O pensamento mítico 1. O que é o mito O mito, entre as sociedades tribais, é uma forma de o ser humano se situar no mundo, isto é, de encontrar o seu lugar entre os demais seres da natureza. É um modo ingênuo, fantasioso, anterior a toda reflexão, e não-crítico de estabelecer algumas verdades que não só explicam parte dos fenômenos naturais ou mesmo a construção cultural, mas que dão, também, as diretrizes da ação humana. Devemos salientar, entretanto, que, não sendo teórica, a verdade do mito não obedece à lógica nem da verdade empírica, nem da verdade científica. É verdade intuída, que não necessita de provas para ser aceita. Por essa razão, quando existem várias versões do mesmo mito, não devemos nos preocupar em estabelecer uma versão autêntica, pois é o conjunto dessas versões que constituem a sua realidade. O mito nasce do desejo de entender o mundo, para afugentar o medo e a insegurança. O ser humano, à mercê das forças naturais, que são assustadoras, passa a emprestar-lhes qualidades emocionais. As coisas não são mais matéria morta, nem são independentes do sujeito que as percebe. Ao contrário, estão sempre impregnadas de qualidades e são boas ou más, amigas ou inimigas, familiares ou sobrenaturais, fascinantes e atraentes ou ameaçadoras e repelentes. Assim, o ser humano se move dentro de um mundo animado por forças que ele precisa agradar para que haja caça abundante, para que a terra seja fértil, para que a tribo ou o grupo seja protegido, para que as crianças nasçam e os mortos possam ir em paz. O processo mítico está, então, muito ligado à magia, ao desejo, ao querer que as coisas aconteçam de um determinado modo. É a partir disso que se desenvolvem os rituais como meios de propiciar os acontecimentos desejados. O ritual é o mito tornado ação. Os exemplos de rituais são inúmeros: já nas cavernas de Lascaux e Altamira, o homem do Paleolítico (1000 a 5000 a.C.) desenhava os animais, em estilo muito realista, e depois “atacava-os” com flechas, para garantir o êxito da caçada. Os ritos de nascimento e de morte é que dão ao recém-nascido um reconhecimento como ser vivo, pertencente a uma determinada sociedade, ou, ao defunto, a mudança de seu estatuto ontológico (de ser vivo a ser morto) e sua aceitação pela comunidade dos mortos. Outro exemplo é o da expulsão de uma comunidade: uma vez realizados os ritos, a pessoa expulsa não precisa sair da comunidade, pois todos os outros integrantes passarão a não vê-la, não ouvi-la, enfim, a agir como se ela não existisse ou não estivesse presente. Para a comunidade, terminado o ritual, a pessoa expulsa desapareceu simbolicamente, mesmo que continue de corpo presente. E essa exclusão social acaba, em geral levando à morte. 2. Funções do mito Além de acomodar e tranqüilizar o ser humano diante de um mundo assustador, dando lhe a confiança de que, através de suas ações mágicas, o que acontece no mundo natural depende, em parte, dos seus atos, o mito também fixa modelos exemplares de todas as funções e atividades humanas. O ritual é a repetição dos atos executados pelos deuses no início dos tempos e que devem ser imitados e repetidos para que as forças do bem e do mal sejam mantidas sob controle. Deste modo, o ritual “atualiza”, isto é, torna atual o acontecimento sagrado que teve lugar no passado mítico. O mito é uma primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre a qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel, e cuja função principal não é explicar a realidade, mas acomodar o ser humano ao mundo. MÝTHOS: Mito, palavra proferida, discurso. mythéomai: dizer, conversar, contar. Heródoto emprega mýthos para referir-se a relatos confirmados por testemunhas. Platão e Aristóteles empregam mýthos para referir-se a narrativas ou relatos fabulosos, lenda. Pouco a pouco, mýthos passa a significar o lendário e irreal, mentira, relato não histórico, oposto à lógos (saber racional). Características do mito O mito nas sociedade tribais é sempre coletivo, ou seja, o sujeito só tem consciência, só se reconhece como parte do grupo. O mito é sempre dogmático, isto é, apresenta-se como verdade que não necessita de provas e que não admite contestação. A sua aceitação se dá, por meio da fé e da crença. O mito não pode ser provado nem questionado. >Como mito narra a origem do mundo e tudo que nele existe? 1. Encontrando o pai e mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses. A narração da origem é uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados. 2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. 