Latusa digital – ano 2 – Nº 16 – julho de 2005 Uma intervenção Carlos Augusto Nicéas* Escolhi trazer para a nossa Conversação1, alguns fragmentos do tratamento de um jovem de dezenove anos atualmente, dependente de drogas, em tratamento comigo há um ano e oito meses. O que quer de um analista um toxicômano? Quem me pediu para falar com Pedro foi sua madrasta, recomendada por um colega meu, psiquiatra. Pedro vive com ela e com o pai há dois anos. Ela quer que Pedro se trate de uma tristeza que sempre o acompanhou: "Até comprimidos ele já ingeriu em grande quantidade no início de sua adolescência. Dizem que ele queria morrer. Nossa preocupação é que ele volte a fazer uma besteira na vida". Não obtive muitos dados sobre Pedro nessa entrevista com a madrasta. Ela insistia em repetir que sabia muito pouco sobre ele durante o tempo em que viveu com a mãe, prometendome, se eu o quisesse, trazer o pai de Pedro para falar do passado do filho. Mas não imediatamente porque ela e o marido estavam de partida para um giro de um mês e meio por vários países europeus. Sua inquietação, no momento, parecia circunscrita a esta questão: "Há casos de depressão na família dele, mas só meu marido saberia falar sobre isso... Será verdade o que eu tenho lido ultimamente nos jornais, que a depressão é hereditária, é de fundo genético”? * Analista Membro da Escola – AME. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). 1 Intervenção em uma Conversação clínica da EBP-RIO, anos atrás, coordenada por Romildo do Rêgo Barros e Heloisa Caldas. Pedro, que já fizera uma psicoterapia na cidade em que mora a mãe, estaria interessado, segundo a madrasta, em retomar um tratamento, e ela se diz disposta a fazer o necessário para que ele venha me ver. E, de fato, será com ela que o analista deverá contar a cada vez que for preciso remetê-lo e tentar mantê-lo em seu tratamento. Digo-lhe que Pedro pode me telefonar. Somente quinze dias depois ele o faz e eu o recebo no dia seguinte. Mas não é por causa de sua depressão que Pedro consente à madrasta em vir me ver. Apesar de reconhecê-la, e até me deixar saber sobre a sua tentativa de suicídio aos doze anos, eu me surpreendo escutando-o falar, logo na abertura de sua primeira entrevista, de sua parceria com a droga. Não me fazendo imediatamente um histórico de sua experiência em consumi-las, o que ele não entende é porque todo mundo quer que ele pare de se drogar. Depois de me informar que já esteve até internado numa clínica, por decisão de sua mãe, sem que isso o afastasse das drogas, ele diz, enfim, o que quer de mim: "Eu só fico na minha quando fumo ou quando cheiro. E disso não abro mão. Eu só queria é que isso não atrapalhasse a minha vida". E me pergunta: "O que o senhor pode fazer por mim”? Chama a minha atenção o seu: "eu só fico na minha". O que, numa outra ocasião, será dito assim: "Eu só me pertenço...". Maneira que ele escolhe para me falar da completude que ele iria reafirmar outras vezes, como aquilo jamais negado a ele pela droga. A proposta que lhe faço é a de um segundo encontro para que eu o ouça falar mais – digo-lhe eu – do seu temor de que a sua prática de drogas possa interferir na sua vida, já que é a isso que ele parece querer circunscrever o seu pedido de ajuda. Foi assim, dessa maneira, que pude oferecer a psicanálise a esse toxicômano solidamente ancorado em sua parceria com a droga, e que já se anuncia no primeiro encontro como um sujeito dificilmente analisável. Mas, quem sabe, no futuro, seu tratamento não o tornaria mais acessível à substituição e ao compromisso? 