Um Mundo Pós-Ocidental?

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mundo pós-ocidental
Dominique Moïsi na FAAP -
Um Mundo Pós-Ocidental?
No dia 8 de novembro, a FAAP recebeu o prof. Dominique Moïsi, um dos mais conceituados pensadores
franceses da atualidade. Ao introduzir o convidado, o
embaixador Sergio Amaral ressaltou que Moïsi foi fundador do Instituto Francês de Relações Internacionais
(Ifri), professor de Harvard e da Sciences Po. É colaborador dos mais importantes jornais globais, tais como o
Financial Times e o The New York Times. Transita com a
mesma familiaridade e desenvoltura da filosofia para a
ciência política e desta para as relações internacionais.
É autor de vários livros, entre os quais a Geopolítica das
Emoções (publicado em português), que introduz uma
perspectiva inovadora e instigante ao estudo das relações internacionais, ou seja, a relevância das emoções, do estado de espírito da sociedade na conformação das políticas e dos jogos de poder. Sua contribuição
é comparável à de Joseph Nye, quando desenvolveu o
conceito de soft power.
A conferência de Moïsi foi promovida pelo Centro de
Estudos Americanos da FAAP, em parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso e com o apoio do BNP
Paribas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e
os embaixadores Rubens Ricupero e Sergio Amaral comentaram as ideias do conferencista.
O tema tratado por Moïsi foi Estamos caminhando para
um mundo pós-ocidental, que surpreendeu e até mesmo
chocou a todos os que, como nós, aprendemos a pensar o mundo a partir da herança de um pensamento, de
uma cultura e de uma civilização greco-romanas. Como
visualizar agora o deslocamento, primeiro da economia,
em seguida na política e eventualmente na cultura para
um mundo sino-cêntrico?
Dominique Moïsi
Logo no início de sua exposição, o palestrante observou
que os últimos dez anos foram marcados por uma transição da guerra ao terror ao made in
A partir da esquerda, o palestrante Dominique Moïsi, o ex-presidente
China. Em breve esta expressão poderá
Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Sergio Amaral.
ser substituída por outra, owned by China. Este novo mundo, em transformação
profunda e acelerada, pode ser resumido
por duas palavras: complexidade e instabilidade. É o resultado de uma revolução
tectônica que sinaliza a passagem da tocha da história do Ocidente para a Ásia e
para os países emergentes. É o fim de um
capítulo de mais de dois séculos de dominação ocidental sobre o mundo. A crise financeira de 2007 acelerou o processo de
mudanças. Mas a crise não é apenas econômica, sua origem está no que poderíamos chamar de a crise moral do Ocidente.
Nos Estados Unidos da América (EUA)
rompeu-se o contrato social e a sociedade está tomada pela cultura do medo,
pela obsessão e, ao mesmo tempo, a ne-
O prof. Dominique Moïsi encantou a
todos com as suas colocações sobre
o mundo pós-ocidental.
O deslocamento para um mundo
pós-ocidental já é uma realidade
na economia. Progressivamente
poderá ocorrer também na política
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mundo pós-ocidental
Momentos antes da palestra, um diálogo entre o empresário Salim Taufic Schahin (à esquerda), o prof. Victor Mirshawka, diretor-cultural da FAAP, o palestrante
Dominique Moïsi e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
gação do declínio. Com a fadiga do império e o custo
europeus. As razões para a situação atual são muitas:
crescente da desigualdade. A guerra no Afeganistão
a emergência do populismo, a proliferação dos altercacustou o dobro do que a do Vietnã. De um lado, seria
pitalismos, a desconfiança em relação às instituições
perigoso menosprezar a capacidade de os EUA se recueuropeias.
perarem; de outro seria igualmente perigoso desprezar
Nesse contexto, a crise financeira tornou-se uma crise
as dificuldades atuais. Os EUA precisam de um duplo
econômica e social pela convergência de vários fatores.
reequilíbrio. Ninguém ameaça a América hoje. Mas os
Primeiro a rede infecciosa, como a chamava GreensEUA precisam concentrar-se em por a casa em ordem,
pan, fez a doença espalhar-se por todo o sistema. Seconstruir a infraestrutura e reduzir os seus déficits. No
gundo, a falta de regulação. O Estado falhou e todos
que diz respeito à política
externa, houve um excesso
O embaixador Sergio Amaral (à direita)
fazendo as primeiras considerações, estando
de atenção ao Oriente Méà mesa o ex-presidente Fernando Henrique
dio, com poucos resultados,
Cardoso, o prof. Dominique Moïsi e o embaixador Rubens Ricupero, diretor da Faculdade
e pequena atenção para a
de Economia da FAAP.
