos e ela nos seguia sem resistência, o canto era como uma linha invisível, que a puxava. Numa de nossas terapias realizadas com música, enquanto a viola reluzia ao som de Chico Buarque, a emoção se fez presente, alguns choravam, enquanto nos abraçávamos num grande canto gregoriano. A música entoada magistralmente acaricia os ouvidos, e acalma as mentes em desalinho. Num canto, de olhos fechados, Da. Iracema, comovida cantava em desacordo com a letra, era algo que elaborava dentro do seu delírio: “A sua verdade”. Era uma maneira que encontrara para desabafar todo o terror que vinha passando, cantava em desespero, como num açoite, como num auto-flagelo. Entoando a música num ritmo que nunca havia visto. Quando num lapso de brevidade e lucidez, no refrão da música, rimou o nome da sua filha, como se o nome de sua filha tivesse sido lembrado, descoberto... “Yolanda, Yolanda”, o Chico cantou, Suzana, Suzana, Da. Iracema parafraseou. Foi como se tivesse acordado por um momento daquele cárcere mental. 103 Sábias lambidas de um velho cão Ela me olhou, o seio à mostra, num decote absolutamente intencional, um olhar cheio de ironia pedinte. Fingi desinteresse, passei a olhá-la disfarçadamente, como numa opereta, nossos olhares se encontravam num ritmo fugidio, incansável, analisando-se orgulhosamente. Aquela mulher estava começando a me deixar curioso, tinha algo de diferente não sabia dizer realmente o que seria, estava me expondo a uma análise fria, exatamente igual aos malditos interrogatórios que já sofri. 104 Muito tempo depois, já cansado daquele cenário, resolvi chamar a garçonete, que logo se mostrou animada em lhe entregar meu telefone. Ela não poderia imaginar, que aquela brincadeira não era tão ingênua como estava parecendo. Não poderia prever, que aquele homem, no qual ela estava interessada, era um homem marcado pelo cárcere com toda sua aspereza e agressividade. Um homem bomba, que mantinha o coração preso há exatos vinte e dois anos, que era capaz de explodir nas mais delicadas situações. Aquele primeiro contato iria mudar as nossas vidas, oito números, que iriam torturar nossos destinos. Começava naquele momento, uma história que envolveria todos que estavam à nossa volta. Quanto a mim, não poderia imaginar, que ali estava alojada a criatura mais perspicaz, que encontrei na minha vida bandida. Fiquei esperando extremamente ansioso, como um adolescente prestes a copular pela primeira vez. Fiquei olhando absorto, estático, nervoso. Não acreditei na sua reação! Que gana arrogante, premeditada... Como pode ter feito aquilo, um despropósito. Pegou o telefone das mãos da garçonete, e como se fosse um pedaço de entulho, depositou em cima da mesa, sem ao menos ler, nenhum sinal de interesse, como se tivesse acabado de receber um panfleto qualquer de alguma propaganda mentirosa. Aturdido, passei a me interessar desmesuravelmente por ela, inquieto e cheio de sobressaltos, passei a olhá-la com mais cobiça, ameaçador, como um cão, como meu cão Dick... Meu velho e querido Dick. 105 Nunca esqueci meu cachorro Dick, éramos como dois gatunos à solta; quando Dick arrumava uma cadelinha, eu ficava imensamente satisfeito, era como se fosse eu próprio. Exercia sobre mim, um grande magnetismo. Pensava comigo: Quando eu crescer, vou ser macho igual ao Dick. Dizem que os cachorros absorvem a personalidade do seu dono, mas no meu caso, foi diferente: eu absorvi completamente a personalidade dele. Ele agia diferente dos outros cães: cheirava a cadela inteirinha, depois lambia seu corpo com muita gana, um verdadeiro ritual dedicado a Vênus. Sempre acreditei que ele conversava com as cadelinhas, ficava observando de longe seu exorcismo, com um sorriso vitorioso nos lábios... Era um lindo vira-lata, inteligente e astuto como poucos. Íamos juntos buscar o jornal, o pão, estávamos sempre unidos, unidos como dois foras da lei. Nos entendíamos pelo faro, hoje sei que meu Dick era um homem no corpo de um cachorro, astuto e viril, mais até do que muitos que conheci na cadeia. Como o Dick, gosto do cheiro do cio, do sangue, do suor nas entranhas, da animalidade do ato. Naquele dia o sol batia forte ali naqueles confins de São Paulo, ruas de paralelepípedos eram o alicerce de casas com rebocos incompletos e pássaros presos em gaiolas; mais tarde viria a sentir na pele o gosto amargo de estar preso como eles. Inúmeras residências perpendiculares eram separadas por pequenas muralhas, que serviam de testemunhas nas rotineiras discussões entre os vizinhos. 