PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito TEORIA JURÍDICA DA INFORMAÇÃO GUILHERME NACIF DE FARIA Belo Horizonte 2010 GUILHERME NACIF DE FARIA TEORIA JURÍDICA DA INFORMAÇÃO Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direito Privado. Área de concentração: Direito Privado Orientadora: Profª Drª Taísa Maria Macena de Lima Belo Horizonte 2010 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais F224e Faria, Guilherme Nacif de Teoria jurídica da informação / Guilherme Nacif de Faria. Belo Horizonte, 2010. 351f. Orientadora: Taísa Maria Macena de Lima Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Informação. 2. Teoria (Direito). 3. Estatuto. 4. Valor (Direito). 5. Análise econômica. 6. Instrumentos jurídicos. 7. Personalidade (Direito). 8. Segredos profissionais. 9. Informações governamentais. I. Lima, Taísa Maria Macena de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 347.122 Folha de aprovação Para toda minha família, sempre. Para Jaqueline, Bárbara e Victor. Aos meus pais Geraldo e Liana e aos meus irmãos e suas famílias. A Alice e Miguel, sopro novo de vida. Agradecimentos Às professoras da UFV Alba Pedreira Vieira e Iacyr de Aguillar Vieira pela ajuda em vários artigos conseguidos nos Estados Unidos, Alemanha, Suiça e França sem os quais esse trabalho não se tornaria satisfatório. Às instituições de ensino Universidade Federal de Viçosa e Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais pela minha formação, oportunidade e pelo apoio financeiro. À prof.ª Taisa Maria Macena de Lima pela orientação proporcionada, pela liberdade de pensamento concedida e pela confiança depositada nesse trabalho. Aos meus professores e colegas do doutorado da PUC pela oportunidade de crescimento intelectual que me proporcionaram. Aos funcionários da Faculdade de Direito da PUC-MG pela presteza, amizade e colaboração em muitos momentos, especialmente o Júnior e o Rafael. À minha revisora de português e comentarista Liana Nacif de Faria pelo trabalho que dei. Às minhas companheiras de trabalho Rita de Cássia Zanetti Gomes e Silvana Maria Pena Samartini pelo apoio nas minhas ausências. Ao Gustav e Eliza Szabo pelas correções nas traduções da língua inglesa e francesa. Ao Rogério Nacif pela hospedagem e amizade nesses últimos sete anos e ao Rodrigo Nacif e Ana Paula pela amizade e acolhida. Resumo A finalidade do trabalho é uma tentativa de sistematização jurídica das informações, independente do seu valor patrimonial. O trabalho partiu de observações empíricas de casos onde a informação é o elemento em torno dos quais as situações jurídicas se desenvolvem. A metodologia utilizada foi a da análise dos institutos jurídicos de base envolvidos e a classificação dos casos e dividiu o trabalho em duas partes: uma parte geral e uma parte especial. A parte geral aborda os conceitos jurídicos fundamentais pertinentes, passando pela teoria dos bens e das coisas, as relações jurídicas e a propriedade e suas faculdades. A parte especial é composta das características da informação, principalmente a econômica, e de um agrupamento das manifestações empíricas e jurídicas da informação agrupadas conforme uma classificação proposta em fator determinante nos negócios jurídicos, dever jurídico, obrigação acessória e principaI, caráter patrimonial, existencial e público. Há uma busca por pontos comuns ou convergentes entre as várias situações jurídicas. Conclui-se pela tese de que é possível um campo unificado do direito com relação à informação. Essa unificação seria a extensão da utilização da tutela dispensada à propriedade, mais eficiente e conhecida, para tutelar todas as manifestações jurídicas da informação. Palavras-chave: 1. Informação. 2. Teoria (Direito) 3. Estatuto. 4. Valor (Direito). 5. Análise econômica. 6. Instrumentos jurídicos. 7. Personalidade (Direito). 8. Segredos profissionais. 9. Informações governamentais. Abstract The aim of the work is to attempt a legal systematization of the information, regardless of its patrimonial value. The work begins with empirical observations of cases where the information is the element around which the legal situations develop. The methodology used is the analysis of the basic legal juridical institutions involved as well as the classification of cases, and it divided the work into two parts: a general part and a special part. The general part relates to pertinent fundamental juridical concepts, taking into account the theory of the goods and the things, juridical relationships, property and its faculties. The special part is composed of the characteristics of the information, mainly the economic aspect, and of a grouping of the empirical and legal manifestations of the information grouped as determinative classification of the legal transactions, legal obligation, accessory and principaI obligation and patrimonial, existencial and public character. A search is then made for common or convergent points between various legal situations. In conclusion the thesis indicates that a unified field of the right concerning information is possible. This unification would be the extension of the use of guardianship of property, more efficient and well known, to tutor all legal manifestations of information. Keywords: 1. Information. 2. Theory (Right) 3. Regulations. 4. Value (law). 5. Economic analysis. 6. Legal instruments. 7. Personality (Law). 8. Client's privileges. 9. Government information. Résumé Le but de ce travail est une tentative de la systématisation légale de l'information, indépendamment de sa valeur patrimoniale. Au départ, des observations empiriques de cas où l’information est l'élément autour duquel les situations juridiques se développent. La méthodologie utilisée est l'analyse d’instituitions juridiques de base et la classification des cãs. Elle a divisé le travail en deux parties: une partie générale et une partie spéciale. La partie générale aborde les concepts juridique fondamentaux pertinents, en passant par la théorie des biens et des choses, par les rapports juridiques et par da propriété et ses facultés. La partie spéciale est composée des caractéristiques de l'information, et d’un agroupement des manifestations empiriques et juridiques de l’information agroupées comme un facteur déterminatif d’un classement proposé pour les transactions légales, le devoir juridique, l’obligation accessoire et principaIe, le caractère patrimonial, existentiel et public. On investigue alors les points communs ou convergents entre certaines situations légales. La thèse indique en conclusion qu'il est possible d’établir un champ unifié du droite à l'égard de l'information. Cette unification serait l’extension de l'utilisation de la tutelle de la propriété, plus efficace et plus connue, pour en faire autant de toutes les manifestations jurídiques de l'information. Mots-clés: 1. Informations. 2. Théorie (Droit) 3. Statut. 4. Valeur (en droit). 5. Analyse économique. 6. Instruments juridiques. 7. Personnalité (droit). 8. Secrets professionnels. 9. Information du gouvernement. Lista de abreviaturas e siglas ADN ou DNA – Acido Dexorribonucleico BGB – Bürgerliches Gesetzbuch - Código Civil alemão CCA – Código Civil argentino – Ley nº340, de 25 de setembro de 1869 CCB-2002 – Código Civil brasileiro – Lei nº10.406, de 10 de janeiro de 2002 CCB-1916 – Código Civil brasileiro-1916 – Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916 CCE – Código Civil espanhol CCF – Code Napoléon - Código Civil francês CCI – Código Civil italiano CCP – Código Civil português CCQ – Código Civil do Quebéc CDC – Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078, de 11/09/1990 CE – Constituição Européia CEM – Código de Ética Médica – Resolução CFM nº1246/88 CFM – Conselho Federal de Medicina CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas – Decreto-Lei nº5.452, de 1/5/1943. CNJ – Conselho Nacional de Justiça. CNT - Código Nacional de Trânsito - Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997. CP – Código Penal brasileiro CPP – Código de Processo Penal brasileiro CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – Congresso Nacional do Brasil CP italiano – Código Penal italiano CREMESP – Conselho Regional de Medicina de São Paulo CRF-1988 – Constituição da República Federativa do Brasil – de 05/10/1988 CTN – Código Tributário Nacional - Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. CVM – Comissão de Valores Mobiliários DL – Decreto-Lei ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8.069 de 13/07/1990. FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FUNAI – Fundação Nacional do Índio GINA – Genetic Information Nondiscrimination Act (EUA) GPS – Global Positioning System – Sistema de Posicionamento Global LFA – Lei Fundamental alemã OMS – Organização Mundial de Saúde ONG – Organizações não-governamentais ONU – Organização das Nações Unidas PIS – Programa de Integração Social v.g. - verbi gratia (por exemplo) SIF – Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça SUS – Sistema Único de Saúde TJDFT - Tribunal do Distrito Federal e Territórios TST – Tribunal Superior do Trabalho UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. WHO – World Health Organization – Organização Mundial de Saúde. SUMÁRIO SUMÁRIO............................................................................................................................................................ 11 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 13 Contextualização ......................................................................................................................................... 14 Abordagem................................................................................................................................................... 19 Plano metodológico ..................................................................................................................................... 21 Um marco teórico – a informação como bem.............................................................................................. 22 Hipóteses...................................................................................................................................................... 22 Plano de Estudo ........................................................................................................................................... 23 Divisão do trabalho em parte geral e especial ...........................................................................................................24 PARTE GERAL .................................................................................................................................................. 25 CAPÍTULO 1 - ASPECTOS GERAIS DA INFORMAÇÃO............................................................................ 25 As variações semânticas do termo ............................................................................................................... 25 A expansão do termo.................................................................................................................................................25 Noções da informação ................................................................................................................................. 26 Definição jurídica......................................................................................................................................................26 CAPÍTULO 2 – DOS BENS E DAS COISAS .................................................................................................. 29 Introdução aos significados de bem e coisa ................................................................................................ 29 Evolução do termo no direito positivo ......................................................................................................................31 Considerações finais sobre a noção atual de bem e coisa........................................................................... 34 Classificação dos bens................................................................................................................................. 36 Bens móveis e imóveis ..............................................................................................................................................36 Bens corpóreos e incorpóreos....................................................................................................................................38 Materialidade e imaterialidade ..................................................................................................................................42 Bens in commercium e extra-commercium – breves comentários .............................................................................44 Objeto e conteúdo do direito........................................................................................................................ 45 Legitimidade do objeto do direito ................................................................................................................ 47 CAPÍTULO 3 – ASPECTOS JURÍDICOS DA INFORMAÇÃO ..................................................................... 61 A informação como bem jurídico................................................................................................................. 61 Introdução .................................................................................................................................................................61 A mudança dos paradigmas em relação aos bens ......................................................................................................62 A tutela jurídica da informação ................................................................................................................... 66 Correntes doutrinárias da tutela da informação .........................................................................................................66 O conteúdo do direito .................................................................................................................................. 68 Considerações finais.................................................................................................................................... 71 CAPÍTULO 4 – A APROPRIAÇÃO DA INFORMAÇÃO .............................................................................. 73 Propriedade – análise histórica................................................................................................................... 73 A justificação da propriedade....................................................................................................................................76 Importância econômica da proteção às propriedades ................................................................................................79 Formas de assenhoramento .......................................................................................................................................80 Novas formas de propriedade.....................................................................81 Novas possibilidades do uso da posse .......................................................83 A análise econômica do direito e a propriedade .........................................84 Considerações finais.................................................................................................................................... 86 PARTE ESPECIAL ............................................................................................................................................ 88 INTRODUÇÃO – AS DIVERSAS ABORDAGENS DA INFORMAÇÃO ..................................................... 88 As abordagens da informação e suas classificações ................................................................................... 88 Informação como fator de desenvolvimento – abordagem política ............................................................. 89 Abordagem econômica da informação ........................................................................................................ 91 A informação na vida jurídica privada........................................................................................................ 92 A informação na vida jurídica pública ........................................................................................................ 93 CAPÍTULO 1 - O VALOR INTRÍNSECO DA INFORMAÇÃO ..................................................................... 95 Breve introdução do interesse da Economia e do Direito ........................................................................... 95 CAPÍTULO 2 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO I – A INFORMAÇÃO COMO FATOR DETERMINANTE NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ........................................................................................ 98 Introdução.................................................................................................................................................... 98 Informação como custo de transação .......................................................................................................... 99 Informação assimétrica ............................................................................................................................. 100 CAPÍTULO 3 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO II – INFORMAÇÃO COMO DEVER JURÍDICO E OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA ................................................................................................... 101 Introdução e abordagem............................................................................................................................ 101 Natureza do dever de informar .................................................................................................................. 102 Importância, aplicação e conteúdo ..........................................................................................................................103 Classificação da obrigação não-principal de informação ........................................................................................104 Conselhos e recomendações ....................................................................................................................................105 A informação nas relações de consumo..................................................................................................... 106 Informações publicitárias ........................................................................................................................................108 Relação médico-paciente.........................................................................................................................................109 Atividade notarial e registral ...................................................................................................................................110 Inversão do ônus da prova do inadimplemento .......................................................................................................111 A informação como obrigação tributária acessória .................................................................................. 112 Considerações finais.................................................................................................................................. 113 CAPÍTULO 4 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO III – OBJETO DA PRESTAÇÃO CONTRATUAL ............................................................................................................................................. 115 Privilégio Cliente - advogado..................................................................................................................................116 Banco de dados.......................................................................................................................................... 117 Responsabilidade civil pela informação ..................................................................................................................118 CAPÍTULO 5 - CARÁTER EXTRA-PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO – A QUESTÃO EXISTENCIAL ........................................................................................................................................................................ 120 Direito a privacidade................................................................................................................................. 121 Proteção legal da privacidade..................................................................................................................................121 Conteúdo do direito à privacidade ............................................................................................................ 122 A privacidade em circunstâncias específicas............................................................................................. 122 Banco de dados .......................................................................................................................................................123 Sigilo bancário ........................................................................................................................................................124 Cookies, web bugs e spywares.................................................................................................................................125 Considerações finais.................................................................................................................................. 127 CAPÍTULO 6 – CARÁTER PÚBLICO DA INFORMAÇÃO........................................................................ 130 Introdução.................................................................................................................................................. 130 O papel da informação na consolidação do Estado democrático de direito ............................................. 132 CONCLUSÃO ................................................................................................................................................... 133 Introdução ...............................................................................................................................................................133 Considerações da parte geral ...................................................................................................................................134 Considerações sobre o bem jurídico........................................................................................................................136 Considerações sobre a tutela da informação............................................................................................................140 Considerações da parte especial ..............................................................................................................................144 Sobre a confirmação ou rejeição das hipóteses .......................................................................................................146 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................................... 150 BIBLIOGRAFIA TÉCNICA................................................................................................................................... 150 BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA ........................................................................................................................ 150 BIBLIOGRAFIA DE REPORTAGENS..................................................................................................................... 162 BIBLIOGRAFIA DE ATOS NORMATIVOS ............................................................................................................. 163 BIBLIOGRAFIA DE JURISPRUDÊNCIAS ............................................................................................................... 166 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................................................................... 169 INTRODUÇÃO Vivemos num mundo moldado pela tecnologia e o seu combustível é a informação. Solove et alli1 O homem é produto de seu meio. Somos os seres como hoje nos apresentamos porque adquirimos e aprimoramos uma forma especial de transmissão de mensagens – a fala significativa. Uma segunda etapa, para além da tradição oral, e decisiva para o desenvolvimento do intelecto humano, foi a capacidade de eternizar as mensagens faladas, agora transformadas em signos convencionais, em suportes físicos como pedra, madeira e papiro, não dependendo mais apenas da memória das pessoas. Toda a evolução da espécie humana só foi possível com a acumulação do conhecimento resultante da experiência adquirida e sua transmissão para as gerações seguintes. O acúmulo de conhecimento e as facilidades de sua transmissão e reprodução foram e são elementos essenciais ao desenvolvimento dos países e de suas riquezas. Historicamente, os saltos da capacidade da humanidade em criar e transmitir conhecimento acompanharam os saltos de desenvolvimento: a invenção da escrita pelos sumérios; a invenção do papel, mais barato e abundante que o papiro, e a invenção da impressão e tipografia por Gutemberg em cerca de 1450. Na verdade, a impressão de tipos se deu na China, muito antes que na Europa, mas, em decorrência do grande número de caracteres chineses, o processo se tornou pouco prático. A vantagem européia decorreu do uso do alfabeto fenício, que possibilitava, com pouco mais de 20 tipos, a construção de todo e qualquer texto. Essa diferença é que possibilitou a expansão do conhecimento na Europa, mais do que ocorreu na China e que alguns autores chamam de a invenção chinesa da Europa moderna2. 1 2 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Information privacy law… pag. 1. PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Direitos de autor e liberdade de informação... pág. 50. O último ato percebido dessa evolução histórica é o fenômeno da desmaterialização da transmissão da informação feita por ondas eletromagnéticas e iniciada nos meados do Século XX, pelas transmissões de rádio e, a partir daí, dos sinais de televisão e da criação da rede mundial de computadores. Esta última seqüência de fatos, com duração aproximada de um século, destronou o monopólio da escrita material como suporte do conhecimento comunicável3. A digitalização binária da informação gerou a possibilidade de criar, transformar, transmitir e recuperar dados pela informática, abolindo tempo, espaço e quase toda a matéria. Essa evolução é o que nos faz denominar a presente seção de tempo como a era da comunicação ou a era da informação, e a sociedade atual, como a da informação. A informação se tornou uma fonte estratégica essencial. Com as novas tecnologias, as atividades humanas formam e transformam a informação, e a criatividade e inventividade do ser humano são empregadas na produção de uma informação cujo valor econômico4 e social não para de crescer. Todos os fenômenos com impacto social, e a informação é um dos que mais repercussões produz, provocam modificações de ordem jurídica que devem ser melhor estudadas. Contextualização Um curto recorte de tempo nos apresenta manifestações empíricas da importância da informação. Pouco a pouco nos damos conta do seu papel e do seu valor. No primeiro semestre de 2006, após ter sido apontado pela imprensa e pelo próprio presidente Luís Inácio Lula da Silva como o mais influente ministro de seu governo, Antônio Palocci, então Ministro da Fazenda, mediante pedido próprio, destituiu-se do cargo. A causa foi evidente: o vazamento de informações pessoais e sigilosas sobre movimentações bancárias de um caseiro que havia deposto em uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI - sobre a freqüência do então Ministro a uma casa em Brasília onde se promoveriam festas e negociatas. O Ministro foi 3 4 CATALA, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information... 1984. pág. 98. DARAGON. Étude sur le statut juridique de l’information... pág. 63 destituído em espantosa celeridade, não porque tenha sido provada a sua presença na casa ou nas negociatas, mas porque foi fundamentada a suspeita de que teria dado a ordem, ou tomado o conhecimento e permitido a divulgação de informações sobre as movimentações bancárias do informante da CPI5. Uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, no caderno Empregos6, alerta sobre a quebra de sigilo profissional por parte de médicos, advogados e funcionários de empresas, alertando sobre a possibilidade de ação civil de indenização e da possível existência de crime tipificado. A reportagem transparece a preocupação dos jornalistas com as pessoas que têm acesso a informações de terceiros, que não sejam públicas, por força da ocupação profissional que desempenham, e que não reconheçam que esse conhecimento deve ser, por força da deontologia profissional, mantido em sigilo. Esses profissionais devem se comportar de igual forma em relação às outras informações ou notícias a que tenham acesso por outras vias, ou seja, que não os tratem como mais um conhecimento a que tiveram acesso ou como uma fofoca. O fenômeno não é só brasileiro. Pelo contrário, nos países mais desenvolvidos, notadamente aqueles da common law, a proteção às informações pessoais é levada a extremos de rigor e seriedade. Durante a campanha pela indicação partidária dos candidatos ao cargo de presidente da república dos Estados Unidos, dois funcionários do Departamento de Estado americano foram despedidos por terem pesquisado, sem necessidade, o histórico de documentos relacionados ao passaporte do candidato democrata Barack Obama. Um terceiro foi advertido por participar do vasculhamento. “Espionar esse (sic) dado da privacidade dos cidadãos sem finalidade objetiva é proibido pelo departamento. Os arquivos contêm dados como telefone residencial, fotos, certidões de nascimento e de casamento, seguridade social (CPF)... Vez ou outra, há alguma informação mais picante”7. O 5 O Supremo Tribunal Federal acabou recusar a denúncia apresentada pelo Ministério Público e arquivá-la em 27 de agosto de 2009, por cinco votos contra quatro (Pet 3898). A denúncia foi aceita somente em relação ao antigo presidente da Caixa Econômica Federal. 6 BERGEL, Mariana; DESIMONE, Mariana. Quebra de sigilo constrange profissionais. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 de maio de 2006. Caderno Empregos, p.F1. 7 BERGAMASCO, Daniel. Passaporte de candidatos é invadido. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de março de 2008. Caderno Mundo, p. A11. episódio gerou um pedido de desculpas pessoal da Secretária de Estado americana Condoleezza Rice ao então candidato. As informações pessoais, tratadas como privacidade, adquirem um grau de proteção ainda não experimentado pelo nosso Direito. Mas não é só a esse campo dos direitos de personalidade - da privacidade e da intimidade - que o estudo da informação se presta. Primeiramente, a informação foi protegida sob a forma de direitos intelectuais, como a propriedade literária, científica, industrial, marcas ou patentes. Essa proteção, denominada propriedade, bem espelha o assenhoramento pelo particular de uma informação, travestida de novidade útil, agora inserida pelo seu criador no rol dos conhecimentos da humanidade. Esta faceta da informação aplicada passa por intensos debates em vista da progressiva desmaterialização da informação e de seu suporte e da velocidade com que é transmitida, a um custo próximo de zero. Há a facilidade de copiar qualquer informação em meio eletrônico e de fazê-la fluir pela rede mundial de computadores, principalmente por meio de programas de troca de arquivos digitais denominados P2P (peer-to-peer)8, presentes em grande parte dos computadores dos adolescentes, sem qualquer limitação aparente. Artigos, livros, música, filmes, palestras e conferências completas, tudo o que é possível ser digitalizado, é possível ser transmitido. E a informação é, pela sua natureza, o elemento ótimo de ser transformado em bits e transmitido por impulsos elétricos a qualquer lugar do planeta e na velocidade da luz. Um fenômeno de tal dimensão somente foi possível a partir da evolução das técnicas de reprodução da informação, primeiro pelas fotocopiadoras, até evoluir ao estágio atual de reconhecimento pelo scanner, pela tecnologia de armazenamento dos CD’s e dos DVD’s, aliados à transmissão de arquivos eletrônicos pela rede mundial de computadores em vias de alta velocidade. Este fenômeno conduziu a 8 Ou em português par a par, se trata de programas que não utilizam um servidor como armazenador de informações, mas sim os próprios usuários. Os mais conhecidos são os programas derivados do pioneiro Napster, hoje substituídos por outros tais como Morpheus, E-mule, Ares, Kazaa e Lime Wire. uma ampliação quase universal do conhecimento. Arquivos com quantidades nunca antes imaginadas de informações e conhecimento puderam transpor oceanos e atingir qualquer pessoa no globo que tenha acesso a um computador, a uma linha telefônica ou a uma antena de satélite. Se de um lado os instrumentos tecnológicos para a distribuição de informação foram alcançados, por outro conduziram também a perdas de faturamento das indústrias envolvidas com esses bens, principalmente a fonográfica. A qualidade dos arquivos transmitidos ainda é uma barreira que impede que arquivos maiores, tais como músicas e filmes, sejam mais difundidos. Para a informação escrita essa barreira já deixou de existir. Arquivos relativamente pequenos, nos formatos RTF, DOC ou PDF, podem conter grande quantidade de conhecimento e informação. Para os arquivos musicais, o formato MP3, que permite compactar a música em arquivos menores, com alguma perda de qualidade, supre as necessidades dos ouvintes, notadamente os mais jovens. A barreira da qualidade ainda é importante somente para a indústria cinematográfica. Mas a velocidade de transmissão via internet aumenta rapidamente e novas tecnologias de programas de computadores (softwares), tanto de reprodução, quanto de compactação de arquivos podem tornar possível, em pouco tempo, a transmissão de filmes inteiros com qualidade de DVD ou Blu-Ray. Toda a indústria envolvida é afetada - a editorial, a fonográfica, a cinematográfica e a própria indústria informática, e tentam, sem muito sucesso, reagir a essa tendência, numa corrida incessante para tapar os buracos por onde a informação insiste em escapar. Os remédios jurídicos disponíveis, formados sob uma visão tecnológica que há muito deixou de existir, não previnem as lesões aos direitos autorais mas, se muito, as remedia com invariável lentidão e atraso. Os direitos autorais, tais como hoje são concebidos, são sempre uma reação jurídica definida pela técnica, que evolui à velocidade e ritmo dos dias modernos, e uma reação que anda, ainda, aos passos dos processos legislativos longos e desgastantes. Com os remédios atuais, quando se percebe a lesão, já não se consegue mais identificar o seu autor e quando se legisla de forma específica, o cenário já foi alterado e novos instrumentos e tecnologias já se encontram em uso. A informação e todas as situações jurídicas que estão à sua volta avançam e mudam em ritmo frenético, no ritmo dos tempos atuais. Já o Direito... O assunto está no nosso café da manhã. Em muitas das suas formas de apresentação, a informação comparece no nosso cotidiano como um elemento de um problema jurídico. Nos casos já citados, como elemento de uma invasão de privacidade ou de utilização indevida de propriedade intelectual, mas ainda como elemento da necessária quebra do sigilo judicial nos casos que envolvem a transparência necessária ao Estado Democrático de Direito9, o dever de informar e vigilância da imprensa sobre os atos do governo10, a venda de informações governamentais11, o uso indevido de informações privilegiadas12 etc. Constata-se, de toda forma, uma deficiência de sistematização por parte da doutrina ou de um estudo mais aprofundado pela academia, no que diz respeito ao núcleo elementar e comum de todos esses problemas: a informação. O assunto ao redor do tema é amplo e aberto e a sua compreensão mais abrangente somente será possível a partir desse primeiro passo, que permita uma compreensão e um enquadramento do conceito de informação no mundo jurídico. A idéia inicial do estudo da informação passa pela análise histórica e perspectiva dos direitos que a envolvem, especialmente aqueles que se referem aos bens, às coisas, à propriedade, ao contrato e aos direitos de personalidade. No direito positivo, merece uma análise da informação a partir dos artigos pertinentes da Constituição da República de 1988 – CRF-1988 - e do Código Civil brasileiro de 2002 – CCB-2002, numa tentativa de interpretar as várias apurações empíricas dentro do processo evolutivo da racionalidade e da hermenêutica daqueles artigos. 