Classes verbais e semântica dos argumentos em um sistema sintático cindido: o exemplo do wayana (caribe) Eliane CAMARGO CELIA-CNRS/IRD, NHII-USP Para a classificação dos verbos wayana1, empreguei como critério, o valor das duas séries indiciais que se agregam ao verbo. Uma dessas séries associa-se aos verbos ativos, expressando ‘controle da ação’, a outra se liga aos verbos inativos, exprimindo, por sua vez, ‘o não controle da ação’. Análises anteriores (Camargo, 2000) mostraram que essa bipartição na indicialização era caracterizada pelas 1a. e 2a. pessoas. A 3a. seria marcada diferentemente. Novos dados levaram-me a rever o estatuto da 3a. pessoa. Isto é, eu considerava o prefixo n{ï}- como único argumento possível que se associasse ao verbo, remetendo ora ao actante único, ora ao segundo actante. A nova coleta de dados mostra que a 3a. pessoa também entra nesta bipartição entre a série indicial dos verbos ativos e a série indicial dos verbos inativos, como esquematiza o quadro abaixo: 1 O wayana, pertencente à família lingüística caribe, é falado em um vasto território de fronteira entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname, por cerca de 1500 indivíduos. Os dados aqui analisados foram coletados em diferentes pesquisas de campo efetuadas tanto no rio Paru de Leste (extremo norte do Estado do Pará) como no alto rio Maroni (na Guiana Francesa). Raquel Guirardello contribuiu de forma significativa à reflexão de algumas das questões sintáticas e semânticas deste texto com suas sugestões seus comentários críticos. 1 I. Séries indiciais Ativo (A ou Up) -#C2 -#V 3 1a. wï/i w2a. mï/imU ou P (Voluntário, + esforço, + responsabilidade) 3a. nï/i/e-4 n- Inativo (P ou Up) -#C -#V ïjëëw(Up) (Involuntário, - esforço, resposabilidade) iø- Este quadro aponta uma simetria morfológica do paradigma das pessoas. Porém, há uma diferença entre o emprego sintático das pessoas do discurso (EU/TU) e o emprego da não pessoa (ELE/A) — o alinhamento da 3a. pessoa é distinto do que se tem nas 1a. e 2a. pessoas. No caso da 1a. e 2a. pessoas, a série indicial dos verbos ativos remete sempre ao autor da ação (U ou A), enquanto que a série indicial dos verbos inativos remete ao actante afetado por uma ação que lhe foge do controle (P ou Up). Semanticamente, as três pessoas têm o mesmo princípio (controle ou não da ação), mas a manifestação da 3a. pessoa é diferente: ela nunca se refere a A. Quando representada pelo prefixo n{ï/i}-, ela remete ora ao actante único (U) ora ao actante que representa o paciente (P), ou seja, temos um padrão absolutivo. Vemos neste caso que os verbos indicializados pela 3a. pessoa seguem uma outra classificação em que a oposição transitivo/intransitivo é levada em conta, não distingüindo a subdivisão dos sujeitos intransitivos (Ua X Up) como ocorre com as 1a. e 2a. pessoas na série dos índices que se prendem aos verbos ativos. Esta cisão mostra duas classificações: (à) com as pessoas do discurso, tem-se uma classificação entre verbos ativos/inativos, remetendo ao padrão ativo5; (b) já com a não pessoa, tem-se uma sub-classificação: (i) o prefixo n{ï/i}marca uma subdivisão transitivos/intransitivos, remetendo ao padrão absolutivo; entre verbos 2 Abreviações : A(gente), alien(ável), anaf(órico), C(onsoante), dat(ivo), eve(nto), neg(ativo), P(aciente) priv(ativo), pl(ural), Rec(ipiente), sg (singular), sit(uativo), U(participante único), V(ogal). 3 As formas entre parênteses aparecem diante de uma raiz cuja sílaba inicial é marcada por um ataque silábico (CV(C)), para a variação morfofonológica ver Spike (1998 :79-96). 4 O índice de 3a. pessoa realiza-se /ne/ diante da sílaba -wa do radical verbal. 5 Línguas da América do Norte como o navajo, o sioux, o pomo oriental (na California) e o yucatec também são consideradas como ativas. F. Boas foi um dos primeiros a assinalar a existência da oposição ativo/estativo com sua análise sobre o dakota. 2 (ii) o índice i- (e suas variantes morfofonológicas) associa-se a verbos inativos, remetendo ao padrão ativo. Se a indicialização do verbo pelas pessoas do discurso leva a uma interpretação entre “controle“ e “não controle da ação“, a indicialização do verbo pela 3a. pessoa leva, por sua vez, a uma leitura em que o actante único age voluntariamente/involuntariamente ou, conforme a pragmática discursiva, mostra exercer « +esforço e responsabilidade» ou não ao agir. O presente estudo propõe um panorama do sistema sintático do wayana em que operam dois padrões: um ativo, outro absolutivo. Esses padrões são explícitos com a indicialização do verbo que, conforme a série indicial, requer uma interpretação seja de «+controle/-controle», seja de «+volição/-volição», seja ainda de «+esforço e responsabilidade/-esforço e responsabilidade». O sufixo –ja é interpretado como uma marca de ergativo em muitas línguas caribes. Assim, um outro propósito deste trabalho é uma primeira leitura do valor deste sufixo em diferentes contextos actanciais e circunstanciais em wayana. 