106 Meu primeiro contato com a justiça aconteceu quando tinha sete anos de idade; hoje ainda me lembro deste julgamento, cruel e genocida, que me trouxe profundas impressões. Saí humilhado, embrutecido, em desamparo, sozinho. Foi também a primeira vez que tive contato com a morte. Das outras vezes, os golpes eram esquecidos com muita rapidez, logo que cessava a dor, logo que saía a passear com o meu pai, que minutos antes açoitara o meu corpo frágil. Aquele maldito travesseiro de penas estava de novo ali reluzindo sob o sol. O travesseiro era para o Dick, a própria personificação de um frango assado, pronto para ser saboreado. Por diversas vezes atrapalhamos seu intento; se pudesse se comunicar, jogar-nos-ia as mais sangrentas pragas, por frustramos sempre as suas tentativas de abocanhar o insidioso travesseiro. São Paulo crescia desproporcionalmente naqueles idos da década de sessenta, a poluição era a cortina da cidade. Chuva que inundava casas e atolava de lama, os pés dos famigerados trabalhadores, na grande maioria bravos imigrantes. Aquele maldito travesseiro exposto ao sol... Enquanto isto, os bares das redondezas fervilhavam de ébrios, que exaltavam sua masculinidade, comparando o tamanho dos pés, passavam longas horas a contar mentiras vãs, sonhando com mulheres que não eram as suas. 107 No outro lado da rua, suas esposas se queixavam da falta do feijão com arroz, dos intervalos cada vez maiores de carinho e principalmente da decadência sexual do casamento. Aquele maldito travesseiro exposto no sol... A expulsar os sonhos insonháveis, daqueles que seriam responsáveis por uma das maiores tristezas, que tive na minha vida. Um simples travesseiro tirou a vida do meu melhor amigo, do melhor parceiro que já tive. Voou pena para tudo quanto foi lado, com uma só mordida, meu Dick, tinha acabado de assinar sua sentença de morte. Entre xingos, ameaças e gritos, ficou prometido ali naquele momento, que o meu amigo teria seus dias contados. Foi terrível, a dor mais cruel que senti, não podiam ter feito aquilo, me atingiram pelas costas, feriram o âmago da minha alma. A cena ainda é viva na minha mente, meu cachorrinho ali estendido no chão, agonizante, com um fio de vida, me esperando, sofrendo, sujo de sangue, banhado de vômito, restos de um veneno mortal que lhe deram. Morreu também parte da minha inocência, enterrou-se parte da minha pureza de menino. Passei a me alimentar com raiva, ódio. Na minha cabeça de criança, procurava um meio de me vingar, sofri como um louco, eu era todo sofrimento, uma dor palpável e lenta. O quintal da minha casa era meu depósito de brinquedos e idéias, e foi ali naquele pequeno espaço, que premeditei tudo: um velho tronco de uma árvore ser108 viu de base, preguei diversos pregos pontiagudos, martelava cada um pensando na dor que meu Dick sentira, foi com grande prazer que escondi de todos o velho tronco, que agora se transformara na minha primeira arma que tive. Num esconderijo esperei o grande momento, como se ele fosse diminuir minha dor. O filho da assassina, uma criança de dez anos de idade, mais velho do que eu, veio como um passarinho para minha armadilha. Sem piedade açoitei suas costas num ritmo alucinante, o sangue jorrava, enquanto os pregos ficaram encravados nas suas costas. A fúria agressiva já estava incubada na minha alma, sem que os meus pais percebessem. O animal falou em mim, um animal de sete anos de idade. Meus pais não entenderam que minha reação, era um sintoma do que eu seria anos mais tarde. O castigo viria de maneira errada, não consigo reproduzir toda a cena, juntando alguns pontos, lembro dos berros do meu pai, e aquela maldita cinta a inundar minhas costas de sangue vivo, o meu tremor infeliz. Minha cabeça a rodar, e as lágrimas a cair, tinha um único pensamento: não tinha mais meu amigo. 109 Minha primeira mordida A pergunta que mais me fazem: mas você nunca foi agredida? Sempre respondo, claro que não, uso muito a PAPOTERAPIA, sempre funcionou, ou melhor, sempre havia funcionado. Até que, no PRONTO SOCORRO, o esperado aconteceu! Num surto, num grito, força duplicada, 48k x 70k... Ai, minha mão, larga a minha mão!!! Saco, larga, ai, ai, ai... Marcas dos dentes, encravados na minha mão!!! – Lembra, o que você fez na minha mão? Olhar cismeiro, olhando sempre para baixo. – Lembro, desculpa! – Tá arrependida? – Tou. Nossa, mas você nem olha para minha cara, nem parece estar arrependida! – Já pedi desculpa! – Não vai fazer mais isto? – Não sei. Com o mesmo olhar inerte seguiu seu caminho, num mundo solitário... “A loucura é solitária” 110 Psiquiatria e religião Não, não me pergunte nada, não me questione, não exija respostas concretas... Fujo de qualquer certeza, de qualquer afirmação, fujo, porém com poucas, mas boas dúvidas; mas vou me ater ao que vi, ao que meus olhos viram, o resto são paisagens prostituídas. O que vi, foram pessoas sendo internadas, em surtos psicóticos, e saírem, tranqüilizadas, pedindo desculpas e questionando suas atitudes; o que vi, foram pessoas se encobrindo com o véu da razão, através de medicamentos e terapias. Se vi algo sobrenatural? O que de fato é sobrenatural? A mente humana é um abismo movediço, com várias vertentes; não existe