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Razão e fé
Manfredo Araújo de Oliveira*
A relação entre razão e fé é uma problemática de grande atualidade
não só porque em questões específicas retornam sempre os debates na
forma de pretensos conflitos entre fé e ciências, mas porque emergiu nas
últimas décadas uma tendência de filósofos e teólogos cristãos filiados
ao Wittgenstein tardio e aos filósofos pós-modernos franceses marcados
por posturas nitidamente anti-racionais e anti-teóricas.1 A fé é um ouvir
acolhedor da auto-revelação de Deus na linguagem humana, ou seja, é a
resposta do ser humano à autocomunicação de Deus que o interpela. Na
teologia católica do século XX desenvolveu-se uma concepção de fé que
acentuou a dimensão intersubjetiva da fé: a fé é em primeiro lugar uma
relação entre pessoas, ela é a forma como se consegue, conhecendo, ter
acesso ao ser próprio da pessoa.2 Esta relação tem por isto um pressuposto básico: como o ser pessoal é livre só através de uma livre manifestação
Professor Titular do Curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Conferência proferida no dia 04 de março de 2009
por ocasião da Aula Inaugural do Ano Letivo 2009 do Instituto Superior de Filosofia
Berthier (IFIBE) e do Instituto de Teologia e Pastoral (ITEPA).
1
Um exemplo é o agora famoso livro de Marion onde ele defende a tese central de que
Deus está além de todos os nossos conceitos, de nossos nomes, de nossas articulações
intelectuais. Deus está para além do conceito ou da dimensão do ser (Cf. MARION,
J-L. Dieu sans l`Être. 2. ed. Paris: Fayard, 1991).
2
Cf. FRIES, H. Glaube und Wissen. In: Sacramentum Mundi. Theologisches Lexikon für
die Praxis. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1968. v. 2. p. 431-432.
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de si mesmo é que se pode ter acesso a seu ser e a fé é precisamente a
resposta de acolhida a este abrir-se que permite a participação no ser da
pessoa que se manifesta livremente. A reposta, por sua vez, possui um
pressuposto fundamental: para poder responder é necessário compreender a palavra em que a pessoa se manifesta.3 Compreende-se a palavra
enquanto palavra, portanto, não simplesmente enquanto um som, mas enquanto linguagem, um sistema de símbolos, que nos diz algo e, nesta medida, nos revela algo. Neste sentido ouvir é essencialmente compreender.4
Ora, compreender é uma palavra que pode ser tomada aqui como
expressão para aquilo que a tradição do pensamento ocidental entendeu
como “razão” de tal modo que o objetivo subjacente a qualquer teoria, o
produto da razão, em seus diferentes níveis, inclusive nos propriamente pré-teóricos, é sempre compreender algo. No caso específico da fé se
trata da auto-revelação de Deus e, por esta razão, é uma palavra que diz
respeito à vida humana enquanto tal já que ela engaja o ser humano enquanto ser espiritual e implica uma realização efetiva da totalidade das
dimensões do ser espiritual5 como explicitaremos depois. Neste sentido,
a fé é sempre compreender e acolher o que a palavra revelada nos diz
e, enquanto tal, ela possui uma dimensão racional imanente.6 Portanto,
em princípio não há incompatibilidade nem concorrência entre razão e
fé, mas determinadas concepções da razão e da fé podem fazer emergir
grandes conflitos. Daí porque para tratar desta questão nos dias de hoje
se faz necessário tematizar a autocompreensão da razão como ela se explicita nas grandes tendências da reflexão filosófica de nossos dias.
Cf. WELTE, B. Heilsverständnis. Philosophische Untersuchung einiger Voraussetzungen
zum Verständnis des Christentums. Freiburg; Basel; Wien, Herder, 1966. p. 28.
4
“Se em seu sentido mais profundo a fé é uma resposta do homem ao Deus da Revelação, que o interpela constantemente em sua vida, essa resposta só pode ser autenticamente humana, se comporta uma forma de compreensão racional” (RITO, H. Introdução à Teologia. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 44-45).
5
Cf. RAHNER, K.; VORGRIMMLER, H. Glauben. In: RAHNER, K.; VORGRIMMLER,
H. Kleines Theologisches Wörterbuch. Freiburg; Basel; Wien: Herder, 1967. p. 135. “O
essencial da fé está em que, ao pronunciar-se, ela nos abre ao mistério que proclama
[...] nela, a existência inteira se assume, se arrisca e se decide” (LADRIÈRE, J. A articulação do sentido. São Paulo: EPU/USP, 1977. p. 186).
6
“[...] homem, que nunca deixa de ser racional em nenhum momento de sua vida, mesmo quando por um ato de fé aceita o sentido transcendente da Revelação divina. À
dignidade do homem pertence sem dúvida sua própria racionalidade” (RITO, H. Introdução à Teologia. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 44).