3. Encontrando recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece. Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos de origem são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias. Gonia quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmo, quer dizer, mundo ordenado e organizado. Cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. Teogonia é a palavra composta por gonia e theos. Significa portanto a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados. Mito hoje Augusto Comte, filósofo francês do século XIX, fundador do positivismo, condena à morte, o modo mítico. Negar o mito é negar a uma das expressões fundamentais da existência humana. O mito é a primeira forma de dar significado ao mundo: fundado no desejo de segurança, a imaginação cria histórias que nos tranqüilizam, que são exemplares e nos guiam no dia-a-dia. Continuamos a fazer isso pela vida afora, independentemente de nosso desenvolvimento intelectual. Hoje em dia, os meios de comunicação de massa estimulam os desejos e anseios que existem na nossa natureza inconsciente e primitiva. Os super-heróis dos desenhos animados e dos quadrinhos, também os personagens de filmes como Rambo e outros, passam a encarar o bem e a justiça e assumem a nossa proteção imaginária, pois o mundo moderno revela-se extremamente inseguro. Artistas e esportistas também são transformados em modelos exemplares: são fortes, saudáveis, bem alimentados, têm sucesso na profissão etc. Como não mitificá-los? Até a novela, ao trabalhar a luta entre o Bem e Mal, está lidando com valores míticos, pré-reflexivos, que se encontram no interior de todos nós. Mito e razão, portanto, se complementam nas nossas vidas. Só que o mito de hoje – embora ainda tenha força para inflamar paixões, não se apresenta mais com o caráter existencial que tinha o mito primitivo. Ou seja, os mitos modernos não abrangem mais a totalidade do real. Parece que houve uma especialização do mito. Podemos por exemplo, escolher um mito da sexualidade: Madona. Dessa forma, como mito e razão habitam o mesmo mundo, o pensamento reflexivo pode rejeitar alguns mitos, principalmente os que veiculam valores destrutivos ou se levam a desumanização da sociedade. Cabe a cada um de nós escolher quais serão nossos modelos de vida. Mitologia Grega Os gregos cultuavam uma série de deuses, heróis e semideuses. Relatando a vida dos deuses e dos heróis e seu envolvimento com os homens, os gregos criaram uma ricca mitologia, conjunto de lendas e crenças que, de modo simbólico, fornecem explicações para a realidade universal. Os mitos surgem ainda quando não havia escrita, portanto eram preservados pela tradição e transmitidos oralmente pelos aedos e rapsodos, cantores ambulantes que davam forma poética aos relatos populares e os recitavam de cor em praça pública. Acreditava-se que o poeta era escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-las aos ouvintes. Sua palavramito- é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois incontestável e inquestionável. Era difícil conhecer os autores desses trabalhos de formalização, porque não havia preocupação com a autoria das histórias, que eram engendradas de forma coletiva. Homero, um desses poetas, teria sido o possível autor de dois poemas épicos, as epopéias Ilíada e Odisséia. Ilíada (Tróia em grego é Ìlion) trata da guerra de Tróia e a Odisséia relata o retorno de Ulisses (Odisseu- nome grego) a Ítaca, após a guerra de Tróia. Hesíodo, outro poeta, produz uma obra com particularidades que tendem a superar a poesia impessoal e coletiva das epopéias. Ele valorizava o trabalho e a justiça, destacando a importância das regras que balizam o comportamento humano. Mas sua obra Teogonia (teo= deuses, gonia= origem) reflete ainda o interesse pela crença em mitos. Nela, Hesíodo (século VIII a.C.) relata o mito da origem do mundo e dos deuses, em que forças emergentes da antureza vão se transformando-se nas próprias divindades. Nesse relato, Gaia (Terra), surge do Caos inicial e, depois, pelo processo de serapação, gera Urano (Céu) e Pontos (Mar). Une-se, então, a Urano, e dá início às gerações divinas. No mito, esses seres primitivos não são apenas seres da natureza, mas divindades. “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, eTártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.” HESÍODO. Teogonia, 116-122.