explicação para tudo que a mente humana é capaz. Vejo, ouço, falo, de acordo com a minha sensibilidade, minha verdade, minhas crenças. Respostas exatas tenho, ou melhor não as tenho... O que tenho de fato, são os fatos? De uma realidade que presenciei, abrupta e por muitas vezes covarde. Se Deus existe, por que então, as cenas que presenciei, aquele desespero de alma contínuo e servil, cadê ele? EU SOU DEUS! Esta foi a afirmação, que mais ouvi, e de certa forma concordo com eles. 111 A montanha que removeu a fé – Em nome do Espírito Santo, e do senhor Jesus Cristo, meu filho vai se curar!! “Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome...” A tal da doutora até que é boazinha, me deu este batalhão de remédios. Me disse que o meu filho tem uma doença estranha, como chama mesmo? Ah, lembrei: ESQUIZOFRENIA! Mas os médicos são todos ateus, não acreditam no poder de Deus, de Jesus, nosso pai. Vou provar, que com a minha fé, ninguém pode, nem o Satanás! Sai em nome de JESUS, sai agora, sai do meu filho, deixa ele em paz, sai demônio ! Sai, sai do meu caminho! Vem filhinho, vai dormir agora, eu fico aqui em vigília, em nome de Jesus... Quem vai curar meu filho é o divino Espírito Santo, só ele tem o poder. Dona Josefa, uma senhora de 76 anos de idade, vivia de casa para a igreja, esta era a sua rotina de todos os dias, com sol ou com chuva, lá estava ela, pedindo aos céus, ajuda na cruel situação que vinha enfrentando. Acreditava piamente que aquela doença do seu filho: escutar vozes e ver vultos, era coisa do inimigo; desta forma que denominava, o que para ela representava o mal. 112 O primeiro surto foi de repente, logo seu filho mais velho, o mais querido, aquele que não a abandonou. Restou apenas ele, da sua prole de 5 filhos, ele tinha preferido ficar com ela, ajudando-a no labor dos seus últimos dias de vida. Uma relação de co-dependência os unia, um era prisioneiro dos vícios do outro. Reinaldo, depois do primeiro surto, passou a proteger a mãe possessivamente; para ele todos queriam lhe fazer mal, prejudicá-la de alguma forma. Sempre de olhos abertos em cima dela, na feira, no mercado, no açougue, lá estava ele. Como um guarda-costas, a perseguia, a manipulava; ela de certa forma gostava daquela relação, sentia-se protegida. Tudo bem que às vezes reclama, era demais, nem o finado marido a tratava daquele jeito. Seu filho tinha ciúmes até do cachorro, um buldogue velho, que há muito estava abandonado no quintal. Os dois mais pareciam marido e mulher, e quem se intrometia, era capaz de sair com duas quentes e vinte fervendo. Por causa daquela situação, os outros filhos, raras vezes apareciam, cada um levava sua vida e até agradecia o irmão, por estar cuidando da velha senhora. “Era estranho mas fazer o que, os dois viviam assim há muito tempo, e depois que ele começou com aquela mania de perseguição tudo piorou ainda mais. Ele não arrumava nenhuma namorada, vivia a vida da mãe, e ela vivia a vida dele, ou seja, em completa reclusão, a não ser na hora de irem à igreja. Mas ontem, quando, de surpresa, cheguei na casa dela, achei muito estranho: estava tudo fechado, as 113 janelas cobertas de forma improvisada, com cobertores, o cachorro calado, deveria estar há muito tempo sem ser alimentado ... Os bombeiros foram chamados, e quando finalmente conseguimos entrar, tivemos mais surpresas: ela estava deitada e amarrada na cama, tremendo, desesperada, e ele sentado ao lado dela, como se estivesse protegendo a mãe contra o ataque de um fantasma, que só ele via. No armário da cozinha, encontramos todos os medicamentos, que a psiquiatra, havia receitado, alguns já com a validade vencida, além de outras tantas receitas ainda intactas.” Dona Josefa confirmou com eloqüência: “Ele confiou mais em Deus, do que nestes médicos!” Quando o colocaram na ambulância, em estado de choque, a mãe ficou ainda mais desesperada; foi como se tivessem arrancado uma parte do seu corpo! 114 Glossário Transtornos Psiquiátricos Dr. João Guilherme Bórgio “Não se brinca com estas coisas, é muito triste, não é brincadeira, só é engraçado pra quem está de fora.” (Meu problema é gonorréia crônica) Introdução Essas notas não têm a pretensão de ser uma aula de psiquiatria. Servem para dar uma explicação a mais para o leitor entender o que são alguns transtornos psiquiátricos e desmistificar algumas concepções errôneas sobre os mesmos. Para quem gostou dos contos, não será um peso aprender um pouco mais sobre os quadros que eles descrevem. Depressão “Nossa, que tristeza me deu agora, maior vontade de chorar.” (À flor da pele). Ficar triste é uma característica normal do ser humano e ter a capacidade de sentir– se emocionado é desejável e saudável. Ocorre que há certos quadros em que a tristeza passa de um certo limite e associa– se a outros sintomas, constituindo– se em uma doença, que traz muitos