Ásia.
Nos EUA, apesar das dificuldades atuais, texanos, californianos e nova-iorquinos,
todos se sentem norte-americanos e parte de um sistema federativo que funciona.
“Acreditamos em Deus”, diz
o dólar. Na Europa, muitos
seriam tentados a dizer: “No
euro, nós não cremos”. Será
que os alemães e os franceses realmente acreditam
que são europeus? Esta é a
chave do problema. A Europa precisa de instituições,
de uma encarnação, de uma
Grande Europa e de menos
Um grande público compareceu à FAAP para ouvir Dominique Moïsi.
foram responsáveis. A França e a Alemanha foram os
primeiros a dar o mal exemplo a todos por não terem
respeitado as regras do pacto de estabilidade. Se quisermos resumir a crise em poucas palavras, ela foi o
resultado do fato de que vivemos por muitas décadas
acima dos nossos meios em termos materiais e abaixo
dos nossos meios políticos, intelectuais e éticos
A Primavera Árabe não é apenas a luta pela democracia e a ressurreição dos partidos islâmicos. Ela ilustra,
mais do que em outras regiões, o reencontro entre a ética e a política. Claro que houve a rejeição dos déspotas,
mas o que tornou os déspotas ainda menos aceitáveis
para uma boa parte da população foi a corrupção.
Fernando Henrique Cardoso
Os Estados Unidos da América (EUA) de Bush propuseram o modelo norte-americano para o mundo todo,
em especial para o árabe. Isso no momento em que o
poderio norte-americano – não militar, mas civilizatório
– encolhia. Em lugar de propor uma espécie de armistício, limitando a expansão árabe-muçulmana, quiseram
anulá-la. Mas era tarde demais para isso. O movimento árabe era muito mais profundo, porque inclusive já
havia outros polos de atração no planeta, um deles a
China, mas não só a China. A potência norte-americana
conseguiu arrastar outros países para o equívoco, inclusive na Europa. O Brasil nunca se equivocou sobre os
ventos de mudança, talvez porque já tivesse a experiência de nossa região. A Argentina, ao início do século
XX, não percebeu que o eixo se movia em direção aos
EUA e perdeu o rumo. O Brasil, discretamente, seguiu a
direção correta.
O mesmo ocorre hoje em relação à China, a nova potência emergente. Quando fui à China como presidente,
tínhamos a impressão de que íamos defini-los como parceiros. Na verdade, eles já nos haviam escolhido. Quase
todas as suas principais lideranças já haviam estado no
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comentando algumas das
opiniões do prof. Dominique Moïsi.
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mundo pós-ocidental
Após a palestra de Dominique Moïsi, os debatedores Rubens Ricupero, Fernando Henrique Cardoso e Sergio Amaral puderam fazer seus comentários e o
público formular suas perguntas.
Brasil. A China tinha uma clara estratégia. Ela sabia que
precisaria de alimentos e de matérias-primas.
nas, estamos aceitando “o outro”. Não só porque somos
um País de imigração, os norte-americanos também são,
não só porque somos um País de
base africana forte, os norte-americanos também são, mas aqui, por
bem ou mal, culturalmente nós
conseguimos uma fusão. A fusão
cultural é mais forte do que a racial e sanguínea. Não existem aqui
várias culturas: a cultura negra, a
cultura branca, a cultura japonesa.
Houve a capacidade de integrar, o modelo cultural é o
mesmo. É verdade que existe preconceito, desigualdade, e tudo isso tem que ser combatido. Mas há um dado
que está na matriz de nossa cultura: a aceitação do outro é valorizada, embora nem sempre seja praticada.
O modelo chinês atrai pela rapidez com que conseguiu
reduzir a desigualdade. Mas a economia não basta. A
lição que aprendemos com Moïsi é a da importância
fundamental dos valores em uma cultura e uma visão
de mundo voltada para a convivência na diferença.
Vou repetir o que digo há muitos anos. Eu sou cartesiano, fui formado nessa escola, li muito Descartes. Sou
cartesiano, mas com algumas pitadas de candomblé.
Porque Descartes sozinho não basta. Não que deva haver muito de candomblé, mas é preciso dar um basta
A China tinha uma clara estratégia.