1. Algumas das características gerais da língua O wayana reconhece diferentes classes lexicais (nome, adjetivo, verbo, advérbio). Dispõe também de posposições. Trata-se de uma língua de morfologia afixal em que tanto prefixos como sufixos associam-se a nomes (ïpakolo-n //1sg-casa-alien// ‘minha casa’), a verbos (w-ïtë-ja-i //1U-ir-eve-sit// ‘eu vou (embora)’) e à posposições (ï-tapek //1sg-neg// ‘eu não’ ou ‘não sou eu’). Há recursos morfológicos para formar adjetivos (como o adjetivizador – hak: kawë{m} ‘em cima de’, ‘acima’ > kawëm-hak ‘alto’) e nomes (como os nominalizadores –top: ëtuk ‘comer’ > ëtuk-top ‘refeição’). O predicado nominal pode ser formado pela a justaposição de elementos (pro)nominais (2) ou pela presença da cópula6. Na constituição do predicado verbal, o verbo recebe afixos. Como prefixos, morfemas que remetem a modificadores de diátese e actantes (representados por índices pessoais), associam-se ao verbo. Os índices actanciais se apresentam em duas séries, uma subjetiva outra objetiva, esta última é idêntica aos afixos possessivos. Como sufixos, são as marcas de aspecto-tempo, de modo, modalidade (de ação ou outro valor), de número (-të de 1a. e de 2a. pessoa7) que se agregam ao verbo. 6 Para uma análise do predicado marcado pela cópula, ver Camargo, 2003 (no prelo). 7 O plural verbal para a 3a. pessoa é indicada pela partícula tot. 3 1.1. Os predicados e a semântica dos argumentos Em wayana há enunciados que se empregam sem nenhum actante. O lexema kopë ‘chuva’ pode funcionar como nome (1a) e como verbo (1b). Em (1b), o sufixo aspectual –me marca o estado contingente. (1) a. kopë n-umëk-ja-i chuva 3U-vir-EVE-sit (lit. ‘a chuva, ela vem’) ‘vai chover’ b. kopë-me chuva-EVOL ‘está chovendo’ A justaposição de dois elementos nominais oferece duas leituras : uma adjetiva (2a), outra verbal (2b) : (2) a. eluwa palasisi (n-umëk) homem francês (3U-chegar.completo) ‘o homem francês (chegou)’ b. eluwa palasisi (lëken) homem francês (assertivo) ‘o homem é francês (mesmo)’ Se um dos elementos for um pronome tônico, este ocupa a posição final do enunciado e requer uma interpretação predicativa : c. palasisi ïu francês 1sg ‘sou francês’ Uma predicação marcada seja pela cópula (3a), seja pelo existencial (3b) requer um actante nominal : (3) a. këmëiken man-a-i frio 2U-ser/estar-situativo ‘você está com frio’ 4 b. eluwa man homem existir tuna-kuau rio-dentro ‘(parece) haver um homem n’água8’ Os exemplos (1a., 2a. e 3a.) mostram que o elemento que se posiciona à direita do enunciado ocupa uma posição verbal e o elemento nominal, com o qual se relaciona, ocupa a posição inicial do enunciado. Em uma construção uniactancial, a ordem do constituinte é SV e, em uma construção biactancial, a ordem preferencial é SOV. Esta seqüência pode ser alterada conforme a natureza pragmática da situação de comunicação, alteração permitida com argumentos nominais ou também índices pessoais, quando estes exercem a função de recipiente. 1.2. A indicialização verbal Como mencionado acima, o verbo wayana recebe prefixos (índices pessoais e modificadores de diátese9) e sufixos (como TAM10 e modalidade de ação). O verbo uniactancial é obrigatoriamente indicializado, isto é, o verbo é acompanhado de uma marca actancial : (4) eluwa n-ïtë-ja-i (*eluwa ïtë-ja-i) homem 3U-ir-EVE-sit ‘o homem vai (embora)’ O mesmo não acontece com um verbo biactancial, como ilustram os enunciados abaixo. Em (5a), o verbo não é indicializado, pelo fato de o actante que representa o agente (eluwa ‘homem’) e o segundo actante (pakila ‘caititu’) estarem lexicalmente presentes. Em (5b), apenas o segundo actante está lexicalmente aparente e o verbo continua sem afixação, porém a ausência lexical do segundo actante requer obrigatoriamente a indicialização do verbo (n{ï}-) que remete a P (5c) : (5) a. eluwa pakila homem.A caititu.P ë comer.completo ‘o homem comeu caititu’ b. pakila caititu.P ë comer.completo 8 Resposta a uma pergunta do tipo tëne eluwa ‘cadê o homem ?’ – parece estar/haver um n’água. 9 A diátese (voz média, recíproca e reflexiva, por exemplo) não é tratada no presente texto. 10 O valor aspectual de completo (accompli) não recebe nenhum tratamento morfológico específico em wayana. 5 ‘(ele) comeu o caititu’ c. eluwa homem n-ë 3P-comer.completo ‘o homem o comeu’ Esses enunciados em (5) mostram que a construção ativa não apresenta um tratamento morfológico específico para indicar o ergativo. A função argumental é dada pelo alinhamento dos actantes, em que o actante que representa o agente ocupa a posição inicial do enunciado e o segundo actante se posiciona sempre à esquerda do verbo, formando um bloco « Objeto-Verbo ». Em um verbo de três actantes, a sua indicialização remete sempre ao segundo actante (6b): (6) a. eluwa homem pïlasi enep ï-ja cesto trazer.completo 1sg-recipiente ‘o homem trouxe o cesto para mim’ b. eluwa homem n-enep ï-ja 3P-trazer.completo 1sg-recipiente ‘o homem trouxe-o para mim’ Esta regra é aplicada a todos os tipos de verbos (de processo, de sentimento, de cognição, entre outros), indiferentemente da referência aspectotemporal, quer no presente (4), quer no passado (5-6). 2. Classes verbais e indicialização A questão das línguas ativas me faz lembrar Sapir (1970 [1921]) para quem as línguas ditas ‘ativas’11 distinguem, em classes diferentes, os sujeitos transitivos e os sujeitos intransitivos ativos dos objetos diretos - definição situada no plano sintático (sujeitos transitivos e intransitivos). Para Klimov (1974), entre outros lingüistas, as línguas ativas apresentam uma unidade de marcação para os agentes transitivos e intransitivos, de um lado, e uma unidade de marcação para os pacientes transitivos e intransitivos, do outro. Isto mostra que tais línguas mantêm uma relação com a sintaxe, porém de forma bastante indireta por serem basicamente orientadas às relações existentes entre os participantes ativos e inativos da situação (Klimov, 1973 : 328). Desta repartição 11 Lazard (1994 :44) propõe uma terminologia distinta, preferindo denominar « estrutura dual » para dividir em dois o conjunto das construções uni- e biactanciais. 