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1. Autocompreensão da razão no mundo contemporâneo: a
tese da fragmentação da razão
Uma filosofia que se compreende a si mesma como uma teoria global das estruturas fundamentais da realidade enquanto tal parece, para
muitos, ter desaparecido do cenário do pensamento desde a morte de
Hegel. As filosofias pós-idealistas seriam as tentativas diferenciadas de
destruir o ideal da filosofia enquanto sistema do saber e por isto significariam a liberação do pensamento daquilo que o impedia de crescer
e se abrir ao novo emergente na história. Neste sentido, a história do
pensamento mais recente é lida como um processo de liberação do uno,
imutável e eterno, para a diferença, para a mudança, para o contingente
e histórico.7 Ao invés de uma razão una e sistêmica, teríamos, hoje, uma
multiplicidade infinita de muitas razões, de múltiplos subsistemas e jogos de linguagem sem que se possa ver ou que seja necessário ver qualquer unidade entre eles. A razão una e universal, que perpassa e integra
as diferentes esferas do real, capaz de articular um sentido unitário para
nossas vidas, é considerada, hoje, uma realidade do passado e tentar retornar a ele é visto como um enorme retrocesso em relação ao patamar
de criticidade já atingido pela humanidade. Por isto, a única atitude adequada a esta situação parece ser a do relativismo de todas as posições ou
mesmo do ceticismo, que nos deixa em paz em relação a toda disputa em
relação à verdade em nossa vida teórica e prática.8
Sem dúvida, existe nesta postura algo muito positivo: abandonamos, definitivamente, a perspectiva de uma unidade abstrata, fechada às
diferenças e, consequentemente, à contingência e à história. A primeira
consequência é uma atitude de abertura e tolerância em relação ao diferente e isto significa, sem dúvida, uma grande conquista da humanidade.
Mas há um outro lado: perdemos em nossos tempos referenciais últimos
sem os quais é impossível tomar posição séria em relação às questões
fundamentais da vida humana. É por esta razão que há quem considere
Cf. HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwölf Vorlesungen. 2. ed.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985; OLIVEIRA, M. A de. A crise da racionalidade
moderna. In: Ética e racionalidade moderna. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 68-94.
8
Cf. PEREIRA, O. P. Ceticismo e argumentação. Revista Analytica, n. 1, p. 25-59, 1993.
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a filosofia também responsável pela crise de civilização que vivemos.9
A filosofia se torna uma conversa agradável,10 mas incapaz de iluminar
a vida humana com a tematização dos pressupostos normativos de sua
existência. Como se chegou a esta situação e como se procura legitimá-la?
J. Habermas enumera três razões que, segundo ele, teriam contribuído para gestar esta situação por ele denominada de pós-metafísica:
a) Emergência da racionalidade procedimental
A metafísica havia entendido a razão como uma grandeza ontológica e assim ela se reconhece a si mesma no mundo, natural e histórico, por
ela configurado. As ciências modernas e a moral autônoma da modernidade, ao contrário, só consideram racionais os procedimentos com os
quais elas trabalham o real ou a reflexão formal para estabelecer os princípios da moralidade. Para a metafísica ocidental racional era a ordem
universal dos entes (ontologia clássica). Agora, racional é exclusivamente a solução de problemas de acordo com procedimentos determinados.
Isto vai, antes de tudo, mudar a própria concepção do saber. A filosofia clássica pretendeu ser um saber da totalidade, ou seja, tematizar
as estruturas fundamentais que exprimem a inteligibilidade de todas as
coisas, e, consequentemente, determinam o lugar que cada ente ocupa
no todo da realidade.
As ciências da modernidade não trabalham mais no horizonte da
totalidade: elas recortam o real em campos específicos e procuram explicar seu comportamento a partir de horizontes de interesse específicos.11
No passado, a pretensão básica era possuir um saber certo através
de argumentos de fundamentação última; nas teorias científicas atuais
todas as premissas são hipotéticas e têm que ser justificadas a partir de
suas consequências, seja através de confirmação empírica, seja pela coe Cf. HÖSLE, V. Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der Philosophie. Transzendentalpragmatik, Letzbegründung und Ethik. München: Verlag C. H. Beck, 1990.
10
Cf. RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Trad. Jorge Pires. Lisboa: Dom Quixote,
1988.
11
Foram grandes e constantes os impactos que na modernidade as ciências da natureza,
da vida e do ser humano tiveram sobre a fé e sua teologia.
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rência com outras sentenças já aceitas. Há, aqui, uma incompatibilidade
radical entre o saber essencialmente falível das ciências e a pretensão
metafísica de chegar a princípios primeiros com fundamentação última.
Para J. Habermas, a característica básica da cultura contemporânea
é, precisamente, a passagem desta racionalidade de conteúdos (material)
da filosofia tradicional para a racionalidade procedimental (formal) de
tal modo que não há mais espaço, na cultura de hoje, para o tipo de saber da metafísica (e, com muito mais razão, para o saber religioso e sua
teologia). Numa palavra, a filosofia, para poder continuar a existir em
nosso mundo teria que renunciar a tematizar as razões últimas, teóricas
e práticas de nossa vida. De forma análoga se pode dizer que a fé se encontra hoje presente num mundo em que a linguagem se situa no espaço
epistemológico profundamente influenciado pelas formas de expressão
das ciências modernas e, portanto, diante do desafio de sua inteligibilidade neste novo espaço hermenêutico.
b) A historificação da razão
Já as primeiras críticas à metafísica ocidental através da crítica ao
sistema hegeliano mostraram uma tendência que, depois, se acentuou:
trata-se da crítica à preponderância, na metafísica, do universal, imutável e necessário sobre o particular, mutável e contingente. Todo o pensamento pós-hegeliano vai se caracterizar como um renovado esforço
de historificar a razão, desde Dilthey, que articulou o desafio de uma
crítica da razão histórica, até Heidegger, que retoma a questão do ser,
interpretando-o, contudo, como historicidade. Para ele, a característica
fundamental da metafísica é o esquecimento do ser precisamente por esquecimento da historicidade12 como sentido originário do ser.13
Esta perspectiva vai aprofundar-se no pensamento de H-G.Gadamer que vai insistir
no reconhecimento da primazia da tradição frente a nossa compreensão, o que exprime o poder da história sobre a consciência humana finita. Isto ocorre mesmo aí
onde se nega a historicidade (PANNENBERG, W. Wissenschaftstheorie und Theologie.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977. p. 165).