9 BRAMATTI, Daniel. Imprensa existe para revelar segredos. Estado de São Paulo. São Paulo, 30 de agosto de 2009. Caderno Nacional, p. A11. FERREIRA, Flávio. Temendo punição, juizes vetam acesso a processos. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 de junho de 2009. Caderno Brasil, p. A17. 10 MACEDO, Fausto. Ayres Britto vê banalização de sigilo. Estado de São Paulo, São Paulo, 06 de setembro de 2009. Caderno Nacional, p. A11. 11 Folha de São Paulo. Site vendia dados pessoais e sigilosos. São Paulo, 04 de julho de 2009. Caderno Cotidiano2, p. C1. 12 Valor econômico. ‘Insiders’ aumentam e entram na mira da CVM. São Paulo, 15 de junho de 2009. nº 2278, p. A1. Valor econômico. Os privilegiados estão na mira. São Paulo, 15 de junho de 2009. nº 2278, p. D1. Trata-se, em suma, de conferir se a idéia e os conceitos de bem jurídico, coisa, e propriedade, além da proteção da propriedade intelectual e das obrigações contratuais preconizadas por estes dois diplomas legislativos, bem como outros que incidentalmente serão trazidos à discussão, alcançam a informação como um bem juridicamente protegido. E se estes direitos compreendem a proteção à informação, em que medida o fazem e para quais informações podemos contar com a proteção legal. Da mesma forma, partindo dos artigos pertinentes dos mesmos diplomas acima citados, principalmente os incisos do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRF-1988, que se dirigem aos direitos fundamentais de proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas13, proceder a mesma análise hermenêutica, histórica e perspectiva para aplicar aos casos empíricos, numa tentativa de esboçar um quadro jurídico aplicável à todas as informações, permitindo vislumbrar, como resultado, uma posterior sistematização. O objetivo da tese pode ser expresso nessa tentativa de sistematização que deverá ser válida tanto para as informações com valor patrimonial, quanto para aquelas sem valor patrimonial, mas que devam ser protegidas por derivarem dos direitos de personalidade ou do interesse público. Abordagem A abordagem do tema exige alguns cuidados e algumas decisões ex ante que podem não se confirmar, ao final do trabalho, como sendo as ideais. Primeiramente, por se tratar da proposta de uma teoria, haverá, a partir daí e obrigatoriamente, a tentativa de sistematização da informação que aprecie a doutrina e a jurisprudência sobre o assunto. Da mesma forma, deverá tentar abarcar todas as suas manifestações empíricas, ou pelo menos as de maior expressão e impacto, estudando-se a melhor forma de associar um caso a outro. Busca-se, nessa tentativa, um esboço de ordem onde a disposição das diferentes partes do tema 13 Art. 5º, X – CRF-1988. possam se sustentar mutuamente, criando um sentido único do que seja informação e sua importância jurídica14. A evolução constante da informática, das comunicações, da mídia informativa e dos procedimentos comerciais e industriais ligados à necessidade de informações e de dados técnicos que se movem rapidamente, colocam um problema aos juristas, que devem adaptá-la o direito corrente. E nesse direito existente, as possibilidades de composição privada, como os contratos, a apropriação ou a responsabilização civil se tornaram insuficientes ante as características dos novos elementos em jogo e que a legislação não contempla senão pontualmente. Dessa forma, as tentativas de regular as relações sociais quando o assunto é informação, acabam por se tornar descoordenadas, desatualizadas e parciais. É necessário, pois, que procuremos estabelecer, pelo estudo analítico e amplo da questão, uma forma qualquer de verdade à qual poderiam se juntar regras estáveis. Para isso, a exemplo do que ocorre com a arborescência dos textos pertinentes aos bens imóveis e às sociedades, que se diversificam sem cessar a partir de um tronco comum bem identificado, mantendo a sua coerência pela existência de uma noção fundamental do que seja bem imóvel ou sociedade15. Um estudo que pretenda buscar uma interseção do conjunto das várias formas jurídicas de informação deve, obrigatoriamente, partir de um ensaio da noção fundamental, de suas características e de seus princípios. Somente a partir desse esboço inicial é que se poderá ordenar e orientar a lex ferenda. O aprofundamento do que seja a informação, destrinchando as suas partes e as suas manifestações a partir dos conceitos basilares do direito civil, tais como os conceitos de bens e da relação jurídica que os envolvam, poderá permitir a inserção da informação dentro do sistema jurídico já existente, notadamente pela teoria dos bens jurídicos. 14 Utiliza-se aqui a definição de sistema de CONDILLAC, Traité des systèmes. Oc 121, citado por GUTMANN, Daniel. Du matériel à l’immatériel dans le droit des biens. pág. 67, Nota de rodapé nº9. para quem sistema é a disposição das diferentes partes de uma arte ou de uma ciência dentro de uma ordem onde elas se sustentam todas mutuamente, e onde os últimos se explicam pelos primeiros. 15 CATALA, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information... pág. 97. Nesse desiderato, a divisão da tese se fará, primeiramente, numa parte geral que aborde os conceitos básicos do direito civil, não um estudo completo - posto que impossível realizá-lo nessa tarefa - mas um estudo dirigido aos conceitos mais significativos e que digam respeito ao assunto. Pretendemos assim, estabelecer a atualidade dos conceitos de bem jurídico e sua distinção como bens corpóreos e incorpóreos, materiais e imateriais e aqueles dentro e fora do comércio. Da mesma forma, os aspectos relacionados à legitimidade das situações jurídicas, a conformação social e o assenhoramento dos bens pelas pessoas, o domínio, a posse e a propriedade. Por ter impacto em vários ramos do direito, é necessário que se aborde, também, a sua implicação com os direitos de personalidade. Numa segunda parte, que denominaremos de especial, abordaremos as manifestações empíricas, doutrinárias e jurisprudenciais, divididas conforme o papel que a informação desempenha nos casos empíricos e no direito e interligando-as com os estudos e conclusões da parte geral. Plano metodológico Como dito, a proposta de uma teoria em torno de um elemento visa identificar os pontos comuns das suas manifestações empíricas e jurídicas. Isso posto, é razoável acreditar na existência, dentro do espectro jurídico e comum, de uma interseção dos fatos da vida que permita construir, ou tentar construir, um pensamento sistematizado. O fato da informação é noviço para o Direito. Os institutos jurídicos do direito privado não acompanham o desenvolvimento rápido da sociedade e pode ocorrer que não encontremos neles teses suficientemente desenvolvidas para a aplicação destes novos fatos da vida. Para tanto, em alguns institutos pode ser necessária a especulação teórica para além da doutrina encontrada, na tentativa de facilitar o avanço das soluções racionais e satisfatórias. Estes institutos devem ser revisitados e reapreciados dentro de uma concepção de direito que atenda ao Estado Democrático de Direito, a que nós nos propomos construir, e à luz de uma sociedade tecnologicamente desenvolvida. Longe de ser mero desperdício de tempo e espaço, o estudo preliminar de elementos da teoria geral do direito civil é que possibilitará a visualização do espectro jurídico comum. Unindo-se a este estudo teórico, a apresentação dos casos concretos é que tornarão possível o pensamento sistematizado. Por isso, a cada etapa se fazem necessárias breves considerações conclusivas, partes da conclusão orientada à finalidade do trabalho – a da teoria unificada. Um marco teórico – a informação como bem O primeiro postulado teórico, mas de bases empíricas, é que a informação é um bem susceptível de apropriação, sendo sua vocação natural a de possuir, salvo exceção, um valor patrimonial16. É possível a apropriação da informação, em que pese a idéia de apropriação ser um conceito e uma idéia vinculados ao caráter corpóreo de um bem, da mesma forma que é ligado à patrimonialidade desse mesmo bem. Hipóteses A partir do marco teórico estabelecido, podemos lançar como hipótese principal que é possível um campo unificado do direito em relação às várias manifestações da informação na vida social, passível de tutela e a sistematização do tema que deságüe na formação de uma teoria. A partir do marco teórico, outras hipóteses podem ser lançadas: a) a informação pode, independentemente do direito que representa, ser considerada como um bem jurídico, por si só; b) a informação, mesmo incorpórea e sem valor patrimonial-econômico, é passível de apropriação com conseqüente bloqueio de acesso de terceiros; e c) a informação é o mesmo bem jurídico tanto para o direito privado, quanto para o direito público. 16 CATALA, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information... pág. 97. Plano de Estudo Como estudo analítico, parte-se da menor parte, do átomo, dos princípios formadores. Como proposta de sistematização, o plano de estudo passa pela compilação e classificação dos casos concretos, ordenando-os pelas similaridades apresentadas. O primeiro obstáculo na consecução de estabelecermos uma teoria jurídica minimamente sistematizada sobre a informação passa pela caracterização da informação como bem jurídico, pelo menos na acepção que lhe dá o Direito Privado. Na seqüência proposta, partimos então da introdução e definição do problema para a circunscrição dos conceitos jurídicos aplicáveis com vistas ao aprofundamento e à compreensão dos seus aspectos basilares. Estes termos e conceitos jurídicos requerem uma leitura histórica, lingüística e funcional. Os bens constituem, com as pessoas, as situações jurídicas e as obrigações, a dimensão essencial do universo jurídico. Não se hesita de, no direito romano, definir o Direito como a arte de atribuir a cada um, o que é seu. Em que pese sua importância, os bens são estudados somente quanto aos princípios fundamentais da propriedade e dos direitos reais e à descrição do regime da propriedade imobiliária e dos direitos reais imobiliários17. Releva-se necessário um estudo mais aprofundado do que sejam os bens, mas, indiretamente, reconhece-se a informação como um centro de imputação de direitos sobre o qual as pessoas (no sentido jurídico) exercem, de fato, alguns dos poderes inerentes à propriedade. Se a busca primária do que seja bem jurídico e do que seja informação resultar em sucesso, possibilitará uma melhor apreciação do assunto, da proteção dispensada pelo ordenamento e dos negócios jurídicos que têm como objeto a informação. 17 ZENATI-CASTAING, Frédéric; REVET, Thierry. Les biens… pág. 18. A tentativa de sistematização passará, obrigatoriamente, pelo isolamento e identificação dos casos onde a informação seja ou o bem jurídico diretamente tutelado ou parte integrante ou essencial de um bem jurídico que tenha denominação diversa. Divisão do trabalho em parte geral e especial Exposto o plano metodológico e o plano de estudo, nos parece claramente necessária dividir a monografia em duas partes distintas. Uma primeira parte, denominada parte geral, de caráter analítico e dedutivo, abordará os elementos da teoria geral do direito civil envolvidas com a finalidade da monografia. É um estudo teórico e de marcante caráter histórico que nos permitirá dominar os institutos jurídicos que deverão ser úteis para a conclusão. Na segunda parte - a parte especial – servirá à apresentação e estudo dos casos empíricos, num movimento contrário à parte geral, ou seja, de caráter sintético e indutivo. PARTE GERAL CAPÍTULO 1 - ASPECTOS GERAIS DA INFORMAÇÃO As variações semânticas do termo Duas etimologias são possíveis para o termo informação, em que pese a descrição contrária de alguns autores. Na primeira, informação vem da palavra latina ‘informare’ que designa a ação de dar forma, de formar. Numa segunda versão, a informação encontra sua raiz na palavra latina ‘informatio’, que visa o desenho, o esboço, a concepção. São duas faces de uma mesma realidade: a primeira ilustra o aspecto dinâmico da informação (a ação de informar) e a segunda, o aspecto descritivo dela, o saber que é o estado do conhecimento18. A expansão do termo Até o Século XVII, informar queria dizer dar forma, estrutura, atribuir uma significação a algo. Posteriormente, informar designa o fato de colocar em circulação, re-ensinar, instruir, ou seja, numa simplificação, uma função correspondente à circulação de notícias. A atualidade e as mudanças tecnológicas se encarregaram de provocar uma multiplicidade de significados para informação. Primeiramente podemos realçar seu conteúdo e conceituar que, por informação, se entende qualquer dado representativo da realidade que é conservado por um sujeito ou comunicado de um sujeito a outro. Numa segunda acepção, a funcional, informação compreende qualquer atividade de comunicação ao público por qualquer meio, como a imprensa ou a televisão. Numa terceira acepção, a informação integra o dever ou a obrigação posta ao encargo de um sujeito quando entra em relação com outro, como ocorre na tratativa contratual ou na prestação de bens ou serviços objeto de relação jurídica19. 18 19 DARAGON. Étude sur le statut juridique de l’information... pág. 64. ZENO-ZENCOVICH, Vicenzo. Informazioni (profili civilistici)... pág. 421. A partir da segunda metade do Século XX assistiu-se a uma intensa modificação do sistema econômico-social e nos é conhecido o papel desempenhado nessa mudança pelo advento dos sistemas de informação. O desenvolvimento verificado com o aparecimento da televisão e, em seguida, em época mais recente, com os avanços das tecnologias de informática, engendrou uma revolução que podemos comparar somente com o ocorrido na Europa, no final do Século XVIII e na primeira metade do Século XIX, com a passagem da sociedade rural para a sociedade industrial20. Noções da informação Os vários domínios do conhecimento utilizam termos próximos ao da informação: as mídias empregam a notícia, a sociologia fala do conhecimento, os cientistas usam o termo mensagem etc. O Direito utiliza, semelhantemente, os termos segredo, know-how, obra do espírito, banco de dados, invenção, notícia e outros. Uma mensagem é definida como a estrutura organizada de sinais que serve de suporte à comunicação21. A mensagem contém um conjunto de informações organizadas (estrutura) conforme um código (sinais convencionais) e que circula entre emissor e receptor (comunicação). A idéia, como representação abstrata elaborada pelo pensamento, não é uma informação enquanto não seja transmitida pelo seu idealizador. Um dado, componente do banco de dados, é a representação convencional de fatos, conceitos ou instruções de forma apropriada para a comunicação e processamento por meios automáticos; é informação em forma codificada22 ou na sua menor porção. O conhecimento é necessariamente o resultado de uma informação. A informação é o aspecto dinâmico do conhecimento, por oposição ao saber que é um estado, resultado de ter sido informado23. Essa distinção entre a informação e as noções vizinhas mostra que a informação tem necessariamente uma forma e um significado. Definição jurídica 20 PECORARO, Mirella. A propósito dell’informazione come bene... pag. 1. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 22 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 21 Como vimos, várias são as formas pelas quais a informação aparece na vida cotidiana e reflete no mundo jurídico. Para a Ciência Jurídica, a necessidade é que haja uma noção unificadora dessas manifestações. Conforme Galloux, o sistema jurídico pesquisa menos uma definição jurídica da informação – porque ele não tem por vocação descrever a realidade imediata – do que uma definição jurídica útil da informação, que leve em conta ao mesmo tempo a realidade e que permita a sua apreensão jurídica24. A definição jurídica da informação se prestaria, na verdade, a uma posterior confrontação com as categorias tradicionais dos direitos dos bens. A classificação dada pela teoria dos bens jurídicos distingue-se por completo e se sobrepõe às classificações e análises de outras disciplinas, às vezes utilizando, modificando ou ignorando as classificações antecedentes e estrangeiras segundo os seus próprios fins25. Há, na verdade, uma visão prática e algo utilitarista nessa posição, ainda sem procurar perceber o que nos induz a considerar algo como um bem jurídico. O direito, através da teoria dos bens jurídicos, impõe uma classificação própria do bem segundo o papel por ele desempenhado no jogo jurídico-social. Não importa, para o sistema jurídico, se um determinado animal de serviço é um eqüino ou asinino desde que ele seja imóvel uma vez tenha sido incorporado ao solo26. A distinção biológica não tem nenhuma pertinência frente aos critérios distintivos das categorias jurídicas em causa. Na opinião do autor, a mesma consideração vale para a noção de informação27. Para o direito, a informação é a forma ou o estado particular de uma matéria ou da energia, suscetível de um significado. Para Galloux, essa definição respeita a distinção fundamental entre o suporte e a semântica, assim como a sua indissociável 23 DARAGON. Étude sur le statut juridique de l’information... pág. 64. GALLOUX, Jean-Christophe. Ébauche d’une definition juridique de l’information... pág. 232 25 GALLOUX, Jean-Christophe. Ébauche d’une definition juridique de l’information... pág. 233 26 Art. 79 – CCB-2002. 27 GALLOUX, Jean-Christophe. Ébauche d’une definition juridique de l’information... pág. 233 24 ligação, além de não fazer da comunicação um elemento da sua definição28. Ao contrário, preconiza Catala que a informação é expressão, formulação destinada a entregar uma mensagem comunicável e, em seguida comunicada29. Para adentrar a teoria dos bens, o Direito considerará, primeiramente, a informação como uma realidade bruta, entrando assim na categoria das coisas antes de poder ser considerada como um bem, porque todas as coisas que existem não são bens para o Direito. Essa transformação deverá ser melhor compreendida para que possamos esboçar as noções fundamentais da informação. 28 29 GALLOUX, Jean-Christophe. Ébauche d’une definition juridique de l’information... pág. 233 CATALA, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information... pág. 98 CAPÍTULO 2 – DOS BENS E DAS COISAS Introdução aos significados de bem e coisa Há vários sentidos pelos quais podemos compreender a palavra ‘bem’ ou ‘bens’. Mesmo se nos ativermos somente ao universo literário jurídico, há uma ampla fungibilidade entre as palavras e o significados de bens e coisas. Na acepção jurídica identificada por Cornu, a palavra bem possui dois sentidos: 1 – é toda coisa material suscetível de apropriação. É, pois, ordinariamente, sinônimo de bem corpóreo e por oposição a direito; e 2 – relativamente a uma pessoa, são todos os elementos mobiliários e imobiliários que compõem seu patrimônio, a saber: as coisas materiais (bens corpóreos) que lhe pertençam e os direitos (outros que não a propriedade) dos quais ela seja titular (bens incorpóreos)30. A amplitude do termo já se demonstra nesta dupla definição dada por Cornu. Reparamos que são, em si mesmas, complementares, sendo que o conteúdo do primeiro sentido está contido num conjunto maior, o conteúdo do segundo sentido. O primeiro sentido se dirige integralmente à condição da materialidade, donde o requisito da suscetibilidade de ser apropriada, no sentido físico do termo. O segundo sentido dado engloba não só as coisas materiais, mas também os bens incorpóreos, daí a relação complementar dos termos que, mesmo no seu sentido jurídico, pode significar tanto a coisa material quanto a imaterial. Se o primeiro sentido se liga à materialidade da coisa, o segundo tem um significado mais próximo ao do patrimônio, ou pelo menos de sua parte ativa. Terré e Simler nos trazem outra classificação. Numa primeira acepção, temos o seu sentido mais ordinário: ‘bens’ designam as coisas que servem à utilização dos homens e os permitem satisfazer suas necessidades, seja diretamente deles se servindo, seja recolhendo seus frutos, ou mesmo os destruindo, ou indiretamente, 30 CORNU, Gerard. Vocabulaire juridique. trocando-os por outras coisas, mais apropriadas à satisfação de suas necessidades. Dentro dessa perspectiva, falamos dos objetos corpóreos e das coisas corpóreas31. Percebe-se neste sentido a utilidade e a preocupação econômica do bem. Dentro dessa primeira acepção, uma segunda é possível, já dentro do direito, produzindo uma idéia mais abstrata e mais específica. Designamos por ‘bem’ os próprios direitos que se exercem sobre as coisas. Essas coisas possuem, na verdade, menos valor do que os direitos que podem recair sobre elas. Esses são os direitos que possuem um valor e que são, por conseguinte, bens; e não as coisas por elas somente. Essa mesma evolução da idéia de coisa foi identificada por Menezes Cordeiro dentro do pensamento greco-latino: coisa é tudo aquilo que existe e, ainda, tudo aquilo que pode ser feito, dito ou pensado. Inicialmente coisa teria começado por designar os corpora ou objetos materiais, passando pouco a pouco a designar outras realidades, como o patrimônio, a riqueza ou certas atuações: as res. Por fim, o vocábulo amplia seu espectro de denominação para abranger as próprias realidades figuradas e, depois, tudo o que fosse abarcável pelo espírito: as res incorporales32. Produziu-se uma separação entre a idéia da coisa em si, e por isso mesmo material, e o direito que sobre a mesma coisa incide. Essa separação permitiu a evolução da incidência dos direitos (bens) sobre outras realidades que não aquelas essencialmente materiais. Os códigos, muitas vezes, utilizam as duas acepções indistintamente, para estabelecer as relações jurídicas sobre as coisas. Uma terceira acepção ainda é identificada por Terré e Simler e se manifesta por um alargamento do conceito, implícito em muitas disposições dos códigos civis. Pode-se entender por bem, além das coisas e dos direitos já falados, os direitos de crédito nos quais uma pessoa pode ser titular em face de uma outra e esses direitos fazem parte do patrimônio do credor33. Esses bens possuem as características dos 31 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág.13 CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. t.II, pág. 9. 33 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág.13 32 bens jurídicos anteriormente relacionados, tanto que podem ser penhorados e excutidos para a satisfação de um eventual credor34. Uma boa parte do problema do significado de bem e coisa está fora do pensamento jurídico, mas dentro das questões lingüísticas. Nessa questão, uma parte do problema se encontra na polissemia dos termos, pois em várias das línguas herdeiras do latim e do direito romano, coisa e bem se misturam. Com o português não foi diferente. Uma outra fonte de problema está na metonímia mental operada em massa, pelo qual substituímos a parte pelo todo. Assim, coisa, que seria, conforme o direito romano, aplicável às singularidades incorpóreas e corpóreas é cooptada pelo uso comum a significar somente coisas materiais. Essa substituição pode ser constatada pela forma como ainda hoje utilizamos o termo ‘qualquer coisa’ mesmo para incorporalidades (pense em qualquer coisa). Da mesma forma as palavras objeto (de direito) e bem. Há uma facilidade muito maior em associar o seu significado a coisas visíveis, tangíveis, do que a abstrações. Em relação ao status jurídico de coisa e bem, da mesma forma, está longe de ser uniforme, variando em função, seja do domínio de apropriação, seja do seu modo de utilização dentro da ordem econômica, seja de sua natureza física35. Evolução do termo no direito positivo Foi a tradição greco-romana que adquiriu a capacidade de lidar com as realidades abstratas, partindo de problemas concretos para construir todo um sistema de princípios e normas cujo sentido só opera em síntese com as soluções. Erigiram as res como eixo central na arrumação do direito que, de resto, permanece até hoje36. Res tinha três significados na linguagem jurídica romana: no sentido jurídico, era a coisa corporal, individual e delimitada, juridicamente autônoma; no seu sentido mais amplo, era tudo o que podia ser objeto de direito (privado) ou de processo civil (objeto de direito); no sentido mais restrito, estavam relacionados às coisas corpóreas, individuais e autônomas, mas como direitos reais37. 34 O art. 671 do CPC – Lei 5.869/73 – traz a possibilidade da penhora de créditos. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens... pág.14 36 CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. T.II... pág. 12. 37 KASER, Max. Direito privado romano. Pág. 121. 35 Gaius, citado na abertura do Livro Segundo das Instituitiones de Justiniano, classificou as coisas – de rerum divisione – em coisas corpóreas e incorpóreas, podendo aquelas serem tocadas e essas outras não, consistindo elas um direito, como a herança, o usufruto, as obrigações. Gaio classificou as res em várias outras subdivisões: res divini iuris, em oposição às res humani iuris, eram de propriedade dos deuses e se encontravam em três grupos, res sacrae, res religiosae e res santae; a res communes omniun, ou as coisas pertencentes a todos; a res publicae que eram as coisas de propriedade do Estado, que se encontravam fora da propriedade privada38. Particular importância e reflexo nos dias atuais era a classificação em res mancipi e res nec mancipi, sendo os objetos susceptíveis ou não de mancipatio39. A necessária formalidade da mancipatio, que podia recair tanto sobre as res corporales quanto sobre as res incorporales e serviam ao princípio da publicidade, visava atingir terceiros para tomar conhecimento do ato, para poderem fazer valer os seus direitos o quanto antes (eficácia erga omnes). Ao direito adquirido pela mancipatio se denominava mancipium e concorria com a traditio. Quais os tipos de res deveriam ser transmitidas pela mancipatio ou pela traditio perdeu-se no tempo. Posteriormente essas formas de transmissão foram substituídas pelo surgimento da proteção pretória para quem adquiria uma res40. Na evolução do direito romano, os termos bonum e bona indicavam os haveres ou o patrimônio das pessoas. No fundo era a expressão da idéia de pertença ou de titularidade. Na evolução subseqüente, estabeleceu-se alguma confusão entre res e bona, também citada por razões lingüísticas: a perda da expressão res, substituída pela não-clássica ‘coisa’41. 38 KASER, Max. Direito privado romano. Pág. 122. Mancipatio, ensina Max Kaser, é um ato formal mediante o qual alguém cede a outrem a propriedade ou um poder semelhante à propriedade sobre determinadas pessoas ou coisas. É exigida certa formalidade como a presença de cinco testemunhas, romanas, maiores e convocadas para o ato. Além disso, intervém um ‘portador da balança’ (libripens). O adquirente deveria agarrar com a mão a coisa a adquirir (daí o nome mancipatio, ou mais antigo, mancipium, de manus e capere) e pronunciar a fórmula: hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra. Ou seja, que declarava perante o ius civile (Quirites é um nome antigo dos cidadãos romanos), o objeto lhe pertence e que deve ser considerado como comprado por ele com este cobre e com esta balança de cobre. KASER, Max. Direito privado romano. Pág. 64. 40 KASER, Max. Direito privado romano. Pág. 123. 41 CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. t.II... pág. 15. 39 Com a recepção do direito romano houve a recuperação do termo res, vertido para ‘coisa’42 e entendido em sentido amplo. Apenas em áreas periféricas como o direito de família, o direito canônico ou o direito da Coroa, se conserva o termo bens, e sempre sob o signo da titularidade, mantendo-se até os nossos dias43. Na sistemática humanista ou primeira sistemática, houve um reagrupamento da matéria em torno da idéia de coisa. Na segunda sistemática, ou dos jusracionalistas, foi retomado o termo bens e, a partir de uma articulação deduzida de pressupostos centrais, as coisas e as suas categorias, recebidas do romanismo, são substituídas pela idéia de pessoa e de propriedade44. Aqui se forma a idéia de bens, antes uma categoria autônoma, semelhante a ‘coisa’ como algo que é imediatamente moldado pela titularidade de alguém. Esta linha racionalista é a utilizada pelo Código Civil francês, nos art. 516 e seguintes e nos códigos civis de primeira geração, como o italiano de 1865. Ao contrário, a sistemática pandectística recuperou o termo coisa (Sache) que seria empregado pelo BGB em 1896. O Código italiano de 1942 que é fruto, tanto da tradição latina quanto da pandectística, aproximou os dois termos – bem e coisa – no seu art. 810, trazendo como bens as coisas que podem ser objetos de direitos45. Aparentemente, coisa seria o pressuposto fático do bem, realidade jurídica. Como se verá, essa afirmativa somente poderá ser considerada verdadeira se optarmos pela significação antiga do que seja coisa (qualquer coisa). Se optarmos pela valoração metonímica (e restritiva) da palavra coisa – coisa pela sua representação – onde se considera que a palavra somente representa objetos materializados, a definição do art. 810 do Código italiano se tornará restrita e falsa. A realidade jurídica é maior e o significado da palavra ‘coisa’ nem sempre se apegou apenas à materialidade, o que já ampliava o espectro dos pressupostos fáticos passíveis de serem considerados bens. 42 No alemão Sache. CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. t.II... pág. 15. 44 CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. t.II... pág. 15/6. 45 CORDEIRO. António Menezes. Direito civil I – parte geral. t.II... pág. 16. Art. 810 - CCI – Nozione – Sono beni de cose che possono formare oggetto di diritti. 43 Sem prejuízo das discussões que serão trazidas, concluímos neste ponto que, para o direito romano, a coisa podia ser corpórea ou incorpórea, não havendo o termo bem. Já o direito civil francês que sofreu tanto a influência do direito costumeiro quanto do direito romano, os bens são coisas, consistentes dos objetos sob as formas mais variadas, naturais ou artificiais, corpóreos ou incorpóreos. Coisas podem se definir como os objetos que existem independentemente do sujeito46. Considerações finais sobre a noção atual de bem e coisa O conflito teórico de Teixeira de Freitas, há mais de um século e meio, foi reflexo do seu tempo e do seu ambiente. Duelavam a doutrina civilista francesa, predominante nos meios jurídicos brasileiros, e o forte desenvolvimento experimentado pelo direito civil alemão na segunda metade do Século XIX. Essa evolução na Alemanha se deu especialmente no que diz respeito à sistematização levada ao máximo pelos pandectistas, e já havia transparecido no Esboço de Teixeiras de Freitas publicado em 1860 e no Código Civil de 1916. O Código civil de 2002 e a dualidade e imprecisão de termos experimentada pela doutrina brasileira atual, ainda fortemente influenciada pela doutrina francesa, são ainda herdeiros deste conflito. Houvesse a proposta de Teixeira de Freitas sido inteiramente acatada por Clovis Bevilaqua, talvez não tivéssemos os problemas doutrinários atuais, mas essa questão ficará apenas na hipótese. Uma segunda oportunidade de melhorar a lei civil brasileira pode também ter sido perdida com a destituição de Caio Mário da comissão que elaborou a proposta de reforma do Código Civil na segunda metade do Século XX. Vemos que na simplicidade de sua conceituação, reside a atualidade da idéia e da proposta, mais do que a prisão de uma definição positiva: uma função: a satisfação (conceito mais amplo que utilidade), e um amparo: da ordem. Acrescentaríamos aí o valor social. Na lição acertada de Jean Carbonnier: os bens são coisas vistas pelo direito47. 