prejuízos ao indivíduo e às pessoas próximas. Estima– se que, dentro de 15 anos, a primeira causa médica de prejuízos no trabalho (queda na produtividade, atrasos e faltas) será a depressão. Portanto, reconhecê-la e tratá-la devidamente, é, além de um problema de saúde, uma medida econômica. Tristeza é doença? A depressão pode assumir várias formas, desde um sintoma único, até uma síndrome (conjunto de sintomas que aparecem em conjunto) e um transtorno em si. Como sintoma, trata-se da tristeza, que todas as pessoas estão sujeitas a sentir. Pode ser secundária a algum evento (falecimento, rompimento de relacionamento 115 amoroso, demissão etc.) ou mesmo espontânea, ficar triste sem um motivo aparente. Varia na sua intensidade, desde leve (seu time perdeu um jogo), até mais grave, como por exemplo, o luto. Como síndrome, está presente em vários quadros psiquiátricos. Pessoas com síndrome do pânico, transtorno obsessivo–compulsivo, ansiedade, podem em algum momento sentir–se deprimidas, uma vez que essa co-morbidade (associação de duas doenças) é comum. Como transtorno, a depressão se diferencia da tristeza normal, além da intensidade, por apresentar também outros sintomas além do humor deprimido, que serão descritos a seguir. O que o deprimido sente? A apatia é uma característica quase universal. A pessoa não tem vontade de trabalhar, estudar ou fazer qualquer coisa. As queixas de ficar o dia inteiro dentro do quarto, sem querer levantar, são comuns. Não há iniciativa e, mesmo quando forçada por outrem a iniciar alguma atividade, não demonstra interesse. Além da apatia, está presente a anedonia, que significa a incapacidade de sentir prazer. Dessa forma, poderíamos distinguir a depressão da “preguiça”, que é como alguns familiares descrevem o paciente. Quando deprimido, o indivíduo não deixa apenas de fazer o que é obrigado, mas não demonstra iniciativa em coisas que habitualmente gostava, como passear, jogar bola. A pessoa se queixa de que “nada está bom”. O indivíduo passa a ficar mais lento, tanto para as atividades físicas, como mentais. Mesmo que o rendimento escolar ou no trabalho ainda não esteja prejudicado, ou seja, os professores e os chefes ainda não notem nenhuma mudança, a pessoa diz que está fazendo um esforço enorme para fazer o que geralmente fazia sem problemas. A partir daí, cai a produtividade, o raciocínio fica mais difícil, a concentração diminui e ocorrem problemas de memória. As queixas de esquecimento são reflexo da diminuição da atenção, mais do que da memória em si, e são totalmente reversíveis com o tratamento. O pensamento tende a ser pessimista, com uma visão alterada do passado, presente e futuro. As idéias ruins podem aparecer espontaneamente, chegando a delírios de ruína (tudo vai dar errado), pensamentos nihilistas (não há sentido na vida, nada 116 vale a pena) e escatológicos (pensa no fim do mundo). As idéias de morte são comuns, e devem ser muito bem avaliadas. A maioria dos deprimidos pensa em como vai morrer, pode preferir estar morto, mas alguns, mais graves, costumam pensar em se matar, planejar o suicídio e chegar à tentativa. Infelizmente, não é raro consumarem o ato. O apetite diminui e a pessoa chega a emagrecer vários quilos, mas pode ocorrer o contrário, um aumento de apetite. O sono se altera, tanto para insônia ou hipersonia (excesso de sono). Geralmente a insônia se apresenta como vários despertares durante a noite e despertar precoce, de madrugada, sem conseguir pegar no sono novamente. O interesse sexual diminui e isso compromete o relacionamento amoroso. Com o passar de semanas ou meses, a tendência da depressão é piorar, levando a incapacidades cada vez maiores. Em alguns casos os quadros podem melhorar, mesmo sem nenhuma intervenção, mas geralmente isso não acontece. O tratamento é necessário, não somente para aliviar os sintomas, mas também com o objetivo de remitir o quadro, ou seja, eliminar todos os sintomas e deixar a pessoa como ela se sentia antes. Mesmo nos casos em que poderia haver uma cura espontânea, o tratamento se faz necessário, para que a mesma seja precoce e completa. Logo, atitudes dos familiares que dizem “isso é frescura, vai passar” podem trazer graves prejuízos com o passar do tempo. Drogas da felicidade O tratamento engloba medicamentos e psicoterapia. Os assim chamados antidepressivos formam uma classe vasta de medicações, com diferentes modos de ação, mas que no geral têm uma eficácia semelhante. O que ocorre é que um determinado remédio que agiu bem em um paciente pode não ser efetivo para outro. Atualmente dispõe-se de novos medicamentos, que apresentam poucos efeitos colaterais e são bem tolerados pelos pacientes. Falar em remédio psiquiátrico assusta, dá medo de ficar dopado ou viciar. Mas os antidepressivos não viciam, não alteram a capacidade mental, pelo contrário, agem positivamente em uma