13
Cf. STEIN, E. Seminário sobre a verdade. Lições preliminares sobre o parágrafo 44 de
Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes, 1993.
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Foi esta reviravolta do pensar que desembocou numa “hermenêutica da finitude”, consciente do condicionamento histórico de nosso conhecer, o que significa dizer que, para além da análise lógica (sintáticosemântica) das proposições, o espaço próprio da analítica, temos que
levar em consideração o horizonte histórico (dimensão pragmática) de
sentido de nosso discurso. Filosofia é conhecimento das condições de
possibilidade de nosso conhecimento dos objetos e estas nos vêm da tradição, que é a facticidade originária em que nos movemos.14 Nossa historicidade vai, então, emergir como condição de possibilidade de nossa
compreensão do mundo natural e humano: compreendemos qualquer
coisa a partir de nossos conceitos historicamente15 gerados. No entanto,
não podemos dispor desta tradição, que nos gesta: tudo o que compreendemos o fazemos a partir de uma tradição de sentido que nos marca. Assim, o sujeito, já sempre, se experimenta situado no seio de um mundo
de sentido como aquele espaço a partir de onde ele capta, em seu sentido,
todos os seus objetos.
c) A reviravolta linguística
Para Habermas, só a reviravolta linguística, que ocorreu no nosso
século, foi capaz de fornecer ao pensamento filosófico contemporâneo
os instrumentos conceituais para reformular, de uma maneira radical,
a própria concepção de razão e de racionalidade. Fundamentalmente,
esta reviravolta consiste na passagem de uma concepção instrumental
da linguagem, para quem a linguagem não passa de um instrumento
para a comunicação de um conhecimento conseguido sem ela, para uma
É por esta razão que E. Stein situa a hermenêutica entre a verdade absoluta da metafísica e a verdade empírica das ciências. “A hermenêutica é esta incômoda verdade que
se assenta entra as duas cadeiras, quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem
uma verdade absoluta – é verdade que se estabelece dentro das condições humanas do
discurso e da linguagem” (STEIN. op. cit., p. 45).
15
“O ser humano desde sempre falou dentro de uma história determinada [...]. O ser
humano sempre aparece dentro de uma determinada cultura, dentro de uma determinada história, aparece dentro de um determinado contexto” (STEIN, op. cit., p. 17).
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concepção que podemos chamar de “transcendental”, segundo a qual a
linguagem é condição ineliminável de todo acesso ao mundo.16 A consequência básica aqui é que todas as questões epistemológicas e filosóficas
só podem ser resolvidas através de uma análise das estruturas da linguagem. Numa palavra, a pergunta pelo que existe ou pelo que se pode conhecer implica a pergunta pelo que se pode dizer, ou seja, a mediação
linguística é irrecusável, pois é em seu seio que os sujeitos têm acesso
aos objetos do mundo. Neste caso, filosofia não é mais uma metafísica,
no sentido aristotélico, ou uma crítica da razão pura, no sentido de Kant,
mas uma análise da forma lógica das sentenças de nossa linguagem.
O que está, aqui, em jogo não é, simplesmente, tomar a linguagem
como um campo novo de reflexão filosófica, mas de reformular toda a
filosofia17 a partir da explicitação das condições linguísticas de todo conhecimento e de toda ação.18 Peirce e Frege marcaram a virada que, numa
primeira fase, ficou limitada à dimensão sintática e semântica da linguagem e que Wittgenstein levou à plenitude,19 articulando como tarefa básica da filosofia, antes de tudo, desmascarar as ilusões e os dogmatismos
Cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 117ss.
17
No caso do primeiro Wittgenstein, a filosofia, se fosse possível no sentido da tradição,
teria a mesma função. Só que, precisamente, a reviravolta linguística a faz impossível. “A filosofia define-se como o conhecimento da estrutura essencial do mundo e
de seus fundamentos absolutos. A crítica lógica da filosofia revela que o mundo tem
uma estrutura essencial e tem fundamentos absolutos, mas que estes são, por princípio, inacessíveis à representação proposicional” (SANTOS, L. H. L. dos. A harmonia
essencial. In: NOVAES, A. (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. p. 450).
18
No primeiro Wittgenstein já se tratava de fazer da filosofia uma análise da linguagem
para estabelecer o conjunto total de possibilidades. “As condições últimas de sentido
das proposições definem o conjunto total das possibilidades cuja realização ou nãorealização uma representação proposicional qualquer representa, elas definem o que
Wittgenstein chama o espaço lógico. O mundo, como o conjunto das possibilidades
efetivamente realizadas,consiste, pois, numa circunscrição interna desse espaço, circunscrição que podemos descrever por meio de proposições” (SANTOS, op. cit., p. 448).
19
Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Apres. e Introd. Luís H.
L. dos Santos. São Paulo: EPU, 1993. “Dizer que o mundo só pode ser pensado como
uma circunscrição do espaço lógico é, portanto, o mesmo que dizer que esse espaço
fixa, ao mesmo tempo, a margem de manobra lógica do pensamento, e a margem de
manobra ontológica dos fatos do mundo” (SANTOS, op. cit., p. 448).