46 47 ZENATI-CASTAING, Frédéric; REVET, Thierry. Les biens… pág.18 GRZEGORCZYK, Christophe. Le concept de bien juridique: l’impossible définition … pag. 262. Dessa forma, podemos concluir a definição de bem, no sentido lato e não jurídico, como tudo aquilo que nos apraz. Serão considerados bens jurídicos acepção estrita - aquilo que pode e é apropriado pelo sujeito, que os insere em sua esfera de interesse juridicamente protegida, dando origem a um vínculo jurídico, bem como tudo aquilo que a sociedade julga que seja importante proteger. O bem jurídico se torna um objeto de direito. O bem, na acepção ampla, ultrapassa a idéia de coisa. Coisas serão os objetos materiais48. A coisa que entra na esfera jurídica de uma pessoa transforma o seu status para ‘bem’. Toda coisa pode vir a ser um bem e, consequentemente, várias coisas não são bens, visto se encontrarem fora de qualquer poder jurídico, seja por impossibilidade física, seja por impossibilidade jurídica ou ausência de previsão no ordenamento jurídico. A noção de bem é maior que a de coisa, visto existirem objetos de direito que não são bem-coisas, ou seja, matéria incorporada ao mundo jurídico. Existem, pois, bens que não são coisas, como por exemplo, valores sociais ou morais. Estes podem ser bens, estarem sob a influência jurídica de um sujeito, desde que sejam, por qualquer modo, voltados à satisfação do ser humano e alcancem o status de proteção pelo ordenamento. A correlação direta que se faz entre bem e coisa é inconveniente, mesmo que as coisas entrem no mundo jurídico pela forma de bens. Retorno aqui ao entendimento de Pontes de Miranda ao tratar do conceito de bem, no Código Civil de 1916, como próximo ao de objeto de direito49. Bem é um objeto de direito, seja ele uma coisa materializada ou um valor imaterial. Em verdade, não há relação de coisa como gênero e bem como espécie, ou vice-versa. Pela correlação gêneroespécie, várias vezes citadas, pressupõe-se que o bem é parte das coisas ou, em outras palavras, os bens são um conjunto que pertence a outro conjunto, o das coisas, o que, se é verdadeiro para o direito romano, não pode ser importado para o direito brasileiro. Os bens não são partes das coisas, alguns bens são sim, retirados 48 Por opção, nos afastamos da idéia doutrinária francesa de considerar o termo com ‘qualquer coisa’, materiais e imateriais. 49 MIRANDA. Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. t. 2,... pág. 51-2. do conjunto ‘coisas’. Mas bens são mais que isso, a abstração do pensamento jurídico extrapolou, em muito, o que previam os romanos e, pela sua criação, os bens também podem retirados do conjunto valores. Em relação aos códigos de outros países, encontramos também maior ou menor dificuldade em lidar com a disciplina das coisas e dos bens. Em alguns, mesclam-se os termos e os conceitos com o que seja objeto de direito; em outros, confundem-se com a condição de materialidade, de tangibilidade. Alguns códigos trazem novas construções, como a possibilidade de uma singularidade se tornar objeto de direito que não seja pela apropriação individual (art. 202.2 do Código português). Da mesma forma, permanece atual e sólida a proposta de Teixeira de Freitas, levada por Vélez Sarsfield para o Código da Argentina (CCA), promulgado em 1869 e ainda vigente, onde se define a coisa em termos de objetos de direito materiais e os bens, tanto as coisas como os objetos de direito imateriais. Classificação dos bens Bens móveis e imóveis A classificação mais usual é aquela que separa os bens em móveis e imóveis, a partir da abordagem de os bens comportarem ou não um deslocamento possível de um lugar a outro50. Essa distinção, aparentemente, somente é cabível aos bens corpóreos, mas razões históricas explicam a sua extensão aos bens incorpóreos, ou seja, aos direitos, e o surgimento de um novo critério de distinção, qual seja, o do valor e da produtividade. O critério romano original residia unicamente na natureza das coisas, não se aplicando senão às coisas materiais, como se apreende do estudo da res mancipi e da res nec mancipi que era fundada sobre o valor dos bens, o que se justifica socialmente num país de economia sobretudo agrícola51. Dessa forma podia-se dizer res mobilis res vilis52. Para Terré e Simler essa classificação baseada no critério físico encontrava sua justificação dentro dessa idéia de valor, o que explica fosse estendida às coisas incorpóreas, ou seja, aos direitos, de tal sorte 50 Art. 516 – CCF; Art. 79, 80 e 81 – CCB; sem conservar a distinção física dos bens. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág. 17. 52 Coisa móvel, coisa sem valor. 51 que todos os bens se dividirão em móveis e imóveis, arranjando-se dentro dos imóveis, os incorpóreos, apresentados, para sua estabilidade e sua característica frutífera, importantes na composição dos patrimônios53. Para a doutrina francesa, são móveis incorpóreos todos os direitos reais que recaem sobre os móveis, à exceção da propriedade, que se confunde com o objeto, assim como os direitos de crédito, as partes das associações – partes sociais ou ações – dentro das sociedades e os direitos intelectuais em suas variantes54. Para o CCB, os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram consideram-se, para efeitos legais, bens imóveis55. Na construção da estrutura jurídica, a classificação dos bens em móveis ou imóveis obedeceu mais a uma necessidade de segurança jurídica do que propriamente às características intrínsecas do bem. Encontra-se desvinculada a idéia de imobilidade do conceito jurídico que o nome ‘imóvel’ representa, conforme se pode apreender dos artigos 79 a 81 do CCB. Desde antes, na tentativa de definição da noção jurídica da informação, constatamos que a classificação que o Direito dá aos bens, pode não seguir nenhuma das classificações existentes em outros ramos do conhecimento. O Direito classifica os bens mais pelo papel por eles desempenhado no mundo jurídico-social, do que conforme suas características físicas ou qualquer outro enfoque que tenhamos. Assim sendo, pouco importando a característica física da informação, poderá ela ser classificada como imóvel a partir do momento que o ordenamento positivo conferir, como exigência para a sua tutela, que esteja a informação transcrita em registro específico. O registro da informação permite a publicidade e, a partir dela, a tutela geral e a oponibilidade erga-omnes, a exemplo do que ocorre com os direitos reais, notadamente a propriedade. Mas não foi essa a opção da política legislativa. A Lei 9.610/98 deixou ao critério do interessado o registro ou não das obras intelectuais, desvinculando-o para 53 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág. 17. TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág. 31. 55 Art. 79, CCB-2002. 54 efeitos de tutela (art. 18). Facultativamente, o autor pode registrar a sua obra no órgão público competente com escopo de aumentar a sua segurança jurídica56. Criou-se um tertium genius, no que diz respeito aos efeitos, entre os bens móveis e imóveis. Os efeitos são aqueles dispensados aos bens imóveis, o tráfico jurídiconegocial mais se assemelha àquele dos bens móveis57, e a publicidade, de grande importância para os bens imóveis, é opcional. Bens corpóreos e incorpóreos Bem corpóreo, conforme Cornu, pode ser entendido em dois sentidos: 1 – quando dirigido para uma pessoa, como físico, que toca ao corpo humano, por oposição ao que é moral e ao imaterial. Essa acepção nos traz o sentido que buscamos, pois transparece a tangibilidade. 2 – quando dirigido a um bem, significa tangível, palpável, que tem uma existência concreta; ou que dá possibilidade de posse (corpus), por oposição à incorpóreo, imaterial. Por exemplo, bem corpóreo, imóvel corpóreo (veículo, título ao portador) por oposição a crédito e propriedade incorpóreas58. Ainda em Cornu, encontramos como incorpóreo os significados: 1 – impalpável, imaterial, se diz por oposição aos bens corpóreos, aos bens e valores que escapam a toda apreensão material, por exemplo: créditos, valores mobiliários (salvo se o direito está incorporado no título), participações sociais, direitos outros que não a propriedade das coisas materiais, ações na justiça etc. 2 – nomeia-se mais especialmente as propriedades intelectuais aquelas cujo objeto é puramente material, intelectual (de onde o termo direitos intelectuais)59. 56 Lei nº5.988/73 - Art. 17. Para segurança de seus direitos, o autor da obra intelectual poderá registrá-Ia, conforme sua natureza, na Biblioteca Nacional, na Escola de Música, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto Nacional do Cinema, ou no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia. § 1º Se a obra for de natureza que comporte registro em mais de um desses órgãos, deverá ser registrada naquele com que tiver maior afinidade 57 Art. 3º da Lei 9610/98 – Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis. 58 CORNU, Gerard. Vocabulaire juridique. 59 CORNU, Gerard. Vocabulaire juridique. Ao se falar de coisas corpóreas e incorpóreas dá-se a ‘coisas’ o sentido amplo de objeto. Os dois sentidos vêm do direito romano. A summa rerum divisio era dos bens corpóreos e incorpóreos (res corporales e res incorporales). No século II, o jurista Gaius ou Gaio redigiu seu compêndio para uso dos funcionários imperiais, denominado Institutos. Foi um trabalho compilado por volta de 160 d.C., e serviu de base para as Institutiones, do ano 533, uma das quatro partes do Corpus Iuris Civilis de Justiniano. Este último representa a expressão suprema do antigo direito romano e o resultado final de dez séculos de evolução jurídica60. Ensina Rampelberg que, para apresentar as coisas (res), com seus elementos, permitindo à humanidade perceber o universo onde se encontra, Gaio recorreu a um dado da filosofia estóica, distinguindo-as em relação ao seu efeito, o espírito da matéria, que coloca em evidência as coisas corpóreas e as incorpóreas. Aos seus olhos, a propriedade é a essência das primeiras, das coisas corpóreas; e as segundas, as coisas incorpóreas, são os mecanismos religiosos, jurídicos ou, mais geralmente, aquelas coisas colocadas sob uma forma qualquer pelas sociedades para tornar possível a disposição das coisas materiais61. Em primeiro lugar, para distinguir a res corporales da res incorporales, Gaio estipula que são bens corpóreos os que podemos apreender fisicamente, tais como a terra, os imóveis construídos, as espécies pecuniárias e os bens cultivados62. Matéria tangível por natureza, os bens assim classificados são destinados a serem objeto de domínio material direto pelo ser humano. Este é o senso da modesta fórmula romana de meum esse ex iure Quiritium63. Ela exprime a dependência da coisa a seu dominus. Na realidade, esse 60 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado... p.25-26. Corpus Iuris Civilis foi o nome dado somente no Século XII. As outras partes eram o Digesto ou Pandecto (seu nome grego), o Codex e as Novas. 61 RAMPELBERG, René-M. Pérennité et évolution des res incorporales aprés le droit romain. p.35. 62 Gaio, fr. 1 § 1 D. 12: “Quaedam praetera res corporales sunt quaedam incorporales, corporales hae sunt, quae tangi possunt, veluti fundus homo vestis aurum argentum et denique aliae res innumerabiles; incorporales sunt, quae tangi non possunt, qualia sunt ea, quae in jure consistunt, sicut hereditas, usus fructus, obligationes, quoquo modo contractae...” 63 Havia um negócio denominado jurecessão e dirigido às coisas incorpóreas como a adoção e tutela – in iure cessio – realizado em tribunal e perante o pretor. Os autores iam ao pretor representar uma cena, em que o adquirente, sob a aprovação do alienante, recitava a fórmula da vindicação: Hunc ego hominem ex iure quiritium meum esse aio isque mini emptus esto hoce aere aeneaque libra... (Declaro meu esse homem, pelo direito quirício, e seja ele como comprado com este cobre e esta balança ênea). E o pretor adjudicava a coisa ao declarante e era o sacramento indispensável, como domínio direto se limita a dar ao proprietário três poderes representativos: o poder de utilizar a coisa e dela dispor livremente, de fato ou de direito; o poder de repulsar toda a ingerência da parte de terceiros por meio de uma ação; e a capacidade de reivindicar a coisa de quem quer que a possua sem justa causa. Essa abordagem concreta permite dizer que a propriedade dava ao proprietário romano o poder de usufruir plenamente da coisa. O dominum conhece seus limites ainda em Roma, impostos pelo direito de vizinhança, pela ordem pública e pelos bons costumes, mas eles não são intrínsecos à propriedade, nem mesmo afetam a sua substância64. Gaio faz do dominium uma res corporalis, um bem material e as opõe aos direitos, oferecendo, na realidade, uma abordagem da propriedade fora da relação do indivíduo com seu bem material. Na segunda categoria de Gaio, figura a res incorporales, nascida da construção intelectual dos homens. Ela agrupa as relações de direito permitindo dominar as coisas sem exercer a propriedade, da mesma forma que um beneficiário de uma obrigação, de uma servidão ou de um usufruto. Nascido somente da inteligência humana, esta res é da relação de direito, da iura. Estas criações do espírito aparecem como as coisas nas quais o envoltório é específico a cada uma e que sobrevivem por elas mesmas, integradas a um universo tangível, como as res corporales. Elas não podem, entretanto, serem vistas, pois permanecem como um produto da razão humana. Esta oposição entre res corporales e res incorporales permite a Gaio destacar a propriedade especificamente entendida, autorizando o domínio material, físico dos bens, e os direitos sobre as coisas, ou seja, as relações sociais saídas da ciência jurídica e constituídas pelas res incorporales65. Em que pese a jurisprudência clássica limitar o sentido da palavra res somente a coisa corpórea, a doutrina filosófica e a gramática estóica distinguiam as duas coisas, as tangíveis e as intangíveis. Essas categorias foram finalmente adotadas pelos professores das fases elementares do Direito, demonstrado pelos Institutos de Gaius. Os grandes juristas, da mesma forma, evitavam esta sistematização uma transcrição num registro de títulos. OLIVEIRA, José Lourenço. O formalismo quirício e a estipulação em Gaio. 64 RAMPELBERG, René-M. Pérennité et évolution des res incorporales aprés le droit romain. p.36. emprestada das artes helênicas e deixaram o direito por fora das coisas, fazendo-os incorpóreos. Eles não podiam excluir as servidões, o usufruto, as criações dos outros direitos dos bens que formavam um patrimônio, considerando aqueles bens como coisas incorpóreas66. O núcleo das prerrogativas do proprietário conhecia ainda uma outra fórmula, desenvolvida para as terras conquistadas e a ager publicus. Essa construção não estava submetida ao regime da propriedade civil romana. Com efeito, o particular que afirmava possuir as terras nessas regiões não podia pretender ser o proprietário já que, formalmente, elas faziam parte do patrimônio do povo romano. Para respeitar a propriedade eminente do povo romano, eles evitavam a expressão de propriedade ou de domínio, substituídas pela descrição detalhada dos poderes relacionados à propriedade: uti, frui, habere, possidere, e o direito de alienar. Este tipo de procedimento é especificamente romano e muito frequentemente negligenciado. Mas é fácil enxergar nessa relação o instituto jurídico da enfiteuse, onde se distingue entre o domínio útil e o domínio direto. Gaio preferiu concretizar como coisas incorpóreas, os poderes contidos na propriedade e não formam, pois, um conceito unitário que exprima abstratamente a propriedade ilimitada e total. Dessa forma chega-se à célebre fórmula que designa a propriedade como um ius fruendi, utendi, abutendi (um direito de utilizar, de usar e de abusar67 de uma coisa). É preciso reconhecer que o conceito de propriedade não foi forjado pelos jurisconsultos romanos, mas desenvolvido na Idade Média antes de ser solidificado pela glosa de Irnérius, no fim do Século XI e início do Século XII. Na origem, a idéia de incorporalidade apoiava-se sobre a da propriedade, da mesma forma que a noção de direitos relativos. Entendida muito diferentemente em seguida, a propriedade foi avaliada, de forma particular, pelo direito racionalista do Século XVIII e permitiu, com efeito, que se exprimisse a idéia que ela continha um poder absoluto e total pois cada um a gozava à sua maneira. O Código Napoleão faz referência a 65 RAMPELBERG, René-M. Pérennité et évolution des res incorporales aprés le droit romain. p.36. RAMPELBERG, René-M. Pérennité et évolution des res incorporales aprés le droit romain. p.37. 67 Traduzido como abusar, refere-se especificamente, em francês, ao mal uso ou o uso com excesso de uma coisa. No latim possui o mesmo sentido no mal uso, mas dirigido às coisas fungíveis. TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 3º ed. 1945. 66 essa propriedade no seu art. 544, que é praticamente o meum esse aio68 dos romanos e pois um retorno manifesto à corporalidade. Materialidade e imaterialidade A palavra material possui vários sentidos, precisamente dez são identificados por Cornu, dos quais dois nos interessam mais de perto: 1 – por oposição a moral, pecuniário, patrimonial, econômico; se opõe também a um sentido próximo (quando diz respeito aos bens), à moral e ao corpóreo. Se aproxima aqui, do anteriormente visto significado de corpóreo. 2 – pode significar também o concreto, aplicado a uma coisa tangível69. Um aspecto que se torna relevante, posta a nítida diferenciação entre os bens materiais e os imateriais, é a utilização, pela ciência do Direito, dos mesmos termos e conceitos aplicáveis tanto a uns como a outros. Aliado a essa constatação, Daniel Gutmann, analisou os termos utilizados pelas novas técnicas informáticas e deparou com grande quantidade de metáforas e neologismos (bem como estrangeirismos) utilizados pelas pessoas dessa área científica. A ligação desses fatos o fez questionar se a terminologia jurídica atual seria suficiente para apreender, além da internet, a desmaterialização geral das operações e dos objetos do comércio jurídico, da forma que avança o desenvolvimento dos valores totalmente imperceptíveis para os sentidos70. Essa dependência terminológica entre os direitos concernentes aos bens materiais e aos bens imateriais é o resultado de sua longa história comum, sempre tendo os direitos relativos aos bens materiais, como a propriedade, capitaneado a evolução cientifica do Direito, ficando a reboque os direitos sobre os bens imateriais. Essa forma de evoluir é razoável, posto que a propriedade sempre exerceu importância maior no desenvolvimento da humanidade, sendo os bens materiais os que atingiam maior valor de troca. 68 Acima descrito em nota de rodapé na fórmula completa Hunc ego hominem ex iure quiritium meum esse aio isque mini emptus esto hoce aere aeneaque libra... 69 CORNU, Gerard. Vocabulaire juridique. 70 GUTMANN, Daniel. Du matériel à l’immatériel dans le droit des biens... pág. 66. Dessa forma, enquanto os bens imateriais não se mostraram importantes ao desenvolvimento das nações, os estudos acadêmicos e, conseqüentemente, a terminologia que lhes diz respeito, permaneceram análogos aos da propriedade e dos demais direitos a ela relacionados. Toda coisa útil e rara, por conseguinte dotada de valor, seria um bem. Para uma apreciação das realidades imateriais dentro do direito dos bens, é necessário que separemos a noção de bem da substância concreta da realidade para não reter do real senão as qualidades que se apresentam para os homens. O problema é saber se essa definição qualitativa, e não mais substancial, cabe na classificação entre móveis e imóveis. Potencialmente, todo bem material é um bem jurídico, já que sua materialidade (característica intrínseca) já lhe concede, em tese, uma utilidade. A mera demonstração da mais leve e despercebida utilidade já é suficiente para convencer a sociedade, da validade daquela singularidade como um bem. Por outro lado, os bens imateriais dependem de uma percepção coletiva mais apurada. Somente a partir dessa percepção social poderá haver uma construção jurídica, já que a utilidade ou o valor de uma imaterialidade não aporta na consciência coletiva com tanta facilidade. Muitas vezes, o reconhecimento jurídico que transforma uma singularidade imaterial em bem jurídico se faz por criação pretoriana e após um esforço intelectual considerável. Muitas vezes, a percepção desse novo bem jurídico imaterial, partindo do extrato intelectual da sociedade, de um senso especializado, não atinge a massa da nação. É necessário então, que entre em cena a educação, de forma a levar e demonstrar à população, detentora do senso comum, a boa nova, com vistas à sua apreciação, discussão e posterior valoração positiva. Em relação à informação e sua relação com a materialidade dos bens, devemos atentar que ela é, por sua natureza, um bem incorpóreo e, na maioria das vezes, imaterial. Entretanto, para que exista, a informação tem que ser lançada sobre uma base física: papel, disquete de computador etc., e deve ser separada a base física da base jurídica. Informações pressupõem somente a existência de bases jurídicas. Bens in commercium e extra-commercium – breves comentários Terré e Simler distinguem as coisas que podem ser objeto de direito, ou coisas dentro do comércio jurídico, ou in commercium, e aquelas coisas que se encontram fora do comércio, ou extra-commercium. Essa classificação é dada às coisas seja pela sua natureza, porque não podem ser apropriadas pelo homem, seja por efeito de regras do direito, por exemplo, as coisas relevantes do domínio público71, ou ainda em decorrência dos direitos de personalidade72. Essa distinção, que relaciona a coisa in commercium como única passível de ser objeto de direito, é, a nosso ver, bastante simplista e traz em si uma visão excessivamente econômica de bem e coisa. Não alcança dessa forma o objetivo deste trabalho, pois coisas ou bens extra-commercium também podem ser objeto de direito. A assertiva de que somente aqueles bens in commercium podem ser objetos de direito gera um aparente paradoxo, pois se poderia apressadamente concluir que somente serão bens aqueles passíveis de constar em um negócio jurídico. Apesar disso, há coisas, que são bens, e se encontram extra-commercium, como os bens públicos e os bens decorrentes dos direitos de personalidade, em que pese estarem estes, cada vez mais, dentro do tráfico do comércio jurídico, tais como o nome da pessoa natural, a privacidade e a intimidade. O bens fora do comércio (res extra commercium) sendo corpóreos ou não, já são, em si, bens jurídicos. O rim de um doador ou a imagem de uma pessoa, independentemente da sua possibilidade de submissão ao tráfico negocial, são bens juridicamente tutelados. Essa apreciação favorável aos bens extra-commercium é parte da desvinculação da idéia de bem da idéia de coisa, da des-reificação dos bens, do desapego da teoria dos bens jurídicos, das teorias das relações jurídicas e dos direitos subjetivos. Esse reconhecimento da importância da imaterialidade talvez tenha sido o primeiro passo no sentido da despatrimonialização da idéia de bem jurídico. 71 TERRÉ, François; SIMLER, Philippe. Droit civil – Les biens. pág. 14. Art. 11, 12 e 14 do CCB e art. 99, I, em oposição ao inciso III do mesmo artigo e o art. 100 todos do CCB. 72 Sob o aspecto da patrimonialidade dos bens, uma dupla consideração se pode fazer a respeito da informação. Existem informações relevantes sob o aspecto econômico, portadora da aptidão de constar no patrimônio da pessoa, como os direitos autorais, as marcas e as patentes. Por outro lado, a informação pode compor bens que dispensem qualquer valoração econômica para existirem, como aquelas relativas à intimidade e a privacidade da pessoa. Objeto e conteúdo do direito Definindo e distinguindo desde já o objeto e o conteúdo do direito, resumimos na lição de Coviello, transcrita por Ráo: chama-se objeto dos direitos, o que cai sob o poder do homem e conteúdo dos direitos aquilo que, em virtude do direito, podemos obter73. Ráo ensina que é a partir da relação de conveniência entre um termo (o fim, aquilo porque alguma coisa se faz) e o agente que procura alcançá-lo, que podemos afirmar que o objeto da atividade dos seres é o bem por ele visado. Assim, os direitos são conferidos aos homens para que possam alcançar os bens, materiais ou imateriais, convenientes ou necessários à sua conservação e ao aperfeiçoamento individual e social, ou à conservação e desenvolvimento de seus semelhantes ou da coletividade considerada como um todo. Ademais, continua Ráo em lição bastante atual, os bens proporcionam aos homens os meios indispensáveis à livre expansão de sua personalidade, em busca do destino que lhes é ditado por sua natureza74. No aspecto jurídico chama-se bem, em sentido amplo, o objeto dos direitos, ou como maior precisão, diz-se objeto dos direito o bem sobre o qual o titular exerce os poderes que a ordem jurídica lhe confere. Já o conteúdo do direito é aquilo que, por força do direito, nos é facultado75. Não existe uma teoria geral do objeto do direito como existe uma teoria geral do sujeito. A natureza variada e heterogênea que pode assumir o objeto do direito torna 73 74 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. v.2... pag. 799/800. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. v.2... pag. 798. quase impossível tratá-lo como categoria lógica. Falta, na civilística mais recente, um esforço de substancial renovação dos velhos esquemas, que teria permitido preencher o hyatus entre as categorias conceituais e a nova realidade, causada principalmente pelas novas riquezas, cada vez mais imateriais76. Sob o ponto de vista comum, objetos são as coisas que têm existência material. Sendo tangíveis, afetam de alguma forma os nossos sentidos. Afastando-nos dessa visão comum e, numa visão mais jurídica e atual, objeto da relação jurídica é o comportamento, a atividade, a ação ou omissão dos sujeitos. Assim, o objeto imediato da relação jurídica seria o comportamento do sujeito passivo, consistente de uma ação ou de uma omissão. O objeto mediato da relação jurídica seriam as coisas sobre as quais incide tal comportamento. Em sentido amplo, o objeto pode consistir em coisas (nas relações reais), em ações humanas (nas relações obrigacionais) e na própria pessoa (nos direitos de personalidade e de família, como no poder familiar, na tutela e na curatela) e até em direitos (como no penhor de crédito, no usufruto de direitos)77. A pessoa como valor-fim não poderia ser objeto de direito, por não poder ficar submetida ao poder jurídico de outrem, nem mesmo nas relações de família nas quais os poderes-deveres ou poderes-função, devem ser exercidos em benefício daqueles a quem se dirigem. Em sentido estrito, objeto da relação jurídica compreende as coisas e as ações humanas (prestações). Mais estritamente ainda, é sinônimo de coisa, objeto dos direitos reais. “Objeto da relação jurídica é, assim, tudo o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito, como instrumento de realização de suas finalidades jurídicas78”. O objeto do direito é mais amplo que o objeto da relação jurídica que, por sua vez, engloba o objeto dos direitos reais. Para Moncada, somente em relação a 75 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. v.2... pag. 799. MONCADA, Luís Cabral de. Lições de direito civil... pág. 392. Neste sentido, merece menção o esforço da Association Henri Capitant, na apresentação de um ante-projeto de reforma dos direitos dos bens do Código Civil francês, realizado em 12 de novembro de 2008. 77 AMARAL NETO, F. S. Direito civil – Introdução... p.307/8. 76 coisas e bens é que se poderia pensar em uma teoria de modo que, aquilo que deveria ser, logicamente, uma teoria do objeto das relações jurídicas, transforme-senos nas mãos, por último, numa teoria geral do objeto dos direitos reais. Há, para o jurista, uma tendência vulgar da nossa representação da realidade, à falta de coisa melhor, onde coisa e objeto vem a ser afinal, aproximadamente, noções idênticas ou conversíveis uma na outra79. Sem muita discussão, Tércio Ferraz determina que objeto do direito é o bem protegido, que pode ser uma res (uma coisa, não necessariamente física) ou um interesse (no caso dos direitos pessoais). Já o conteúdo do direito se trata das faculdades específicas atribuídas ao sujeito, que pode ser a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais), ou de dispor, usar e gozar (no caso dos direitos reais)80. A informação pode ser conteúdo de um contrato, ou seja, tornar-se o objeto do conteúdo de uma obrigação contratual de dar coisa certa incorpórea, mesmo que para isso necessite ser entregue lançada sobre uma base física. Por outro lado, pode ser o conteúdo do objeto da privacidade - a intangibilidade moral do sujeito – cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que por dizerem respeito só a ele, deseja manter para si ao abrigo de sua única e discricionária decisão. Legitimidade do objeto do direito O significado de um bem jurídico se resume na condição de algo ser parte de ou estar em submissão a uma situação jurídica qualquer, podendo ser um direito subjetivo ou um dever jurídico de alguém. Se a noção de bem é tão antiga quanto o direito romano, a noção de direito subjetivo evoluiu e tomou sentido no decorrer da contemporaneidade. Exige-se de um direito que tenha legitimidade, que pode ser definida como a qualidade ética do direito para que alcance um ideal de perfeição, sendo requisito de sua aplicabilidade e operacionalidade em um Estado Democrático 78 79 AMARAL NETO, F. S. Direito civil – Introdução... pág. 308. MONCADA, Luís Cabral de. Lições de direito civil... pág. 392/3. de Direito. Caso contrário, temos o direito imposto em estados mais ou menos totalitários. A questão do status de legitimidade desse bem jurídico confronta a teoria do Direito ante si mesma, com caráter introspectivo e autopoiético81, e ante as doutrinas sociológicas, econômicas, filosóficas e morais. Num Estado Democrático de Direito, um objeto de direito do Direito privado deve se fundar, além dos requisitos de licitude, possibilidade e determinabilidade avençados no art. 104, II do CCB, em princípios de legitimação desse mesmo Direito, de justiça e de igualdade. Dessa forma, definir o poder ou não poder ser um objeto de direito é tarefa que envolve um estudo histórico da evolução e da atualidade dessa sua legitimação, principalmente no que tange à noção de direito subjetivo. Foi do racionalismo e da concepção do direito natural que a idéia de direito subjetivo se desenvolveu e que fez dela um conceito central do direito. Savigny foi o primeiro a estruturar as relações jurídicas da forma como hoje conhecemos. Seguidor das idéias de Kant, adaptou a sua estrutura filosófica do livre arbítrio para o Direito, resultando num Direito a serviço da moral e garantidor de um espaço de livre arbítrio do indivíduo. Segundo Savigny, ao aplicar as idéias de autonomia de Kant, o direito se torna necessário à construção de uma linha invisível de separação capaz de determinar os limites dentro dos quais o desenvolvimento paralelo dos indivíduos possa encontrar segurança e independência. A construção de Savigny, no seu livro Direito Romano Atual, não se manteve posto que, baseada na autonomia da vontade e alicerçada na moral, não se compatibiliza com a ascensão da compreensão positivista que viria explicar o direito subjetivo como fruto de uma força obrigatória fática, oriunda de decisões tomadas por sujeitos competentes82. Representam essa ascensão, a democracia representativa, a assembléia e o Código Napoleão. 80 FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Sigilo de dados... pág. 141. No sentido biológico, é um sistema que se cria, se modifica e se destrói pelas suas próprias forças. Como uma referência à obra de Niklas Luhmann, ocorre quando o Direito retira a sua própria validade de uma auto-referência pura, pela qual qualquer operação jurídica reenvia para o resultado de operações jurídicas que se retroalimenta, se autodefine, se destina e se justifica. 81 A funcionalização do direito, introduzida por Windscheid no seu livro Direito das Pandectas, representou a ascensão da ordem jurídica como principal fonte do Direito. O direito é um poder ou senhorio de vontade conferido pela ordem jurídica. O direito subjetivo é aquilo a um determinado sujeito conferido pelo ordenamento que, assim, lhe garante um poder. Tal direito se justifica na vontade do ordenamento jurídico e não na vontade do facultado, como queria Savigny. A perspectiva funcionalizante do direito de Windscheid dotou o direito subjetivo de um duplo sentido: a) significaria um direito a uma determinada conduta de uma pessoa específica ou de todas as outras que frente ao facultado se encontrem; e b) a vontade do facultado, que não cobra papel no que tange à efetividade, mas no que concerne à existência de mandatos referentes ao Direito83. Contemporâneo de Windscheid, Ihering, no seu livro o Espírito do Direito Romano, estabeleceu as bases do Direito na sua jurisprudência dos interesses afirmando o condicionamento da vontade individual à vontade geral. A vontade geral é que estabeleceria os limites das vontades individuais, condicionando o seu exercício. O direito subjetivo seria a ‘unidade concreta’ do Estado e dos particulares, ou um fragmento da vontade geral que vem a ser concreto e existente na pessoa privada. O objetivo final do Direito, segundo Ihering, acabaria sendo a vontade pois as figuras abstratas que conhecemos ganhariam vida e concretude mediante a vontade do indivíduo, razão pela qual o Direito surgiria como um ‘fragmento circunscrito da vontade”. Numa visão utilitarista, Ihering entende que o direito seria uma condição de exercício da vontade rumo à consubstanciação de um determinado interesse; e isso implica, justamente, uma compreensão teleológica dos interesses capazes de serem assumidos como meios para um fim da vontade, tanto individual quanto geral, na medida que pressupõe um compartilhamento ético comum. O Direito é, pois, nada mais que interesses juridicamente protegidos; abrange tudo que pode nos servir a algo84. Entretanto, há que se entender as necessidades e interesses tendo em vista o seu valor - o que demonstra uma materialidade ética subjacente – e que se 82 CHAMON Jr. Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág.79-83 CHAMON Jr. Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág.83-85 84 CHAMON Jr. Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág.87. 83 tornam, juridicamente, bens. Os bens podem ser tanto os bens materiais, quanto os bens de natureza moral, estes muitas vezes mais valiosos do que aqueles de natureza material. O Direito tem por referência um bem, concepção que se encontra na base do Direito. Sob a ótica utilitarista, a idéia de valor se soma enquanto medida da utilidade do bem, com valor maior ou menor em face da utilidade que pressupõe um fim. A noção de interesse surge da relação entre valor e fim e do seu reconhecimento pelo legislador que merece e reclama sua proteção85. O objeto do direito seria o gozo dos interesses e das necessidades que somente se poderia dar através da expressão de uma vontade86. Já Jellinek, no seu Sistema de Direito Público Subjetivo, o Direito é conferido pelo conteúdo de uma norma que compreende a faculdade ou o poder de vontade acerca de algo. O objeto do direito é formado pelo vínculo entre o indivíduo e as coisas (algo) e é enlaçado à noção de utilidade que as coisas teriam em face dos escopos individuais. A finalidade do direito consiste então na tutela ou proteção dos bens ou dos interesses que seriam tomados por uma opinião média que, no ordenamento jurídico, viria sintetizado enquanto o próprio interesse tutelado e em face das opiniões individuais acerca da utilidade da coisa. O direito subjetivo seria então um poder de querer, de vontade, que tem o homem, reconhecido e protegido pelo ordenamento jurídico, enquanto referido a um bem ou interesse. Direitos subjetivos e deveres são justificados pela tutela dos interesses em geral que implica, necessariamente, uma tutela em bloco dos interesses individuais singulares. Da tensão individual-geral, Jellinek parte para a interpretação no sentido de que os interesses individuais podem ser distinguidos em a) interesses tomados em consideração prevalentemente em face de escopos individuais ou b) escopos prevalentemente gerais; afinal, o interesse geral constituiria o conteúdo do direito 85 Ou ainda da proteção fornecida pelo reconhecimento do bem (direito) em uma sentença judicial (mais explicitamente no caso da Common Law) ou na interpretação extensiva dos princípios gerais do Direito à tutela de determinada situação jurídica nova. público subjetivo. Esse direito público subjetivo seria a concessão da faculdade de pretender que algumas das ações particulares sejam reconhecidas como feitos jurídicos. Assim, provocar a ação do Estado não seria um atributo da liberdade natural, mas antes seria criado pelo próprio Estado. Ainda que Jellinek tenha uma pretensão discursiva moderna em razão da referência a uma vontade geral (média das opiniões gerais) acaba realizando uma leitura positivista. Kelsen termina a linha positivista que se inicia em Windscheid passando por Jellinek, numa compreensão dos direitos subjetivos como situações oriundas daquilo que é determinado pelo ordenamento jurídico e que reduz o problema da validade a uma faticidade87 sociologicamente constatável88. Para Kelsen, ao direito subjetivo contrapõe-se o dever jurídico. Um direito subjetivo é o simples reflexo de um dever jurídico, isto é, o conceito de um direito reflexo pode, como conceito auxiliar, facilitar a representação da situação jurídica. Mas é supérfluo do ponto de vista de uma descrição cientificamente exata da situação jurídica, como no fato de não pressupormos um direito subjetivo reflexo em todos os casos de um dever jurídico, como ocorre nos casos onde preservamos plantas e animais89. Para o autor, o direito subjetivo não é interpretado como um interesse juridicamente protegido, mas antes como proteção desse interesse por parte do direito90. O direito subjetivo é, então, aquele poder jurídico conferido pela ordem jurídica para que o sujeito possa fazer valer o não cumprimento de um dever jurídico. O poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento de um dever, poder esse que põe em movimento um processo que leva ao estabelecimento da decisão judicial que estatui a sanção concreta como reação contra a violação de um dever, é a essência do direito privado subjetivo91. 86 CHAMON Jr. Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág.88. Para Habermas, o direito só pode ser compreendido a partir da noção de uma tensão entre faticidade e validade. Por faticidade entendemos o plano dos fatos, das coisas como elas são e funcionam, a dimensão do êxito real, sem questionar sobre o certo e o errado. Validade, por sua vez, se encontra no plano dos valores importantes e que justificam as escolhas e as instituições existentes. 88 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 84. 89 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito... pág. 143. 90 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 94. 91 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito... pág.153. 87 Na esteira da vinculação ética da legitimação dos direitos, iniciada sobretudo em Ihering, Paul Roubier vai entender que os direitos concedidos os são na medida em que o sujeito realiza atividades conforme o interesse do grupo92. Funcionalmente, a diferença entre direitos e Direitos se refere à distinção entre situações jurídicas e regras jurídicas, respectivamente. Assim, o direito subjetivo representaria um bem (res incorporales) que é apropriado pelo sujeito, e com o qual pode contar de acordo com a organização jurídica. A lógica dessa apropriação quer que o direito subjetivo constitua um bem nas mãos do titular, do qual ele possa dispor, seja em benefício de um terceiro, por meio de transferência, seja por abandono do próprio titular93. Nesse ponto, Roubier define como situação jurídica um complexo de deveres e direitos e os divide em: a) situações jurídicas subjetivas, que seriam aquelas em que o objetivo principal é produzir direitos, enquanto que b) as situações jurídicas objetivas são aquelas onde o objetivo principal é o de produzir deveres, sendo estas últimas obras do direito objetivo, do ordenamento jurídico94. Os direitos são protegidos por si próprios contra qualquer ataque – restituição do objeto; já os deveres, uma vez não cumpridos, não implicaria ordinariamente numa restituição do objeto95. Roubier critica alguns juristas do direito público, como Duguit e Jèze, por estarem próximos de diferenciar os direitos em função do seu modo de estabelecimento, pela maneira como querem diferenciar as situações subjetivas e as situações objetivas. Segundo eles, as situações jurídicas subjetivas são somente aquelas que são diferenciadas pela vontade dos seus autores no caso individual e concreto, enquanto que as situações objetivas são todas aquelas que se apresentam com um conteúdo sempre idêntico a ele mesmo, porque é sempre um conteúdo fixado pela lei. Isto praticamente restringe a categoria dos direitos subjetivos aos direitos contratuais e, desta forma, à propriedade e aos direitos reais. Os direitos intelectuais ou de clientela não seriam direitos subjetivos96. 92 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 97. ROUBIER, Paul. Délimitation et intérêts pratiques des droits subjectifs... pág. 85. 94 ROUBIER, Paul. Droits subjectifs et situations juridiques... pág. 60. 95 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 98/99. 96 ROUBIER, Paul. Droits subjectifs et situations juridiques... pág. 60. 93 A essência do direito subjetivo, na concepção de Roubier, é que se trata de uma prerrogativa concedida aos particulares no seu interesse e em seu benefício e vantagem. São assim considerados como um bem, sua propriedade, que podem transferir ou abandonar se não os convém mais manter97. Ao contrário, as situações objetivas são as situações legais que são criadas no interesse geral da sociedade, como o casamento e a filiação. Ambos constituem tanto um status social, quanto são impostos aos sujeitos desta situação, aos quais não é possível se subtrair por vontade própria98. Liberdades e poderes que não fossem possíveis de renúncia ou transferência não seriam direitos subjetivos, mas situações objetivas criadas no interesse geral da sociedade e que não poderia, o sujeito, se subtrair por vontade própria99. Sob esse aspecto, no caso do direito à privacidade, não poderia este ser considerado um bem, mas um dever por parte do direito objetivo. Desta forma, há um dever de não divulgar informações privadas alheias que é protegido pelo ordenamento jurídico e destinado a todos. Da mesma forma o direito à vida. Esse núcleo de direitos da personalidade não seriam direitos subjetivos porque não seriam protegidos por uma ação específica e não teriam a possibilidade de disposição. São, pois, situações jurídicas objetivas protegidas por ações penais específicas, ou mesmo cíveis, em que a tônica seria a reparação de todo o dano e não a restituição do direito, justamente porque não é um direito subjetivo. Leon Duguit, por sua vez, analisando o Código Napoleão e a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, critica a concepção individualista e metafísica do direito, fundada na idéia de direito subjetivo do indivíduo e de uma regra social que se impõe ao indivíduo. Esta noção implica sempre duas vontades, uma frente a outra: uma vontade que pode impor-se a outra vontade e que lhe é superior100. Esta concepção individualista tem origem na filosofia estóica e encontrou sua fórmula no direito romano clássico, chegando ao Século XVI. No Século XVIII teve uma 97 ROUBIER, Paul. Délimitation et intérêts pratiques des droits subjectifs... pág. 89. ROUBIER, Paul. Délimitation et intérêts pratiques des droits subjectifs... pág. 89. 99 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 98. 98 formulação completa e definitiva que pode se resumir assim: o homem é livre por natureza, independente, isolado, titular de direitos inalienáveis e imprescritíveis, de direitos naturais, indissoluvelmente unidos à sua qualidade de homem. Para o jurista, este homem não existe porque impossível. Todo direito pressupõe uma relação entre pessoas e o homem é um ser social e o direito advém desse fato101. A associação das pessoas (sociedade) foi formada pela aproximação voluntária e consciente dos indivíduos, que se reuniram com o fim de assegurar a proteção de seus direitos individuais naturais. Com efeito, dessa associação, foram impostas restrições aos direitos de cada um, porém somente na medida em que isto é necessário para assegurar o livre exercício dos direitos de todos. O Estado, como coletividade organizada, tem por escopo proteger e sancionar os direitos individuais. Assim sendo, a regra do direito – o direito objetivo – tem por fundamento o direito subjetivo do indivíduo102. O Estado, na sua concepção subjetiva, não pode ir além de sua função garantidora dos direitos individuais, senão na estrita atenção do interesse público, que não é outro senão a manutenção das liberdades individuais. Não cabe ao Estado impor obrigações de ensino, de trabalho ou de previdência103. Assim, assume a necessidade de uma concepção de ordem realista e socialista, onde o indivíduo não possui direitos, muito menos a coletividade. Ao invés, cada homem tem, na sociedade, uma função social a cumprir, uma certa tarefa a executar104. Na concepção individualista, a liberdade representa o direito de fazer tudo aquilo que não cause dano a outrem, portanto, a fortiori, é o direito de não fazer nada. Na concepção moderna, todo homem tem uma função social a desempenhar (e um dever social), como o dever de desenvolver sua individualidade física, intelectual e moral, tanto quanto lhe seja possível. Ninguém pode impedir esse livre desenvolvimento. 100 DUGUIT. León. Las transformaciones generales del derecho... pag. 173/4. DUGUIT. León. Las transformaciones generales del derecho... pag. 177. 102 DUGUIT. León. Las transformaciones generales del derecho... pag. 177. 103 DUGUIT. León. Las transformaciones generales del derecho... pag. 189. 104 DUGUIT. León. Las transformaciones generales del derecho... pag. 178/9. 101 O jurista alemão Robert Alexy aborda o conceito de direito subjetivo sobre três questões: normativa, empírica e analítica105. As questões normativas se distinguem em [1] ético-filosóficas, onde se pergunta, independente da validade de uma ordem jurídica positiva, porque os indivíduos tem direitos e quais direitos tem; e [2] as questões jurídico-dogmáticas, que tratam de saber o que é válido no sistema jurídico, enquanto que as questões ético-filosóficas podem ser argüidas independentemente do sistema. Quando se pergunta se um indivíduo possui um determinado direito subjetivo em um sistema jurídico, se trata de uma questão jurídico-dogmática106. Segundo Alexy, algumas normas, mesmo que beneficiem os indivíduos, não lhes conferem nenhum direito subjetivo. Tomando o exemplo de Ihering, a lei aduaneira beneficia os fabricantes locais, os promove e protege seus negócios, entretanto, não lhes confere nenhum direito107. As questões empíricas no conceito de direito subjetivo remetem à tridimensionalidade da ciência do direito108. Assim, o fato de que um determinado direito subjetivo D tenha sido criado no tempo T1, a fim de evitar a situação S valorada negativamente e que D já tenha evitado com êxito esta situação, sob os pressupostos de que D, também no momento atual T2, é adequado para evitar S e que S continua sendo valorada negativamente, é um argumento forte para a conservação de D. Da mesma forma que um determinado direito subjetivo D, na interpretação I, conduz a uma conseqüência fática C ou tem a função social F, sob o pressuposto de que C ou F deva ser valorado positivamente, é um argumento forte para interpretar D no sentido de I109. Em relação às questões analíticas, Alexy distingue norma e posição. Norma é aquilo que expressa um enunciado normativo do tipo encontrado no art. 5º, X da Constituição da República de 1988: 105 ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 173. ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 174. 107 ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 175. 108 No sentido que é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica: a analítica, a empírica e a normativa, conforme ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 29. 106 X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Este enunciado expressa uma norma universal e não deixa dúvidas sobre o direito que confere. Já a posição é entendida sobre a base da norma anterior, donde se pode formular que: A tem frente ao Estado o direito de não ter expostos dados de sua vida pessoal. O jurista considera que é aconselhável conceber os direitos subjetivos como posições e relações normativas e, neste sentido, é possível distinguir entre a) razões para os direitos subjetivos; b) direitos subjetivos como posições e relações jurídicas e c) a oponibilidade (imposição) jurídica dos direitos subjetivos. A distinção insuficiente entre estes três itens é uma das causas essenciais da polêmica sobre o conceito de direito subjetivo110. A crítica tecida por Chamon à posição de Alexy consiste na redução, pelo jurista, da validade à faticidade, explícita quando argumentos acerca do útil para a manutenção de um direito se mostram fortalecidos por um argumento acerca da sua valoração. Para o crítico, essa posição deve ser evitada por perder a dimensão normativa, já que não se aplica a norma por um juízo de correção normativa, mas enquanto corolário de um juízo acerca da eficiência do direito ou de uma determinada interpretação deste111. A crítica que se faz a Alexy é que o jurista, em seus estudos, não fechou a resolução do problema da originalidade no sentido de que os direitos são, ao mesmo tempo, direitos porque capazes de serem assumidos como válidos numa instância institucional que, por sua vez, existe para garanti-los. Faltou, na opinião da crítica, perceber que legitimidade e operacionalidade, funcionalidade e sistematicidade, estão co-implicadas e que não faz sentido pretender afirmar, positiva ou negativamente cada uma destas perguntas isoladamente: a) temos direitos porque podemos demandar? ou b) podemos demandar porque temos direitos?112 109 ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 176/7. ALEXY. Robert. Teoria de los derechos fundamentales... pag. 177/8. 111 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 103. 112 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 104/5. 110 Num estudo acerca da legitimidade do Direito, Chamon colocou a liberdade como peça central no que tange à legitimidade e não se podendo cindir a indagação acerca dos direitos subjetivos e do Direito. Ambos são co-originários porque os direitos subjetivos dependem de uma forma jurídica modernamente adquirida e a legitimidade em face desta mesma forma jurídica somente se faz mediante igual reconhecimento de liberdades a todos113. Os passos da evolução do conceito de direito subjetivo deixaram suas marcas, que foram paulatinamente tanto superadas quanto, em parte, incluídas, desde as fundamentações várias como a moral de Savigny, baseada em Kant, quanto a positivista de Kelsen, a do direito natural de Jellinek, a utilitarista de Ihering, a socializante de Duguit e as tentativas baseadas na vontade geral, de Windscheid, Coing e Roubier. Essas últimas, construídas sobre uma pretensão de democracia e participação. Somente se pode falar em Direito enquanto fruto de embates democráticos cujos déficits podem ser suprimidos pela referência à vontade geral do Estado ou do órgão competente, ou ainda em relação a uma pretensa funcionalização social do indivíduo e do direito, como propôs Duguit. A legitimidade do Direito se vincula indissoluvelmente à práxis democrática e esta se aprofunda, tornando-se tão complexa e avançada quanto as sociedades que a adotam. Nestas, os princípios da igualdade e da liberdade, abstratos por natureza, evoluem nos casos julgados pelos tribunais. Direitos subjetivos nascem da confrontação de argumentos, das justificativas e da adequação das normas. Percebe-se uma tendência atual da teoria do Direito de não tratar de forma distinta os direitos objetivos e os direitos subjetivos, pelo menos no que diz respeito à sua origem e à sua legitimidade. Tanto uma quanto outra devem estar em conformidade com os princípios de igualdade e liberdade, princípios estes que se encontram em constante evolução, abarcando mais e mais situações antes desconhecidas da ciência jurídica, seja pela ausência da circunstância em si, com o aparecimento de novos bens e novas relações sociais, seja pelo não alcance da percepção jurídica àquele caso. 113 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 105/6. Numa conceituação atual, pode-se dizer que o direito subjetivo compreende-se pelo reconhecimento argumentativo de uma esfera de liberdade, enquanto esfera de liberdade reconhecida na práxis argumentativa. Antes, a noção de liberdade depende da compreensão das situações de aplicação do Direito como situações jurídicas. O reconhecimento argumentativo parte de que as nossas noções de igualdade ou desigualdade não são dadas ou constituídas ex-ante, mas sim construídas no embate argumentativo, em discursos travados de maneira a garantir uma autopurificação do Direito para a igual garantia de liberdades. Operacionalmente uma argumentação em torno de casos iguais ou diferentes referese a imputação de direitos e deveres que, em cada caso, podem sofrer uma nova interpretação em busca daquilo que se poderia afirmar como sendo uma melhor interpretação114. Os direitos subjetivos são, então, um reconhecimento (de um direito) construído argumentativamente numa práxis dependente da própria forma jurídica moderna que não se faz independentemente de uma autonomia pública e privada, enquanto liberdades políticas reciprocamente referidas115. A situação jurídica somente se perfaz na medida em que existe e é recortada argumentativamente, problematizada e interpretada desde um enfoque jurídico; Com isto tem-se, justamente, um movimento de duplo sentido: o direito, enquanto sistema de normas prima facie aplicáveis, e o próprio caso são co-reconstruídos e co-interpretados simultaneamente sem que isso implique, jamais, a possibilidade de separação dos passos deste processo interpretativo: as argumentações em torno do caso e do Direito são co-implicadas e reciprocamente interpretadas, um à luz do outro116. Um direito subjetivo só pode ter sua existência interpretada em uma dada situação jurídica construída de forma argumentativa, ou seja, é reconhecer a existência de uma esfera de liberdade conformada em face de um caso concreto. Não há direitos ou deveres definitivamente imputados em tese, em abstrato ou em regra. Esta esfera de liberdade de agir ou não refere-se tanto à autonomia privada quanto à autonomia pública. Já a noção de deveres nos remete a uma situação jurídica especificamente problematizada, onde podemos interpretar uma posição 114 115 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 105/6. CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 106/7. caracterizada pela inexistência de uma esfera de liberdade, o que implica numa obrigação (sentido amplo), que, uma vez descumprida, gera a possibilidade de responsabilização por vias institucionais, um ilícito117. Para o autor, não se pode compreender o direito ou o dever como uma situação jurídica. Antes, a situação jurídica é capaz de ser interpretada de forma a realçar o direito de um ou o dever de outro. Isso porque, enquanto circunstância fática recortada e interpretada a partir do direito, pode se fazer conformada de diferentes posições: posições de liberdade de arbítrio (direito) ou posições de falta de liberdade (dever)118. Essas circunstâncias se parecem, na verdade, com as situações subjetivas e objetivas de Roubier, sem a caracterização democrática da validade baseada na argumentação, no discurso. O direito não pode ser interpretado como fundamentado no valor intrínseco de uma liberdade moral, mas sim, por tratar-se de liberdades e não liberdades capazes de serem interpretadas como legítimas porque capazes de serem interpretadas em conformidade a um sistema de princípios discursivamente desenvolvido e construído119. O direito é um sistema de princípios aberto ao futuro. A teoria da relação jurídica vem, desde Savigny, propondo uma correlação entre direitos e deveres, inclusive porque tais direitos seriam interpretados enquanto direitos negativos de não interferência de outrem, sem excluir casos possíveis de deveres positivos. Essa correlação, ainda forte na dogmática jurídica, acabou, em determinados pontos de estrangulamento, levando a construções como os direitos difusos por Ihering e os chamados bens jurídicos-penais, como uma maneira de encobrir, ou ainda de perpetuar a tese da relação jurídica, no sentido de que não poderíamos ter infrações de deveres sem quaisquer direitos violados. Mesmo Alexy, critica Chamon, que apreendendo toda a complexidade das questões, manteve-se preso a uma concepção positivista de operacionalização do Direito, compreendendo as regras a partir de uma concepção convencionalista, e os princípios jurídicos como 116 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 107. CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 107/8. 118 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 112. 119 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 113. 117 o meio de superar operacionalmente a falta de comandos determinantes, a partir da idéia de comandos de otimização120. O direito, mesmo o privado, produzido dentro de um Estado Democrático de Direito presume e requer que as normas que se tornam obrigatórias ao fim do processo legislativo sejam, além de formalmente perfeitas no que diz respeito ao cumprimento das regras legislativas, materialmente justas e igualitárias. Esses princípios de justiça e igualdade, bem como o de liberdade, só nos é possível apreender dentro da evolução da sociedade e do Estado que a representa. Não se implanta um Estado Democrático de Direito; se evolui em direção a ele, dia a dia, lei a lei e decisão judicial, uma a uma. O requisito de validade de um direito, num Estado que se propõe democrático, passa pela discussão ampla de todos os seus aspectos, pela implicação da nova norma não só na vida da maioria, mas, principalmente, na alteração da vida de uma minoria que pode ter argumentos para se opor à nova lei. Estes argumentos, se justos, não podem ser afastados de outra forma senão com argumentos contrários e melhores. Não podem ser afastados dentro do processo legislativo pelo voto da maioria. Não basta mais o processo legislativo das democracias representativas, posto que insuficientes aos anseios e expectativas, principalmente, das minorias. A essa situação nomeamos paradoxo da ditadura da maioria e em nada é condizente com o multiculturalismo, a dignidade da pessoa humana e a pluralidade política da Constituição da República121. 120 121 CHAMON Jr., Lúcio Antônio. Teoria geral do direito moderno... pág. 115. Art. 1º, III e V – Constituição da República de 1988. CAPÍTULO 3 – ASPECTOS JURÍDICOS DA INFORMAÇÃO A informação como bem jurídico Introdução A informação é poliédrica. Sua apresentação não se dá pelas formas tradicionais e já conhecidas das coisas: é volátil, imaterial. Uma vez utilizada ou emitida, seu retorno se torna difícil. Trata-se de um dado representativo da realidade suscetível de ser comunicado122, ou ainda qualquer mensagem comunicável a outrem por qualquer meio123. Em que pese a comunicação ser a sua vocação, não é essencial para a sua conformação. A informação existe, mesmo não tendo sido publicada, bastando que uma pessoa tenha retido intelectualmente a seqüência de fatos que a formou. Não se confunde com a idéia, já que essa é apenas a conformação mental abstrata na mente de uma pessoa e ainda não comunicada, não exteriorizada. Como já visto, a origem latina da palavra informação deriva do verbo formare ou dar forma, o que nos traz a noção de uma idéia a ser comunicada. É qualquer mensagem comunicável a outra pessoa através de qualquer meio. Portanto, sob esse conceito, as características primárias da informação seriam: a) o fato de ser passada a outro; e b) a irrelevância do meio utilizado para efetuar a comunicação124. Mas não falta quem tenha tentado oferecer uma solução à problemática, raciocinando de forma diversa e distinguindo a informação, ora da mensagem, que é o elemento material através do qual uma série de informações circula de um emitente a um destinatário; ora da idéia, que é a elaboração abstrata do pensamento e que não precisa necessariamente ser comunicada para se transformar em informação; ou ainda, diferenciando a informação do dado, que é a representação 122 ZENO-ZENCOVICH, Vicenzo. Informazioni (profili civilistici)... pág. 421. CATALA, Pierre. Ébauche d’une théorie juridique de l’information...1, pág. 15. 124 CATALA, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information... pág. 15. 123 convencional de uma informação, sob uma forma específica125. Conforme vimos, para fins deste trabalho, o fato de ser comunicada não é essencial à conformação da informação, basta a possibilidade de ser comunicada. A mudança dos paradigmas em relação aos bens A oponibilidade erga-omnes dos bens, o ius excludenti alios, caracteriza somente uma noção de direito subjetivo, mas não representa todas as situações jurídicas126. A relevância de um bem é dada pela titularidade do interesse no qual se substancia, na proteção reservada ao titular e na tutela do bem, reservada a terceiros qualificados que recebem de qualquer modo uma utilidade, não necessariamente econômica, da sua conservação127. Mesmo em alguns dos exemplos trazidos por Francisco Amaral, como o meio ambiente e os bens de valor artístico128, não se vislumbra a oponibilidade ou o gozo exclusivo. Mesmo assim, não deixam de ser reconhecidos como bens jurídicos e ter tutela correspondente. O dever de não agredir o meio-ambiente ou não maltratar os animais, ou ainda o dever de proteção à biodiversidade e ao patrimônio cultural envolve bens que são de uso comum, tanto na terminologia jurídica, quanto na econômica. Mas nem por isso esses bens deixam de ser jurídicos pelo valor social que representam. O Protocolo de Quioto, em última análise, criou um bem jurídico mundial – a atmosfera não poluída. Uma vez que esse tratado multilateral seja internalizado, ele se torna uma norma jurídica nacional e cria, no ordenamento doméstico do estadomembro, um bem jurídico, social e economicamente valorado, podendo, inclusive, ser objeto de alienações onerosas e gratuitas. A atmosfera, não é necessário lembrar, é bem comum – res communes omnium – de uso e gozo não exclusivo. Nesse caso em particular não importa, para a caracterização de bem jurídico, a definição da titularidade do interesse, o gozo exclusivo ou ser o bem objeto de direito subjetivo de qualquer pessoa específica. 125 PECORARO, Mirella. A propósito dell’informazione come bene... pag. 1. GALLOUX, JeanChristophe. Ébauche d’une definition juridique de l’information... pág. 232/3. 126 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil... pág. 236. 127 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. ... pág. 236. 128 AMARAL, Francisco. Direito civil – Introdução... pág. 313. Em que pese, neste exemplo, haver também, junto ao valor social, um valor econômico estipulado entre os estados-membros, ele não é essencial à conformação do bem jurídico. Temos como exemplo a proteção ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico, ou à biodiversidade, ou aos animais. Em nenhum destes casos há um valor econômico apurável pelo bem, diretamente, pelo seu consumo, ou indiretamente, pelos seus frutos civis. Na evolução jurídica brasileira, a partir da Constituição da República de 1988 e do Código Civil de 2002 – CCB, os princípios deixaram de ser coadjuvantes no preenchimento das lacunas da lei e se instalaram no pensamento jurídico e judicial, e cada vez mais são levados em conta, aumentando o seu peso relativo na balança das decisões judiciais. O princípio da socialidade129 instado no CCB se antepôs ao individualismo do código anterior, e com isso, procurou dar maior importância às utilidades sociais do que às utilidades individuais sem, contudo, abandonar estas últimas. Esta guinada permitiu considerar as singularidades nas suas funções sociais, próximo do que queria Duguit, já citado. O resultado dessa equação foi, evidentemente, que os bens deixaram o seu vínculo individualista ligado exclusivamente ao patrimônio do titular. Outros valores passam então a ser enxergados, valores extra-patrimoniais, como aqueles ligados à personalidade. Mas não foi só. Os valores da socialidade assumem cada vez mais relevo sem, contudo, diminuir ou sufocar o aparecimento de novos valores extra-patrimoniais de caráter individualista. O princípio da socialidade se consubstancia na exigência de que o direito deve ser exercido condicionado à função social. E como uma das bases de todo ordenamento jurídico, não só a propriedade, o contrato e a empresa, mas submete toda a compreensão do direito, especialmente o privado, ao seu prisma: o valor ecológico, uma invariante axiológica, um valor forte do qual depende a sobrevivência do ser humano. O valor ecológico, valor-fonte de todos os valores, assegura ao ser humano os meios essenciais de desenvolvimento de uma vida condigna130. 129 Ou humanização do Direito, marcou o novo Código Civil pela colocação das regras jurídicas num plano de vivência social. A função social do contrato, da propriedade, da empresa e na responsabilidade civil são alguns dos seus reflexos. REALE, Miguel. O projeto de código civil... pág. 9/11. 130 REALE, Miguel. Primado dos valores antropológicos... pág. 9/11. De uma visão liberal-individualista, passou-se para uma concepção socialhumanista da propriedade, que deixou de ser um direito exclusivo e ilimitado para atentar à preservação de valores centrais do ordenamento, ligados à dignidade da pessoa e à preservação do valor ecologia131. O alcance do princípio da socialidade ainda é desconhecido, mas parece claro que toda a matéria relativa ao exercício das faculdades do direito de propriedade e do direito contratual (e não só deles, diga-se bem), assim como de seus análogos, deve ser vista por um novo modelo estruturalmente diferente. Podemos concluir assim, por analogia a estes exemplos, pelo contrário aos opositores da tese da inabilidade da informação como bem jurídico pela ausência do gozo exclusivo. A postulação da informação como bem jurídico ultrapassa essa fronteira mecanicista, individualista e de caráter real, para ser reconsiderada em um novo ambiente cultural onde progride o discurso democrático e o consenso na valoração de novas singularidades imateriais e incorpóreas como bens juridicamente relevantes e, pois, tutelados no interesse individual ou social, patrimonial ou extrapatrimonial. A informação é suscetível de possuir o requisito objetivo do bem em sentido econômico, consistente na aptidão de satisfazer a necessidade humana do conhecimento, e é abstratamente idônea para satisfazer interesses em relação a determinadas e específicas circunstâncias132. É também possível, neste estágio de desenvolvimento jurídico, apreender bens jurídicos que residam fora da norma jurídica expressa, mas que possam ser desenvolvidos de forma indutiva a partir dos princípios constitucionais de Direito. A diminuição do vínculo individualista dos bens jurídicos não se deu unicamente pela alteração dos conceitos de utilidade e exclusividade, mas também pelo novo modelo de uso e gozo, ou pela inserção do modelo de direito privado baseado na socialidade. A eleição da dignidade da pessoa humana à categoria de 131 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O culturalismo de Miguel Reale e sua expressão no novo código civil... pág.67. 