doença, que prejudica e muito o raciocínio. Vale ressaltar que o tratamento deve se prolongar muito além do período de melhora dos sintomas, por no mínimo 6 meses. Ou 117 seja, se a medicação é suspensa logo que o paciente melhora, poderá haver retorno dos sintomas logo em seguida. Em alguns casos mais graves é necessário tomar remédio até a vida inteira. Isso porque a chance de uma pessoa que já teve um quadro depressivo ter novamente outro quadro é muito alta, e torna– se mais alta à medida que vai tendo mais episódios. A chamada fase de manutenção (quando o paciente não tem mais sintomas mas continua tomando remédios) é necessária para diminuir essa chance de recaída. O tratamento medicamentoso deve começar a ser encarado com mais naturalidade pela população. Como qualquer doença crônica, como diabetes ou hipertensão, a depressão precisa ser tratada por um tempo prolongado e, quanto ao fardo de ter que tomar remédio, pode– se fazer a seguinte consideração: é melhor passar alguns meses com a medicação do que com a depressão. “Freud explica” Várias formas de psicoterapia foram desenvolvidas e são eficazes no tratamento da depressão. Podem ser breves ou mais prolongadas, focadas em sintomas específicos ou mais abrangentes. Como única forma de abordagem terapêutica, são eficazes apenas para casos mais leves; mesmo assim, a associação da terapia com os remédios demonstrou ser mais eficaz do que o tratamento apenas com remédios. Transtorno Afetivo Bipolar A história típica de um portador deste transtorno caracteriza– se pela alternância entre dois quadros clínicos distintos, ou pólos (daí o nome da doença). Um deles é a depressão e o outro é a mania. “É como se eu fosse o dono do mundo” (Sou genro do George Bush) A mania poderia ser facilmente resumida como o “contrário da depressão”. O indivíduo apresenta aumento da auto– estima, alegria extrema, ri bastante, está sempre animado, não sente cansaço, chega a ficar vários dias sem dormir porque não tem necessidade de sono. Há um aumento da energia, seja física ou mental, a pessoa age de uma forma acelerada, com idéias de grandeza, perde o medo e a vergonha. Não consegue prender a 118 atenção em um assunto e se distrai facilmente. Com o pensamento acelerado, facilmente perde o “fio da meada”, misturando vários assuntos, sem chegar a uma conclusão, interrompe os outros. Pode ficar agressivo e mesmo delirante. Admirável mundo novo Vivemos em uma sociedade que valoriza a energia física, a alegria, a desinibição no contato social e a versatilidade. Como são sintomas desejáveis, às vezes o paciente acredita que não há nada de errado consigo, e inclusive seus familiares, que podem estar acostumados aos quadros depressivos que apresentava antes. “Chamaram o resgate e, com a autorização da minha mãe, me trouxeram à força para cá.” (À flor da pele) Nos casos mais graves, freqüentemente é necessária a internação, uma vez que, achando que não há nada de errado, o paciente não aceitará facilmente o tratamento. Ora, mas se é um quadro aparentemente desejável, muitas vezes instalado em uma pessoa que já sofreu de depressão, por que tratar então? Acontece que nesse quadro, sem crítica ou julgamento correto da realidade, usualmente o indivíduo se envolve em atitudes arriscadas, tais como praticar sexo sem proteção, dirigir perigosamente, contrair dívidas enormes. Além disso, quanto mais episódios uma pessoa apresentar, pior fica o seu quadro e a evolução da doença. A hipomania apresenta um quadro de mania com sintomas mais leves, por isso menos evidente, chegando a passar despercebido ou encarado como um período “iluminado”, de “bom humor”. Pode haver quadros em que há uma mistura de sintomas depressivos e maníacos, o chamado “episódio misto”. Nesse estado, o paciente pode ter humor depressivo, mas aceleração do pensamento e agitação psicomotora, ou mesmo estar lentificado mas eufórico. Entre esses episódios, o paciente volta ao normal, recuperando o humor estável e melhorando dos outros sintomas. “Tenho muitos períodos tristes” O quadro de depressão no transtorno bipolar não difere muito dos episódios depressivos do transtorno depressivo “unipolar”, já descrito. O que ocorre é que muitas pessoas que tem o transtorno bipolar se apresentam no primeiro quadro com um episódio 119 depressivo. Como saber se esse paciente irá desenvolver TAB? Alguns dados sugerem essa evolução, mas não são fielmente preditivos: história de TAB na família, início precoce, depressão com muita sonolência ou aumento de apetite. Cura milagrosa da depressão A recuperação de um episódio depressivo, seja com ou sem tratamento, geralmente se dá gradualmente, com a melhora de alguns sintomas antes dos outros, durante algumas semanas. Deve-se estar atento a quadros de depressão que melhoram muito rápido (poucos dias) e quando a pessoa deixa de estar deprimida para sentir uma