2 Ele volta uma segunda vez e as condições materiais do tratamento se estabelecem. Desde essas primeiras entrevistas, Pedro se preocupa em repetir e me fazer entender que não quer dar um basta ao seu consumo de drogas, mas que precisa aprender a não fazer as "besteiras" que podem levá-lo a ser devolvido à casa de sua mãe. Ele se referia aos pequenos roubos de dinheiro do pai, que o mantinham em sua dependência de drogado. Ou seja, se a sua prática de adição lhe traz dificuldades, ela não se constituiu, no entanto, para ele, até então, num sintoma do qual ele pretendesse livrar-se e que, para tanto, me oferecesse à decifração. Assim, calculei, minha resposta à sua demanda de ajuda não poderia me colocar, aos seus olhos, ao lado daqueles que até então agiram dispostos a dar à droga que o consumia um estatuto de causa de uma doença. O analista fez então o que lhe parecia dever ser feito no começo de todo tratamento, ou seja, tentou manobrar a transferência do início fazendo-lhe ouvir, de algum modo, um "eu não sei, e é por isso que é preciso que você fale", que mantivesse aberta a porta para ele.2 No entanto, logo me dei conta que à minha oferta de associação livre, Pedro objetava utilizando-se de seu objeto de gozo ao alcance de sua mão, para não vir às suas sessões. Percebi então que seu tratamento iria exigir do analista uma intervenção cada vez mais firme para fazê-lo presente ao dispositivo. Precisei para isso da ajuda efetiva da madrasta que o trazia ao consultório, mesmo, muitas vezes, sob o efeito das drogas. Dos nove anos aos doze, Pedro era um menino que gostava de ficar no seu canto, lendo ou se ausentando das brincadeiras com as crianças de sua idade. Por isso foi levado pela mãe, que o achava triste, para fazer uma psicoterapia à base de florais. Sua tristeza não desapareceu, porém a mãe me disse, na única vez que a vi, jamais ter localizado alguma razão para essa tristeza do filho. 2 MILLER, J.-A.- “Psychothérapie et psychanalyse”. Em : La cause freudienne, n° 22. Paris: Seuil, 1992. 3 Os pais haviam se separado quando ele ainda era muito criança e a mãe casara-se logo depois, uma segunda vez, com um homem "abonado", tendo, segundo Pedro, ficado muito rica depois de separada dele. Pedro odiava esse padrasto. Há dois anos, aos dezessete anos, Pedro decidiu ir morar com a madrasta e o pai, recusando-se a conviver com a mãe e seu namorado da época, "um garotão apenas um pouco mais velho do eu", alcóolatra e vivendo inteiramente às custas dela. Antes dessa decisão Pedro fazia idas e vindas às cidades e às casas do pai e da mãe, jamais conseguindo definir-se em viver com um dos dois. Hoje, não quer mais voltar a morar com a mãe, daí apreender que o pai possa um dia, pelas "besteiras" que ele anda fazendo, decidir reenviá-lo à cidade da mãe. Esta, quando visita Pedro ou quando ele vai vê-la, está sempre lhe cobrando que deixe a tristeza de lado e que lhe copie o jeito contente de estar na vida: "Ela faz permanentemente o gênero alegria, alegria!". A maconha foi a droga pela qual ele se iniciou na prática da adição. Mas ao vir me ver, Pedro já tinha experimentado e continuava consumindo tudo o que lhe caía nas mãos e que pudesse comprar: cocaína, benzina, cola-desapateiro, mas também medicamentos. O percurso da dependência foi desenrolado classicamente: do cigarro e das bebidas nos bares, foi apresentado à maconha que comprava com o dinheiro que lhe davam para o lanche na escola. Esta, ele freqüentava pela manhã, e as tardes eram passadas em casas de amigos, longe dos pais, para "sessões de fumo". Hoje, Pedro consome drogas todos os dias, sozinho ou com amigos. Pergunto-lhe, um dia, se eles se falam durante essas "sessões", e ele me responde que não, jamais, porque o que é buscado é tão somente "sair da tristeza e