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e exibir a forma essencial do mundo20 através da análise lógica do sentido das proposições fatuais. Por esta razão, é impossível uma fala sobre
Deus. Deus não se revela no mundo, já que não é um fato do mundo, não
pode ser, portanto, representado por uma proposição e outra fala sobre
Deus não é possível.
A segunda fase do pensamento de Wittgenstein vai caracterizar-se
por uma crítica radical deste ideal de uma linguagem unitária, universal,
forma única essencial que reproduz o mundo (paradigma da representação) e pela busca de um novo horizonte para a consideração da linguagem humana. Para ele, o único fundamento para uma consideração da
linguagem humana é seu próprio uso (PhU 7),21 a práxis linguística: a palavra em si mesma é destituída de significado; somente na práxis de seu
uso é que ela, ao adquirir uma função, adquire, também, um significado.
Por esta razão, compreender o significado de uma expressão é conhecer
as circunstâncias em que ela é empregada.
Nesta perspectiva, a linguagem se revela como um evento, ela faz
parte de uma forma de vida,22 isto é, falar é o meio de realizar um ato
socialmente regrado,23 é uma maneira de estabelecer interações entre su A metafísica clássica afirma o acesso aos fundamentos últimos do mundo e do pensamento a partir dos princípios auto-evidentes da razão. Para Wittgenstein I, a essência
comum do pensamento e da linguagem, ou seja, os fundamentos absolutos do pensamento e da linguagem, não podem estar no mundo como fatos, nem são também
um outro mundo, transcendente, mas são os limites do mundo, isto é, transcendentais
(SANTOS, op. cit., p. 450-451).
21
Cf. WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas [PhU]. Trad. Marcos M. Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 1994.
22
O que significa abandonar a ideia da linguagem como um cálculo, que obedece a regras, que agem sendo por nós desconhecidas e inacessíveis à consciência (BOUVERESSE, J. Wittgenstein et les problèmes de la philosophie. In: MEYER, M. La philosophie anglo-saxone. Paris: PUF, 1994. p. 283ss).
23
Aqui se põe uma questão fundamental. Cada regra, até um momento determinado no
tempo, só pode ter tido muitas aplicações finitas. Donde sei como devo aplicar a regra
para frente? Para Kripke, a questão central aqui é que o problema em questão não é
descritivo, mas normativo. A solução dada por Wittgenstein é que ninguém, privadamente, pode seguir uma regra e que a comunidade corrige o uso da regra, ou seja,
um problema normativo é resolvido a través do apelo a um fato do mundo empírico,
no caso de Wittgenstein, a um fato do mundo do espírito intersubjetivo, portanto,
uma falácia naturalista no sentido de Hume (KRIPKE, S. A. Wittgenstein on Rules and
Private Language. An Elementary Exposition. Cambridge (Mass.): Harvard University
Press, 1982. p. 89).
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jeitos, consequentemente, uma maneira determinada de viver em sociedade. O pressuposto básico desta concepção é que a linguagem se radica
num acordo prévio a respeito de um sistema de normas e convenções
sociais. Insiste-se, portanto, aqui, acima de tudo, no caráter prático e intersubjetivo da linguagem humana.24 O ponto de referência de toda a filosofia é, agora, a comunidade de sujeitos em iteração, sua práxis comum,
realizada de acordo com regras determinadas originadas a partir do uso
das palavras nas comunidades específicas.25 Tantas são as formas de vida
existentes (PhU 19), tantos são os contextos da práxis humana, tantos
são, consequentemente, os modos de uso da linguagem, portanto, os jogos de linguagem.
Isto significa dizer que as formas de uso da linguagem são dadas e
assumidas, praticamente, sem possibilidade alguma de uma legitimação
teórica e são elas que estabelecem o que pode ser dito e o que não pode
ser dito em seu seio. Nenhuma garantia, além do próprio uso, é dada
para a validade do significado das expressões e das regras de um jogo
de linguagem determinado. Está eliminada, assim, a pretensão filosófica
de uma justificação racional do sentido: a filosofia não pode tocar no
uso fático da linguagem, mas, em última instância, só, pode descrevê-lo
(PhU 124).
A filosofia de Wittgenstein tematizou dimensões fundamentais da linguagem humana que tinham sido deixadas de lado na tradição e abriu a
perspectiva da pluralidade infinita de mundos de sentido em sua enorme riqueza. No entanto, a recusa da dimensão crítico-normativa da razão encurtou enormemente o sentido da razão humana: na base de uma
mera descrição de jogos de linguagem não é possível uma crítica do sentido e, com isto, dar uma resposta racional à grande questão do sentido
de nossas vidas e de nossa história. A situação de transformação profunda que está vivendo o pensamento filosófico contemporâneo e da concepção de razão que se fez hegemônica é adequadamente expressa com
Isto vai significar, como viu Giannotti, uma enorme ampliação do campo da lógica e
de sua tarefa. Ao invés de pretender construir uma linguagem ideal como padrão das
linguagens quotidianas, o que a investigação lógica busca, agora, é explicitar, através
de exemplos, as possibilidades de conexões e seus respectivos elementos (GIANNOTTI,
J. A. Apresentação do mundo. Considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 65ss).
25
Cf. SOUZA FILHO, D. M. de. Filosofia, linguagem e comunicação. São Paulo: Cortez, 1984.