6 sintática, Dixon (1994) propõe uma análise que chama de Fluid S, na qual se refere a uma mesma marcação pessoal para verbos transitivos e verbos intransitivos — fenômeno lingüístico, conhecido na literatura como intrasitividade cindida. Tal cisão sintática é encontrada em wayana. Venho, porém, trabalhando com a oposição semântica que distingue os verbos ativos dos verbos inativos, usando como suporte a morfologia dos índices pessoais e, em alguns casos, para o entendimento da classificação de certos verbos, ditos de ação (como ‘trabalhar’, ‘dançar’ e ‘roubar’, por exemplo), interpretados em wayana como inativos, recorri à “teoria” nativa. 2.1. Ativo x Inativo e indicialização do verbo Como dito anteriormente, em wayana a classificação dos verbos é determinada por duas séries indiciais : uma que se agrega aos verbos ativos e outra que se associa aos verbos inativos. Na primeira, o sujeito é autor da ação, e, portanto, mantém o controle da situação ; na segunda, o sujeito sofre a ação, e, por conseguinte, não obtém o seu controle. Assim, verbos do tipo ativo são, por exemplo, -uhmo ‘bater com arma12’, -pïlë ‘bater’, -ëlï ‘beber’, -ïtë ‘ir’, -umëk ‘vir’, -ëmtapijapka ‘bocejar’ (voluntário), comportando em uma mesma categoria verbos tradicionalmente ditos transitivos e intransitivos. Já como exemplos de verbos inativos, temos: -ïnïk ‘dormir’, -uika ‘defecar’, -këktïm ‘gritar’, -uwa ‘dançar’, -ëlemi ‘cantar’, -anukta ‘metamorfosear’. Com os verbos ativos pode-se dizer haja ‘volição’ na autoria da ação, e com os verbos inativos, ao contrário, há ‘não volição’. Adiante veremos que ao lado do valor volitivo valores semânticos como o de « +esforço e responsabilidade/-esforço e responsabilidade » são expressos quando o verbo é marcado pela 3a. pessoa. Em wayana, pode-se dizer que a valência, isto é, o número de argumentos requeridos pelo verbo, não é um fator levado em consideração na escolha do tipo de indicialização a marcar o verbo, pois um verbo tanto monovalente (como -ïtë ‘ir’, -umëk ‘chegar’) como bivalente (-ë ‘comer’, -ëne ‘ver, visitar’) ou ainda trivalente (-ëkalë ‘dar’, -ka ‘dizer’) recebe uma mesma série indicial. O traço distintivo é o de « +controle/-controle » da situação denotada pelo predicado. Assim, com os verbos ditos ativos, o actante (seja ele actante único ou aquele que representa o agente) controla a situação, ao passo 12 Os verbos –uhmo e –pïlë designam ‘bater’. O primeiro trata-se de um ‘bater com um instrumento que pode – se houver intensão - levar à vítima à morte’. Usado em caso de pancadaria, de uma surra ou ainda em conflito entre inimigos. O segundo refere-se a um ‘bater’ sem intenção de machucar muito, como ‘bater em alguém da família : criança, esposo/esposa’. 7 que com os verbos ditos inativos, os participantes — sem controle da situação — são afetados por ela. No plano morfossintático, o emprego dos índices pessoais que correspondem às 1a. e 2a. pessoas difere daquele que corresponde à 3a. pessoa. Isto é, os prefixos das pessoas do discurso associados ao verbo ‘ativo’ remetem ao autor da ação (A), e aqueles associados ao verbo ‘inativo’ referem ao participante afetado pela ação. Os quadros II esquematiza o padrão ativo, operado pelas pessoas do discurso (EU/TU): II. Padrão ativo: série indicial (1a./2a.) Ativo (A ou Ua) Inativo (P ou Up) -#C -#V -#C -#V 1. wï/i13wïj2. mï/imëëw- Ativo (7) kokopsik ïmë-pona w-ïtë-ja-i cedo roçado-dir 1A3P-ir-EVE-sit ‘vou cedo ao roçado’ (8) a. wantëlëpsik aimala w-ë-ja-i depois, mais.tarde traíra 1A3P-comer.alimento.animal-EVE-sit ‘vou comer traíra depois’ b. ø-upo w-amik 3pos-roupa 3A-roubar.completo ‘roubei a roupa dele’ Inativo (9) ï-kep-ja-i 3A1P-cansar-se-EVE-sit (lit. ‘ele me cansa’) ‘estou (sempre) cansado’, ‘eu (me) canso’ (10) j-ëmenum 1sg-roubar.completo (lit. ‘ele me (fez) roubar’) ‘roubei (algo)’ (sem intenção: não queria roubar, mas me fizeram fazer isso) 13 As formas entre parênteses aparecem diante de uma raiz cuja sílaba inicial é marcada por um ataque silábico (CV(C)), para a variação morfofonológica ver Spike (1998 :79-96). 8 A classificação dos verbos em ativos e inativos não vigora com a 3a. pessoa. A marcação do verbo pelo prefixo n{ï/i}- remete ora ao actante único (U), ora ao segundo actante (P). Tem-se aqui um padrão absolutivo que remete à oposição transitivo/intransitivo; oposição que não é aplicável aos verbos marcados pelas pessoas do discurso. O quadro IIII, que ilustra as formas da 3a. pessoa, revela uma outra subdivisão semântica. O emprego do prefixo n{ï/i}- parece expressar volição14, causa, propósito, ao passo que o prefixo i- (e suas variantes morfofonológicas) exprime o contrário, isto é, ação/estado sem esforço/volição, sem causa (i.é., acidental), sem propósito. Como com as séries indiciais de 1a. e 2a. pessoas, as formas de 3. pessoa também respondem ao controle da ação (n{ï/i}-) e ao não controle da ação (i-): III. Padrão absolutivo: série indicial (3a.) UeP Up +esforço e -esforço 3. responsabilidade responsabilidade -#C -#V -#C -#V nï/i-/eniø- e Padrão absolutivo, marcado por n{ï/i}-: - uniactanciais (U) (11)a. ïmë-pona wëlïi n-ïtë-ja-i roçado-dir mulher 3U-ir-EVE-sit ‘a mulher (sempre) vai ao roçado’ b. pëtuku n-ïnïk-ja-i bem 3U-dormir-EVE-sit ‘ele dorme bem’ - biactanciais (P) (12) a. eluwa pakila homem caititu uwë matar.completo ‘o homem matou caititu’ b. eluwa n-uwë homem 3P-matar.completo ‘o homem o matou’ 14 Há línguas que apresentam um sistema do tipo ‘volutivo’ como o Bengalês e o Sinhala, como cita DeLancey (1985 :48). 