entrar na alegria". Faço-o perceber a injunção materna sob as espécies do "barato" alcançado. Mas isso não faz onda. Pedro acusava sempre o pai e a mãe de terem-no "largado" desde sempre: "Tudo era permitido, eu fazia o que queria, aprontava todas e nunca me senti protegido nem por um nem por outro", lembrava ele, certa vez, ao se rever nas temporadas que passava na casa do pai ou na casa da mãe. 4 Também lhe faço ver que ao dizer "tudo era permitido", não lhe vem à lembrança uma falta de punição, mas uma falta de proteção. Ele me reafirma, então, a sua condição de "largado", e isso também não faz outras ondas. Nenhuma associação, nenhuma questão sobre o que teria jogado o sujeito para essa prática de adição. Pedro vem pôr em questão essa prática apenas pelo que ela pode "atrapalhar sua vida". Ele pede ajuda tão somente para se livrar, digamos assim, de indesejáveis efeitos secundários do seu consumo de drogas. Porque consumi-las foi a solução que o sujeito encontrou como uma prática de gozo que se estabeleceu sob o modo de um curto-circuito do Outro, uma prática de gozo de um objeto diretamente consumível. No caso do meu paciente dependente de drogas, e o seu pedido de ajuda o confirmou, ao analista não foi dada a possibilidade de ler, à maneira clássica, o enunciado de um sintoma a partir da articulação da demanda de um sujeito. Na direção desse tratamento só lhe restou continuar trabalhando na aposta de que a solução que se deu o sujeito se tornasse, com o tempo, sintomática para ele. A permanência do trabalho com Pedro, nesse um ano e oito meses, não me garante ainda que isso tenha se dado. E nem tenho indícios de que se oferecerá para esse sujeito a possibilidade de constituição de um sintoma analítico. Ao contrário, por enquanto parece que estou cada vez mais diante de um sujeito que insiste em mostrar que o inconsciente não existe. Ainda que ele se dê conta de sua marginalização e de seu corte com o Outro no isolamento de sua prática de gozo solitária. Mas se o analista de Pedro ainda não se tornou um complemento do sintoma do sujeito, onde está Pedro com relação ao seu analista? Há uns três meses atrás Pedro se excedeu no consumo de droga e entrou em pré-coma. O pai, que sempre se recusou a vir me ver, entregou o filho aos cuidados de um médico e depois quis interná-lo num hospital psiquiátrico. A madrasta me telefonou e me opus a essa internação, tendo 5 indicado os cuidados de um psiquiatra para acompanhá-lo, enquanto a vinda de Pedro ao consultório prosseguia. Mas o pai terminou por encaminhá-lo de volta à mãe para uma temporada. Lá, Pedro roubou-lhe dinheiro para a compra de outras drogas. A mãe ameaçou-o, então, de internação num Centro para drogados. "Antes, vá ver meu analista", exigiu Pedro. A mãe veio, mais para conhecer "o advogado de Pedro" do que para se decidir a se responsabilizar pelo seu tratamento. Ao convidá-los a entrarem em minha sala, eu o escuto dizer: "Vamos lá, eu não tenho medo de acareação". O termo me surpreendeu e ele me comentou assim, numa sessão recente, a sua escolha desse termo naquele momento: "Quem sabe se a acareação entre o filho e a mãe não vai lhe ajudar a desvendar o crime?". De "advogado" a "decifrador"? - o analista ficou desde então atento a essa suposição. Sem querer esquecer, no entanto, que o sujeito em questão não visa, no tratamento, fazer cessar um insuportável mas quer manter o seu amor pela unidade que a prática da droga lhe traz. Uma prática contemporânea, de consumo, evitando ao sujeito, mesmo sob transferência, ter de suportar esperar e suspender as respostas que já se deu, exigências que nossa praxis lhe impõe. Foi o que Pedro me ensinou até agora. 6