132 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil... pág. 237. princípio basilar da República133 acarretou uma progressão em cadeia da própria personalidade humana. A dignidade humana está consagrada como imperativo axiológico de toda a ordem jurídica. O reconhecimento deste modelo se consagra na afirmação do livre desenvolvimento da personalidade humana e no imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento134. Dentre as consagrações se encontra a tutela da individualidade manifestada no caput e em incisos do art. 5º da CRF-1988135, e também a tutela da diferença da individualidade, a proteção da intimidade e da privacidade, o sigilo de correspondência, de dados, o habeas-data e outros direitos que, indiretamente, envolvem informações sobre o indivíduo. O art. 5º da CRF-1988 consagrou a doutrina de um direito geral de personalidade como ‘direito-quadro’ e, sem esgotá-la, procura precisar as áreas de tutela da pessoa segundo as indicações jurisprudenciais e doutrinais para que possam ser também, como acontece com os restantes direitos subjetivos, indiciadoras da ilicitude136. Outros valores passam então a ser enxergados, valores extra-patrimoniais, frutos do aprofundamento do pensamento democrático e de uma reviravolta axiológica e ontológica. Esta nova visão de mundo, de sociedade e de ser humano frutificou na segunda metade do Século XX e ainda hoje influencia o aparecimento de novos direitos. Paradoxalmente, se no campo patrimonial a ascensão dos valores sociais implicou na diminuição da importância dos valores individuais, no campo extrapatrimonial, o incremento de importância dos valores sociais foi acompanhado de um também incremento dos valores extra-patrimoniais de caráter individual, tais como a proteção ao nome, à privacidade, à regulação do uso da imagem, à própria honra, que tiveram seu campo de compreensão expandido para abarcar situações ainda não percebidas pela Ciência Jurídica, pelo direito positivo e pela Justiça. Como em toda novidade, há um inicial deslumbramento e, sem compreender bem os limites da 133 Art. 1º, III da CRF-1988. PINTO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade… pag. 151/2. 135 Como, por exemplo, os incisos IV, V, VI, VIII, IX, X, XI, XII, XIV, etc. 136 PINTO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade… pag. 181. 134 tutela e do bem, são cometidos exageros e chegou-se a denunciar uma nascente indústria dos danos morais. A tutela jurídica da informação A necessidade de qualificar a informação nasce, em primeiro lugar, da falta de homogeneidade do dado normativo e da falta de visão unívoca do problema. Definitivamente, analisar se uma informação pode ser configurada como bem jurídico significa também individualizar o regime relativo à sua tutela, à sua disponibilidade e à individualização do sujeito que possua algum interesse ou direito. Correntes doutrinárias da tutela da informação Reconhece-se a doutrina francesa como sendo a mais avançada nestes estudos e ela se divide em duas correntes. [1] A primeira é a corrente utilitarista, que parte da premissa de que a informação depende do seu conteúdo antes que da sua natureza, ontologicamente considerada. Assim, a informação poderia ser definida como nas palavras de Daragon, “... a ação consistente em levar ao conhecimento público certos fatos ou opiniões, com ajuda de procedimentos visuais ou auditivos, comportando mensagens inteligíveis para o público: a informação é igualmente o resultado desta ação sobre o destinatário”137. Em que pese a definição englobar a fonte, o destinatário, o conteúdo e os meios pelo quais se produz a comunicação, ela não diz nada a respeito da informação considerada em si mesma (re in ipsa). Reduz, assim, o fenômeno que constitui a informação ao seu aparato externo. A corrente oposta [2], definida como pragmática, não percebe a informação sob um plano geral, mas particular, fazendo referência ao aspecto que, algumas vezes, ela assume. O elemento peculiar dessa teoria é o de permanecer ancorada ao dado legislativo, ou de outra forma, à qualificação jurídica, existente ou potencial, que a informação simples pode ter. Portanto, aos olhos do direito, a informação quase assume uma forma particular, configurando-se, conforme o caso, como segredo, invenção, dado pessoal, patente e outros138. 137 138 DARAGON. Étude sur le statut juridique de l’information... pág. 63. PECORARO, Mirella. A propósito dell’informazione come bene... pag. 1/2. Zeno-Zencovich rechaça a corrente utilitarista. Para o jurista, embora reconhecendo que a informação, como mensagem transmissível por qualquer meio, possa constituir o ponto de referência de interesses, o objeto de relações contratuais, exclui que ela possa ser elevada à categoria de bem. Para o autor, a tutela da informação seria indireta: visa tutelar interesses dos bens de mais amplo alcance, como os segredos, sejam eles de caráter epistolar, profissional, industrial, da privacidade, obras do engenho humano etc. Continua o autor afirmando que não há dúvida de que a informação tem, em várias circunstâncias, uma tutela imediata, mas isso não inclui sua configurabilidade como bem jurídico, ponto de referência de situações subjetivas patrimoniais139. Percebe-se que a natureza da informação e de sua tutela atual não recomenda que tenhamos a pretensão de apreendê-la em uma configuração uniforme para o Direito. Entretanto, seja pela forma direta da corrente utilitarista, seja pela forma indireta da corrente pragmática, certo é que o ordenamento jurídico, de forma não explícita no Código Civil, atribui a qualificação de bem a toda coisa (singularidade) que tenha o mérito de ser, de alguma forma, tutelada por ele mesmo. Como regulador das relações sociais, ao Direito interessa tutelar tudo aquilo sobre o que recaiam interesses contrapostos ou diferentes, qualificando-os de um ponto de vista objetivo, realizando deste modo uma abordagem de valor social da tutela. A construção da idéia jurídica de tutela ampla da informação não é simples. Partimos, primeiramente, da sua forma mais evidente e explicitamente tutelada em outros direitos, ou seja, a sua forma indireta. Nessa tutela, o ordenamento reconhece o interesse contraposto sobre a intimidade e os direitos autorais. A estes primeiros casos, unem-se outros e mais outros, num crescendo de amplitude, abrangendo mais e mais circunstâncias, ampliando seu espectro e, até certo ponto, aumentando a importância social do bem isoladamente tutelado. Passamos, por essa derivação a proteger também outros aspectos da privacidade, segredos profissionais e empresariais, invenções, marcas, patentes. Dizemos aumentando a importância social a partir da noção de que tanto os direitos da personalidade, quanto os 139 ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Cosa, In: Dig. Disc. Priv., Sez. Civ., IV, Torino, 1989,p. 453 apud: PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional... pág. 959, nota de rodapé 301. aspectos patrimoniais sobre a informação, tendem a ampliar os bens tutelados, na medida em que a sociedade evolui, se torna mais complexa, e o Direito desenvolve novas reflexões sobre nosso cotidiano. Nuances de informações antes despercebidas passam, pouco a pouco, a integrar o rol daquelas informações que atraem a atenção do Direito, que passa a tutelá-las140. O segundo passo, de maior complexidade, é a tentativa de reconhecer no rol dos bens informativos tutelados uma particularidade comum que os façam similares, passo seguinte para a construção de uma sistematização. Daí a maior dificuldade de se trabalhar com a corrente utilitarista, o que, de forma alguma, significa seu afastamento. Lado outro, a facilidade de se trabalhar com a forma analítica da corrente pragmática, não implica a sua adoção. Na tentativa de criação do conhecimento, a facilidade da corrente pragmática sempre traduzirá um conhecimento meramente dedutivo, enquanto vislumbramos a possibilidade de conhecimento indutivo ao empreendermos a tentativa de construir uma teoria jurídica da informação baseado na corrente utilitarista. Pode-se então, partindo do postulado de que seria possível qualificar a informação na sua essência, como um dado representativo da realidade suscetível de ser comunicado, e desenvolvendo essa premissa com variações dependentes de sua progressiva complexidade e da natureza do fenômeno do qual faça parte, determinar, nas áreas distintas que se seguem, um determinado grau de homogeneidade141. O conteúdo do direito O conteúdo do direito é o conjunto de poderes que o titular tem sobre determinado objeto. Objeto, coisa ou prestação, repete Orlando Gomes a lição de Coviello142. No mesmo sentido, já citamos Tércio Ferraz para quem o conteúdo do 140 Um exemplo que hoje vivenciamos é o início da proteção dos dados genéticos e às informações sobre a saúde do indivíduo. Relegadas à insignificância, percebemos hoje seu valor comercial e a vantagem moral que permitiria o controle sobre a indústria de seguros e planos de saúde sobre os contratos e esboçamos a sua proteção. 141 ZENO-ZENCOVICH, Vicenzo. Informazioni (profili civilistici)... pág. 421. 142 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil ... pág. 200. direito se trata das faculdades específicas atribuídas ao sujeito, que pode ser a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais), ou de dispor, usar e gozar (no caso dos direitos reais)143. O direito de crédito tem como objeto a prestação do devedor, pouco importando se o objeto dessa prestação é uma coisa ou um fato. O conteúdo é o poder de exigila ou reclamá-la. É, segundo Moncada, aquele conjunto de poderes jurídicos cujo feixe constitui potencialmente o próprio direito144 e pelo qual uma pessoa pode exigir da outra uma determinada conduta, pela existência de um vínculo jurídico préestabelecido pelo direito. A primeira abordagem jurídica da informação foi feita em relação a seu aspecto de bem jurídico. Ao confirmar a sua condição de bem jurídico, uma segunda abordagem se faz necessária, aquela que visa determinar de que forma o bem jurídico informação é protegido, ou seja, quais são os poderes existentes nas mãos do titular do objeto de direito representado por uma informação. As coisas ocupam a maioria dos objetos das relações jurídicas, sejam elas imediatas nos direitos reais, ou mediatas, nos direitos das obrigações, na parte em que podem constituir um conteúdo da prestação, que é o objeto direto e específico da obrigação145. A informação tratada como coisa incorpórea representa, na verdade, o objeto imediato, aquele sobre o qual exerce o sujeito os poderes que o direito lhe confere. A similaridade desses poderes com aqueles exercidos pelos titulares de um direito de propriedade, descritos no art. 1228 do CCB, qual seja as faculdades de usar, gozar, dispor e reaver a coisa. Em razão da similaridade desses poderes com as prerrogativas asseguradas aos detentores dos direitos intelectuais é que se nomeiam esses direitos pela expressão ‘propriedade’, seguida do ramo intelectual ou de criação de onde provem a informação: propriedade literária, propriedade industrial, propriedade artística etc. 143 FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Sigilo de dados... pág. 141. MONCADA, Luís Cabral de. Lições de direito civil... pág. 392. 145 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 2... pág. 399/400. 144 O aspecto importante do conteúdo do direito dos bens imateriais e que difere, na realidade, dos bens materiais, é que naquele, há um deslocamento da base física, permanecendo somente a base jurídica. Nos bens materiais, à base física se junta uma base jurídica – a coisa no sentido natural e vulgar e a coisa no sentido jurídico. Como vimos, o sentido de coisa é mais amplo que sua materialidade. Dessa forma, nada impede seja aplicado o mesmo conteúdo do direito sobre os bens dotados de imaterialidade. Trata-se de proceder à tentativa de fugir de uma correlação quase imediata que o direito faz entre o bem em si e o direito de propriedade. Nos ordenamentos civis, essa correlação – uma verdadeira e forte assimilação de idéias - é bem representada pelo art. 810 do Código Civil italiano, já comentado anteriormente e que, por estar inserido no Livro III do CCI, que trata da propriedade, acaba por identificar o conceito de bem ao de propriedade, vinculando-os. Além disso, informação como bem, tratada na seara dos direitos intelectuais, acaba por determinar o conteúdo dos direitos intelectuais com bastante proximidade àqueles do direito de propriedade. Além desses, há outro conteúdo, denominado comumente por direitos morais do autor, de caráter próximo aos do direito de personalidade. Por outro lado, a informação pode também ser, ela mesma, o objeto mediato em um direito obrigacional, por exemplo, na obrigação – ação - de informar, do médico, do consumidor, dos contratantes ou na obrigação de sua omissão, nos casos de segredos profissionais, bem como nas obrigações negativas de direito privado como nos segredos industriais e comerciais, e do direito público, como segredos de Estado e informações confidenciais. Nessa seara, a informação pode se constituir num conteúdo da prestação, ou seja, em um objeto direto e específico da obrigação. A abordagem do conteúdo do direito, aqui traçada tem o objetivo especifico de trazer mais um elemento de conexão possível onde poderemos buscar pela similaridade entre os vários direitos onde aparece a informação. A pergunta seria: as faculdades concedidas a cada titular de direito e a tutela e ele dispensada são diferentes nos vários casos? Pedro Orlando ensinava, já na década de 1940, citando a construção de Kohler em várias obras, que o direito sobre bens materiais é positivo, como a propriedade: é um direito de gozo, não um simples direito proibitivo. É absoluto, no sentido de que é uma relação imediata entre uma pessoa e um bem jurídico146. Os bens imateriais, acompanhando essa construção, são alienáveis e podem ser transmitidos por atos entre vivos ou por sucessão hereditária, tal como a propriedade. Essa forma de uso e gozo de um direito, não se deve confundir com os direitos de personalidade, já que esses tem por objeto o que é necessário à personalidade para a sua existência147. Com as limitações que existiam na época, o autor parece não descartar a possibilidade de bens materiais e imateriais serem tratados da mesma forma, inclusive quanto aos negócios jurídicos inter-vivos e causa-mortis. Considerações finais Perlingieri enumera em síntese as conclusões alcançadas em relação à informação como bem jurídico148: 1) o bem jurídico é objeto de uma situação subjetiva; 2) toda situação jurídica tem um bem como objeto; 3) os bens podem ser patrimoniais ou extra-patrimoniais; 4) os bens jurídicos não requerem o requisito do gozo exclusivo, embora seja essa a característica mais presente; bens de gozo múltiplo são possíveis; 5) a teoria dos bens não corresponde nem à teoria do objeto do direito de propriedade nem àquela do objeto do direito subjetivo: é possível imaginar bens que podem não se encaixar nestas categorias, mas podem ser, legitimamente, objeto de outras situações subjetivas; 6) a individualização de um interesse merecedor de tutela – elevado portanto à situação subjetiva, como um correspondente bem – é realizada pelo ordenamento não apenas com base em regras, mas também com base em princípios; 146 ORLANDO, Pedro. Direitos autorais. p.279 ORLANDO, Pedro. Direitos autorais. p.279 148 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... pág. 237. 147 7) não é necessária pois, a existência de uma norma regulamentar para que haja o reconhecimento de um bem pelo ordenamento, sendo possível realizar a qualificação do bem utilizando somente os princípios, em uma hipótese concreta ou em uma combinação de princípios. Ao qual acrescentaríamos que a existência de um interesse merecedor de tutela depende da aceitação social dessa tutela. CAPÍTULO 4 – A APROPRIAÇÃO DA INFORMAÇÃO Propriedade – análise histórica Habitualmente vemos a propriedade ser descrita em termos históricos a partir da teoria do regime coletivista para a teoria da propriedade privada. Ainda hoje, em tribos indígenas da Amazônia, encontramos sistemas de propriedade onde o solo e as casas pertencem a todos, e os objetos pessoais, os utensílios de caça, vestes e adornos pertencem a cada um. Nesse caso, o uso coletivo desses objetos tem por objetivo a sua melhor exploração. Da forma coletiva ou tribal, a propriedade evolui para a forma grupal. Os bens passam a pertencer ao grupo familiar, inicialmente amplo, mas se restringindo gradualmente. Foi essa a propriedade que herdamos dos primeiros romanos. Os romanos conheceram relativamente cedo na história das suas instituições, uma noção quase absoluta de propriedade: o dominium ex iure Quiritium, a propriedade quiritária, que consistia no poder de se utilizar dela como quisesse, de desfrutar e de receber os seus frutos, de dispor livremente. Ressalva-se que, mesmo naquela época, o poder do proprietário estava limitado, sobretudo no que diz respeito aos imóveis, quer no interesse dos vizinhos, quer no interesse público149. Essa descrição da propriedade acompanhou a evolução do direito. Nas Instituições da época de Justiniano (2,4,4), o proprietário tinha plena potestas sobre a coisa. Tanto para os glosadores como para Pothier, a propriedade é o ius utendi et abutendi, o direito de usar e de abusar da coisa150. Com a queda de Roma e início da Idade Média, o direito romano cede espaço na Europa para o direito dos invasores, de origem costumeira, que possui baixa complexidade e alta variabilidade. Esse corte temporal vai até o final do Século XI, 149 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito... pág. 638. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito... pág. 633. Da mesma forma POTHIER, Tratado del derecho de domínio de la propriedad... pág. 8. 150 com o fim do período feudal, a formação dos estados e a transição da economia agrícola fechada e senhorial para a economia de mercado151. Paulatinamente, a partir da Escola de Bolonha e dos glosadores, tornou-se ao estudo do direito romano a partir do Corpus Iuris Civilis, de Justiniano, e sua influência se torna cada vez maior sobre o direito costumeiro. Criou-se um dualismo jurídico característico da Europa continental, ou seja, a coexistência dos direitos romanos e germânicos, correspondente ao dualismo cultural no mundo romanogermânico da alta Idade Média. Por volta de 1500 decidiu-se, no Império Germânico, abandonar os costumes medievais e receber (recipere) o direito romano como direito nacional152. Em outros países que tiveram, posteriormente, forte influência no direito que iria se estabelecer na América Latina, a absorção do Direito romano ocorreu em graus variados. Na Itália, o direito romano permaneceu como fundamento da ordem jurídica. Na França a influência foi dividida, prevalecendo no norte a lei consuetudinária, baseada nos costumes germânicos e feudais (invasões das tribos germânicas), e no sul, região do direito escrito, influência do Corpus Iuris Civilis e das obras dos juristas eruditos153. Das origens do direito privado europeu até a Revolução Francesa funcionou um sistema de “propriedade simultânea”, no qual vários proprietários solidários se emparelhavam sobre uma mesma terra. A partir da Revolução, se impõe um novo tipo de apropriação, preparada por longo tempo nas idéias e nos fatos, e cujo modelo é o romano: a propriedade exclusiva. Este modelo romano triunfou com a Revolução e se organizou no Século XIX e depois foi alterado no Século XX154. Constata-se, na realidade, que não existe uma única forma de fruição da propriedade, mas um grande número, que varia de acordo com as épocas e com as regiões155. A relevância da proteção ao direito de propriedade levou a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, a considerar a propriedade como “inviolável e 151 CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado... pág. 43. CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado... pág. 38 e 3. 153 CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado... pág. 38. 154 PATAULT, Anne-Marie. Introduction historique au droit des biens... pág. 15. 152 sagrada156”. Fonte de riqueza, e daí de poder, a propriedade, tanto mobiliária como imobiliária, está na base do capitalismo. As idéias iluministas da Revolução Francesa, refletidas no direito a partir do Código Napoleão, custaram a aportar no Brasil. Como herdeiro jurídico do direito civil português, o Brasil, durante todo o Século XIX, ainda adotava os estatutos portugueses em vigor na data da independência, por força da Lei de 20 de outubro de 1823. Essa lei determinou que vigorassem no Brasil as leis portuguesas promulgadas até o dia 25 de abril de 1821157. Por essas vias, especialmente em relação ao direito sobre os imóveis, somos sucessores de duas grandes famílias de legislação: uma costumeira européia, e outra, organizada pela lei revolucionária francesa do final do Século XVIII, o Código Napoleão, com referência no direito romano. A única parte comum entre esses dois modelos era a palavra propriedade, originária de Roma, tendo sido sempre utilizada para designar o domínio do homem sobre as coisas, qualquer que fosse o conteúdo variável desse domínio158. No modelo medieval de direito, por exemplo, havia um número elevado de direitos reais, a maior parte dos quais decorrente de desmembramento da propriedade, notadamente da propriedade fundiária159. O Código Civil de 2002 foi uma atualização do código anterior, no que diz respeito aos direitos reais e aos bens. Alguns direitos reais sobre coisas alheias foram suplantados para uso entre particulares e outros, inseridos. O individualismo do Código de 1916 foi abrandado por princípios como o da socialidade e a exigência de uma função social da propriedade. 155 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito... pág. 635/6. Art. 17. 157 GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro... pág. 1-5. As Ordenações Filipinas, compiladas em 1603 durante a dominação espanhola na Península Ibérica, eram uma simples versão atualizada das Ordenações Manuelinas, verdadeiramente uma presença da Idade Média nos tempos modernos e foram exportadas para o Brasil sem qualquer ajuste ao povo ou ao país. Doutrinariamente remetiam ao direito romano, mandando guardar as glosas de Acúrsio e de Bártolo, circunstância que foi amenizada somente na Reforma Pombalina, pela Lei da Boa Razão de 18 de agosto de 1769, tida como revolucionária e como verdadeiro marco do direito português. 158 PATAULT, Anne-Marie. Introduction historique au droit des biens... pág. 16. 159 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito... pág. 633. 156 A justificação da propriedade Sieyés, um dos revolucionários franceses do Século XVIII, distinguia a propriedade no sentido político e no sentido social. Como sentido político, era uma forma de privilégio e, como sentido social, a garantia da liberdade propriamente dita160. Para Ihering, o valor do bem em si, a sua faceta pecuniária, o seu valor de troca, não parece ser essencial à defesa que uma pessoa faz dos seus bens. Ela os defende porque são os seus bens161. A propriedade serve de meio de prover as necessidades da vida, de adquirir, de gozar. Continuando a evolução de seu pensamento, Ihering considera que o único motivo que deve guiar a pessoa na defesa jurídica do seu patrimônio é o mesmo que determina a sua aquisição e o seu uso, qual seja, o interesse. “Um processo do meu e do teu é uma pura questão de interesse162”. Mesmo assim, Ihering julga que a concepção da propriedade baseada no interesse seja uma degeneração do sentimento são da propriedade, cuja causa não pode se encontrar senão no deslocamento das suas bases naturais. Ainda conforme Ihering, a fonte histórica da propriedade e sua justificação moral são identificadas no trabalho, e não só no trabalho braçal, mas também no trabalho do espírito e do talento. Os direitos sucessórios são uma conseqüência necessária do princípio do trabalho: “a propriedade não pode conservar-se sã e vivaz senão por uma contínua conexão com o trabalho163”. Locke também preconiza que somente o labor do corpo de uma pessoa pode estar na origem de uma propriedade164. A partir da Constituição de 1946, no art. 147165, a concepção do direito de propriedade começa sua caminhada, afastando-se da concepção estrutural em direção à concepção de feições mais funcionais, que privilegiavam a forma pela qual 160 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Reflexões sobre o direito à propriedade... pág. 39. IHERING, Rudolf. A luta pelo direito... pág. 32. 162 IHERING, Rudolf. A luta pelo direito... pág. 32. 163 IHERING, Rudolf. A luta pelo direito... pág. 32. 164 ARENDT, Hannah. A condição humana... pág. 80. 165 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946. Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. 161 esse direito era utilizado. Essa nova concepção começa por condicionar a propriedade ao bem-estar social. A CRF-1988 evoluiu ainda mais a concepção da propriedade com características funcionais, vinculando-a à função social. A propriedade funcional, assim chamada por caracterizar esse tipo de abordagem, é própria da common law e veio consagrada em vários artigos da nova Constituição166. A estrutura das situações patrimoniais passa a sofrer a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade como parte do seu conteúdo, acarretando uma instrumentalização dos direitos patrimoniais. Contrato e propriedade são agora submetidos à função social, como queria Duguit167, contrapondo-a ao individualismo, e introduzindo um critério de valoração da própria titularidade, que passa a exigir atuações positivas do seu titular, a fim de adequar-se à tarefa que dele se espera na sociedade168. Há um evidente incentivo negativo para a manutenção de uma propriedade que não seja considerada funcional em qualquer dos seus aspectos169. Em termos de justificativa do direito de propriedade, os poderes constituintes retomaram a justificativa dos juristas antigos citados por Patault, qual seja, ele se justifica como uma resposta à questão do justo e do injusto e, como questão de fundo, a responder sobre a finalidade do direito170. Segundo Rosenfield, o dispositivo da função social da propriedade, trazido pela CRF-1988 e pelo CCB, não foi apurado em seu sentido e extensão, o que terminou por ser invocado como justificação de qualquer atentado contra a propriedade privada e a contar com a benevolência dos aplicadores do direito. No imaginário comum brasileiro, a propriedade privada é frequentemente defendida apenas 166 CRF-1988 - No art. 5º, o inciso XXII traz a garantia constitucional da propriedade. O inciso seguinte (XXIII) condiciona o direito à sua funcionalidade. A propriedade é garantida também em relação aos bens imateriais (inciso XXIX), evidentemente submetidas à mesma exigência da funcionalidade quando expressamente menciona que a segurança da lei terá em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. 167 DUGUIT, León. Las transformaciones generales del derecho público y privado... pág. 235251. 168 PAULINI, Umberto. Crise estrutural e funcional da propriedade... pág. 43-57. 169 CRF-1988 - Art. 153, VI e §4º, I; art. 156, I e §1º, com seus incisos; art. 170, II e III; art. 182, §2º e §4º, II; art. 185, I e II; art. 186 com seus incisos. CCB-2002 – art. 1228, §1º. 170 PATAULT, Anne-Marie. Introduction historique au droit des biens... pág. 16. condicionalmente, como se a sua relativização fosse uma condição para a justiça social171. Ao que parece, a juventude da funcionalização dos direitos patrimoniais ainda é notada e apresenta algumas conseqüências. Além disso, questionamento da propriedade sobre os bens materiais se estende e atinge os direitos intelectuais por dois motivos: [1] por força da volatilidade e indeterminação do conceito de função social da propriedade, o que acaba por tornar a propriedade relativa, e [2] pela vinculação quase imediata de que o labor que justifica a propriedade é principalmente aquele trabalho braçal, menosprezado ou diminuído o esforço intelectual dos autores. Há um nítido desencontro entre a idéia da privatização do conhecimento, que justifica os direitos de propriedade intelectual, e a proposta, algumas vezes incendiária, de desconsideração desses direitos. Numa alusão à obra de Thomas Kuhn172, podemos dizer que há uma proposta de não iniciados, ou seja, pessoas desconhecedoras das particularidades do paradigma sobre o qual se assenta uma teoria, uma política ou uma prática, mas que se julgam capazes de desconsiderar esse paradigma em nome, talvez, de seus interesses imediatos ou em decorrência da simplicidade de seu imaginário. No lugar do antigo paradigma não se propõe nenhum paradigma novo e uma nova teoria deve, pelo menos, parecer melhor que as suas competidoras. A existência de uma crise de paradigmas é a pré-condição necessária para a emergência de novas teorias. A rejeição de um paradigma só se dá pela superveniência de outro paradigma que mostra as anomalias intransponíveis do anterior e o substitui. O que propõem os defensores do fim da propriedade, inclusive a propriedade intelectual, é a exclusão pura e simples do paradigma vigente sobre a questão da propriedade em nome da socialização desses bens, o que, no caso, não é proposta de substituição de paradigmas, mas apenas a negação da ciência173. 171 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Reflexões sobre o direito à propriedade... pág. 27-8 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas... pág. 38-40 173 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas... pág. 107-110 172 Várias justificações para a propriedade foram estudadas por outros autores clássicos como Locke, Stuart Mill e Karl Marx, que se debruçaram sobre a teoria da propriedade num sentido mais econômico que jurídico. Importância econômica da proteção às propriedades A proteção poderosa do direito de propriedade foi fator de desenvolvimento do império inglês a partir da segunda metade do Século XIX174. E não só a propriedade corpórea e imóvel, mas também a propriedade intelectual. A bem definida lei sobre o assunto e a determinação judiciária de fazê-la cumprir está na base do desenvolvimento de alguns países. Uma das razões mais importantes da difusão da propriedade intelectual é a transmissão de tecnologias e das idéias que lhes são subjacentes. Ainda mais importantes do que ter recursos específicos no solo, como carvão, é a capacidade de utilizar idéias científicas modernas para organizar a produção. Para Sachs, a essência da primeira revolução industrial não foi o carvão, mas como usar o carvão175. A beleza das idéias é que elas podem ser usadas repetidamente, sem jamais se exaurirem, o que economistas chamam de bens não-rivais, no sentido de que o uso que uma pessoa faz de uma idéia não diminui a possibilidade de outras pessoas também a usarem. A ausência de inovações leva os países ao reverso do ciclo da riqueza gerada pelas informações (tecnológicas). Quanto mais os países desenvolvidos geram novas informações, que se transformam em inovações tecnológicas, mais geram patentes que, protegidas jurídica e comercialmente, são fatores que acentuam a distância entre países ricos e pobres176. Um círculo virtuoso ocorre quando os países, através dos setores público e privado, investem em pesquisa e desenvolvimento. Esses investimentos somente ocorrerão onde há um cenário de proteção da propriedade intelectual, o que gera mais patentes e maiores ganhos com propriedade intelectual, direta ou indiretamente 174 175 SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza... pág. 61. SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza... pág. 69. o que, por sua vez, gera mais investimentos. Ao contrário, num ciclo vicioso negativo, o ambiente desfavorável de proteção à propriedade intelectual gera a descrença na pesquisa, especialmente por parte do setor privado. Este baixo investimento em conhecimento e informação é um dos fatores do subdesenvolvimento brasileiro177. Formas de assenhoramento Vivant sugere que possam haver outras opções do arsenal jurídico para serem utilizadas em relação ao objeto informação178. Para o autor, o uso dos atributos da propriedade no trato da informação pode não ser a melhor opção e outras opções são apresentadas, como a ‘reserva’ ou a ‘imobilização’. Coisas não são passíveis de serem assenhoradas (tornadas bens) apenas pelas vias contratuais ou laborais. O mero fortuito pode ser suficiente para criar em uma pessoa a titularidade necessária para respaldar um direito subjetivo a um bem, seja ele material ou imaterial. Adquire-se ou perde-se a propriedade por força dos eventos da natureza, como, por exemplo, na aluvião (art. 1250), na avulsão (art. 1251), no abandono do álveo (art. 1252) e até mesmo por meras causalidades, tais como a confusão, a comissão e a adjunção (art. 1272, todos do CCB). Em todos os casos, não há título que ampare a aquisição; dá-se pela ocorrência de um fato juridicamente protegido tal como a posse e a usucapião. A usucapião é considerada como forma originária de aquisição da propriedade. Ocorre que, no ambiente atual, não existem mais bens que não estejam sob o domínio de alguém (res nullius). As formas originárias de aquisição servem então à transferência do direito de propriedade de uma pessoa a outra pelo decurso de tempo. Na prática, a usucapião se tornou uma forma de aquisição derivada de propriedade. Para Simone Eberle, a propriedade ganhou novas formas de aquisição, voltadas justamente para as hipóteses em que falta o título como elemento de amparo para a sua aquisição179. A autora se refere à multiplicidade de situações 176 SACHS, Jeffrey. O fim da pobreza... pág. 90/91. Folha de São Paulo. Diagnóstico fechado. São Paulo, 22 de agosto de 2009. pág. A2. 178 VIVANT, Michel. La privatisation de l'information par la propriété intellectuelle... pág. 361-388. 179 EBERLE, Simone. Âmago e meio: equacionando ... 