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a tese de Ch. Perelman:26 o que se exige, hoje, da filosofia é sua renúncia
à pretensão ao Absoluto, isto é, a uma teoria do ser perfeito, fundamento
de toda e qualquer realidade.
Não será que estamos desafiados a articular a reflexão filosófica de
tal modo que ela mostre, por um lado, a inevitabilidade da afirmação
do Absoluto e, por outro lado, que esta necessidade apriórica não exclui
como algumas filosofias afirmam hoje, mas inclui a contingência que torna possível a liberdade e a historicidade? Certamente só a partir de sua
radicalização a filosofia poderá, em nossa história, cumprir sua missão
de tematizar o sentido do mundo27 e o sentido de nossa vida no mundo,
sendo capaz de articular um sistema último de referências que orientem
o ser humano na construção de uma história solidária.
2. Fé e Razão situadas no contexto de uma filosofia sistemática
Certamente a tese fundamental das correntes hegemônicas no pensamento contemporâneo é a do papel central da linguagem na filosofia,
que passou para o primeiro plano, e, com razão, uma vez que a linguagem constitui o componente básico e ineliminável da dimensão teórica
da vida humana. Qualquer teoria, seja ela científica ou filosófica, pretende falar da realidade, informar-nos sobre o universo ou suas partes.
Neste sentido, uma teoria só tem razão de ser se a realidade for inteligível, manifestável, exprimível, explicável. Se o real nos fosse totalmente
inacessível, pensando que estamos falando do real, estaríamos eternamente presos em nós mesmos, falando apenas de nós mesmos, de nossas
atitudes e sentimentos. Portanto, toda e qualquer teoria pressupõe que
a realidade seja inteligível (a metafísica medieval dizia que todo ente é
verdadeiro) e a linguagem é precisamente a instância em que se exprime
nossa compreensão do mundo, o lugar primigênio de manifestação do
ser.28 O mundo se apresenta na linguagem e, por esta razão, Gadamer29
Cf. PERELMAN, Ch. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 131ss.
Cf. RICOEUR, P. Réflexion faite. Autobiographie intelectuelle. Paris: Editions Esprit, 1995.
28
Cf. LIMA VAZ H. C. de. Civilização moderna e linguagem. In: Escritos de filosofia III.
Linguagem e cultura. São Paulo: Loyola, 1997. p. 177.
29
Cf. GADAMER, H-G. Verdade e método. Trad. Flávio P. Meurer. Petrópolis: Vozes,
2005. p. 426.
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designa a experiência linguística do mundo como “absoluta”: ela abrange
todo ser em si em quaisquer relações em que ele sempre se mostra.
Desta forma, o caráter linguístico de nossa experiência do mundo,
ou seja, a existência como expressão que caracteriza o ser do ser humano, é mediação irrecusável do pensamento de qualquer coisa. Ele é, portanto, condição de possibilidade e de validade da compreensão e da experiência humana do mundo enquanto tal. Ora, tanto a ciência como a
filosofia têm a ver, enquanto empreendimentos expressamente teóricos,
com a apresentação ou exposição do mundo ou de setores do mundo no
seio da linguagem. São, portanto, formas de exercício da razão humana.
Sendo a linguagem a instância de articulação da compreensão do mundo, se pode ler em sua estrutura a estrutura do próprio mundo30 através
dos diferentes tipos de teoria antes mencionados.
O objetivo de um projeto teórico é, então, sempre exprimir a compreensão de algo, ou seja, do conteúdo, da coisa em questão que, no caso
da filosofia, recebeu diferentes denominações através da história do pensamento ocidental: ser, realidade, natureza, universo, mundo, etc. Tudo
isto implica dizer que falar de razão hoje é falar da linguagem e de seus
componentes. Desta forma, no nível da efetivação suprema da razão e o
mais importante em relação à fé, ou seja, na filosofia, o ponto de partida
é a linguagem que os filósofos têm que usar para articular suas posições.
Isto significa a necessidade de tematizar o quadro referencial teórico com
que se trabalha.
A linguagem usada pelos produtores de teorias, ou seja, pelos filósofos e pelos cientistas, é formada por um determinado tipo de sentenças, as
sentenças informativas ou declarativas, ou seja, precisamente aquelas sentenças que constituem uma articulação compreensiva do real. O que está
em jogo no caso peculiar da atividade teórica é uma relação com o mundo
com um objetivo preciso: o conceituar o mundo (a realidade, o universo,
o ser) nele mesmo, uma vez que qualquer empreendimento teórico tem
como tarefa primeira compreender, conceituar, explicar ou articular algo
determinado e, assim, este tipo de linguagem é portador de um conteúdo
informativo sobre o mundo. Numa palavra, trata-se de um discurso estru Cf. PUNTEL, L.B. Struktur und Sein. Ein Theorierahmen für eine systematische Philosophie. Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. p. 130; OLIVEIRA, M. A. de. Filosofia: lógica
e metafísica. In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, L. C. S. de; OLIVEIRA, M. A. de (org.).
Metafísica contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007. p 170-175.
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turado na perspectiva da verdade, ou seja, com a pretensão de exprimir
como as coisas são ou não são de maneira contingente ou necessária.31
O que justamente especifica a teoria é que ela é uma linguagem centralizada na apresentação do mundo e a diferença com a linguagem quotidiana se manifesta no fato de que esta é uma linguagem em que há primazia da dimensão comunicativa. Por isto ela se centraliza na relação com os
outros parceiros embora contenha também elementos informativos que
neste caso estão em segundo plano. Aqui a comunicação é o objetivo primeiro. Na teoria, ao contrário, é a “coisa” que passa para o primeiro plano.