alegria extrema (está com muita energia). Pode– se tratar de um episódio de hipomania/mania iniciando, e nesses casos chamamos de “virada”, ou seja, mudança de um pólo da doença para outro. Será que eu tenho tenho transtorno afetivo bipolar? Cerca de 1% da população apresenta o transtorno bipolar clássico. Hoje em dia considera– se que haja mais pessoas portadoras desse distúrbio, de uma forma mais leve, formando um espectro, ou seja, pessoas que têm quadros leves e transitórios de euforia e depressão, e que muitas vezes nem chamam muito a atenção dos outros e por isso geralmente não procuram um tratamento; também poderiam ser chamadas de bipolares. Assim, quem tem variações de humor nos extremos, mesmo que durem poucos dias, pode achar que não tenha nenhum transtorno, e que isso faça parte da sua personalidade, mas poderia se beneficiar com o tratamento. Dentre as doenças psiquiátricas, o TAB é uma das que apresenta maior associação genética, ou seja, familiares de um paciente portador têm maior chance de desenvolver o transtorno. É um transtorno recorrente, quer dizer, após um episódio, virão outros, e cada vez mais graves. Com o tratamento, a tendência a apresentar esses episódios diminui e, mesmo que a pessoa entre em crise, esta tende a ser mais leve. Muito importante é orientar o paciente e a família sobre os sintomas e a natureza da doença, para que, logo que percebam alterações no comportamento, procurem ajuda médica. 120 Esquizofrenia A visão popular desse transtorno é do indivíduo sem crítica, inadequado, largado em um hospício ou pelas ruas, sujo, dizendo ser Napoleão ou que alguém quer lhe matar. Essa imagem negativa tem que mudar, uma vez que, com os novos tratamentos, o paciente consegue ficar livre de muitos sintomas que o incomodam e lidar com os outros sintomas que ainda possam persistir. A esquizofrenia é uma doença grave, que acomete as pessoas na flor da idade, e pode deixá-las muito comprometidas, se não for reconhecida e tratada devidamente. Acomete aproximadamente 0,7% da população brasileira e tem uma prevalência (número de casos em uma determinada população) semelhante no mundo inteiro. Suas causas ainda não estão bem determinadas, mas certamente há um componente genético, ou seja, familiares de um paciente têm risco maior de apresentar a doença. Além do fator biológico, há os chamados “estressores” psicossociais, que determinam o aparecimento de uma crise. Começa geralmente entre o fim da adolescência e o início da idade adulta, com uma média de idade de aparecimento entre 15 e 22 anos para homens e 18 a 25 anos para mulheres. Porém, em alguns casos pode mesmo surgir na infância, ou na idade adulta (por volta dos 40 anos). “As vozes que passou a escutar, achou no início que fosse alguma coisa espiritual” (Fuga de mim) Geralmente há um intervalo de tempo muito grande entre o aparecimento dos primeiros sintomas e o diagnóstico feito por um psiquiatra. Isso deve-se ao próprio quadro, que é insidioso, ou seja, vai aparecendo lenta e gradualmente, e também ao fato de que normalmente há uma demora em procurar-se o atendimento médico. A família, reconhecendo que o jovem está com um comportamento diferente do seu habitual, vai achando que é “coisa da idade”, que “vai passar”, ou então procura outras explicações (possessão espiritual, pirraça, uso de drogas), por simples desconhecimento ou mesmo medo de acreditar que seu filho padeça de uma doença grave e crônica. “O dia inteiro, coberto dos pés à cabeça, com um sol de 40 graus” (Conto, que não se fez conto) Há alguns sinais “prodrômicos”, quer dizer, aparecem antes da doença, tais como isolamento social, esquisitices, variações de humor, alterações do apetite e do sono, irritabilidade, 121 comportamentos inadequados. Como se pode perceber, são comportamentos que qualquer adolescente normal pode apresentar. Daí vem a dificuldade em reconhecê-los, porque, mesmo presentes, podem fazer parte do desenvolvimento normal dessa fase da vida, caracterizada por experimentações, mudanças constantes e comportamentos desafiadores, sinais da mudança de uma postura de criança para adquirir uma personalidade adulta. Mesmo que esses sinais prodrômicos apareçam com uma intensidade suficiente para serem reconhecidos como um transtorno, eles podem fazer parte de outros quadros psiquiátricos, como depressão, ansiedade, mania, uso de drogas e outros. Alguns meses depois do início dessas alterações do comportamento, geralmente após um evento estressor importante, mas nem sempre, acontece uma crise psicótica. Chama-se assim pelo afloramento de certos sintomas, estes agora mais característicos da esquizofrenia, chamados “psicóticos”, que são secundários a uma quebra, um rompimento entre o mundo real e o mundo mental do indivíduo. “A vida é um grande ‘Big Brother’” – (Existe algo errado, estão querendo me matar, por favor me