9 *c. pakila n-uwë ‘o caititu o matou’ d. kaikui (istaino) n-uwë onça 3P-matar.completo ‘a onça o matou’ Padrão inativo, marcado por i-/ø- (Up): (13) i-kep-ja-i 3U-estar.cansado-EVE-sit ‘ele está cansado do trabalho’ 2.2. Flutuações morfológicas nos sistemas sintáticos O quadro III mostra duas formas de flutuações morfológicas na indicialização do verbo. O índice n{ï/i}- remete ao padrão absolutivo, porém o prefixo pessoal i- remete ao padrão inativo. Qual seria o valor de tal índice preso ao verbo ? Apesar de este estudo ainda estar em curso e não dispor de uma uma lista exaustiva das diferentes flutuações, posso adiantar alguns exemplos. 2.2.1. Padrão “absolutivo” x padrão “inativo” Alguns verbos ditos inativos como –lëmëp ‘morrer’, -mata ‘estragar/apodrecer’, -kep ‘cansar(-se)’, por exemplo, podem receber as duas séries indiciais da 3a. pessoa. Com o emprego do prefixo n{ï/i}-, explicita-se uma causa específica, uma volição e, em certos contextos, expressa a responsabilidade da autoria da ação. Com o prefixo i- expressa-se o contrário. O verbo marcado por este índice expressa que se trata de uma ação involuntária que está fora de controle de um agente. A ação é sem volição e o actante não arca com a responsabilidade da ação. Vejamos alguns exemplos: Em (14a), o prefixo n{ï/i}-, agregado ao verbo morrer, sugere que a morte ‘é conseqüência de uma determinada causa, seja por enforcamento, seja por imprudência’. Em (14b), o índice i- sugere que a morte ‘é uma conseqüência natural’. No primeiro caso, o sujeito tem o controle da ação ao passo que no segundo caso, ele é afetado pela ação de forma involuntária. Isto é, o actante único é marcado conforme o papel que desempenha no processo. (14)a. (eluwa) (homem) nï-lëmëp 3U-morrer.completo ‘(o homem/) ele morreu’ 10 b. (eluwa) (homem) i-lëmëp 3A3P-morrer.completo ‘(o homem/) ele morreu’ A mesma variação semântica entre +controle e -controle da situação é ilustrada com o verbo –mata ‘estragar, apodrecer’. Em (15a), a comida se estragou por descuido da mulher, ao passo que em (15b), a comida se estragou por causa do calor. (15)a. wëlïi tëhem tënephe ni-mata mulher comida 3refl-trazer-TAM 3A3P-estragar.completo ‘a mulher trouxe a comida que se estragou (porque ela não cuidou direito)’ b. wëlïi tëhem t-ënep-he i-mata-tpï mulher comida 3refl-trazer-TAM 3A3P-estragar.particípio ‘a mulher trouxe comida estragada (que se estragou por causa do calor)’ Abaixo, os marcadores nos verbos de estado -kep ‘cansar(-se) do trabalho’15 e -wakam ‘sentar(-se)16’ explicitam o papel semântico do actante único no processo verbal. Em (13, 16), trata-se de uma ação na qual o actante único não é o “responsável” pelo ato de trabalhar, mas antes o “afetado” por ele, pois o trabalho é feito sob as ordens de um chefe. (15b) mostra o controle da situação em que o actante único controla o estado de ‘estar ou não sentado’. Interpretações que sugerem a idéia respectivamente de ação voluntária e de ação involuntária: (13) i-kep-ja-i (*ni-kep-ja-i) 3U-estar.cansado.do.trabalho-EVE-sit ‘ele está cansado do trabalho’ (16) ne-wakam-ja-i (*b. e-wakam-j-a-i) 3U-sentar(-se)-EVE-sit (lit. ‘ele/a (se) senta’) ‘ele está sentado’ 15 A forma verbal -ëkëlep designa ‘estar cansado do trabalho que se realizado longe da residência, obrigando o participante a fazer um longo trajeto’; -kep designa ‘estar cansado de trabalhar’, porém o trabalho pode ser realizado na comunidade ou no espaço da própria residência. 16 O estado de ‘estar sentado’ pode ser expresso por uma construção, marcada pela cópula : lomo w-a-i (chão / 1S-ser/estar-sit) ‘estou no chão’, kolome w-a-i (banco-evolutivo / 1sg-ser/estar-sit) ‘estou sentado no banco’). 11 2.2.2 Ativo x inativo Esta flutuação ocorre também nos padrões ativo e inativo, marcados pelas pessoas do discurso. O verbo ‘descer’ –ïptë, por exemplo, pode ser indicializado tanto pela série pessoal dos verbos ativos (17a) quanto pela série dos verbos inativos (17b): (lomo-na) (17)a. w-ïptë-ja-i 3A1P-descer-EVE-sit (ATIVO) (terra-loc) ‘eu desço (no chão)’ b. j-ïptë-ja-i (ëtap-na) (INATIVO) 3A1P-descer-EVE-sit (rede-loc(ativo)) ‘eu desço (da rede)’ A situação de comunicação mostra claramente o emprego dessa flutuação. Em (17a), actante único encontra-se seja em cima de uma árvore, seja no primeiro andar da casa, o que sugere estar em movimento e em pé. Ao passo que em (17b), o actante único encontra-se deitado em uma rede, indicando uma certa estatividade do corpo: o actante desce da rede, seguindo o impulso do seu corpo; o esforço envolvido no ato de ‘descer’ é muito menor daquele exigido ao ’descer’ de uma árvore. Esse verbo de movimento revela na verdade um grau de dinamicidade que rege o tipo ativo (+dinâmico, com movimento, +esforço e responsabilidade) e o tipo inativo (-dinâmico, sem movimento, -esforço e responsabilidade). 2.2.3. Mudança de orientação verbal A semântica de alguns verbos influencia a marcação que irão receber, dependendo da orientação e da lógica do evento. Com o verbo que expressa a noção de ‘engravidar’, o uso de indicialização está relacionado ao gênero do falante. Se o agente for o homem, o verbo –anëp ‘engravidar’ vai requerer a série indicial dos verbos ativos, ao passo que se o paciente for a mulher, àquele verbo prende-se a série indicial dos verbos inativos: (ATIVO, referência ao homem) (18)a. w-anëpke-i 1A3P-engravidar-EVE-sit ‘engravido’ (lit. eu a engravido) b. j-anëp-ja-i (INATIVO, referência à mulher) 3A1P-engravidar-EVE-sit ‘estou grávida’ (lit. ‘ele me engravida’) 12 Referindo-se à prática das relações de aliança, os lexemas –peitopa (Brasil) e –peitoma (Brasil, Gfrancesa) ambos significam ‘a troca de irmãs’. O lexema –peitoma recebe a série dos verbos inativos, indicando