Ela sabia que precisaria de alimentos
e de matérias-primas
Temos, hoje, o grande desafio de entender os rumos do
mundo que está emergindo. No futuro, as fontes de poder dependerão cada vez menos do fator bélico e cada
vez mais da capacidade de construir modelos que tenham atratividade, como, no passado, a social-democracia atraía. No Brasil, não obstante as diferenças de propostas para solucionar os problemas, existem convergências. Entre elas, a de que a iniquidade é inaceitável. Não
só a desigualdade, a iniquidade. Nós temos que transformar as pessoas em iguais, pelo menos perante a lei,
para poder defender a igualdade de oportunidades com
convicção. A partir desse patamar, entretanto, estamos
aprendendo a aceitar as diferenças culturais e raciais.
O Brasil é um laboratório para a construção de uma cultura de convivência dentro da diferença. A duras pe-
à arrogância cartesiana de pensar “Eu sei”, “Penso,
logo existo” e a partir do seu cogito construir o mundo.
Você pensa, existe, mas há outros que também pensam
e também existem. Moïsi está propondo uma política
de tolerância entre as potências e, ao mesmo tempo,
digamos, internamente dentro de cada potência. Isso
será possível? No mundo, até hoje, não foi bem assim.
No mundo, na política internacional, nunca prevaleceu
o bom-senso, mas o poder. O poder sem limite, militar
e econômico. Hoje, o poder militar encontrou um obstáculo difícil que é o fundamentalismo. Quando você tem
povos que estão dispostos a morrer, a dar a própria vida
por uma religião ou por uma ideia, de que adianta possuir a bomba atômica? A predisposição a morrer para
difundir um ideal impõe um limite a adversários, mesmo
poderosos, que não tenham a mesma disposição.
Não há mais país, nem os EUA, com capacidade global de
controle militar. Então, talvez no futuro, o poder militar
exclusivo não prevaleça. E o poder econômico? A rápida
desorganização do sistema econômico a que estamos
assistindo mostra que também talvez não. Moïsi efetivamente tem razão. É preciso levar em conta as emoções,
as culturas, o processo civilizatório, ou, usando uma palavra sempre repetida, mas sintética e verdadeira, os valores. A lição que recebemos hoje foi extraordinária, foi
a de uma visão de mundo que não se limita à briga entre
potências. É o sinal da emergência de valores, da capacidade de sobreviver, se possível, juntos. Eu só posso
aplaudir de tudo que foi dito por Dominique Moïsi.
Rubens Ricupero
Há muito tempo eu não escutava uma análise tão abrangente do mundo em que estamos vivendo quanto a brilhante exposição do prof. Dominique Moïsi. Há muito
tempo também não fazia uma descoberta intelectual
nova, como fiz hoje. Tenho a satisfação de registrar ainda que temos em comum várias afinidades eletivas. O
ex-presidente Fernando Henrique, com sua acuidade
habitual, comentou que a contribuição de Moïsi não
está apenas na geopolítica das emoções, mas na referência aos valores da sociedade.
O foco de Moïsi na Primavera Árabe não lhe deixou
tempo para mencionar os importantes artigos que tem
escrito sobre a Ásia e, em particular, sobre a China. A
nova potência emergente não traz uma mensagem universal. Não está interessada, como sempre estiveram
as grandes nações ocidentais, em converter e salvar o
mundo. Ela está olhando para si própria. O que não significa necessariamente um juízo de valor negativo. É um
país que só percebe a si próprio, que vê e vive dentro da
sua cultura. E eu me permitiria até dizer ao prof. Moïsi
que na minha experiência diplomática de dez anos nas
Nações Unidas convivi muito com os asiáticos e notei
que essa característica não é só chinesa, os japoneses
também vivem dentro da sua cultura. Eles não têm a
ideia da universalidade, de que os homens todos são
irmãos. Isso é algo que no fundo vem de uma heresia
do judaísmo. Ainda que fosse a religião de uma tribo,
alguns como Isaías tinham uma visão universal. Jesus
Um outro aspecto do público presente à palestra de Dominique Moïsi na FAAP demonstrando grande envolvimento com o que estava sendo dito por ele.
O embaixador Rubens Ricupero destacando que
a China é um país muito preso a sua cultura.
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mundo pós-ocidental
Os EUA são, há mais
de 80 anos, a fábrica
dos sonhos
Cristo é um herege judeu que torna universal essa mensagem, essa ideia de que os homens são irmãos. Nesse ponto, os judeus são diferentes dos russos, porque
os russos também são messiânicos, são salvadores do
mundo, têm essa visão universal.