ajudem!) Esses sintomas são principalmente os delírios e as alucinações. Delírios são idéias super-valorizadas, irreais, que não podem ser desmentidas com argumentação por outras pessoas, inabaláveis. A pessoa acredita piamente naquela idéia que surgiu em sua mente e sofre com isso. O conteúdo dos delírios geralmente é persecutório (alguém quer lhe fazer mal) e de auto-referência (ao ver duas pessoas conversando na rua, acha que estão falando dele). “As vozes a pedir, a implorar: vai lá, mata” (Fuga de mim) “Malditos, estão dizendo que querem me matar” (Monstros, vozes e gargalhadas) Alucinações são sensações falsas, mas percebidas como reais pela pessoa. As alucinações auditivas mais comuns são conversas de outras pessoas comentando seus atos, pessoas chamando seu nome e seus inimigos fazendo comentários negativos. Podem ser visuais, como ver pequenos animais andando pelo corpo, monstros na parede, pessoas em atitude ameaçadora. Mais raramente há outros tipos de alucinações, como as cenestésicas (sensação de animais se mexendo no seu corpo), olfativas e paladares. 122 Como dá para perceber, o contexto da alucinação tem muito a ver com o conteúdo dos delírios. Ou seja, quando uma pessoa acha que seu vizinho quer lhe matar, vai começar a ouvir conversas do mesmo planejando seu assassinato e pode vê–lo, de repente, dentro do seu quarto. Na esquizofrenia as alucinações mais freqüentes são as auditivas. Alucinações visuais sugerem causa orgânica, ou seja, uma doença clínica com alteração psiquiátrica. Esses sintomas tendem a melhorar bastante com os remédios e ficam mais leves durante as crises. Há outros sintomas que acompanham o paciente por mais tempo, mesmo entre as crises e melhoram pouco com os remédios. Entre eles aparece uma diminuição da afetividade, parece que a pessoa está mais distante e alheia às emoções à sua volta. Pode ficar sem graça ao contar uma piada, e rir em momentos inapropriados. Aparece também apatia, falta de disposição e iniciativa para realizar suas tarefas, que é muitas vezes confundida com preguiça. Com o tempo, há um comprometimento de outras áreas da mente, mas geralmente é muito gradual e varia bastante de pessoa para pessoa. Esses sintomas são pouco percebidos pelo paciente e pela sua família, mas geralmente são os que trazem mais prejuízos para o seu desempenho social. Com a evolução do quadro, o paciente vai tendo mais crises psicóticas e, entre elas, melhora, mas a família percebe que, ao contrário do transtorno bipolar, ele nunca volta ao normal. Permanecem alguns sintomas, que são suficientes para alterar a personalidade e o comportamento do indivíduo. Sem tratamento, a tendência é o deterioramento de diversas funções psíquicas, como a afetividade, o pensamento e a inteligência. “Com o álcool as vozes não o incomodavam tanto” (Fuga de mim) Muitas vezes o paciente começa a procurar algum meio de se ver livre dos sintomas, e começa ou intensifica o uso de álcool e drogas. Realmente, por um curto período, essas substâncias aliviam muitos sintomas, mais por seu efeito sedativo, mas está comprovado que o álcool e as drogas não só pioram as doenças, como podem desencadear um quadro psicótico. Como tratar da “loucura”? O tratamento se baseia nos medicamentos chamados de antipsicóticos, que devem ser tomados por tempo indeterminado. 123 Esse fato assusta muito os pacientes, porque se sentem frágeis e não aceitam ter que manter a medicação. Porém, criando um bom vínculo médico-paciente, pode– se contornar esses conflitos e incluir o paciente nas decisões sobre seu tratamento. Há vários casos em que uma pessoa estável pode ir reduzindo a dose de remédio e levar uma vida totalmente normal. Antigamente os antipsicóticos disponíveis apresentavam muitos efeitos colaterais, mas agora dispõe-se de medicações novas, com eficácia superior em alguns aspectos, que são mais bem toleradas. Mesmo em tratamento, o paciente pode apresentar crises, mas mais leves. O importante é que ele tenha um bom vínculo com seu médico e a equipe de saúde mental, para que fique à vontade para pedir ajuda em qualquer momento, em que se sinta inseguro, e que todos à sua volta (família, amigos, colegas) percebam as alterações, que geralmente antecedem as crises e o convençam a procurar seu tratamento. Transtornos da personalidade Dentro da classificação dos transtornos mentais, os transtornos da personalidade fazem parte de um grupo de diagnósticos separado dos outros. Essa diferença se faz necessária porque eles não se caracterizam por episódios, crises ou surtos, mas sim, são quadros nos quais ocorre um comprometimento do desenvolvimento da personalidade, que pode aparecer como dificuldade em relações interpessoais, impulsividade, “esquisitices” e outros sintomas, que diferem dos sintomas dos outros transtornos por serem na maioria dos casos “egossintônicos”, quer dizer, o indivíduo que os apresenta não os reconhece como anormais, mas sofre e faz sofrer por causa desses sintomas, que representam alterações no modo de existir no mundo, que fogem às regras gerais da maioria da população; mas não é só isso: a pessoa se torna refém de seus próprios traços, inflexíveis e permanentes. Essas alterações são constitucionais, ou seja, não se instalam na pessoa, mas se desenvolvem junto com ela. Não refletem a maneira de estar naquele momento no mundo, mas a maneira de ser no mundo. O processo começa, portanto, na adolescência e “cresce” junto com o indivíduo. As principais manifestações se dão na regulação dos impulsos, na modulação afetiva, na organização cognitiva e no controle da ansiedade. 