que o segundo actante é o participante afetado. Neste caso, o verbo -peitoma significa ‘receber’ (19a). Com o lexema –peitopa, que recebe a indicialização dos ativos, privilegia-se o agente sugerindo a interpretação de ‘dar’: (INATIVO) (19)a. ï-peitome-i 3A1P-trocar.irmã.eve -sit ‘eu recebo a esposa (a irmã do outro)’ b. wi-peitope-i (ATIVO) 1A3P-trocar.irmã.EVE-sit ‘eu dou a (minha) irmã’ Essa flutuação não é pertinente com à mudança de diátese. Ao empregar o morfema de reciprocidade –ëh- > -ëh-poitopa- ‘trocar-se as irmãs (um com o outro)’, só o caso ativo é gramaticalmente aceito: (20) w-ëh-poitope-i 1A3P-rec(íproco)-trocar.irmã.EVE-sit ‘eu troco a (minha) irmã’ O verbo ‘trocar’ expressa, por si próprio, uma ação recíproca, na qual ao menos dois participantes exercem uma ação, não sobre si, mas um em relação ao outro. A construção verbal –ëh-poitopa- ‘trocar reciprocamente’ pressupõe, assim, que o ‘agente também seja o paciente’, cuja interpretação literal sugere a seguinte leitura : ‘eu troco/dou a (minha) irmã a alguém que, por sua vez, me d(ar)á a sua (irmã)’. Duas pequenas observações de ordem etnolingüística parecem-me interessantes para o entendimento do semantismo verbal e indicial: • Na Guiana Francesa, uma variação fonológica entre –poitoma e -peitoma distingüe, respectivamente, o ‘procurar uma esposa, junto a cunhados potenciais’ do ‘receber uma esposa/irmã do outro’ — semantismo que sugere uma mudança de orientação : ator em um caso e receptor no outro. Esse tipo de variação fonológica é comum entre os lexemas que expressam um valor genérico (poito ‘subalterno) e um valor específico (-peito ‘subalterno de 13 alguém’), próprio em uma relação de pertencimento17. Se fizermos um paralelo entre esses valores semânticos, temos com peito-ma a noção de receber e de deter o elemento possuído (já que é conhecido, específico) e com poito-ma a noção do procurar sem ainda deter o elemento possuído (que ainda é desconhecido, genérico). • A outra observação diz respeito à morfologia da raiz verbal dos verbos empregados de (18-20). Nestes a forma verbal ‘engravidar’ é anëp no inativo, mas anëp-ka no ativo, e também peito-pa no ativo e peito-ma no inativo18. Essas formas — -ka, -pa e –ma entre outras — fazem parte de um processo morfológico de formação de verbos, como, por exemplo, -ka que geralmente remete à formação de verbos causativos. Este processo de formação de verbos não é abordado neste estudo. É evidente que tal oposição nos faz lembrar do caso do bats (língua do Cáucaso) ou de línguas ameríndias como o guarani (Velazquez-Castillo, 1991) ou do zo’é (Dionísio Bueno, com. pessoal), nas quais tal oposição revela se a ação é ou não controlada pelo actante (U ou A). 3. Índices actanciais 3.1. Formas Os exemplos analisados mostram que o verbo wayana é afixal. Como prefixos, aparecem os índices actanciais e índices de diátese como ëhrecíproco/reflexivo, como ilustrado em (12). Como sufixos, aparecem marcas, entre outras, de valor aspecto-temporal (-ja classe aberta de eventos), de modo (imperativo), de modalidade (-i que gloso como situativo19), de número (-të para a 1a. e 2a. pessoa, e tot para a 3a. pessoa). Os exemplos acima mostram que os índices pessoais expressam a relação entre A-P sob uma única forma morfológica (conhecida sob o nome de forma sagital ou portemanteau), alojando em cada marca dois actantes, como ilustra o quadro abaixo : 17 Variação fonológica comum na relação de pertença (poitopït ‘filhos’ > pëitopït ‘os filhos de’), sobretudo com os termos relativos às partes do corpo humano : ëwu ‘olho’ (genérico) > ewu ‘o olho de’ ; omo ‘mão’ (genérico) > amo ‘a mão de’. 18 Uso predominante na Guiana Francesa. 19 Esse morfema –i regrupa um valor temporal (em concomitância com o ato enunciativo ou que remete à ação, o evento ou o estado para além do ato enunciativo) e um valor modal no sentido de que o enunciador expressa seu testemunho do fato enunciado. Ele é obrigatório com as pessoas do discurso. Com a 3a. pessoa, é facultativo, porém ao ser empregado, o enunciador indica ser testemunha do que enuncia. 14 III. índices actanciais Ativo (A e Ua) Inativo (P e Up) 1a. e 2a. pessoas 1. (SG) w{i/ï}-, ø- (1>203) eu-o/a j-/ï- (1<3) ele/a-me 2. (SG) m{i/ï}- (2>3) você-o/a ëw-/ë- (2<3) le/a-te (PL inclusivo): • ku-, kun-, kuw- (1>2) eu-te, • kut- (-të) (1+2>3) eu e você-o/a • k- (1<2) você-me (PL genérico): h-/s{i}-… (-të-) (1+2+3) nós (todos possessivo j-/ï- ‘meu’ ëw-/ë- ‘teu’ k{u}- nosso (inclusivo) (PL exclusivo): emna n- (-të) (1-2+3) nós (eu, ele sem você) 2. (PL) m(i/ï)-…-të (2>3) vocês-o/a 3a. pessoa (U e P) 3. (SG) n{i/ï}- ele/a (U), o/a (P) 3. (PL) n{i/ï}- tot eles/as (U), os/as (P) ëw-/ë-…-të- emna nosso (exclusivo) ele/a-vocês ëw-/ë-…-kom/-tom21 ‘de vocês’ (Up) i-/e-, ø- ele/a (U, P) i-/e-, ø- tot eles/as (U, P) possessivo i-/ø- ‘dele/a’ i-/ø…-kom/-tom ‘deles/as’ 3.2. Sentido O quadro dos índices pessoais nos proporciona diferentes observações a respeito do valor de cada uma das formas em relação ao semantismo do verbo, dentre as quais: • a repartição entre as 1a. e 2a. pessoas, de um lado, e a 3a. pessoa, do outro ; • a semelhança dos índices de posse (21) e dos índices da série dos verbos inativos (22): (21)a. ï-jum (1sg-genitor) ‘meu genitor’ b. j-emsi (1sg-filha) ‘minha filha’ (22) ï-kep 1sg-estar.cansado.completo ‘estou cansado’ • a predominância formal das pessoas do discurso (EU/TU) sobre a 3a. pessoa (w- 1A3P ‘eu o/a’, m- 2A3P ‘você o/a’); • a semelhança, na série dos verbos inativos, da morfologia específica da 1a. e da 2a. pessoa (16a) (com exceção das formas de plural inclusivo (1+2-3), exclusivo (1-2+3) e trial (1+2+3)) e daquela que se agrega a um verbo bivalente afetando, neste caso, o segundo actante (23b) : 20 Uso os símbolos > ‘maior’ e < ‘menor’ para indicar a relação de inversão entre as pessoas. 