Essas considerações suscitam uma questão central
sobre a emergência da China. Como será o mundo em
que um país predominante não tem uma visão universal? Quando a China assumiu uma cadeira no Conselho de Segurança, em plena Revolução Cultural, muitos
temiam que a nação adotasse uma postura radical.
Mas isso não ocorreu, porque a China só toma partido
quando seus interesses diretos estão em jogo, como em
Taiwan ou no Tibete.
Existe outra questão que está associada à ideia do declí-
nio norte-americano. Apesar de tudo, os EUA continuam
a ser a pátria da inovação. A cultura asiática é tradicionalmente uma cultura que valoriza a cópia. Até recentemente, na China, o padrão da boa pintura era pintar
exatamente como se pintava em
O diretor-presidente da FAAP, Antonio Bias Bueno Guillon, entregando ao
1200, não havia a ideia da vanprof. Dominique Moïsi um livro, em francês, que conta a história da FAAP.
guarda, da mudança. Os chineses estão mudando, mas nunca
foram de apreciar muito a inovação. Como disse um jornalista chinês, a China tornou-se um
grande exportador. Mas quais
foram os três produtos que revolucionaram o mundo em anos recentes? O iPhone, o iPod e o iPad,
todos lançados nos EUA.
Os EUA são, há mais de 80 anos,
a fábrica dos sonhos. Eu me criei
lendo histórias em quadrinho
norte-americanas e vendo filmes
norte-americanos. Quais são
os sonhos que a China fabrica?
Quais foram os sonhos que os
japoneses fabricaram no período
em que pareciam estar alcançando a hegemonia no mundo?
Não é só a superioridade
econômica e militar. Existem
outros mundos, como o das
emoções, da cultura e dos
valores em que a China terá
de passar por uma evolução,
para tornar-se um país mais
aberto.
Sergio Amaral
Ocorreu o que eu temia, mas
imaginava. Os comentários
que eu teria a fazer sobre a
excelente conferência do
prof. Moïsi já foram feitos, e
muito bem feitos, pelo ex-presidente Fernando Henrique e
pelo embaixador Ricupero.
Pouco me resta a dizer, pois
guardo com eles uma grande
afinidade de visão. Não obstante, a título de conclusão, O prof. Dominique Moïsi e sua mulher, Diana Moïsi, na visita que fizeram à sede da FAAP, na rua Ceará Nº2.
queria sublinhar uma ideia
que percorreu todo o debate sobre um possível mundo
mos considerando, sobretudo, o deslocamento do eixo
pós-ocidental: o tema vai muito além da economia.
econômico do Ocidente para a Ásia, tendo como epiQuando falamos de um novo mundo sino-cêntrico estacentro a China. Isso parece ser uma realidade. Possivelmente, não existe precedente na História para um país
crescer a uma taxa média de 12% ao ano, durante quase
30 anos; para conciliar o funcionamento do mercado
com uma economia centralizada e sem instituições democráticas plenas.
Os chineses mostraram que isso é possível, não sei por
quanto tempo. Eles construíram um espaço integrado
na Ásia e muitas vezes nós não nos damos conta disto.
O espaço asiático está criando uma integração das cadeias produtivas na Ásia, o que tornará cada vez mais
difícil exportar para a região.
O deslocamento para um mundo pós-ocidental já é, portanto, uma realidade na economia. Progressivamente
poderá ocorrer também na política. Com cautela e com
um sentido de que o tempo corre a seu favor, a China
vai ocupando posições no tabuleiro das grandes decisões mundiais, nos cargos das organizações multilaterais, especialmente as financeiras, tanto na discussão
sobre uma nova cesta de moedas – reserva –, quanto
no debate sobre o direito de proteger, no Conselho de
Segurança. Mas algo ainda está faltando para a construção da hegemonia chinesa no plano mundial. É o que
foi assinalado pelos três participantes sob diferentes
formas. É a capacidade de construir modelos atrativos
para os demais, a proposta de formas de convivência
na diferença, a visão universalista centrada em valores
compartilhados, a capacidade de projetar, como diria
Moïsi, uma cultura da esperança. Os chineses serão
capazes de vencer mais este desafio? Como foi dito váO embaixador Sergio Amaral, diretor do Centro de Estudos Americanos da
rias vezes ao longo do debate, the jury is still out (o júri
FAAP, demonstrando sua satisfação com o sucesso do evento realizado em
parceria com o Instituto Fernando Henrique Cardoso.
ainda não deu sua sentença).
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