177 jurídicas onde a lei reconhece a existência de uma titularidade de direito protegida, especificamente no campo das aquisições de bens por pessoas menos favorecidas, mas que não se afasta da idéia central de que os conceitos que nos foram dados pelos Códigos Civis dos séculos XIX e XX já não suprem todas as necessidades jurídicas atuais. A percepção de que o direito posto já não atende as exigências sociais, especialmente no que diz respeito à informação, se dá então, em três frentes: [1] a primeira, pela constatação geral de que os direitos privados, especialmente aqueles ligados ao patrimônio, que eram estruturados e absolutos, já não atendem à complexidade da sociedade e nem do direito como um todo; [2] a constatação particular de que novas formas de propriedade provocam uma multiplicidade de situações jurídicas onde é reconhecida uma titularidade de direito protegida pela lei, fora das estruturas clássicas do Direito; e, por fim, [3] uma constatação específica de que a informação, pela multiplicidade das formas que apresenta, impossibilita uma tutela específica nos moldes dos atuais institutos jurídicos. Ao conhecer a história dos institutos do direito e observar a forma como a Common Law entende e protege a propriedade, essa última afirmativa acaba por transparecer que exista mais um problema histórico-cultural do que propriamente uma deficiência na estrutura dos direitos de propriedade. Novas formas de propriedade Em todo período evolutivo do Direito, a questão da propriedade e da posse esbarraram em dificuldades. O direito de propriedade de bens pessoais, tais como utensílios de caça, roupas e amuletos, é razoavelmente claro e simples. Mesmo povos muito primitivos o compreendem e respeitam. A propriedade como direito significa a existência de vínculos sociais e jurídicos o que, por sua vez, significa o estabelecimento de regras de pertinência e exclusão em relação a um determinado objeto jurídico, um bem juridicamente considerado. Nenhum problema é encontrado ao tratarmos da propriedade de bens materiais. Após séculos de desenvolvimento e sedimentação jurídica e social, as faculdades inerentes ao direito de propriedade já são amplamente conhecidas, mesmo que ainda se encontrem em evolução. As propriedades imateriais ou intelectuais, embora ainda em desenvolvimento, já tiveram sua época áurea de discussões e implantação. Entretanto, novos bens passíveis de apropriação estão em constante aparecimento: as reservas submarinas de hidrocarbonetos, o espectro eletromagnético utilizado nas transmissões de rádio, televisão e telefonia celular, os programas de computador, as formas de vida geneticamente modificadas, o espaço sideral, e as informações não compreendidas pela propriedade intelectual. Os sistemas legais tendem a uma ação uniforme no que diz respeito aos direitos de propriedade sobre as informações de uma forma geral, como as invenções, livros, filmes, programas de televisão, composições musicais, programas de computadores, desenho industrial, marcas, e até organismos criados. O que se espera de um Estado atual é que, ante o aparecimento de novos bens, novas possibilidades de exploração de recursos escassos, e novas formas de informações que o relevo social considera merecedoras de proteção, defina o direito sobre esses bens, apaziguando a sociedade. Demsetz, falando sobre a emergência dos direitos de propriedade, e numa visão econômica, relata que a principal função alocativa dos direitos de propriedade é a internalização dos efeitos benéficos e prejudiciais. Assim, a emergência da propriedade pode ser entendida melhor por sua associação com a emergência de novos ou diferentes efeitos benéficos ou prejudiciais180. Essa vinculação, ou melhor, essa visão econômica da propriedade, e não só do direito de propriedade, mas também da existência da propriedade em si, nos parece perdida pelo Direito. Não a consideramos mais em nossos trabalhos, nem quando nos deparamos ante a tentativa de construir uma idéia de proteção a um bem jurídico, semelhante ou análogo à propriedade. Podemos perceber que a proteção ao novo bem jurídico poderá requerer as mesmas faculdades de uso, gozo e exclusão de terceiros do acesso ao nosso bem, mesmo sem o conhecimento da origem do bem jurídico, dos 180 DEMSETZ, Harold. Toward a theory of property rights... pág. 350 mecanismos sociais que permitem o seu aparecimento. A priori, não consideramos a abordagem e a possibilidade de equiparar esses novos direitos à propriedade. Continuando com Demsetz, a mudança no conhecimento resulta em mudanças na função da produção, valor de mercado e aspirações. Novas técnicas e novas formas de produzir a mesma coisa e de fazer coisas diferentes sempre trazem efeitos benéficos ou prejudiciais aos quais a sociedade não está acostumada. Na opinião do autor, a emergência de novos direitos de propriedade tem lugar na resposta aos desejos de pessoas interagindo para se ajustar às novas possibilidades de custo-benefício. Novas possibilidades do uso da posse A doutrina brasileira sempre se bateu pela impossibilidade de utilização dos interditos possessórios para a proteção dos bens imateriais. O próprio STJ já se manifestou a respeito ao emitir a Súmula 228181 e a doutrina ainda arraigada ao modelo de propriedade emitido pelo Código Napoleão, permanece repetindo os velhos bordões baseados do ser pelo ser. Os argumentos frequentemente utilizados baseam-se na opção da legislação pela teoria da posse de Ihering, que afirma ser a posse o modo pelo qual o proprietário exerce de fato sua propriedade. Em outras palavras, a posse das coisas é a exteriorização ou visibilidade da propriedade. A partir daí, pressupõe os defensores daquela impossibilidade, ser evidente que os interditos não se prestam para a proteção dos direitos pessoais, nem a dos bens incorpóreos, posto que sejam desprovidos da visibilidade e da exterioridade182. A partir desse pressuposto, os argumentos se repetem na tentativa de explicar que a posse pressupõe um fato físico, o exercício material do direito, ou ainda 181 182 STJ. Súmula 228. É inadmissível o interdito proibitório para a proteção do direito autoral. PINHEIRO, Waldemar Álvaro. Da proteção possessória dos bens imateriais... pág. 19. porque em relação aos direitos pessoais não se concebe a possibilidade de violência ou perturbações físicas que careçam do remédio dos interditos183. A análise econômica do direito e a propriedade A análise econômica do Direito critica a pesquisa legal tradicional sobre a propriedade e estabelece como objetivos básicos quatro questões a serem respondidas: 1 – como se estabelecem os direitos de propriedade 2 – o que pode ser objeto de propriedade privada 3 – como os donos podem proceder com sua propriedade 4 – que remédios existem para a violação dos direitos de propriedade184. A idéia central em análise é o princípio do direito de propriedade. Para a análise econômica do Direito, o direito de propriedade está contido no contrato social que foi estabelecido entre governantes e governados e pelo qual se assegura a estes tal direito185. Cooter e Ulen desenvolvem uma interessante visão da propriedade a partir do estado da natureza no qual não há um governo civil e somente a força militar estabelece os direitos de propriedade. Este estado corresponde ao valor de ameaça de uma solução não cooperativa entre os componentes do grupo social, ou seja, o valor mínimo pelo qual uma pessoa mantém o seu bem ou aceita dispor dele. As partes interessadas na preservação da propriedade entram em discussão sobre as vantagens de criar um governo que reconheça e faça respeitar os direitos de propriedade. A sociedade civil, onde exista tal governo, corresponde à solução cooperativa do jogo, que prevalece se as partes se colocam de acordo. O excedente social (Es), definido como a diferença existente entre a soma total gasta em defender a terra no estado da natureza (Σ gastos individuais) 183 e o custo total da Citando Lafayette, PINHEIRO, Waldemar Álvaro. Da proteção possessória dos bens imateriais... pág. 20. 184 185 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y economia... pág.103. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y economia... pág.110. operação de um sistema de direitos de propriedade na sociedade civil (Σ gastos totais)/nº de indivíduos) corresponde ao excedente cooperativo em jogo (Ec)186. A ação de proteger a propriedade em sociedade somente será tomada se o benefício for superior ao custo, ou seja, onde houver um excedente social (Es) positivo, que ocorrerá quando: Σ gastos individuais < Σ gastos totais/nº de indivíduos Nesse caso, o incentivo da propriedade será em direção à cooperação com o governo. No caso contrário, onde prevalece a desordem estatal e a insegurança jurídica, os proprietários terão que investir de forma privada para assegurar seus direitos e os incentivos serão no sentido de derrubar o governo, quando o excedente social (Es) for negativo, o que ocorrerá quando: Σ gastos individuais > Σ gastos totais/nº de indivíduos Resumindo: é mais barato todos pagarem um governo comum para que garanta os direitos de propriedade de todos do que cada um proteger por si, os seus direitos. Obviamente, nem a instituição da propriedade como direito, nem o governo como instituição podem ser explicados pela leitura literal dessa visão econômica e nem o autor concorda com essa leitura, mas o processo mental econômico se encontra latente o tempo todo nos grupos sociais187. De fato, nos seus aspectos gerais, a leitura da instituição, tanto do Estado como da propriedade, é próxima daquela manifestada pelos contratualistas, tais como Hobbes, Locke e Rousseau, bem como de Marx e Engels. 186 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y economia... pág.110/1. Numa interação interessante com essa dinâmica, as teorias antropológicas afirmam que o aparecimento do homem moderno somente foi possível a partir da formação cultural e isso se deu como efeito colateral da necessidade de cooperação entre os indivíduos, com vistas à segurança individual. 187 A teoria econômica da propriedade utiliza da mesma teoria da negociação para demonstrar a sua tese. Assim, ao negociar em conjunto, os indivíduos concordam com freqüência na interação e na cooperação. Entretanto, em algumas situações, a interação e a cooperação se impõem aos indivíduos, por exemplo, pela força da lei188. Considerações finais A princípio, pode-se afirmar que a proteção dispensada ao bem jurídico informação e às faculdades legítimas concedidas para sua utilização em tudo se assemelha à proteção e utilização das coisas que estejam sob o jugo do direito de propriedade. Conforme vimos até aqui, parece demonstrado que a cultura e a história foram (e talvez ainda continuem sendo) muito mais donas do desenvolvimento da Ciência Jurídica e de seus institutos do que propriamente a racionalidade e os processos de argumentação metodicamente construídos que deveriam orientá-la. O Direito é uma ciência social aplicada e, como tal, é fortemente influenciada pelos outros acontecimentos sociais e culturais que lhes são contemporâneos. O desenvolvimento do idioma, as associações de idéias, as preferências dos legisladores e as conturbações sociais tiveram influência sobre o direito privado muito maior do transparece no estudo da doutrina atual. Ao proprietário da informação são garantidas as faculdades de usar, gozar e dispor dela, bem como impedir a sua utilização por terceiros, mesmo depois de conhecida. A sua posse pode ser transferida ou cedida por tempo determinado ou para devido fim. A detenção do bem incorpóreo informação é possível pois, uma vez dado conhecimento a terceiro da informação que se encontra sob a tutela dos direitos intelectuais ou sobre a qual recaia uma cláusula contratual de sigilo, aquele que detém a informação não tem poder efetivo sobre ela, não pode dela se servir, 188 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y economia... pág.113. apenas dela toma conhecimento e a utiliza conforme as determinações do possuidor ou do proprietário. A tutela do bem jurídico informação transita desde a relação jurídica propriamente dita até as situações jurídicas onde a relação jurídica não existe189. Nos casos onde há a relação jurídica encontram-se claras as posições credoras e devedoras correspondentes a direitos e deveres correlatos. São de caráter privado e patrimonial e mostram um verdadeiro vínculo obrigacional. Nas situações jurídicas sem a constatação de uma relação jurídica, não se distingue um dever jurídico específico além do dever geral de não lesar a ninguém – neminem laedere190. Da mesma forma, a tutela à informação pode apresentar-se em determinadas circunstâncias como direito subjetivo igual a propriedade, já que origina pretensões negativas e positivas, como no caso da informação, protegidas pelas leis pertinentes aos direitos autorais. As diferenças entre bens jurídicos e coisas, assim como as várias classificações que recaem sobre o conceito, não são suficientes para inviabilizar uma ou outra forma de utilização ou de proteção. Ao ultrapassarmos a doutrina mecanicista e estruturada dos direitos e alcançarmos as idéias mais relativistas, pragmáticas e funcionais, passamos a enxergar uma variedade de novas possibilidades jurídicas. Essas novidades vêm ao encontro das necessidades de uma sociedade mais e mais complexa, onde as relações sociais se multiplicam pela proximidade das pessoas e pela variedade de novos direitos. Já a propriedade era na sua origem, conforme vimos, universalista. Abarcava bens corpóreos e incorpóreos, materiais e imateriais, e foi, por uma situação política específica, reduzida aos bens corpóreos. Mesmo sem uma justificativa que sustentasse essa mudança, permaneceu e foi transmitida a todos aqueles países que se inspiraram no Código Civil francês de 1804, como tal. 189 190 Com base na concepção objetivista da relação jurídica. GOMES, Orlando. Introdução do direito civil... pág. 103. PARTE ESPECIAL INTRODUÇÃO – AS DIVERSAS ABORDAGENS DA INFORMAÇÃO As abordagens da informação e suas classificações Numa tentativa de análise da informação, podemos dividi-la inicialmente em três versões de abordagem que, embora diversas em suas características extrajurídicas, apresentam problemas a serem resolvidos pelo Direito. A primeira abordagem seria uma abordagem política e trata a informação como bem de importância para o desenvolvimento do país. Nessa versão, as classificações que importam são as informações de domínio público e de domínio privado. Uma segunda abordagem é a informação sob o aspecto econômico, onde se enfoca o custo de produção da informação e o valor pessoal e social da sua comunicação. Sob esse aspecto, também se estuda a formação da informação, o incentivo à sua produção, a sua proteção justa, as eficiências dinâmicas e estáticas e a concorrência desleal. Por fim, a terceira abordagem é a informação sob o aspecto jurídico, onde o interesse se encontra na determinação de sua condição de bem jurídico e sua proteção legal. Em que pese podermos promover essas diferentes abordagens (e outras não estão excluídas como, por exemplo, uma abordagem sociológica) isso se presta quase exclusivamente para os fins teóricos dessa monografia e, quiçá, com finalidade didática. É praticamente impossível abordamos uma informação no mundo real somente sob uma das versões de abordagem descritas acima. Essa classificação analítica se presta somente para compreendermos a conveniência de se proteger os direitos de informações e em que circunstâncias. Essa conveniência varia significativamente de acordo com o tipo de informação e a forma de análise. Informação como fator de desenvolvimento – abordagem política O economista Joseph Stiglitz tratou da importância da informação no desenvolvimento dos países. Como vice-presidente e economista-chefe do Banco Mundial no período 1997-2000, Stiglitz estudou a informação como veículo indutor essencial do desenvolvimento, bem como a dinâmica da informação em questões como a indústria farmacêutica, a pesquisa e o conhecimento básico e a proteção intelectual em geral191. A relevância econômica e jurídica da informação é ligada principalmente à sua disponibilidade em um determinado lugar ou em um determinado momento. A informação não transmitida ou não utilizada é estéril e não acrescenta bem-estar à sociedade. A despeito da proteção e do valor que uma informação útil deve ter para que possamos obter um certo grau de eficiência estática, é economicamente mais interessante que o máximo possível de informação seja gerada e tornada pública a fim de atingir uma eficiência dinâmica máxima, essa sim, com potencial de gerar um maior bem-estar social. Seguindo esse raciocínio, pelo papel fundamental que desempenha no desenvolvimento das nações, o conhecimento deveria ser um bem público e global, se não na sua totalidade pelo menos na sua maior parte. Stiglitz classifica alguns outros bens como sendo bens globais públicos, como: a) a estabilidade econômica internacional; b) a segurança internacional (estabilidade política); c) o meio ambiente internacional; d) a assistência humanitária internacional; e finalmente, mas não menos importante, e) o conhecimento192. Para o autor, a globalização implica, além do aumento do fluxo de bens e serviços, capitais e mão-de-obra, e num aspecto bastante mais positivo, um aumento do fluxo internacional de idéias e conhecimento, do compartilhamento de culturas, de uma sociedade civil global e do movimento ambiental mundial193. Na visão alternativa de desenvolvimento de Stiglitz, em oposição àquela praticada pelo 191 STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo. STIGLITZ, Joseph E. Kowledge as a global public good… pág. 310. 193 STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo... pág. 62. 192 Consenso de Washington194, os governos devem ter um papel mais ativo tanto na promoção do desenvolvimento como na proteção aos pobres195. O que separa os países mais desenvolvidos dos outros não é apenas uma distância em recursos, mas um abismo em conhecimento, motivo pelo qual os investimentos em educação e tecnologia – em larga medida, do governo – são tão importantes196. Foi o que aconteceu na assinatura dos acordos da Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio – GATT-OMC – em 15 de abril de 1994, na cidade de Marrakesh, no Marrocos. Especial atenção é dada ao Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS197 - que atendeu aos interesses dos Estados Unidos e demais países tecnologicamente avançados, a fim de forçar os outros países a reconhecer suas patentes e direitos autorais. O ponto argumentativo forte desses países é que a apropriação do conhecimento através das patentes e dos direitos autorais estimularia a inovação198, com a conseqüente busca, pelas empresas, de novas tecnologias e novos produtos, sabendo que, uma vez alcançados, receberiam o retorno financeiro devido pela sua ousadia e seu risco. O resultado prático e imediato da assinatura do acordo foi o impedimento de empresas locais reproduzirem produtos para os quais não possuíam patentes, notadamente os medicamentos. Particularmente em uma área da saúde, a do combate a SIDA – AIDS, esse resultado foi desastroso, já que a doença é nova, fatal e atinge principalmente pessoas com pouca informação sobre a prevenção, o que significa, na maioria dos casos, habitantes de países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento. Por serem criações novas, os laboratórios conseguiram as patentes que desejaram e impuseram ao restante do mundo o seu preço. 194 Consenso de Washington é como ficou conhecida a visão de economia política preconizada por um consenso formada pelo Fundo Monetário Internacional – FMI – situado na Rua 19 da capital americana, o Banco Mundial, situado na Rua 18 e o Tesouro americano, na Rua 15. Pregavam fundamentalmente a liberação do comércio e do mercado de capitais de forma mais ampla possível, a diminuição de escala do governo (também conhecido como governo mínimo), a desregulamentação (implementação no mercado da mão invisível de Adam Smith), liberalização e privatização rápidas. STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo... pág. 79. 195 STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo... pág. 92. 196 STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo... pág. 93 197 TRIPS – Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights O resultado mediato, a médio e longo prazo, será a submissão das nações em desenvolvimento, ou subdesenvolvidas, a uma dependência cada vez mais aprofundada da produção intelectual das nações mais avançadas, suportando os royalties e os sobre-preços praticados pelo monopólio para sustentar a pesquisa nessas mesmas nações, num ciclo vicioso de conseqüências negativas para a maioria e positivas somente para poucas nações. Uma alternativa ao sistema de direitos de propriedade na informação é o Estado oferecer uma recompensa para os criadores da informação e torná-la disponível para todos que a queiram. O principal problema desse sistema é que o Estado necessita de informações sobre o valor das inovações para determinar a recompensa. Num sistema assemelhado, o Estado pode fornecer incentivos financeiros (do tipo bolsas) ou subsídios para a pesquisa. Em pelo menos dois tipos de pesquisa essa forma de incentivos é vital: na pesquisa básica, pelos altos valores que implicam, e na pesquisa sem valor comercial direto evidente199, como é o caso de boa parte das pesquisas nas áreas das Ciências Humanas. Abordagem econômica da informação Na sua abordagem econômica, Kaplow e Shavell200 dividem a informação conforme o custo de obtê-la e o seu valor privado e social. O primeiro tipo de informação [1] é aquela que se usa somente uma vez como, por exemplo, a informação sobre a existência de petróleo em uma determinada porção de terra. Alguém que possua essa informação pode utilizá-la e, uma vez que o faça, ela se torna sem valor para os outros. Se a pessoa não pode usar a informação ela pode negociá-la diretamente com quem possa explorar o petróleo. Os autores observam que, dando o direito de propriedade à informação, não haverá redução indesejável do seu uso mesmo quando o uso ótimo dela for de somente uma vez. Legalmente, não há proteção para esse tipo de informação. Um segundo tipo [2] é a informação que é relevante para os preços do mercado futuro. Aqui, o valor privado e social de se ganhar com essa informação pode divergir. O valor social dessa informação está 198 199 STIGLITZ, Joseph E. Globalização – Como dar certo... pag. 194 KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. Economic analysis of law... pág.1699/1700. em qualquer mudança benéfica no comportamento que ela possa trazer, mas que seja uma mudança não-financeira. O lucro que uma pessoa com informação privilegiada possa auferir pode facilmente exceder seu valor social. Como exemplo, alguém que saiba antecipadamente da diminuição da produção mundial de determinada commodity pode alterar seu comportamento no sentido de procurar, precocemente, algum substituto para ela – ganho social; ou então especular no mercado futuro, sabendo de antemão da sua valorização – ganho privado. A lei não desencoraja a aquisição desse tipo de informação e a sua comunicação ao público, nem que ela seja utilizada individualmente, exceto quando envolve as chamadas pessoas internas das empresas (insiders) que podem fazer uso de informações privilegiadas para ganho próprio, na maioria dos casos com conflito de interesses. O último tipo [3] é a informação de natureza pessoal. O custo de se adquirir essa informação é a bisbilhotice, embora às vezes ela seja adquirida gratuitamente. A comunicação dessas informações para o mundo exterior provoca, geralmente, inutilidades para as pessoas expostas e utilidade para os outros. Ela pode afetar o comportamento de uma pessoa, pela expectativa de alguém estar bisbilhotando, e ser dissuadido de comportamentos socialmente indesejáveis, mesmo que lícitos, mas embaraçosos, se forem publicados. Esse esforço para esconder um determinado comportamento é dispendioso e, por isso, a aquisição e a revelação de dados pessoais são socialmente indesejáveis. A lei penaliza a chantagem e tenta desanimar o lucro com a aquisição de informação pessoal201. Apesar disso, a lei concebe direitos de propriedade a uma pessoa que queira vender informações pessoais e uma revista ou jornal. A informação na vida jurídica privada Na vida jurídica privada é que a informação encontra a maior dispersão da sua classificação. Inicialmente podemos distinguir dois tipos fundamentais e diversos de informação: [1] aquela com valor patrimonial e [2] aquela sem valor patrimonial evidente. 200 201 KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. Economic analysis of law... pág.1700/1702. Art. 158 e 160 do Código Penal brasileiro – Decreto-Lei nº2.848, de 7 de dezembro de 1940. Dentre aquelas com valor patrimonial, podemos distinguir a participação da informação na vida negocial privada desempenhando três papéis diversos. Primeiramente [a] a informação, sem ser ela própria o objeto do contrato ou mesmo uma obrigação acessória, pode desempenhar papel de importância na conformação contratual. Na fase pré-contratual, a informação pode se apresentar como o elemento que aperfeiçoa a autonomia privada, ajudando as partes na compreensão do contrato e de suas prestações, mas sem tomar parte do objeto da prestação propriamente dito. Na fase per-contratual, as informações privadas adquirem os contornos jurídicos pertinentes ao princípio da boa-fé contratual e da confiança, dependendo dos deveres das partes exigidas pelo tipo contratual. A informação pode também [b] representar o papel de uma obrigação acessória à principal, como no período pré-contratual ou pós-contratual, onde ocorrem as obrigações acessórias de sigilo sobre as informações a que uma das partes teve acesso em vista do negócio feito ou das suas tratativas. Como obrigação acessória, a informação pode aparecer tanto como acessório de uma prestação de serviço, como de um direito real ou pessoal relativo ao gozo de uma coisa. Por fim, [c] a informação pode ser o objeto da prestação, ou seja, uma obrigação do devedor de dar coisa certa e cujo bem jurídico se trata de uma informação coletada. O conteúdo da obrigação se esgota com a sua entrega, nas condições avençadas. As informações com valor jurídico privado, mas sem valor patrimonial, são aquelas ligadas aos direitos de personalidade, especialmente as que dizem respeito à privacidade e a intimidade do indivíduo. A informação na vida jurídica pública As democracias modernas se baseiam no princípio da transparência das ações públicas. A imprensa livre se tornou uma aliada da visibilidade dos agentes públicos, levando ao cidadão, às vezes em tempo real, os acontecimentos da vida política nacional, permitindo maior envolvimento e maior conhecimento dos fatos de interesse nacional. Contudo, o Direito também tem reconhecido historicamente a necessidade de manter certos tipos de informação sob sigilo202. Esse sigilo é, em muitos casos, essencial ao bom desempenho das ações estatais. Os governantes devem trabalhar com informações em quantidade e qualidade condizentes com as decisões que serão tomadas. Estabelece-se, então, uma tensão entre essa necessidade do Estado e o princípio da transparência da democracia, produzindo um embate de doutrina e circunstância com interesse para o Direito. Não menos importante é o embate entre o direito de livre imprensa e os interesses pessoais na preservação da intimidade e privacidade. 202 CROSS, John T. Trade secrets, confidential information, and the criminal law... pág. 525. CAPÍTULO 1 - O VALOR INTRÍNSECO DA INFORMAÇÃO Breve introdução do interesse da Economia e do Direito A economia se interessa, há muito, pela informação, e esse interesse aborda o assunto sob dois aspectos principais. Numa primeira abordagem, a economia trata da proteção dos trabalhos intelectuais, justificando uma política racional de proteção aos direitos intelectuais como forma de incentivo a novos conhecimentos. O grande interesse econômico na proteção da informação é que, na verdade, a informação é mais um insumo, um elemento participante da cadeia de produção e, por isso, tem valor econômico. Os estudos em economia demonstraram que determinadas informações deveriam ser protegidas pelo Direito, pelo motivo de que essa proteção, quando legalmente instituída e levada em termos racionais, iria desencadear uma sucessão de novas idéias e novos inventos203. Dessa forma, aquele inventor que inovasse em algo, que criasse novo produto ou novo processo de produção poderia usufruir dos ganhos auferidos pela sua nova idéia durante determinado prazo. As empresas atuantes no mercado passaram, então, a considerar a informação como um insumo, um elemento necessário ao desenvolvimento da atividade empresarial, de forma similar a todos os outros insumos utilizados na consecução do seu produto final, na determinação de sua qualidade e na identificação de seu diferencial de mercado. Há, nessa primeira visão, uma perspectiva de análise da informação por ela mesma, representada pela informação em si, na sua forma intrínseca, ou seja, o valor da informação é o valor do seu conteúdo e da utilidade prática que ela proporciona. A informação, sob essa visão econômica, se assemelha ao bem jurídico puro, desvinculado de outros direitos principais ou subjacentes, algo que detém um valor intrínseco, nesse caso, um valor econômico manifestado pela sua utilização em processos de indústria, empresa ou comércio. Evidentemente essa é uma possibilidade de estudo teórica já que, na prática, toda informação que possui um valor econômico acaba por se tornar um bem jurídico vinculado a um direito. 203 STIGLITZ, Joseph E. Knowledge as a global public good… passim. Numa segunda abordagem da economia, diversa da primeira, mas também importante, a informação é considerada como uma das partes essenciais na composição de um mercado perfeito, através da utilização igualitária entre as partes componentes de um contrato. É nesse aspecto que se concentra a atenção de todo um novo ramo da economia – a economia da informação – como um aspecto fundamental das relações contratuais – vista individualmente – e de um mercado perfeito – vista no seu conjunto. Sob esse aspecto, o papel da informação pode ser aproximado ao da obrigação acessória e é possível que não existam diferenças. Os modelos e teorias econômicas mais antigos, notadamente aqueles de micro-economia, supunham que o mercado se comportaria de forma uniforme e consciente para que eles fossem plenamente aplicáveis. Assim, é comum economistas teorizarem que o consumidor preferirá o produto ‘a’ ao produto ‘b’ por ser aquele pouco mais caro, mas de muito melhor qualidade. Não consideravam que, para que essa decisão fosse de fato tomada, os consumidores deveriam saber dessa informação. Entrou em cena, então, a propaganda e o marketing como tentativa de diminuir esse desnível de informações entre as partes contratantes. Como exemplo da aplicação da informação nos contratos são as revendas de carros usados, onde o vendedor possui mais experiência e maiores informações sobre o objeto do contrato do que um eventual comprador. Essa assimetria de informações, por si só, é capaz de gerar uma situação de hipossuficiência contratual do comprador e o expõe à possibilidade de pagar mais do que o carro realmente vale, quebrando a característica sinalagmática perfeita desse tipo de contrato. Para a economia, quando esse quadro de desequilíbrio aparece, o vendedor passa a deter todo o poder de barganha e é uma forma anômala de comportamento, posto que se perde a racionalidade exigida nas decisões do consumidor, afetando o equilíbrio contratual. Isso enfraquece a aplicação plena das teorias microeconômicas. Essa mesma circunstância representa para o direito uma quebra do princípio do equilíbrio contratual que corresponde a expressão sinônima do princípio do sinalagma e que leva à admissão, especialmente, de duas figuras, a lesão e a excessiva onerosidade204. A informação possui então um valor participante e seu grau de importância varia conforme o caso concreto. Noutros tipos e modelos contratuais o problema da assimetria de conhecimentos também aparece. Por outro viés, mas apreciando as mesmas situações, o direito já estabeleceu institutos que visem proteger a parte contratual na qual é falha ou deficiente o correto esclarecimento sobre todas as circunstâncias e implicações do contrato. É o que se vê nos institutos do erro e do vício do negócio jurídico. Nessas situações, a informação não tem valor econômico intrínseco, mas possui valor econômico e jurídico pela parte contratante que a detém e a utiliza em negociações e transações. 204 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado... pág.116. CAPÍTULO 2 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO I – A INFORMAÇÃO COMO FATOR DETERMINANTE NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Introdução Eventualmente, a informação pode se apresentar não como um bem jurídico em si, objeto de uma obrigação, mas como fator determinante em outros negócios jurídicos que não a envolva como o objeto do contrato. A informação é especialmente importante no escopo e na formação dos contratos bilaterais onde se pressupõe que haja um equilíbrio entre as prestações dadas e as recebidas. Pontualmente, a doutrina, as leis infraconstitucionais e a jurisprudência brasileira já se preocuparam com o assunto205. A informação assim considerada incide na compreensão e avaliação, pelas partes, das prestações e de seus objetos e no quantum a ser despendido e a ser recebido. Consequentemente, a informação equilibrada influencia diretamente na qualidade do contrato sinalagmático, na sua função social de transferir riqueza com segurança206. A utilização de informação assimétrica ou informação privilegiada207 tem influência direta nos contratos, especialmente nos contratos de consumo, de compra e venda de coisa usada, no contrato imobiliário e mobiliário, onde a maior informação de uma das partes pode levá-lo a obter vantagem indevida na negociação. Clara também é sua aplicação nos mercados de valores mobiliários, das commodities, bolsa de futuros e outras atividades financeiras de cunho especulativo. Nesses casos, as informações privilegiadas levam a um ganho maior daqueles que a detinham antes de se tornarem públicas. As pesquisa da Economia sobre a informação nos levam a repensar as relações sociais que foram demonstradas a partir dos seus resultados. Claro fica que, em decorrência de uma assimetria de informações, a relação sócio-jurídica fica 205 Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90 – artigos 4º, caput e inciso III; 6º, III; 8º; 9º; 31; 46 e 54, §3º. 206 Art. 421 – CCB - 2002 eivada de vícios negociais ou erros em relação à coisa. Uma empresa que fornece um plano de saúde pode adquirir vantagem negocial e se beneficiar em muito se souber de antemão sobre a tendência de determinada população, família ou pessoa natural, a desenvolver determinada patologia. O preço negociado para aquele grupo será aumentado ou, de forma mais radical, eles serão excluídos de qualquer contrato. Em sentido oposto, a parte que oculta uma doença já existente no momento da contratação, induz a empresa prestadora a um erro substancial208. Informação como custo de transação O que entendemos hoje por custo de transação é um conceito ampliado a partir do trabalho de Coase209, para quem esse era o custo nascido pelo uso do mecanismo de preços, ou seja, é o custo que cada agente econômico suporta somente para fazer parte do mercado. Numa visão mais ampla, custos de transação são todos aqueles custos incorporados por terceiros em uma transação econômica ou, entendido ainda por uma outra face, é todo custo necessário para movimentar o sistema econômico e social. Representam custos de transação todo aquele dispêndio que a parte tem e que não está ligado à produção e venda do bem, mas que aparecem como gastos extras na medida que as partes devem se relacionar. São eles, v.g., o custo de contratar um advogado para fazer um contrato bem feito ou de acionar a Justiça para que se cumpra o contrato são custos de transação. Nesse aspecto, as informações representam um papel importante. São exemplos diuturnos as consultas que o comércio varejista faz ao SERASA ou SPC cada vez que aceita o cheque de um cliente. Isso representa um custo de transação. Da mesma forma, a definição e o conhecimento sobre a definição de um direito podem se constituir em vantagem negocial. A importância da informação nos 207 Segundo Krugman & Wells os termos se equivalem. KRUGMAN, Paul; WELLS, Robin. Introdução à economia... pág. 386. 