21 Formas de plural nominal : -kom plural paucal, -tom plural genérico, coletivo. 15 (23)a. j-akëlep-ja-i 3A1P-cansar(-se).do.trabalho-EVE-sit ‘estou cansado do trabalho’ b. j-ene-ja-i 3A1P-olhar-EVE-sit ‘ele me olha’ • a indicação das diferentes formas do plural inclusivo, a saber : algumas delas apresentam variação morfofonológica na relação entre as pessoas do discurso « eu-te », na qual a 1a. pessoa representa o ‘agente’ e a segunda, o ‘paciente’ (1A2P): ku- (diante de consoante oral), kun- (diante de consoante nasal), kuw- (diante de vogal) : (24) a. kuw-ene-ja-i (1A2P-olhar-EVE-sit) ‘eu te olho’ b. kuw-akilime-i (1A2P-incomodar/perturbar.EVE-sit) ‘eu te incomodo’ ; – o prefixo k- remete a relação ‘tu-me’ : (25)a. k-ëne-ja-i (2A1P-olhar-EVE-sit) ‘você me olha’; b. k-akilime-i (2A1P-incomodar/perturbar.EVE-sit) ‘você me incomoda’ ; Alguns verbos só admitem a relação 1A2P, sendo a interpretação de 2A1P possível somente na forma imperativa (26b): (26)a. ku-meleke.i (1A2P-tocar.EVE-si) ‘eu te toco’ b. ku-meleka-k (2A1P-tocar-imper) ‘toque-me !’ A presença da forma de plural –të- requer uma outra leitura, a de um plural exclusivo agindo sobre a 2a. pessoa : c. ku-meleke-të-i (12A3P-tocar-pl-TAM) ‘tocamos/mexemos em você(/s)’ – o índice kut- indica que a 1a. e a 2a. pessoas estão em relação com uma 3a. pessoa : (27)a. kut-ke-i (1+2A3P-falar.EVE-sit) (lit. ‘nós dois o falamos) ‘nós dois falamos com ele’ ; b. kut-u-ja-i (1+2A3P-explicar-EVE-sit) ‘explicamos-lhe’ ; (lit. nós o explicamos) c. kut-ene-ja-i (1+2A3P-olhar-EVE-sit) ‘nós dois (eu e você) o olhamos; 16 • a prefixação de s{i/ï}-/h- ‘nós’, a ‘gente’ em uma relação que pode ser estabelecida entre as pessoas do discurso : (28)a. wewe h-elame-i (pau / 1+2-virar-EVE-sit) ‘a gente vira o tronco (do outro lado) ; b. si-panakme-i pëtuku (1+2+3-entender.EVE-sit / bem) ‘nós entendemos/a gente entende bem’, ou entre mais de duas pessoas (eu, você, ele/a), usando, quando preciso o sufixo de plural –të: (29) ulu si-pika-ta-të-i (mandioca / 1+2+3-descascar-deferencial-plural-sit) ‘vamos descascar mandioca ! 4. Cisão sintática operada pela indicialização Os diferentes verbos analisados acima (como -ïtë ‘ir’, -kep ‘cansar(-se)’, -ë ‘comer’, -enep ‘trazer’) mostram que tanto os verbos ditos intransitivos (que regem um argumento) quanto os verbos transitivos (que disponibilizam dois ou três lugares argumentais) pertencem, em wayana, a uma mesma categoria, por apresentarem uma classificação semelhante. A classificação do verbo wayana responde à oposição ativo/inativo em que o controle e o não controle da ação é um traço semântico fundamental. Do ponto de vista sintático, as séries indiciais são os índices evidentes de uma cisão que, por sinal, é o operador da classificação verbal entre ativos e inativos. A 3a. pessoa, que também responde a essa cisão, apresenta com o prefixo n{ï/i}- um padrão absolutivo: conforme a valência verbal uni ou biactancial, este índice remete ou ao actante único ou ao segundo actante. Nos demais casos, a classificação do verbo não evidencia a cisão sintática, pelo fato de termos optado por uma distribuição que corrobore o emprego das duas séries indiciais: aquela que se agrega aos verbos ativos e aquela que se associa aos verbos inativos. Nesta dupla repartição, os exemplos analisados mostram que com a série indicial dos verbos ativos, se expressa um controle da ação (ou, em certos casos, não exatamente controle, mas responsabilidade por parte do ator da ação), enquanto que com os índices dos verbos inativos sugere-se ausência de controle. O prefixo de 3a. n{ï/i}- não deixa de ser um fenômeno a parte, pois além de expressar o controle do actante na ação (U) e o fato de ser afetado por ela (P), ele expressa volição ou causa ou ainda +esforço e responsabilidade ao passo que o índice i- exprime não controle da ação, não volição ou também –esforço e responsabilidade. 17 A análise apresentada não fornece elementos para afirmar que o wayana conheça uma sintaxe ergativa, a não ser a cisão morfossintática, indicada pela série indicial dos inativos que corresponde à série indicial da posse — fenômeno corrente na família lingüística caribe. Há porém uma construção que merece atenção especial. Uma parte da literatura caribe (Spike, 1998, por exemplo) menciona construções sintáticas com um sistema ergativo, em que o sufixo casual do ergativo seria cognato do dativo *wïya. Do ponto de vista morfossintático, o wayana dispõe desta mesma estrutura sintática presente em outras línguas, em que o verbo recebe o prefixo de posse reflexiva (t{ï/i}-) e o sufixo -se/-he/-i de valor aspecto-temporal. Se o verbo for uniactancial ou biactancial, o actante aparente não recebe nenhuma marca específica de função caso, seja referente ao actante único (30) ou ao segundo actante (31) respectivamente: (30) pakila t-ïtë-i caititu 3refl-ir-TAM ‘o caititu foi embora’ ou ‘o caititu vai embora’ (31)a. pakila t-uwë-i caititu 3refl-matar-TAM (lit. ‘o caititu, sua própria morte/caçada’) ‘o caititu morreu’, ‘o caititu está/foi morto’ Vemos que o índice t- está em coreferência com o actante único e com o segundo actante. A introdução em (31) de um outro actante é feita somente em uma situação pragmática que requer uma precisão na informação ou então para desfazer ambigüidades. Neste caso, o actante que representa o agente recebe o sufixo –ja: b. pakila t-uwë-i eluwa-ja caititu 3refl-matar-TAM homem-ja (lit. ‘o caititu, sua própria morte, homem-ja’) ‘o caititu está/foi morto/caçado pelo homem’ porém se o segundo actante for um elemento inanimado, o actante que representa o agente não recebe nenhum tratamento morfológico: 18 (32)a. ulu tï-pïka-i mandioca wëlïi22 3refl-descascar-TAMmulher ‘a mulher descascou/vai descascar mandioca’ O apagamento do segundo actante ulu ‘mandioca’ não suscita nenhuma restrição semântica quanto à interpretação da construção, que mantém o actante que representa o agente. Neste caso, o objeto não é especificado, mas não deixa de ser implicado semanticamente, pois há uma ação realizada sobre algo, ou seja ‘a mulher descaca algum tubérculo’: b. wëlïi tï-pïka-i 3refl-descascarTAM mulher ‘a mulher descascou/vai descascar (qualquer tubérculo) b’. wëlïi tï-pïka-i mulher 3refl-descascar-TAM ‘a mulher descascou/vai descascar (qualquer tubérculo) A ordem dos constituintes nesta estrutura é rígida com relação ao actante único e ao segundo actante; o elemento que representa seja o agente seja o recipiente susceptível à mobilidade, toma a posição inicial ou final do enunciado. Se em (32) o agente não é tratado morfologicamente para indicar o agente por não haver ambiguidade nos papéis semânticos, o mesmo não acontece em (33) em que os dois argumentos aparentes são elementos inanimados. Nesta construção, o sufixo -ja é requerido e parece indicar o autor da ação: (33) kopë-ja j-upo t-ëukuma-i chuva-ja 1sg-roupa 3ref-molhar.completo-TAM ‘a chuva molhou minha roupa’ ou ‘ a minha roupa molhou-se na chuva’ Porém, uma outra leitura é plausível em que o ‘local onde ocorreu o evento’ seja o ponto alvo que requer a marcação. Vejamos, então, abaixo outros empregos e valores de -ja. • O valor de direcional de -ja23 22 Enunciado coletado na Guiana Francesa. No falar wayana no Brasil, há uma tendência, talvez por influência do aparai (língua também caribe) em marcar o agente com o sufixo –ja. 23 Para uma primeira abordagem do valor de –ja interagindo espaço e aspecto, cf. Camargo, 2000. 19 Em uma construção uniactancial finita ou não, o elemento lexical aparente, marcado por -ja (34a’, 34b), não é o actante único, como em (34a), mas sim um locativo/local-alvo: (34) a. poika t-ïtë-i poika.U 3refl-ir-TAM ‘A Poika foi/vai embora’ a’. poika-ja t-ïtë-i poika-ja 3refl-ir-TAM (lit. ‘na Poika, ele(/a) está’) ‘ele(/a) foi/está na casa da Poika’ b. poika-ja w-ïtë-ja-i poika-ja 1A-ir-EVE-sit ‘vou à casa da Poika’ Esse local-alvo, que implica movimento, é indicado por -jak quando a referência não for um elemento animado : (35)a. ë-jekakta kopë-jak 2U-sair.completo chuva-dir ‘você saiu na chuva’ b. kanawa-jak w-ïtë-ja-i canoa-dir 1U-ir-EVE-sit ‘vou à canoa’ Em uma construção triactancial, o sufixo -ja pode marcar seja o autor da ação (36a) seja o recipiente (36b). Neste caso, pode-se pensar em uma orientação do verbo em que (36a) indica o ponto de partida da ação24, tendo o seu ponto de chegada, marcado em (36b): (36)a. kahulu t-ëkalë-i wëlïsi-ja (marca o agente) miçanga 3refl-dar-TAM mulher-ja ‘a mulher dá (artefato) de miçanga’ b. kahulu t-ëkalë-i eluwa-ja (marca o recipiente) miçanga 3refl-dar-TAM homem-ja 24 Poder-se-á fazer aqui um paralelo com um fenômeno próximo em birmanes em que tanto o agente como o paciente de uma ação recebem os mesmos marcadores indicando o ponto de saída, ká, e o ponto de chegada, ko, de um movimento. Esta língua pode escolher diferentes tipos de sintaxe segundo as necessidades da pragmática, ela vai da hipotaxe à parataxe (Tchekoff (1978) e Lazard (1994) citando D. Bernot). 20 ‘o homem recebe miçanga’ Em uma construção complexa, a presença de -ja marca o recipiente (37b, 38b). Em termos de coreferencialidade, observa-se, respectivamente em (37a, 38a) que os actantes representados por eluwa ‘homem’ e wëlïi ‘mulher’ são agentes na construção principal e recipientes na relativa. Ao contrário, em (37b, 38b), o agente e o recipiente são representados por participantes distintos e neste caso o recipiente é marcado por -ja. (37)a. eluwa n-alë pïlasi wëlïi n-ekalë-tpï homem.A 3P-levar.completo cesto.P mulher.A (3A)3P-dar-part (lit. ‘o homem o levou, o paneiro (que) a mulher lhe deu’) ‘o homem levou o cesto que a mulher lhe deu’ b. eluwa n-alë pïlasi tï-n-ëkalë-tpï wëlïsi-ja homem.A 3P-levar.completo cesto.P 3refl-3P-dar-part mulher-ja (lit. ‘o homem o levou, o cesto, o seu próprio dado à mulher) ‘o homem levou o paneiro que ele deu à mulher’ (38)a. wëlïi mawu ekum t-ëmsi n-enepï-tpï mulher.A algodão.P fiar.completo 3refl-filha.A (3A)3P-trazer-part (lit. a mulher o algodão fiou, sua própria filha o trouxe) ‘a mulher fiou o algodão que a sua filha lhe trouxe’ b. wëlïi mawu ekum tï-n-enepï-tpï t-ëmsi-lï-ja mulher.A algodão.P fiar.completo 3refl-3P-trazer-part 3refl-filha-inal-ja ‘a mulher fiou o algodão que ela trouxe à sua filha’ Em construções complexas marcadas por verbos biactanciais, o agente não recebe nenhum tratamento específico que marque a sua função de ergativo, como ilustra o enunciado abaixo: (39) eluwa pïlasi ikap n-ekam homem.A cesto.P fazer.completo (3A-)3P-vender.completo (lit. ‘o homem fez cestos, (cestos) que vendeu’) ‘o homem fez cestos que vendeu’ Esses exemplos marcados por -ja chamam a atenção para uma interpretação, de um lado, do valor expresso por esse morfema, e do outro, da leitura da estrutura sintática “t{ï}-verbo-TAM”, quando esta requer a marcação do actante que representa o agente. Pergunto-me o que expressa realmente a marcação do actante por -ja, visto que ele, em certos contextos, não requer