124 Os pacientes acreditam, que estes traços são parte inerente de sua personalidade e, portanto, não causam nenhum sofrimento; a queixa geralmente vem dos acompanhantes. Quando questionado, o paciente acha que estão “implicando” com seu jeito de ser, que ele está certo e todos os outros estão errados, ou então, mesmo que ele possa estar errado, acha que aquilo não lhe traz problemas e que não vai mudar. Há vários transtornos da personalidade característicos, mas na prática usualmente não se encontra um indivíduo com um único quadro típico, dentre os descritos, mas sim, um quadro com um misto de algumas características de cada transtorno. Ou seja, cada personalidade disfuncional é única e as tentativas de classificação são meramente didáticas. Tipos: Esquizóide – pessoa que tem pouco contato social, prefere se isolar, fala pouco e tem dificuldade quando precisa se expor. Esquizotípica – pessoa excêntrica, tem hábitos estranhos, se veste de forma diferente, com isso gera algum desconforto nos outros à sua volta. Paranóide – sempre desconfiada, evita se expor por medo de ser prejudicada, quando acredita que alguém esteja invadindo seu espaço pessoal, fica irritada. Histriônica – quer chamar a atenção, é expansiva, faz “drama” por qualquer coisa e a famosa “chantagem emocional”. Borderline – explosiva, agressiva, intolerante, irritável, com tendência a manipular pessoas, a capacidade de planejar pode ser mínima e os acessos de raiva intensa podem, com freqüência, levar a explosões comportamentais e de violência. Narcísica – pessoa egoísta, vê seus interesses sempre em primeiro lugar. É capaz de demonstrar afetuosidade somente para depois poder tirar proveito. Preocupa-se muito com a própria aparência, é muito vaidoso. Dependente – sente-se frágil e sempre deposita todas suas esperanças e desejos em outra pessoa, assim, faz coisas extremas para agradá–la e não consegue sequer imaginar perder esse ponto de apoio. Não necessariamente trata-se de um relacionamento amoroso, pode ser um parente ou amigo. Mesmo após um rompimento, ele procura outro para ser seu objeto de amor incondicional. 125 Esquiva – apresenta fobia intensa à exposição social, no entanto, diferentemente do tipo esquizóide. Anancástica – tudo em sua vida tem que ser organizado, tanto seus objetos, como seus relacionamentos etc. Sente-se muito inseguro com qualquer ameaça, mesmo imaginária, de perder o controle da situação. Transtorno da personalidade anti-social “Sem piedade açoitei suas costas” (Sábias lambidas de um velho cão) Há muitas dificuldades em se conceituar esse transtorno, desde o diagnóstico até as formas de tratamento, devido, principalmente, às suas implicações legais, uma vez que as pessoas que o apresentam cometem muitas infrações criminosas. Tanto é verdade que o outro nome para este transtorno é sociopata. Essas pessoas estão entre os “loucos” e os deficientes mentais. São indivíduos diferentes da maioria da população em termos de comportamento, e conduta moral e ética; não adquiriram certos conceitos necessários para a vida em sociedade. Radicalmente, diz-se que se encontram mais próximos da animalidade. Quanto mais vulnerável à animalidade, menor o sentido (e sentimento) ético da pessoa. Apresentam sintomas de auto-referência excessiva, grandiosidade, tendência à superioridade, exibicionismo, dependência excessiva da admiração por parte dos outros, superficialidade emocional, crises de insegurança que se alternam com sentimentos de grandiosidade. Despertam um encanto nos outros, mas é superficial; com isso, pretendem manipulá-los. Têm uma absoluta falta de escrúpulos para com seus semelhantes ou para com os sentimentos dos outros. Mentem freqüentemente e agem seguindo suas fantasias. O que mais assusta em seu comportamento é a imoralidade. São impulsivos e, mesmo com todas as abordagens terapêuticas tentadas, se mostram incorrigíveis. 126 Leitura recomendada Temperamento forte e bipolaridade– Diogo Lara Uma mente inquieta – Kay Jamison Canto dos Malditos – Austregésilo Bueno O demônio do meio-dia – Andrew Solomon Filmes: Mr. Jones Garota – Interrompida As horas Bicho de sete cabeças 127