208 Art. 139, I, CCB – 2002. 209 COASE, Ronald. La naturaleza de la empresa... pág. 560-561. negócios jurídicos é o de proporcionar às partes a determinação dos direitos de propriedade de cada um e a diminuição da incerteza e dos custos de transação. Informação assimétrica Na história mais recente da relação da economia com a informação, e que diz respeito também ao direito dos contratos, estão os estudos feitos por economistas ingleses e americanos, tais como James Mirrless e William Vickrey, que demonstraram a importância, para a teoria econômica, da informação assimétrica. Ocorrerá assimetria de informações toda vez que certos agentes econômicos detêm mais informações do que outros com quem interagem. Como exemplos dessa importância, a presença de grupos que, na sociedade, detêm mais informações que outros e podem usá-las estrategicamente, provocando distorções no mercado210. As relações de consumo possuem essas características, de um lado, fabricantes e fornecedores e do outro, os consumidores. O estudo da informação assimétrica tem ampla aplicação e importância para o direito, seja na melhor compreensão dos contratos, das relações entre consumidores e na propaganda. Além desses, nas questões pertinentes aos seguros, as informações genéticas e ao uso de informações privilegiadas. 210 PINHO, Diva Benevides; VASCONCELOS, Marco Antônio Sandoval de (org). Manual de economia... pág.25 CAPÍTULO 3 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO II – INFORMAÇÃO COMO DEVER JURÍDICO E OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA Introdução e abordagem Bastante diverso daquele pretenso direito à informação como sucedâneo da liberdade de expressão e de discurso é o direito à informação que pode ser exigido daquele que tem o dever legal de informar, resultado de uma situação jurídica compreendida como elemento essencial do contrato. Pode-se distinguir dois conjuntos de contratos onde o elemento informação faz parte da prestação. Num primeiro tipo, [1] a informação é a própria prestação a ser cumprida pelo devedor, como na relação comum entre médico e paciente211, na análise de risco de investimentos financeiros e no fornecimento da informaçãonotícia. Essa prestação tem características próprias que serão discutidas no capítulo seguinte. Noutro conjunto, [2] situam-se as situações jurídicas, onde a informação não é, per si, o objeto da prestação mas, pela interpretação que se faz dos princípios contratuais, das relações sociais, dos deveres expressos na lei, a da natureza do contrato podem se tornar parte componente da prestação ou ser caracterizado como um dever jurídico. Essa abordagem da informação em relação à obrigação civil não difere daquela análise econômica onde se perquire a existência de uma parte hipossuficiente em informações (assimetria de informações). A análise econômica da informação nos permitiu compreender o mecanismo de formação de um dano a partir do desnível de informação entre as partes. Em ambas as abordagens, o desequilíbrio de informações entre as partes acarreta distorções indesejáveis de mercado, sendo que na abordagem obrigacional o que se procura é a demonstração de que houve uma manifestação errônea da vontade. A informação assimétrica afeta a autonomia privada. Ao se pretender o fornecimento correto de informações, procura-se proteger o equilíbrio contratual, a boa-fé contratual e a confiança entre as partes, com efeitos jurídicos próprios. Pela abordagem agora traçada, a da informação como parte componente da prestação, será importante perceber quais são os deveres que estão envolvidos em cada uma das relações jurídicas, especialmente os tipos contratuais, e saber diferenciar: [1] os contratos onde um interesse próprio é defendido (uma compra e venda, por exemplo) e algumas informações não podem ser reveladas, sem que isso seja motivo de nulidade ou anulabilidade do negócio. [2] Os contratos onde há um interesse alheio importante, mas a informação não é o objeto da prestação e sim uma obrigação de caráter acessório (contratos de consumo). [3] As relações jurídicas cujo objeto da prestação é uma informação e o interesse alheio deva ser protegido (tratamento médico), levando-se em conta a confiança depositada por uma parte no comportamento da outra. E por fim [4] as situações jurídicas onde, mesmo não sendo o objeto primário da obrigação, a informação assume, por força legal ou da interpretação extensiva do princípio da boa-fé, maior relevância, a ponto de, se não prestada adequadamente, configurar essa omissão num inadimplemento absoluto (como no direito do consumidor em relação à propaganda). Natureza do dever de informar O dever de informar consiste na comunicação de uma declaração de ciência, encontrando-se em indicações, atos de proteção, como o dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda, de cooperação e de assistência212. Nesse conjunto também se encontram os conselhos e as recomendações que variam em sua natureza jurídica conforme o caso concreto. O dever de esclarecimento dirige-se ao outro participante da relação jurídica para tornar clara certa circunstância de que o ‘alter’ tem conhecimento imperfeito, ou errôneo, ou ainda ignora totalmente. 211 Dizemos comum aquela circunstância que não envolve outro ato médico mais complexo, como uma cirurgia, por exemplo, mas apenas a detecção do diagnóstico e a prescrição das ações ou omissões que tem como objetivo a cura do paciente. 212 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo... pág. 113. Importância, aplicação e conteúdo O fundamento da exigência do dever de informar está vinculado ao principio da boa-fé e à proteção e segurança do tráfico negocial213. No que diz respeito às relações de consumo, esse fundamento se encontra no fato de poder a coisa vendida causar, ao adquirente, um dano214. A afirmativa deixa claro que o dever de informar visa evitar um gravame, uma diminuição pessoal ou patrimonial do credor da informação, bem como identificar o dano, estipular a responsabilidade e distribuir solidariamente o ônus pelo descumprimento do dever. Essa medida não seria necessária naquelas relações sociais e econômicas simples, em que predominam operações contratuais compostas de parte e contraparte gerando obrigações claras e bem definidas. A crescente complexidade das relações obrigacionais levou, conforme observa Frada, em grande medida, à individualização de vínculos de comportamento que não se confundem com as prestações convencionadas215. A força das mudanças sociais e econômicas se faz sentir no Direito. Os contratos de fornecimento envolvem inúmeras partes, cada uma desempenhando um papel cada vez mais restrito, no qual se especializou, e no mais fiel desempenho, em escala global, de um moderno fordismo-taylorismo. O comerciante recebe, por um transportador independente, um produto ‘x’, processado, que foi retirado de um atacadista, adquirido da importadora, e que foi produzido em sistema de integração vertical entre vários micro-produtores no seu país de origem. Essa é a teia fractal da economia moderna. Para um consumidor, destino último de toda essa cadeia produtiva, quedaria impossível a identificação do autor de um eventual dano que viesse a sofrer em decorrência do consumo do produto ‘x’216. Essa nova estrutura econômica alterou a concepção de situação jurídica obrigacional para além daquele dualismo, daquela dupla de ação e reação que a teoria da relação jurídica baseada em Savigny nos fornecia: um credor, um devedor e um bem. Retornando a Frada, a relação jurídica atual alberga no seu seio, sem prejuízo de sua unidade, uma pluralidade de elementos autonomizáveis, 213 Art. 421 e 422 – CCB. FRADERA, Vera Maria Jacob de. O dever de informar do fabricante... pág. 53. 215 FRADA. Manuel A. Carneiro da. Contrato e deveres de proteção... pág. 36. 216 Nesse sentido, a determinação do arts. 13 e 34 do CDC (Lei 8.078/99). 214 constituindo, por isso, uma realidade complexa. Esses elementos estão polarizados em torno de uma ou mais prestações que definem a sua configuração típica, que o autor chama de deveres principais ou primários de prestação217. No caso do vício redibitório, o fornecimento ou não da informação é insignificante para o ressarcimento legal dos valores pagos acrescidos das despesas de contrato (custos de transação) por parte do alienante. Uma punição por perdas e danos somente poderá ser exigida se o alienante tinha conhecimento do vício e não informou ao adquirente218. Classificação da obrigação não-principal de informação Para Clóvis do Couto e Silva, o dever de informar situa-se como um dever secundário ou anexo, desenvolvido na teoria contratual através da doutrina alemã do Nebenpflicht, isto é, da existência de deveres acessórios ao da prestação contratual principal, deveres instrumentais ao bom desempenho da obrigação, oriundos do princípio da boa-fé. São também chamados de deveres anexos e encontram-se presentes em alguns artigos, relacionados com a culpa219. A particularidade mais importante de algumas obrigações anexas é a de perdurarem ainda, mesmo depois do adimplemento da obrigação principal. Os deveres secundários comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica. Assim, podem ser examinados durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal. Dessa particularidade nasce uma subdivisão em deveres dependentes e independentes, uma vez que se percebe que muitos deles são susceptíveis de ultrapassar o término da obrigação principal, tendo assim, vida própria, e de serem acionados sem com isso acarretar o desfazimento da obrigação principal. A esses se dá a denominação de deveres anexos independentes220. Por serem independentes os deveres, assim também se comportarão em relação à obrigação principal, 217 FRADA. Manuel A. Carneiro da. Contrato e deveres de proteção... pág. 36/7. Art. 443 – CCB-2002 219 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo... pág. 111-119. 220 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo... pág. 113 e 118. 218 inclusive, em alguns casos, em relação ao nascimento da obrigação221. Mas são uma exceção. Na maioria dos casos segue-se a regra geral: a obrigação acessória não é susceptível de ser acionada por conta própria222, mas encontra-se vinculada existencialmente à obrigação principal. Conselhos e recomendações O Código Civil brasileiro não dispôs sobre os conselhos e as recomendações e ambos são tipos de fornecimento de informações, muitas vezes podendo configurar como conteúdo do objeto de uma relação contratual própria, como é o caso do tratamento de saúde ou das análises de risco de investimento. Nestes casos, o conselho e a recomendação são obrigações principais e sua natureza jurídica difere daquela informação que é uma obrigação acessória, bem como será diverso também o seu regime. Como obrigação principal, o devedor se desonera fornecendo as informações solicitadas com competência e nos limites subjetivos e objetivos das circunstâncias, que ajudarão aquele que as recebe (credor) a decidir sobre atos futuros, assumindo eventuais riscos pela sua conduta. Conforme visto, o adimplemento é a entrega material da informação, a comunicação do conhecimento. Uma vez que tenha sido diligentemente cumprido, cabe ao credor utilizar-se ou não da informação recebida. O conselho ou recomendação possuem uma característica de mediana incerteza, por isso são assim denominados. Seu objetivo não é, a princípio, determinar matematicamente uma conduta do credor, como normalmente seria nos casos de prestações profissionais como o cálculo de engenharia, o projeto de arquitetura, o balanço contábil e a declaração de imposto de renda, classificados quase sempre como obrigações de resultado. O conselho deve, sim, indicar uma conduta provável, elucidando ao credor a conjuntura presente e futura. 221 Por exemplo, na obrigação de veracidade das informações ao consumidor afetando os interesses difusos, como os arts. 30 e 36 do CDC. Outros exemplos de deveres de informação independentes da relação principal são os deveres de sigilo em relação à atividade profissional nas áreas médica, jurídica e religiosa. 222 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo... pág. 119. O art. 485 do Código Civil português223 trás, no seu caput, uma expressa desoneração da responsabilização civil extracontratual pelos simples conselhos, mesmo aqueles dados com negligência. Havendo dever jurídico, legal ou contratual, pela informação, nascerá a obrigação de indenizar se o devedor agir com culpa ou dolo ou o fato for punível. O artigo do CCP foi inspirado no Código Civil alemão – BGB, que trás semelhante disposição a respeito dos conselhos224, claramente subdividindo a responsabilidade contratual da extracontratual. A informação nas relações de consumo Nas relações consumeristas regidas pelos novos princípios orientadores da transparência, da confiança, da boa-fé objetiva e da proteção integral ao consumidor, a informação passou a se apresentar no papel de elemento essencial na regulamentação dessas relações. A comunicação é a moeda de troca entre fornecedores e consumidores e por ela será feita a avaliação jurídica de desempenho dos comportamentos. As informações prestadas de forma legal e adequada colocarão o direito ao lado do fornecedor. Caso contrário, na falta desse dever indelével, todo o peso da responsabilidade jurídica recairá sobre ele225. Conforme ensina Marques226, na visão tradicional das relações de consumo, as informações acerca do bem ou produto e do contrato eram prestadas pelo empresário ou seu preposto, ainda na fase pré-contratual, não sendo vinculativa. Com o advento do CDC, uma nova visão dessas relações foi estabelecida. Ampliouse, por exemplo, a noção de oferta para vincular as informações prestadas227 àquelas levadas aos consumidores, ou seja, fazendo parte do contrato e não 223 CCP – Art. 485 (Conselhos, recomendações ou informações) – 1. Os simples conselhos, recomendações ou informações não responsabilizam quem os dá, ainda que haja negligência da sua parte. 2. A obrigação de indemnizar existe, porém, quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos, quando havia o dever jurídico de dar conselho, recomendação ou informação e se tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar, ou quando o procedimento do agente constitua facto punível. 224 BGB - §676 (Comunicação de um conselho) – Quem, a um outro, comunicar um conselho ou uma recomendação, não estará obrigado à indenização do dano resultante da observância do conselho ou da recomendação, sem prejuízo da responsabilização decorrente de uma relação contratual ou de um ato ilícito. 225 Art. 14 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. 226 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos do código de defesa do consumidor... pág. 319. 227 Art. 30 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. podendo, sem a conivência do adquirente, ser alteradas. Essa vinculação pode ser exigida conforme dispositivos do próprio CDC que dispõe sobre o descumprimento da obrigação de fazer, permitindo obter, no Judiciário, “resultado prático equivalente ao do adimplemento” da obrigação228. No sistema do CDC, o dever de informar assume proporções de dever básico, verdadeiro ônus imposto aos fornecedores, obrigação agora legal, cabendo aos órgãos de defesa do consumidor e dos tribunais determinar quais os aspectos objetivos relevantes a serem obrigatoriamente informados229. O dever de informar concentra-se, inicialmente, nas características do produto ou do serviço oferecido no mercado. O fornecimento de informações também deve ser preciso na embalagem e na apresentação do produto, assim como naquelas vias de informação que fazem parte da oferta, tais como os impressos e a publicidade. Esse fornecimento é um verdadeiro dever essencial, básico para a harmonia e transparência das relações de consumo e também todas as informações ali fornecidas são consideradas vinculativas230, além do que devem garantir a comunicação de informações a respeito da nocividade ou periculosidade do produto de forma adequada e ostensiva231. A informação falsa ou insuficiente será considerada como vício do produto, ficando o fornecedor obrigado a sanar o vício em 30 dias nos termos do art. 18 – CDC232. Em relação aos contratos, a informação ao consumidor deve ser prestada antecipadamente, devendo este tomar conhecimento antecipado do seu conteúdo, sob pena de anulabilidade233. A ausência da informação ou sua prestação deficiente não podem ser tomadas como lesão contratual, nos casos onde haja o aparecimento de uma prestação manifestamente desproporcional, nos termos do art. 157 – CCB. O não cumprimento 228 Art. 84 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Conforme o art. 31 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. 230 Art. 4º, 6º, III, 20, 30 e 31 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. 231 Art. 9º do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. 232 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos do código de defesa do consumidor... pág. 324. 229 da obrigação de informar, de acordo com o CDC, é conduta ilícita típica das relações de consumo, enquanto a lesão se aplica a todos os negócios jurídicos indiscriminadamente. A condição de inexperiência exigida para a lesão contratual234 deve ser comprovada, enquanto nas relações consumeristas existe a presunção de não haver sido cumprida a obrigação de informar, o que deve ser demonstrado de maneira diversa pelo devedor. Em ambos os casos, a prestação poderá ser reduzida235. Informações publicitárias O caráter informativo da publicidade pode ser visto em dois aspectos: [1] no primeiro aspecto, o jurídico, pode ser representado pela [1a] mera incitação ao contrato, ainda sem uma oferta, ou [1b] como uma proposta de contrato, com oferta do proponente aguardando a concordância da outra parte. No aspecto econômico, a publicidade visa diminuir a assimetria de informações entre as partes, melhorando, como conseqüência do nivelamento das informações entre as partes, o comportamento da seleção adversa por parte do consumidor. O CDC exige que a publicidade possa ser imediatamente identificada como tal236. Ocorre na imprensa, particularmente nos programas de revista televisivos e nas revistas semanais, especialmente aqueles destinados ao público leigo, a inserção de publicidade como matéria de reportagem. A substituição é sutil e o efeito é danoso. O consumidor, acostumado às falsas promessas contidas na publicidade, encara a apresentação de um novo produto ou serviço com natural e saudável desconfiança, mas não tem essa mesma atitude ante uma reportagem da imprensa, a qual tende, a princípio, a julgar imparcial e como verdadeira. Além disso, na publicidade, exige-se a veracidade da informação. O fornecedor tem que manter em seu poder os dados fáticos e científicos que dão sustentação à mensagem veiculada 233 Art. 46 do CDC - Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 Art. 157, §1º - CCB 235 Art. 157, §2º - CCB e Art. 6º, V – CDC. 236 Art. 36; e 6º, IV – CDC. 234 em publicidade, ato que não é obrigatório quando se trata de uma reportagem237. Também é do fornecedor o ônus de provar o que veicula por meio de publicidade238. O CDC também proíbe toda publicidade enganosa ou abusiva, assim consideradas aquelas que sejam inteira ou parcialmente falsas, ou que podem, mesmo por omissão, induzir a erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços239. A publicidade será enganosa por omissão quando deixar de informar dado essencial do produto ou serviço240. Relação médico-paciente A relação médico-paciente comporta as várias facetas da informação de valor jurídico. A prestação contratual é, basicamente, a descoberta do mal que aflige o paciente contratador e a comunicação dessa descoberta, acompanhada da prescrição médica. Algumas das informações prestadas pelo médico fazem parte da obrigação principal resultante do contrato de prestação de serviço. Algumas outras podem ser consideradas como obrigações acessórias. Outras informações, ainda, não são consideradas como parte da prestação contratual. São meros conselhos ou recomendações. Em toda a conduta médica, deve-se exigir do paciente o consentimento informado para as ações diagnósticas ou terapêuticas que se procederão, bem como a assunção dos riscos que delas poderão advir. A informação correta, clara e nivelada ao paciente-credor é elemento essencial formador de um consentimento que possa levar o adjetivo de informado, ou seja, instruído por informações 237 Em períodos próximos passados suspeitou-se da quantidade de reportagens sobre cirurgias plásticas e outros procedimentos estéticos contidos nas revistas semanais e chegou-se a indagar sobre a sua origem. 238 Art. 38 – CDC. 239 Art. 37, §1º – CDC. 240 Art. 37, §3º – CDC. Não há como não mencionar um fato que nos é bastante próximo. A quantidade de faculdades de Direito no Brasil que alardeiam em seu material publicitário o fato de possuir o conceito “A” do MEC para os seus cursos. Um rápido exame nos resultados publicados constata que essas faculdades possuem conceitos bem abaixo no que se refere ao exame dos seus formandos. Entretanto, algumas delas possuem o conceito “A” no quesito que trata das instalações físicas. O vestibulando não tem informações suficientes para saber que existem vários conceitos para uma mesma faculdade, como as instalações e a capacitação de seu corpo docente, já que somente o conceito obtido pela prova dos formandos é o mais divulgado pela imprensa. compreensíveis ao credor e corretamente percebidas por ele. Na medida do possível, tendo em vista o nível educacional e as condições de saúde do paciente, as informações devem ser transmitidas e assimiladas nos seus pontos de maior importância: riscos, efeitos e conseqüências241. O médico, bem como todo profissional de saúde, tem o dever objetivo de informar sempre, como obrigação acessória legal à obrigação principal de cuidados e conduta ética. Ainda com respeito à informação em prestação de serviços na área da saúde, todo profissional de saúde deve manter um prontuário do paciente com todas as ocorrências do tratamento. Essas informações servem para orientar futuros tratamentos e também para proteção dos profissionais em questões de responsabilidade civil. Se o meio físico onde se encontram lançadas as informações do paciente pertencem ao profissional ou à instituição de saúde, as informações ali existentes pertencem ao paciente e não podem ser cedidas, transferidas ou consultadas sem a sua expressa autorização. Conceder acesso a essas informações constitui ato ilícito contra a privacidade do paciente e plenamente passível de responsabilização civil. Atividade notarial e registral É da natureza da atividade do notário o dever de aconselhar e alertar de forma imparcial, na sua relação com os clientes. O notário apresenta uma relação contratual sui generis com os clientes, pois, se ao mesmo tempo em que é remunerado por um ou ambos os clientes que livremente o escolheram, não pode influenciar ou ocultar informações ou conselhos que sejam decisivos para o livre exercício da autonomia privada de ambos, indistintamente. A base racional desse dever é a delegação da função pública que recebe e deve, por isso, responder ao interesse público para o qual foi designado para suprir242. Se a Lei Orgânica dos Notários e Registradores não trás especificamente a obrigação, sua existência é admitida a partir da natureza da atividade e da 241 242 Conselho Federal de Medicina - art. 59 do Código de Ética Médica. Art. 236 – CRF-1988 e Art. 3º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. necessidade de segurança e eficácia dos atos jurídicos243, bem como da prestação eficiente e adequada244 e da competência para formalizar juridicamente a vontade das partes e intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal245. Para Viney e Jourdain, o aconselhamento do notário é uma obrigação acessória de outra principal que é a lavratura do ato246. Em relação aos registros públicos, o ato é complexo em suas obrigações: a fiscalização da legalidade do ato, a transcrição, a publicidade necessária ao aperfeiçoamento de alguns direitos e a finalidade de guarda, manutenção e fornecimento das informações públicas247. Essas informações são fornecidas mediante o exercício do direito de certidão de registros públicos assegurado na Constituição, em defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse parcial248. No caso dos registros públicos, a obrigação é principal e é de resultado, uma vez que o registrador é responsável pela idoneidade das informações que fornece, salvo em casos de erro escusável. Inversão do ônus da prova do inadimplemento Segundo Jorge Mosset Iturraspe, citado por Alegre, o tema da prova dos pressupostos da responsabilidade, em geral, e dos pressupostos da responsabilidade profissional, em particular, é de importância decisiva. De nada adianta o direito material reconhecer à vítima de uma relação uma indenização por danos sofridos, se coloca essa parte débil em uma situação de impossibilidade probatória249. 243 Art. 1º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994 e art. 107 a 109 do CCB-2002. Art. 4º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. 245 Art. 6º, I e II da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. 246 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traíte de droit civil – Les conditions de la responsabilité... pág. 428. 247 Lei 8.935/94 nos art. 10, IV e 30, III; Lei 8.934/94 no art. 20; Lei 6.015/73 principalmente nos art. 16, 1º e 2º, 17 e 19. 248 CRF-1988 – art. 5º, XXXIV, ‘a’ e ‘b’. 249 ALEGRE, Juan Carlos. Las cargas probatorias dinámicas en el derecho de daños... pág.441. 244 A doutrina argentina, motora dessa idéia, é majoritária no sentido que se deve, em alguns casos, abandonar os sistemas pétreos e buscar um direito ‘possível’ e, assim, em uma série de âmbitos da responsabilidade, inverter para as costas do demandado o ônus de provar o porquê do descumprimento ou do ilícito, sua não culpa em tais fatos ou a índole fortuita do evento. Nos países da Common Law, a inversão do ônus da prova segue a regra latina res ipsa loquitur, ou seja, a coisa fala por si mesma. Assim, aquele que causa o dano em circunstâncias que falam por si mesmas, tem a seu cargo o ônus da prova de sua falta de culpa, na produção do dano250. A legislação brasileira acatou a possibilidade da inversão do ônus da prova quando, nas relações de consumo e para facilitação da defesa dos direitos do consumidor, a alegação for verossímil ou quando a parte for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências251. Também o Código de Processo Civil, como exceção à regra geral de que quem alega deve provar, avençou a possibilidade da inversão quando for excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito252. A informação como obrigação tributária acessória A prestação de informações pode ser considerada como obrigação tributária acessória, sempre por força de lei e no interesse da arrecadação ou fiscalização dos tributos253. O CTN, no seu art. 197, enumera profissionais que, além das obrigações de notificações regulares ao fisco, estão submetidos à obrigação acessória de fornecimento de todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros. Tabeliões e registradores, como exemplo, são obrigados a prestar informações, por meio de programas de computadores próprios, de todas as transações 250 FRADERA, Vera Maria Jacob de. O dever de informar do fabricante... pág. 59. Art. 6º, VIII do CDC. 252 Art. 333, parágrafo único, II do CPC – Lei 5.869/73, de 11 de janeiro de 1973. 253 CTN – Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - art. 113, caput e §2º e art. 115. 251 imobiliárias feitas em suas delegações, às receitas estaduais e à Receita Federal, sob pena de multa e responsabilidade administrativa254. Considerações finais Nas obrigações agora analisadas, onde a informação não possui o caráter primário da prestação obrigacional, a ausência ou o fornecimento falho da informação pode representar, em si mesmo, um inadimplemento contratual absoluto ou relativo, ou um ato ilícito. A melhor nomenclatura que podemos utilizar nesses casos não é aquela tradicional que a classifica como obrigação acessória, pois se trata de um gênero à parte, no qual, mesmo não sendo uma obrigação principal, seu descumprimento acarretará conseqüências jurídicas como se fosse tal. Ocorrerá o inadimplemento relativo, naqueles casos onde a informação considerada falha ou ausente for mesmo mera obrigação acessória de outra principal, e sua ausência ou falha não acarrete danos pessoais ao participante. Ou ainda não haja o dever, nem legal, nem advindo da compreensão ampla do princípio da boa-fé. Ou ainda nos casos em que a informação não represente ou não se caracterize como uma razoável expectativa do contratante. Haverá inadimplemento absoluto nos casos em que, apesar de a informação não ser o objeto primário da prestação de uma obrigação de dar coisa certa, sua ausência ou falha configure o descumprimento de um dever legal ou juridicamente inferido em uma ampla compreensão da boa-fé. Esse dever jurídico existirá mesmo quando não expresso na relação jurídica, mas onde se possa razoavelmente inferir que a ausência ou falha na comunicação da informação levou ou poderia levar algum dano ao contratante. Nesse caso, mesmo que a informação não seja o objeto primário da prestação, o seu não fornecimento ocasione um inadimplemento absoluto, tendo ou não causado dano ou prejuízo. Como um crime de perigo abstrato, a mera omissão da pessoa ou possibilidade de dano ou prejuízo já é, em si, uma violação de dever jurídico. 254 Art. 8º da Lei 10.426, de 24 de abril de 2002, regulamentada pela Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal nº473, de 23 de novembro de 2004. Estipular no momento quais são os casos de aplicação de um ou outro tipo de inadimplemento não nos parece necessário aos objetivos deste trabalho. Além do que, somente o aumento do número de casos julgados é que fornecerá subsídios para a determinação do ponto vertente, onde a informação deixa de ser mero elemento de interesse econômico nos contratos (e interesse jurídico indireto) e passa a ser elemento de liberdade, parte formadora da autonomia privada e, assim, com interesse jurídico direto. CAPÍTULO 4 - CARÁTER PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO III – OBJETO DA PRESTAÇÃO CONTRATUAL A informação pode ser o conteúdo do objeto de um contrato, ou seja, tornar-se o conteúdo de uma obrigação contratual de dar coisa certa incorpórea, pela qual o titular do direito sobre ela a transfere a outro. Da mesma forma, sobre a informação são reconhecidas, ao titular, as faculdades de uso, gozo, disposição e a oponibilidade erga-omnes. A transferência de conhecimento pode ser feita de forma incondicional – a venda de uma informação –, de forma exclusiva ao comprador, ou não. Além dessa variante típica da informação, pelas suas características de nãorivalidade e não-exclusão, outras variantes de uso e gozo que encontramos na propriedade também podem, a princípio, ser aplicadas à transferência da informação. A relevância econômica e jurídica da informação é ligada principalmente à sua disponibilidade em um determinado lugar ou em um determinado momento. Neste aspecto, a informação não é um bem consumível, ainda que se trate de uma informação conhecida. Ela depende do sujeito que tem interesse em obtê-la e das circunstâncias. A doutrina mais tradicional do Direito civil tem sido resistente à aceitação da compra e venda de informação sem a presença do suporte físico. Nesse sentido, o Estado francês demorou a aceitar que a propriedade intelectual pudesse ser considerada uma mercadoria sem que estivesse lançada sobre um meio físico suporte e condutor. Recentemente essas barreiras vêm sendo derrubadas e a França já admite o download como uma operação de compra e venda255. Algumas obrigações podem ter como objeto a busca, a coleta e a entrega de informação: bibliotecários, agentes de investigação e buscadores da internet são alguns exemplos e bastante escassos são os casos jurídicos envolvendo essas circunstâncias. 