Arbeit macht frei A irônica frase estampada no campo de

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Arbeit macht frei
A irônica frase estampada no campo de concentração de Auschwitz, O trabalho liberta (Arbeit macht
frei), é o ponto de partida para se tentar entender o mundo em que vivemos. O filósofo italiano Giorgio
Agamben, nas pegadas de Hannah Arendt e Michel Foucault, tem no “campo de extermínio” o
paradigma político da pós-modernidade, o lugar onde o direito é suspenso, onde tudo é possível,
inclusive a negação do humano e a destruição física do homem que passa a ser uma peça descartável
em um modelo de organização política, tal como Auschwitz, em que o Estado de Exceção é a única
regra, onde nada é absurdo ou impossível. O terrorismo difuso que se constitui em uma ameaça às
democracias ocidentais, a invasão da Europa por ordas de refugiados não-europeus, tornam mais nítida
a percepção que o Estado de Exceção, um conjunto de medidas excepcionais e extremas que sacrificam
a liberdade individual, de um regime de urgência e excepcionalidade, converteu-se em regra. A regra na
sociedade midiática e panótica do Big Brother é vigiar tudo e todos, presumindo o cidadão não como
um ente central e fonte de legitimidade de uma comunidade política, mas como um criminoso em
potencial, o cidadão é um terrorista virtual. O medo e o terror são os únicos fatores de coesão a unir a
manada humana, sujeita ao “tudo é possível” do Estado de Exceção permanente. A racionalidade
jurídica a fomentar a liberdade individual é cada vez mais reduzida à retórica, em sua funcionalidade
pragmática as democracias ocidentais se movem pela excepcionalidade permanente do terror e do
medo. O que justificaria a vigilância e controle permanente de tudo e todos.
O pensemento pela via da ruptura e descontinuidade, a qual se filia Agamben, na vereda epistemológica
de Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger e Michel Foucault, é apenas um dos braços da filosofia
ocidental, a vertente que tenta pensar o mundo pela via da descontinuidade, do “devir” (Dasein), do
imprevisível. Ao tentar pensar o mundo como descontinuidade e ruptura, desde Nietzsche e
Schopenhauer, o que se intenta é construir um contradiscurso em face da narrativa dominante da
filosofia ocidental, esta última uma tradição que reporta ao paradigma pitagórico-platônico dos gregos
que tem no logocentrismo e humanismo suas pedras angulares. Quem tenta pensar o mundo, levando
em consideração e partindo dessa tradição chamada filosofia ocidental, pode partir de duas vertentes
antagônicas: ou pensar o mundo pela via da continuidade e segurança, aquilo que o filósofo Immanuel
Kant tentou reabilitar no discurso filosófico: a razão; ou pela via da descontinuidade e insegurança,
aquilo que a filosofia poética de Nietzsche representa na modernidade: o devir (Dasein).
Entre o contínuo e o descontínuo, a razão e o devir, a filosofia como tradição do pensamento tem se
caracterizado recentemente como uma guardadora de lugar ou tendo seu papel reduzido ao de um juiz
da cultura. Essa é a leitura de Jürgen Habermas, filósofo filiado à tradição kantiana da continuidade.
Desbancada de seu lugar hegemônico, à filosofia teria sobrado a função de classficicar e delimitar o
lugar das ciências, a filosofia passou a ser uma guardadora de lugar. O desafio da filosofia, segundo o
poeta e escritor W. J. Solha, seria interpretar o mundo de uma forma nova, um mundo que já não é o de
Heidegger ou o de Kafka, nem de Aristóteles ou Kant, afinal, até Kant ainda era possível se assenhorar
de todo o conhecimento disponível, hoje isso se revela humanamente impossível.
A complexidade crescente de um mundo não mais computável pelo cérebro humano, um mundo cada
vez mais virtual e cibernético, clama novos sentidos. Os gênios criadores de um Aristóteles,
Shakespeare, Cervantes ou de um Kant trouxeram importantes e novos aportes de significado para a
vida da cultura, onde efetivamente se dá a "imortalidade", ou seja, a vida cultural consiste em uma
contínua atualização semântica da linguagem, aquilo que transcende os limites físicos, biológicos da
nossa mortalidade individual. Só nos fazemos imortais pela renovação de sentido, de significado que
aportamos pela via da linguagem no plano coletivo. A coletividade é imortal na medida em que ela se
renova semanticamente a cada nova geração. Esse processo, mortalidade biológica/ criação
cultural/imortalidade coletiva pela renovação da linguagem, não depende exclusivamente do "homem
de gênio", passa por ele. Esse processo de renovação é coletivo e a própria linguagem- o tecido dessa
renovação e da imortalidade que só se dá pela via do coletivo- impõe alguns limites... Essa criação não
é ilimitada porque a linguagem tem uma estrutura que a autorregula. A criação cultural seja pela via da
arte, ciência ou filosofia, promove a imortalidade de uma comunidade, mas o eterno, esse nos foge até
enquanto comunidade, o eterno está além do homem, o eterno talvez seja aquilo que nos diferencie dos
deuses e da natureza que nos antecede, hoje sabemos, em bilhões de anos.
A estética literária de um kafka, com seu mundo institucionalmente desintegrado e absurdo, já não mais
comporta todas as percepções dos nossos dias, na busca de uma contínua renovação semântica a
sociedade atual, na tentativa de preservação do seu conteúdo coletivo de imortalidade, estranhamente
se aproxima do campo de extermínio como paradigma político ao mesmo tempo que a estética kafkiana
do absurdo, irmanada a Auschwitz, sugere-nos o quanto na hercúlea tarefa de atualização cultural ainda
somos reféns do tecido linguístico que nos envolve e limita.
Rodrigo Caldas.
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