Assim, o objetivo da linguagem filosófica que é teórica é a expressão da
coisa, do mundo, da realidade. O que é próprio do empreendimento teórico que já no início de uma tradição de mais de dois mil anos se denominou filosofia é que ela sempre se interpretou a partir de sua intenção, de
sua autocompreensão e de suas produções como um saber abrangente e
de caráter universal o que não é mais o caso no pensamento contemporâneo que antes se caracteriza por seu caráter fragmentário.32
Já aqui é importante assinalar uma semelhança básica entre as sentenças teóricas da filosofia e as sentenças teóricas da fé (que se articula a
si mesma usando sentenças teóricas), embora a fé não seja uma atividade
unicamente teórica: ambas se relacionam à dimensão universal do ser,
à totalidade do real uma vez que na fé está também presente uma certa
compreensão da totalidade do ser, da unidade da realidade, ela é uma
leitura do todo da realidade, uma declaração sobre a totalidade da realidade a partir de uma auto-revelação da dimensão absoluta desta totalidade, Deus, cuja manifestação salvífica, absolutamente gratuita e livre, é
precisamente acolhida na fé.33
Esta acolhida implica a afirmação de que este ato de revelação divina é algo real e não diz respeito apenas a uma atitude do sujeito de fé.
Pela fé o ser humano aceita (palavra da fé) este evento salvífico que é
revelado (palavra da revelação) por Deus em sua linguagem, portanto, o
aceita enquanto algo real, compreensível e verdadeiro e nela aceita uma
Cf. PUNTEL, L. B. A teologia cristã em face da filosofia contemporânea. Revista ����
Síntese, Belo Horizonte, v. 28, n. 92, p. 361, set./dez. 2001.
32
Cf. PUNTEL, L. B. Struktur und Sein. op. cit., p.1.
33
“Exprimir na nossa própria linguagem, num ato de suprema liberdade, essa linguagem
paradoxal em que o Revelador se revela – a linguagem mesma da revelação – eis a
essência do ato de fé” (LIMA VAZ, H. C. de. A linguagem da experiência de Deus. In:
Escritos de filosofia. Problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986. p. 254).
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interpretação da realidade em seu todo,34 o que significa dizer que há um
momento racional imanente ao ato de fé35 que se articula em sentenças
teóricas: ela implica a captação da inteligibilidade da realidade da economia salvífica divina e captar a realidade é o ato de saber que é próprio
da razão que se articula linguisticamente. Negar isto significa situar a fé
numa esfera que está muito afastada dos seres humanos reais dotados de
inteligência e de potencialidades intelectuais.36
Assim, a fé se faz efetiva na história humana enquanto encarnada
em suas expressões linguísticas, portanto, como uma forma de seu existir
e, portanto, é, em si mesma, um certo tipo de inteligibilidade, um certo
modo de compreensão.A fé implica, então, um momento racional ínsito
em suas formas de expressão, já que é uma forma de saber, mas não é unicamente, enquanto fé, uma expressão teórica. Desta forma se faz muito
importante para evitar falsos conflitos que se tenha presente o que pretende propriamente uma expressão estritamente teórica da racionalidade, ou seja, o que pretendem as ciências e a filosofia, a fim de podermos
ver com clareza a diferença entre seus saberes e o saber da fé. Se teoria se
articula em sentenças, a primeira pergunta aqui é sobre o status das sentenças das ciências o que claramente não é uma pergunta das próprias
ciências, mas da filosofia como aquele saber das estruturas universais do
universo ilimitado do discurso humano37 e que por isto inclui também
um saber sobre o saber científico.
“[...] chegar à fé significa comprovar que a ‘hipótese religiosa” é a que melhor esclarece
as experiências radicais em que a pessoa se confronta com a contingência própria e
com a do mundo, com os interrogantes últimos da vida e da morte, da angústia e da
esperança, da felicidade e da desgraça, do compromisso ético e do sentido da história”
(QUEIRUGA, A. T. Fim do cristianismo pré-moderno. Desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003. p. 232).
35
Aceitação que implica um ato de conhecimento e que sempre vem junto a outros momentos. “À palavra da revelação responde a palavra da fé que, ao mesmo tempo, é aceitação do que é anunciado, esperança nas promessas contidas na mensagem e vontade
de prestar-se à obra de Deus pela ratificação total de sua vontade” (LADRIÈRE, J. A
Articulação do sentido. São Paulo: EPU/USP, 1977. p. 183).
36
Cf. PUNTEL L. B., The role of the philosophy for the understanding of Christian faith:
critical and constructive considerations. München, 2008. p. 12. mimeo.
37
Cf. PUNTEL L. B. Struktur und Sein, op. cit., p. 344. Uma tese sempre de novo explicitada por Fichte no quadro teórico da filosofia transcendental em suas diferentes
versões da Doutrina da Ciência em que a filosofia emerge como a “ciência das ciências” (OLIVEIRA M. A. De. Para além da fragmentação. Pressupostos e objeções da
dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002. p. 135-168).