tal especificidade morfológica para indicar a sua função sintática. O enunciado (36) 21 mostrou que –ja expressa um valor de dativo, cognato também de um ‘eventual’ ergativo e de um ‘locativo-alvo’. Qual seria o valor prototípico desse morfema, visto que ele aparece, por derivação, em outros contextos locativos? O fenômeno sintático e semântico apresentado em (36), com um mesmo verbo (-ëkalë ‘dar’), marcando ora o agente ora o recipiente, segundo o gênero do participante animado deve ser verificado com outros verbos. E para terminar, as construções complexas acima não assinalam uma marcação do ergativo. Nessas construções, a coreferência por processo morfológico parece sempre afetar o segundo actante. Essas observações levam-me, neste primeiro estudo, a considerar que o wayana não apresenta caso ergativo. A língua apresenta, no entanto, uma cisão sintática marcada pela série de índices pessoais, e é somente na 3a. pessoa que o padrão absolutivo pode operar. 5. Referências consultadas BOAS, Fr. 1982 [1940]. Some traits of the Dakota language. Race, Language and culture, Chicago, London, The University of Chicago Press, pp. 226231. CAMARGO, E. 2000a. “L'ordre des constituants en wayana. Langue amérindienne du plateau guyanais”, Donabédian A. & Xu Dan (eds), L'ordre des mots, Cahiers de Linguistique de l'INALCO (3), Paris, INALCO, pp. 147-168. 2000b. Une interaction entre localisation et aspect. Amerindia 25, Paris, AEA, pp. 1-24. DELANCEY, S. 1985. On active typology and the nature of agentivity, Relational Typology, Fr. Plank (ed), ‘Trends in Linguistics, Studies and Monographs 28’, Mouton Publishers, Berlin, New York, Amsterdam, pp. 47-60pp. DIXON, R. 1994. Ergativity, Oxford University Press. JACKSON, W. S. 1972, “A Wayana Grammar”, Languages of the Guianas, Joseph Grimes (ed),SIL University of Oklahoma. 64p. KLIMOV, G. A, 1974. "On the character of languages of active typology", Linguistics, 131, 11-25p. LAZARD, G. 1994, Actance, Paris, PUF, 285p. 22 GILDEA, S. 1998. “On Reconstructing Grammar. Comparative Cariban Morphosyntax”, Oxford Studies in Anthropological Linguistics, Oxford University Press, 284p. HAGEGE, Cl. 1982, "La structure des langues", Que sais-je ?, Paris, PUF. JELINEK, E. 1993. Ergative “Splits” and Argument type’, MIT Working Papers in Linguistics 18, pp. 15-42. MEL’CUK, I. 1992. Toward a logical analysis of the notion ‘ergative construction’, Studies in Language 16-1, pp. 91-138. SAPIR, E. 1970 [1921]. Language. An Introduction to the Study of Speech, Great Britain, Granada Publishing. TCHEKHOFF, Cl. 1978. Aux fondements de la syntaxe. Le linguiste, Paris, Puf. 23 6. Anexo: classificação de alguns verbos. ATIVO t-ahijo-i ‘cortar lenha’ t-ahalama-i ‘secar o molho da panela’; ‘emagrecer’ t-ahamo-i ‘chorar’ t-ak-he ‘comer cru’ t-akï-he ‘perder, errar o alvo para a caça’ t-akïma-i ‘começar a desova de mosquito na comida’ t-akpika-i ‘quebrar’ t-akpuma-i ‘cortar (em pequenos pedaços)’ t-alima-i ‘jogar’ t-aliptë-i ‘encher’, ‘pôr dentro de’ t-alïwa-i ‘esvaziar’ t-amik-he ‘recolher (roupa)’, ‘afanar, roubar’ t-anïm-he ‘pegar, recolher’ t-ët-anïm-he ‘levantar-se’, ‘catar’ t-apile-i ‘abrir o algodão’ t-apisaka-i ‘varrer’ t-apu-he ‘fechar’ t-asihnë-i ‘ferver’ t-atka-i ‘brocar’ t-awelema-i ‘secar o molho da panela lentamente’ t-ëhanuk-he ‘subir (a escada, o rio, na árvore)’ t-ëhalë-i ‘ir, partir’25 t-ë-he ‘comer alimento animal’, ‘morder’ t-ëhenma-i ‘entrar’ t-ëhenulika-i ‘estar triste por estar só’ t-ëhemat-se ‘estar com frio/esfriar’ ; ‘lavar as mãos’ t-ëhenuma-i ‘enganar-se’ t-ëheptë-i ‘nomear, dar nome a alguém’ t-ëhetï-he ‘sonhar’ t-ëhetkuli-he ‘pentear-se’ t-ëhmaka-i ficar em casa t-ëh-nameptë-i ‘embriagar-se’ t-ëh-tamaaka-i ‘brincar verbalmente’ (Paru) t-ëjak-he ‘esfregar’ t-ëjoma-i ‘proteger’ t-ët-akama-i ‘ficar alérgico à comida’ të-kawajimtë-i ‘colocar os chocoalhos’ t-ëkale-i 1., dar, 2. contar, 3. abandonar t-ëkam-he dar, vender, dividir t-ëkeju-he fazer beiju t-ëkët-se ‘cortar (graúdo), ‘coivarar’, ‘quebrar’ t-ëwe-kïlïma-i ‘mudar(-se)’ t-ëklë-i ‘fazer’, ‘construir’ t-ëklët-se ‘atravessar’ t-ëlaima-i ‘esperar’ t-ëmëipa-i ‘voltar’ INATIVO t-akilima-i ‘perturbar’ (com muito barulho) t-alïmaimë-i ‘abandonar’ t-anukta-i ‘metamorfosear’ t-amï-he ‘derreter’, ‘destruir’ t-ëkakta-i ‘sair’, ‘nascer’ t-ëkëlep-he ‘estar exausto do trabalho distante’ të-jekakta-i ‘sair (na chuva)’ të-kep-he ‘estar cansado’ t-ëkulep-he ‘perder um jogo, uma aposta’ t-ëlamukta-i ‘transpirar’ t-ëleta-i ‘descansar um pouco’ (Paru) ; ‘renovar’ (GF) t-ëlïk-he ‘morrer atacado, matar em ataque’ t-ëmaminum-he ‘trabalhar’ (GF) t-ëmenum-he ‘roubar’ t-ëmtaka-i ‘trocar’ t-ëmtakaima-i ‘vingar-se’ t-ënëp-he ‘estar grávida pela 1a’ (mulher paciente) t-ëpam-he ‘acostumar-se (com homem)’ t-ëpëjep-he ‘estar esfomeado’ t-ëtomam-he ‘acordar’ t-ëukuma-i ‘molhar’ t-ïnïk-he ‘dormir’ t-ïptë-i ‘descer’ tï-jep-he ‘estar febril’ tï-kata-i ‘engordar’ tï-kamëita-i ‘ter frio’ (Paru) tï-këktïm-he ‘gritar’ tï-latëhpëpam-he ‘estar recém grávida’ tï-lëmëp-he ‘morrer’ tï-mata-i ‘estar podre’, ‘apodrecer’ tï-mujakma-i ‘tocar alguém, abrindo e fechando a mão’ tï-panata-i ‘escutar’ tï-peitopa-i ‘trocar as irmãs’ (Paru) tï-pëlëp-he ‘estar com falta de ar’ tï-sikta-i ‘urinar’ tï-tenkapam-he ‘esquecer’ tï-tïhnapam-he ‘estar (só e) tranquilo na aldeia’ tï-tolopam-he ‘estar inchado’ të-wakam-he ‘estar sentado’ t-uika-i ‘defecar’ t-uikapopka-i ‘ter diarréia’ t-ukulupka-i ‘cair n’água, brincar n’água’ t-upkulup-he ‘cair em um turbilhão d’água’ t-uanta-i ‘crescer (elementos animados, plantas)’ t-uwa-i ‘dançar’ 25 Uso somente na 3a. pessoa do plural. 24