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O próprio curso da reflexão nos conduz a um procedimento para
a explicitação do status teórico das sentenças das ciências: sua comparação com a filosofia, o que nos leva a uma explicitação e diferenciação
de níveis na razão humana, certamente uma consideração fundamental
no tratamento da questão das relações entre razão e fé porque a relação
tem de ser diferenciada de acordo com o tipo de expressão de razão que
está em questão, ou seja, a ciência ou a filosofia. A filosofia, enquanto
teoria das estruturas universais da totalidade do discurso, ou seja, do ser
em seu todo, considera, em cada campo particular do real, precisamente as estruturas universais. Por exemplo, considerando o mundo natural
na medida em que ele é parte do ser em seu todo, ela busca conceituar
as estruturas universais neste campo, enquanto que as ciências tentam
conceituar, nos diferentes campos, justamente as estruturas particulares
ou específicas de cada campo, o que implica neste nível geral uma diferença clara do status teórico das respectivas sentenças das duas formas
de teoria e sua complementariedade. Isto significa dizer que a filosofia
considera qualquer realidade a partir da perspectiva da universalidade,
ou seja, do ser em seu todo.
Desta forma, a filosofia é um saber sobre o universo do discurso
humano, ou seja, não só ela tematiza a abertura do ser humano para todos os entes, mas para a conexão última de todos os campos da realidade
que se pode chamar de “ser originário”, a dimensão primordial, oniabrangente da conexão de todas as estruturas da linguagem e da conexão de
todas as esferas do mundo objetivo, a esfera dos entes, portanto, a dimensão que abrange ambos os campos. Já que tudo é ser, então, ser é o melhor
nome para designar a dimensão que abrange tudo. A filosofia enquanto
articulação última da razão é, assim, em última instância, uma teoria do
ser originário, a “ex-plicatio” desta dimensão originária, que abarca a linguagem e o mundo. Enquanto dimensão originária ela é uma dimensão
ineliminável no sentido de que nada pode ser pensado, compreendido,
articulado pelo ser humano fora desta dimensão, portanto também aquilo
em que se crê. Neste sentido, esta dimensão originária constitui o espaço último e absoluto para todas as possibilidades do pensar humano. A
filosofia pensa esta dimensão em dois passos: em primeiro lugar tematizando suas características imanentes e num segundo momento ela tematiza a questão da compreensão da totalidade enquanto tal, ou seja, de uma
explicação holístico-argumentativo-conceitual da totalidade do ser, do ser
em seu todo, o que significa pensar a relação do ser originário e dos entes.
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No início do processo reflexivo, o conceito de totalidade é subdeterminado e vago. Através do uso dos conceitos modais se faz possível
pensar a totalidade de forma determinada e assim chegar a uma compreensão da totalidade enquanto constituída por uma dupla dimensão:
uma dimensão absoluta (ou absolutamente necessária), o ser pessoal absolutamente necessário que as religiões chamam de Deus, ser dotado,
enquanto pessoal, de inteligência, vontade e liberdade, e uma dimensão
não-absoluta, isto é, contingente. Ora, como os entes contingentes por
definição entraram na existência e não podem fazer isto a partir de seu
próprio ser uma vez que por definição este ser é marcado por uma nãoautoconsistência última, sua existência só pode se compreendida a partir
de um ato do ser pessoal absolutamente necessário.
Este ato na tradição se chamou de “criação”, o que revela que os entes contingentes são completamente dependentes do ser pessoal absolutamente necessário. Isto significa dizer que a dimensão última aberta
pela linguagem humana é a dimensão absoluta como sentido radical38
que, portanto, tem a ver com o todo do ser do ser humano e com o ser
do mundo. Ora, na medida em que o espírito humano é intencionalmente co-extensivo ao ser em seu todo, ele é intencionalmente co-extensivo
com a dimensão absolutamente necessária do ser e com a dimensão contingente do ser. A dimensão absolutamente necessária é a um tempo presente39 e absolutamente transcendente a todo discurso humano, ao ser
do ser humano e do mundo. Neste sentido, a realização última da razão
humana é uma teoria do ser absolutamente necessário, de Deus na linguagem religiosa.
Como situar a fé neste contexto de consideração da razão e de suas
formas de efetivação? Em primeiro lugar, na medida em que o que foi explicitado constitui o pressuposto ineliminável de toda compreensão isto
se constitui a base racional da articulação do que é atingido pela fé. Isto,
por sua vez, implica dizer que a fé se situa no horizonte de uma compreensão última da realidade. Em segundo lugar, quando se trata de saber
“Se quisermos exprimir a mesma coisa per viam negationis, diremos que a experiência
de Deus é a experiência da impossibilidade de uma linguagem do absurdo radical do
ser” (LIMA VAZ H. C. de. A linguagem da experiência de Deus. op. cit., p. 253).
39
“Em toda linguagem dotada de sentido em que uma realidade é dita, a presença de
deus é igualmente dita, vem a ser, a experiência de Deus tem lugar na forma especificamente humana do discurso” (LIMA VAZ H. C. de. A linguagem da experiência de
Deus. op. cit., p. 253).
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mais determinadamente o que é o ser pessoal absolutamente necessário,
então precisamente porque se trata de um ser pessoal, portanto, inteligente e livre, ele só pode ser mais compreendido a partir de sua própria
automanifestação, ou seja, a partir de sua maneira de agir sobre o mundo
contingente, sobre a natureza e a história. Isto significa dizer que neste
ponto a reflexão humana se deve voltar para a história para investigar os
sinais na história das ações livres do ser absoluto na história universal da
humanidade.40
A fé cristã é a aceitação de um testemunho determinado na história, o de Jesus de Nazaré, como a auto-revelação definitiva do ser pessoal
absolutamente necessário à humanidade,41 ou seja, como “a experiência
da presença do Sentido radical numa experiência historicamente dada,
a existência de Jesus [...].”42 Por esta razão, a fé, do ponto de vista cristão,
não é simplesmente uma questão de seguir uma tradição, mas, antes de
tudo, de um encontro de pessoa a pessoa, portanto, não uma atividade
unicamente teórica,43 mas, antes, atividade que engaja todo o ser pessoal
na resposta ao anúncio da boa nova da salvação, o plano de Deus sobre
o ser humano e sua realização efetiva no Cristo ressuscitado enquanto
experiência de um sentido radical. A fé leva, assim, a uma opção: a opção
por seguir Jesus na vida, no seu projeto histórico e escatológico, o que
se torna cada vez mais exigente numa cultura secularizante e pluralista.
Jesus tinha dois eixos de orientação que, em última instância, tinham
a mesma fonte: amor ao Pai e amor aos oprimidos de todas as formas. Da
experiência do Pai, fonte inesgotável de amor e de compaixão para com
todos, de modo especial para com os perdidos e desamparados, Jesus deriva uma prática de solidariedade para com os marginalizados e pecado Cf. PUNTEL, L. B. A racionalidade da crença teísta e o conceito de verdade. In: OLIVEIRA, M. A. de; ALMEIDA, C. (org.). O deus dos filósofos modernos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 38-39. “[...] o criador absoluto livre, pessoal-espiritual, só pode ser
mais ou mais detalhadamente ‘determinado’ ou ‘compreendido’, quando a sua história
é investigada ou conceitualizada: a história de suas ações livres” (PUNTEL, L. B. A
totalidade do ser. op. cit., p. 218).
41
“Encontramo-nos aqui, em presença de uma gênese concreta absoluta...na qual a realidade toda, inclusive a vida universal, é julgada e na qual uma ordem absolutamente
original, irredutível a qualquer outra ordem, é fundada” (LADRIÈRE, J. A articulação.
op. cit., p. 185).
42
Cf. LIMA VAZ H. C. de. A linguagem da experiência de Deus. op. cit., p. 253.
43
Para Ladrière a fé tem três elementos fundamentais: relação a acontecimentos, compromisso, referência escatológica (LADRIÈRE, J. A articulação. op. cit., p. 227).
40
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res. Por isto anuncia o Reino de Deus, que começa a se realizar na existência humana, aí onde as relações humanas são regidas pela justiça, pelo
amor, pela fraternidade, pelo perdão. Este é o projeto de vida de Jesus,
este deve ser o projeto da comunidade de seus discípulos e discípulas.44
Portanto, o que está em jogo, acima de tudo, é um modo de ser, de viver
e de agir, realizar o plano de amor do Pai em todas as dimensões da vida
humana, numa palavra, a articulação de um sentido global para a vida,
o que pressupõe uma visão de unidade da realidade, e de um estilo de
vida a ele correspondente que transforma a vida em todos os seus níveis
e que é de suma importância para um mundo que busca sofregamente
um sentido para a vida.
Assim compreendidas, razão e fé, mantidas em seus devidos níveis,
na esfera de suas competências específicas, não só não são incompatíveis, mas se compreende que a razão é um momento intrínseco do ato
de fé. O não reconhecimento das diferenças de estrutura de ambas as
atividades pode levar a conflitos de que as atuais discussões sobre as cosmologias contemporâneas constituem um bom exemplo. Também não
tem sentido que a fé procure se imunizar de qualquer questionamento,
situando-se num nível que rejeita qualquer diálogo com os tipos específicos de exercício estrito da razão como as ciências e a filosofia, até
porque ela não pode negar em si mesma a presença da razão, o que torna
também possível em seu próprio seio o exercício estrito da razão na forma de uma Teologia.
A palavra de Deus em resposta às interrogações mais profundas do
ser humano só é inteligível dentro do horizonte que constitui o próprio
ser do ser humano. A palavra de Deus é palavra ao ser humano e, enquanto tal, condição de possibilidade de sua inteligibilidade é o próprio
ser humano enquanto palavra significativa, interpretadora de sentido,
portanto, enquanto linguagem. “Justamente enquanto palavra, a existência humana pode acolher a Palavra de Deus.”45 A tentativa de esquecer
“O Espírito também é força que transforma o coração da comunidade eclesial, para
ser, no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma única família, em seu Filho. Toda a atividade da Igreja é manifestação de um amor que
procura o bem integral do homem: procura sua evangelização por meio da Palavra
e dos Sacramentos, empreendimento este muitas vezes heróico nas suas realizações
históricas; e procura sua promoção nos vários âmbitos da vida e da atividade humana”
(BENTO XVI. Deus é amor, 2005, n. 19).
45
Cf. LIMA VAZ H. C. de. Fé e linguagem. op. cit., p. 165.
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seu enraizamento nas categorias da linguagem humana significa pôr-se
numa situação de falta de consciência da verdadeira estrutura da fé e de
sua Teologia, porque, por um lado, elas perderiam qualquer significação
humana e, por outro, seriam deixadas à mercê de qualquer ideologia,
uma vez que é impossível não se situar nas categorias da linguagem que
expressam certa concepção do real. Um pastoralismo anti-racional não
só não tem consciência do que faz, mas é um atentado ao ser humano
porque um desrespeito à sua estrutura própria de ser. Com isto, a fé se
torna incapaz de eliminar da vida humana os pseudo-absolutos que povoam sua existência como ídolos e que constituem em última instância a
negação radical de seu ser.
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