255 MASSET, Guy. Direitos vetores da sociedade de informação. Palestra proferida no Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa. Privilégio Cliente - advogado O privilégio cliente-profissional existe para incentivar as pessoas a relatar todos os pormenores de sua situação. Dessa forma, o cliente relatará ao advogado todos os pormenores do seu caso, se ele souber que essa informação permanecerá confidencial. Da mesma forma, o médico terá acesso a todos os detalhes do cliente, sua família e seus atos, facilitando seu diagnóstico e tratamento. Quanto mais eles falarem, mais efetivos os profissionais serão no desempenho de suas funções. O privilégio cliente-advogado é tido como o mais antigo dos privilégios de comunicação confidencial reconhecidos pelo Direito, e seu propósito é encorajar a completa e franca comunicação entre advogado e cliente e, desse modo, promover o mais amplo interesse público na observância da lei e da administração da Justiça. O privilégio reconhece que o aconselhamento jurídico ou a defesa do advogado serve às finalidades públicas e que tanto um quanto outro depende do quanto o advogado se encontra plenamente informado por seu cliente256. Esse privilégio é reconhecido e estendido, no direito brasileiro, a todos aqueles que devam guardar sigilo sobre fatos de que tenham conhecimento por estado ou profissão257. Da mesma forma, a testemunha pode requerer ao juiz que a escuse de depor alegando estes mesmos motivos e o juiz deverá decidir de plano258. Se comprovada a relação profissional, não restará ao juiz acatar o impedimento alegado, posto que possui proteção e hierarquia constitucionais. Suspeitando ser falso o impedimento, o juiz deverá, primeiramente, confirmar a alegação para, somente depois, acusar a testemunha pela falsidade e obrigá-la a depor ou testemunhar. Esse privilégio, entretanto, não é absoluto, podendo o profissional ser desobrigado pela parte interessada a depor ou prestar testemunho com o 256 Upjohn Co. v. United States, 449 U.S. 383 (1981) pág. 389. Art. 229 do CCB – Lei nº10.406, de 10 de Janeiro de 2002 e Art. 347, II; a art. 406, II - CPC – Lei nº5.869, de 11 de Janeiro de 1973; Art. 26 – Código de Ética e Disciplina da OAB, 1975. 258 Art. 414, §2º - CPC – Lei nº5.869, de 11 de Janeiro de 1973. 257 fornecimento de todas as informações até então sigilosas259. Não havendo essa desoneração, nenhuma presunção pode ser gerada pelo juiz ou pelos jurados. Sob esse aspecto, é interessante observarmos que, apesar de fruto de um direito da personalidade, a privacidade e a intimidade podem ter o seu exercício renunciado por manifestação da vontade do interessado. No Estatuto da OAB, o sigilo profissional é considerado inseparável da profissão, salvo grave ameaça à vida, à honra ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredos, desde que restritos ao interesse da causa260. Banco de dados Um banco de dados se trata de uma acumulação de informações armazenadas de forma analítica em dispositivos informáticos e passíveis de serem recuperadas a qualquer momento, bem como de serem submetidas a tratamento. Por tratamento da informação se entende as múltiplas possibilidades de combinação entre os dados armazenados, conforme um quesito traçado pelo interessado. Essa possibilidade de análise de informações é uma formidável ferramenta de pesquisa e de conhecimento e provoca reflexos importantes tanto na esfera patrimonial do direito, quanto se trata de venda ou cessão de uso de um banco de dados, quando na esfera extrapatrimonial dos indivíduos, pela divulgação de informações pessoais e conseqüente invasão de privacidade. Como já nos referimos ao tratarmos da informação como bem jurídico, a relevância da informação depende do sujeito que tem interesse em obtê-la e das circunstâncias. Uma informação específica, moldada ao interesse do contratante pode ser obtida através de uma coleta, global ou por amostragem, ou obtida através de um cruzamento de determinados dados já disponíveis em um banco de dados. 259 Art. 207 - CPP – Decreto-Lei nº3.689, de 3 de Outubro de 1973; Art. 27 – Código de Ética e Disciplina da OAB, 1975. 260 Art. 25 – Código de Ética e Disciplina da OAB, 1975. Ao banco de dados como ferramenta de armazenamento de informações e pesquisa somou-se a rede mundial de computadores – a internet - e ela revolucionou a habilidade do setor privado em coletar e analisar informações. A função de marketing se especializou em usar essas informações para conduzir o chamado marketing direto ou dirigido e que consiste em enviar diretamente anúncios personalizados ou contatar por telefone pessoas determinadas, previamente selecionadas conforme um perfil traçado no quesito do tratamento das informações do banco de dados. O objetivo dessa técnica é identificar consumidores prováveis para adquirir um determinado produto. A informação pessoal sobre o consumidor é essencial para atingir esse objetivo e uma indústria cresceu devotada a coletar, tratar e negociar essas informações que incluem, dentre outras, informações sobre o hábito de consumo, renda, raça, estilo de vida, idade, hobbies e interesses. As empresas montam esses bancos de dados e negociam o seu uso às empresas interessadas que, muitas vezes, entram com o seu próprio banco de dados na negociação. Esses bancos de dados se fundem e se ampliam261. Os cruzamentos de informações contidas nas bases de dados podem apresentar problemas jurídicos, sobretudo no que diz respeito aos bens tutelados da privacidade. Alguns desses dados são utilizados inclusive por agências de encontros afetivos e matrimoniais. Responsabilidade civil pela informação Ruy Rosado de Aguiar Júnior, analisando a responsabilidade civil pelo fornecimento de informações bibliográficas, identificou que, havendo relação contratual e sendo a obrigação de resultado, haverá a possibilidade de responsabilização civil pela prestação insuficiente ou defeituosa do serviço. Nesse caso, incumbirá ao autor a comprovação da relação contratual e ao réu, em sua defesa, a demonstração que dano decorreu de uma causa estranha à relação e à 261 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Information privacy law… pag. 623/4. sua pessoa262. Também será possível a responsabilidade por inexecução total ou parcial do contrato, de acordo com os princípios que regem o descumprimento dos contratos bilaterais263. Mas não só na relação contratual existe a possibilidade de responsabilidade civil. Nas relações extracontratuais ou onde a obrigação de fornecer informações seja uma obrigação de meio, a imputação da responsabilidade somente se dará se o prestador do serviço agiu com desatenção ou falta de cuidado ou, no caso da obrigação de meio, de diligência na execução do contrato. Em qualquer circunstância, entende o autor que a responsabilidade civil do fornecedor da informação (no caso o bibliotecário) é, de regra, de natureza extracontratual, dependendo da comprovação do dano, do nexo de causalidade e da culpa ou dolo do prestador de serviço. Da sua negligência pode decorrer ainda um dano consistente na perda de uma chance. Factualmente, a imputação por danos desta natureza não ocorrem e isso se deve a algumas causas: a) à dificuldade do usuário dos serviços de busca, coleta ou investigação identificar a existência de um dano concreto decorrente do atendimento imperfeito ou negligente; b) à ausência de condições para o tomador do serviço avaliar a imperfeição do serviço prestado; c) à dificuldade em caracterizar a existência do dano decorrente de falta ou defeito da prestação do serviço264. O dano decorrente da informação imperfeita ocorre, na maior parte das vezes, em situações de perda de uma chance265, isto é, o dano significa apenas a perda da possibilidade, desde que real e séria, de o tomador não alcançar uma determinada vantagem (vencer um concurso, uma concorrência em contrato ou licitação pública). A possibilidade de alcançar essa vantagem deve ser real e a prestação indevida deve ter sido decisiva para o insucesso. Há uma clara dificuldade no estabelecimento convincente entre a prestação imperfeita e o dano sofrido. 262 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade pela informação... pág. 3-4. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade pela informação... pág. 22. 264 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade pela informação... pág. 21-22, com algumas alterações. 265 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade pela informação... pág. 22. 263 CAPÍTULO 5 - CARÁTER EXTRA-PATRIMONIAL DA INFORMAÇÃO – A QUESTÃO EXISTENCIAL A primeira e grande dificuldade do estudo das informações na esfera existencial do indivíduo passa pela percepção e compreensão do seu impacto e sua delimitação, pois a lei não define o que seja privacidade, intimidade ou honra. As leis que asseguram o respeito aos direitos de personalidade são abstratas e gerais, pela própria natureza dos direitos de que tratam, e as situações fáticas possíveis são inumeráveis. Antes de reconhecer e estabelecer um direito, especialmente aqueles ligados à personalidade, a ciência jurídica deve aprender sobre a condição humana com outras fontes de estudo e arte que antevêem as mudanças com maior sensibilidade. Isso não é novidade. A construção do indivíduo como conhecemos teve sua origem no cristianismo e o direito acompanhou essa percepção, ajustando-a às relações sociais e hoje, a filosofia, a sociologia e a arte estão à frente do Direito no que diz respeito à percepção das agressões externas à personalidade. Os direitos de personalidade são frutos de uma cultura da personalidade e essa cultura deve se refinar e evoluir tanto quanto o avanço das ameaças que pairam sobre ela. Nessa conjuntura, não há outro caminho para a doutrina senão aquele da percepção do fenômeno através das fontes que se adiantam nessa percepção, e da compreensão do direito resultante, nutrindo com argumentos a base jurisprudencial e dela se utilizando e reconstruindo, num movimento de constante retroalimentação. O maior erro do Direito seria supor que ele pode nascer, se construir, modificar e extinguir por si mesmo, sem guardar uma estreita correlação de existência e realidade com as outras formas de pensamento humano. Pela falta de uma definição, o trabalho de conceituar o que seja a privacidade e a intimidade envolve o entendimento dos fatos onde a sua proteção é requerida, uma vez que a própria idéia da privacidade é evolutiva e mutante. Direito a privacidade Tal como a idéia inicial de direitos de personalidade, a idéia de privacidade ainda não está inteiramente compreendida e varia conforme o grau de desenvolvimento da sociedade. As leis que a protegem, quando existem, são gerais e abstratas e deixa a cargo da única via de desenvolvimento possível para esses direitos, a doutrina e a jurisprudência baseada nos princípios de Direito. Proteção legal da privacidade Para Dotti, a diminuição dos espaços acaba por levar a certa promiscuidade ambiental, acarretando a perda da liberdade de isolamento e essa preocupação em amparar um mínimo de privacidade, já era avençada esparsamente pelas leis. Na verdade, essa foi a motivação da proteção de alguns dos direitos de vizinhança do Código Civil266, anteriores à regular proteção legal reconhecida atualmente. Os ordenamentos jurídicos estrangeiros e multilaterais aos poucos foram inserindo artigos sobre a proteção à privacidade, reconhecida por si mesma em cláusulas gerais e ainda através de proteções paralelas, como o sigilo de correspondência, nos corpos das constituições e dos códigos civis e penais267. A Constituição brasileira de 1988 trouxe a regra da tutela geral da privacidade quando declara a inviolabilidade sobre a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando-lhes o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação, bem como o Código Civil, num texto mais reduzido, trouxe a tutela geral da privacidade, com a inviolabilidade da vida privada268. 266 Art. 1277 – CCB, ao mandar cessar as interferências prejudiciais de um vizinho sobre o outro quanto ao sossego deste, e o art. 1301 que trata da distância de abertura de janelas, eirados, terraços ou varandas sobre imóvel vizinho alheio. 267 Arts. 70, 77, 80 – CCP e art. 26, 35-3º, da Constituição portuguesa; Arts. 18, 1º, da Constituição espanhola; Art. 9 – CCF; Art. 12 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica) – art. 5º.1 – Toda pessoa tem direito a que se respeite a sua integridade física, psíquica e moral. Art. 11.1 - Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. Conteúdo do direito à privacidade Numa visão mais estreita, a privacidade mistura-se à intimidade. Os dicionários trazem os termos privacidade e intimidade como sendo sinônimos de vida íntima269. Em que pese divergências, consideraremos nesse trabalho que a privacidade é um direito de maior amplitude, com mais ramificações e conseqüências, e a intimidade é uma parte dela, um círculo mais interior, mais recôndito, da pessoa. A idéia inicial do conteúdo da privacidade é a idéia da intimidade e por isso a casa da pessoa permanece como referência física e emocional para indicar a vida privada. No entanto, a privacidade pode ser fruída na rua ou mesmo em meio a uma multidão270. A privacidade em circunstâncias específicas Em relação à privacidade da pessoa jurídica, Perlingieri considera que essa possibilidade não seja viável. Se alguns aspectos da privacidade assumem valor existencial, o são somente para a pessoa humana. Para as pessoas jurídicas, esses mesmos aspectos de sigilo, privacidade e informação exprimem interesses diversos, geralmente de natureza patrimonial, protegendo interesses de posição de mercado, de vantagem competitiva ou de proteção de informação de uso produtivo271. Nas relações familiares, a privacidade se confunde com a intimidade da vida privada e é condição para o livre desenvolvimento da pessoa272 Resume-se, em última instância, à proteção das informações, do conhecimento por terceiros, de fatos ocorridos nas relações internas do núcleo de afetividade mais próximo do indivíduo. A lei italiana obriga o empregado doméstico a manter a necessária privacidade em tudo que se refira à vida familiar do empregador273. 268 CRF-1988, art. 5º, X e CCB-2002, art. 21. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 270 DOTTI, René Ariel. A liberdade e o direito à intimidade... pág. 130. 271 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional... pág. 773. 272 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil... pág. 183. 273 Legge 2 Aprile 1958, n. 339 – per la tutela del rapporto di lavoro domestico. Art. 6. Diritti e doveri. Il lavoratore è tenuto a: prestare la propria opera con la dovuta diligenza secondo le necessità e gli 269 Discute-se atualmente a licitude da colocação de um chip rastreador antifurto em todos os veículos nacionais. O chip permitiria o rastreamento do automóvel através de GPS e sua eventual localização, quando de um extravio. A Justiça Federal de São Paulo, na sua 7ª Vara Cível, decidiu, ainda em primeira instância, que o banco de dados gerado pelo chip permitiria o rastreamento de qualquer cidadão, violando o direito de privacidade da pessoa274. Banco de dados O aparecimento dos bancos de dados foi o resultado prático da primeira concepção de ciência da informação. A organização de grandes quantidades de informação exigia que fossem compartimentadas em grupos relacionados, catalogados e acessados com rapidez. Com o advento de máquinas de catalogação de grande capacidade, essas informações passaram a poder ser analisadas e reunidas, conforme determinado título, ou entrelaçadas conforme o critério solicitado. Nasce o banco de dados e multiplicam-se as possibilidades de uso da informática para adquirir, armazenar, reunir e tratar as informações sobre tudo, inclusive sobre a vida das pessoas. A concentração e a possibilidade de tratamento das informações concederam, àqueles que as detêm, amplo poder de conhecimento e de interferência na vida privada das pessoas. Trata-se do aparecimento de mais um problema da vida social e do ordenamento jurídico que agora se caracteriza, de maneira decisiva, num conteúdo do direito de liberdade do cidadão em um Estado industrial avançado: tutelar o respeito à vida privada, depois do advento das máquinas informáticas e de sua formidável capacidade de memorização, na sociedade de massa contemporânea. Nasce a necessidade do direito à tutela dos próprios dados pessoais na sociedade informática, representando uma nova dimensão da liberdade individual275. interessi della famiglia per la quale lavora, seguendo le disposizioni dei datori di lavoro; - mantenere la necessária riservatezza per tutto quanto si riferisce alla vita familiare. 274 SANGIOVANNI, Ricardo. Justiça Federal barra chip de rastreamento em veículo. Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. 18 de abril de 2009. Pág. C3 Essa liberdade denominada informática é composta por duas facetas: a primeira [1], a faceta negativa, representa o direito de não permitir que caia em domínio público certas informações de caráter pessoal, privado e reservado. A segunda [2], a faceta positiva, se trata do exercício pelo indivíduo de um direito de controle sobre os dados concernentes à própria pessoa, impedindo que informações pessoais sejam inseridas como elementos de um banco de dados. Por conseguinte, a liberdade informática positiva, ou direito subjetivo reconhecido, é aquele de conhecer, retirar ou acrescentar dados numa ficha pessoal eletrônica276. A Constituição brasileira protegeu o sigilo de dados conjuntamente a outras inviolabilidades no art. 5º, XII da CRF-1988. A colocação da inviolabilidade do sigilo de dados num mesmo inciso com o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas gerou críticas. Sigilo bancário Conforme nos traz Mota Pinto, o Acórdão nº278/95 do Tribunal Constitucional português considerou o segredo bancário um instrumento de garantia do direito à reserva da vida privada277. O sigilo é considerado um valor, seja na vida pessoal, seja na vida negocial. O saber guardar segredo é uma prova de confiança e surge na vida profissional, nas relações pessoais, e na vida contratual, como dever imposto pela boa-fé278. A defesa do sigilo, no que se refere às atividades bancárias, se assenta em duas vertentes. [1] A primeira vertente, a econômica, procura justificar o sigilo como objetivo determinante da política econômica, no pressuposto de que a abolição do segredo bancário, pela perda de confiança a que conduziria, determinaria a fuga de capitais do país, com todas as repercussões que isso teria no investimento e, consequentemente, sobre o desenvolvimento econômico. Na [2] segunda vertente, o sigilo bancário é justificado como meio de garantir ao cliente a defesa de sua esfera 275 FROSINI, Vittorio. La protezione della riservatezza nella società informatica... pág. 5/6. FROSINI, Vittorio. La protezione della riservatezza nella società informatica... pág. 8. 277 PINTO, Paulo C. C. da. A protecção da vida privada e a constituição... pág. 158. 278 BARBOSA, Paula Elisabete Henriques. Do valor do sigilo... pág. 1233. 276 privada. A ele é atribuído pelos agentes econômicos tanta importância quanto ao sigilo prestado por outros profissionais. O valor confiança entre cliente e instituições financeiras é, ele próprio, um capital e somente praticando-o pode-se manter e atrair a clientela279. No Brasil, o sigilo bancário é obrigação legal das instituições financeiras e seu desrespeito, fora das hipóteses devidamente autorizadas na Lei, é considerado crime punível com reclusão de um a quatro anos, acrescido de multa. Incorre nas mesmas penalidades o servidor público que utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação obtida em decorrência da quebra de sigilo bancário280. A Lei também ressalva algumas atividades que não são constituídas como violação do dever de sigilo. São utilizações das informações com finalidade de facilitar as transações financeiras, a segurança dos negócios, investigação criminal e a fiscalização tributária. Genericamente, é permitida a quebra do sigilo para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial e, especificamente, nos casos de terrorismo, tráfico de entorpecentes, drogas e afins, contrabando de armas e munições, extorsão mediante seqüestro, crimes contra a administração pública, o sistema financeiro nacional, a ordem tributária e a previdência social, a lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, e os crimes praticados por organização criminosa. Também é permitida a revelação de informações sigilosas desde que haja o consentimento expresso dos interessados281. Cookies, web bugs e spywares A propaganda e marketing têm-se utilizado do cruzamento de dados por sobreposição de um em função de outro, com o objetivo de dirigir as suas atividades de divulgação para um público cada vez mais específico. A essa informação chamamos informação-resultado ou informação-análise. O direcionamento da 279 BARBOSA, Paula Elisabete Henriques. Do valor do sigilo... pág. 1234/5. BRASIL. Congresso Nacional. Lei Complementar nº105, de 10 de Janeiro de 2001, nos seus arts. 10º e 11º. 281 Art. 1º, §4º e seus incisos e §3º, V da Lei Complementar nº105/2001. 280 propaganda e do marketing se especializou desde a coleta de preferências de consumo (por amostragem) até a instalação dos cookies. Estes são pequenos bits de informação digitalizada instalados no computador do usuário da rede mundial de computadores e revelam o uso e as preferências daquela pessoa, quais páginas eletrônicas visita, o que compra etc. Esses dados são, na maioria das vezes, coletados sem o conhecimento do usuário e transmitidos a empresas282, sem sua autorização. Essas informações, chamadas de “clickstream data”, podem ser vendidas a empresas interessadas em determinado nicho de consumo. A ação dessas empresas foi considerada como utilização não autorizada de informação privada por terceiros e a empresa DoubleClick e outros anunciantes da internet foram investigados pelo governo americano e tiveram que se comprometer a estabelecer práticas de privacidade para os anunciantes, como não sobrepor ou mesclar os seus bancos de dados com outros283. Já os web bugs ou action tags, ao contrário dos cookies que podem ser instalados sob demanda do usuário ou acompanhando determinado programa gratuito, se instalam por meio subreptício, sem a permissão do usuário, e monitoram todo o movimento da seta do mouse feito pelo usuário em uma página da internet, bem como todo o seu uso de teclado284. Por mais que pareça ficção científica, é a realidade atual dos meios de vigilância eletrônica possibilitadas pela internet. Spywares e adwares são programas com alta ofensa à privacidade e visam adquirir dados do usuário que possam ser utilizados pelos implantadores. Os alvos principais são as senhas de bancos e os números de cartão de crédito. A questão aqui sai da proteção à privacidade e vai diretamente à questão criminal. 282 As empresas mais conhecidas são a DoubleClick e a Advice. SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Information privacy law… pag. 626. 284 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Information privacy law… pag. 627. 283 Considerações finais A privacidade, em todas as suas apresentações e desdobramentos, é um valor social e um bem jurídico indispensável ao pleno desenvolvimento da personalidade e à proteção da informação pessoal, como conhecimento de uma fração de fatos daquela personalidade, é parte elementar, a mais importante e a mais presente e constante forma pela qual a privacidade é representada. A doutrina, a jurisprudência e as leis têm tentado se acercar de todas as formas de apresentação do direito à privacidade. Quanto mais se acercam, mais formas aparecem, como uma quimera imbatível e mutante, que se adapta de forma extraordinária a qualquer nova tecnologia numa rapidez impensada à Ciência jurídica. O Direito e seu desenvolvimento tal como experimentamos até agora, ainda ligados à relação jurídica estabelecida no eixo devedor e credor e aplicado na forma de subsunção do fato à norma, é insuficiente para acompanhar todas essas mudanças. O direito de tradição continental deve ser repensado nessa medida, para que se permita adaptar de forma mais rápida às tecnologias, e deve adotar sanções e proteções mais efetivas às agressões aos direitos de personalidade. O conteúdo do direito à privacidade é, assim, um desafio. Mas é suficiente desenhá-lo da forma mais abrangente possível, englobando a intimidade, os segredos pessoais, o direito de ser deixado só, a limitação de acesso à sua pessoa, o controle sobre a sua própria pessoa e sobre as informações que lhe dizem respeito. É um direito ainda por desenvolver e seu término ainda não é visível, sequer imaginável. As exceções ao direito à privacidade devem ser explícitas e restritas. Ao que parece, a doutrina achou uma interseção em suas teorias sobre o que deve ser o direito à privacidade: a possibilidade de autodeterminação de como, quando e quanto das informações sobre nós, serão comunicadas aos outros. Ou, o atributo básico de um efetivo direito à privacidade é a capacidade individual de controlar a circulação de informações sobre si mesmo. Ou ainda, a privacidade como sendo não simplesmente uma falta de informações a nosso respeito na mente de outros; melhor seria o controle que temos sobre as informações sobre nós mesmos285. O exercício desse controle será aquele necessário para se opor à tecnologia disponível e à sociedade da época. Por isso, a enumeração das faculdades e das aplicações é inconveniente, pois nos dá a falsa segurança de uma exemplificação exaustiva e nos fecha a mente para as ameaças ainda em gestação. A Common Law tem a noção encampada do delito da apropriação comercial de imagem, ou seja, o direito de imagem utilizado de forma ilícita para ganhos comerciais. Representa uma aproximação das faculdades encontradas no direito à privacidade com aquelas representadas pelo direito à própria imagem e esse, por sua vez, é uma similitude dos direitos intelectuais como a propriedade intelectual. Para o direito continental, toda essa aproximação representa a possibilidade de utilização das mesmas faculdades inerentes ao direito de propriedade, usar, gozar, dispor e reaver, aplicáveis, então, às propriedades intelectuais, ao direito de imagem e às informações pessoais, representativas do direito à privacidade. Essa aproximação de direitos pela relação das faculdades que os caracterizam, independentemente do objeto que protegem, vai de encontro à aproximação feita por Posner, ao vincular a evolução da privacidade à evolução dos direitos de propriedade sobre o produto intelectual – usar, gozar, dispor e reaver de quem injustamente o possua. A idéia não é nova, é apenas um desdobramento futuro de um pensamento que remonta a Locke, em 1690. Para o filósofo, a propriedade do homem era justificada pelo seu trabalho, pelo labor de seu corpo e o trabalho de suas mãos. Tudo aquilo que era comum e que depois fora trabalhado pelo homem se tornava propriedade dele, excluindo todos os outros homens. Por analogia, entendemos da mesma forma 285 SOLOVE. Daniel J. Conceptualizing privacy... pág. 1109, citando Alan F. Westin. Privacy and Freedom. 7:1967. Arthur Miller e Charles Fries os frutos do trabalho intelectual. Contudo, continua Locke, todo homem tem uma propriedade em sua própria pessoa286. Assim pensando, nos parece razoável projetar as faculdades próprias da propriedade sobre as informações pessoais ou, mais do que isso, representar através dessas faculdades o controle da vida privada pelo indivíduo. Assim, em resumo, é possível raciocinar da seguinte forma: se, ao modificar uma coisa comum por meio do seu trabalho, essa singularidade se torna sua propriedade; se, da mesma forma, as idéias são frutos do trabalho, não mais braçal, mas intelectual, e isso lhe confere propriedades sobre elas; se a pessoa em si mesma é a primeira propriedade que temos, podemos especular que as informações pertinentes a essa pessoa podem ser tratadas como sua propriedade. 286 LOCKE, John. Second treatise of government… §27, pág. 19. CAPÍTULO 6 – CARÁTER PÚBLICO DA INFORMAÇÃO O conhecimento, em si mesmo, é poder. Francis Bacon287 Introdução No que diz respeito às informações públicas, se encontram em campos opostos opiniões tão díspares quanto a do cardeal Richelieu, que proclamava que “o segredo é o mais essencial dos negócios do Estado”; e de Jeremy Bentham, que dizia que o segredo é “um instrumento de conspiração e não deve, consequentemente, ser o sistema de um governo regular”. Para o Sexto Circuito da Justiça americana, as democracias morrem atrás de portas fechadas288, reforçando o que já foi dito: não há nada melhor para os negócios públicos do que a luz do sol. A aplicação do princípio da transparência das ações públicas reforça a democracia e vigia os governos, evitando o desvio no uso das funções públicas. Por outro lado, os governos frequentemente precisam operar em segredo a fim de manter e executar políticas socialmente desejadas. Então, uma exigência extrema de transparência poderia provocar um efeito paralisante que impedisse o governo de reagir de forma inovadora às alterações das circunstâncias289. O eixo central da discussão do caráter público da informação é o embate entre a transparência característica das democracias e o uso do segredo. O segredo de Estado não é exclusivo dos regimes totalitários, senão, é também necessário aos estados democráticos. O seu problema está no fato de poder ser mal utilizado e desvirtuado. A importância dada à informação na esfera pública reflete o grau de maturidade, eficiência e aprofundamento democrático de um país. A compreensão 287 BACON, Francis. (1561-1626) In: Meditationes Sacrae. (1597). HARVARD LAW REVIEW. Mechanisms of secrecy... pág. 1556. 289 HARVARD LAW REVIEW. Mechanisms of secrecy... pág. 1556. 288 do seu valor, seja para restringir o acesso, seja para permitir a comunicação, é indicação da existência de uma reflexão político-filosófica mais ou menos aprofundada sobre a matéria. Reconhece-se o seu valor estratégico em algumas circunstâncias: [1] um governo deve ter em mãos todas as informações possíveis e de boa qualidade para orientar sua tomada de decisão. Quanto mais amplo o espectro e mais aprofundado o tema, mais precisamente a informação orientará uma decisão do governo ou do Estado, prevendo, inclusive, os desdobramentos dos fatos e das decisões. [2] As informações governamentais, quando comunicadas aos indivíduos, representam um valor para a participação desses indivíduos nos desígnios do governo, ajudando a criar e consolidar uma tradição de participação que é essencial à constituição de um estado democrático de direito. Com a divulgação das informações governamentais, há a criação e o estímulo de um contexto, de um ambiente político-cultural, propício à consolidação da cidadania, e a cidadania é uma posição definida pelos direitos civis290. A construção de uma tradição cultural de participação política é fator de coesão nacional assim como o foram, historicamente, o direito unificado e a religião. [3] Lado outro, algumas informações, pela importância que representam para a segurança, seja das instituições públicas, da economia, ou para o apaziguamento social ou das relações internas e externas do Estado, devem ser mantidas em regime confidencial até que não represente mais nenhum tipo de impacto ou ameaça. [4] Conforme já visto, interessa ao país a manutenção de uma política pública de acesso às informações como meio de implementar a sua eficiência dinâmica. Ao mesmo tempo, interessa a sua proteção, por meio da propriedade intelectual, do investimento na criação de novas informações, e assim implementar sua eficiência estática e a pesquisa produtiva. O equilíbrio nesta política é vital ao desenvolvimento do país e deve ser tido como prioridade pública. Na Constituição brasileira de 1988, a cidadania ocupa o lugar de fundamento do Estado Democrático de Direito e pilar da República291. Na construção desta cidadania, a participação política é parte vital e isso só é possível com o pleno conhecimento das ações governamentais por parte dos indivíduos. Não é outro o intuito do art. 5º, XXXIII da CRF-1988 ao prescrever que os órgãos públicos são 290 291 HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade... pág. 34/35. Art. 1º, caput e inciso II da CRF-1988. obrigados a fornecer as informações de interesse do particular ou de interesse coletivo ou geral, excluindo-se unicamente aquelas imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado292. Da mesma forma, o art. 37 da mesma Constituição, no seu caput, elege o princípio da publicidade para a administração pública e no §3º, II garante o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, excluindo-se essa informação do acesso de terceiros sempre que ela for conflitante com os direitos de personalidade de outros293. O papel da informação na consolidação do Estado democrático de direito O acesso às informações governamentais é fundamental para o desenvolvimento de um estado democrático de direito. A transparência, a luz do sol sobre os atos governamentais, inibe as más práticas das ações do governo e aumentam a sua credibilidade perante a população. Com o amadurecimento da democracia e a liberdade de imprensa, a tendência é que os negócios estatais tornem-se cada vez mais transparentes e aumentem a pressão social, política e administrativa na prestação de contas das atividades governamentais. 292 Sem prejuízo de outros dispositivos constitucionais que, no mesmo princípio, prescrevem a mesma direção de conduta, mas de interpretação mais extensiva e, portanto, de menor aceitação e maior dificuldade de interpretação e implementação: art. 5º, LXXII e LXXVII da CRF-1988. 293 Art. 37, §3º, II com expressa referência ao art. 5º, X, ambos da CRF-1988. CONCLUSÃO Introdução 1) O assunto ao redor do tema informação é amplo, aberto e em desenvolvimento. A existência de poucos artigos e livros existentes sobre o assunto comprometeram a determinação inicial do estado da arte e dificultaram a antevisão da extensão e da profundidade que esse trabalho poderia atingir. Mas é suficiente reconhecer que uma tese doutoral não se trata obrigatoriamente de inovar na estruturação do direito, mas, apresentar análises de institutos e estudos de organização que permitam vislumbrar um esboço de sistematização, passo inicial para posteriores avanços. A compreensão mais aprofundada e ampla do assunto somente será possível a partir desse primeiro passo, que permita a compreensão, o enquadramento e as relações da informação no mundo jurídico. É claro, e esse é também o objetivo do resultado de uma monografia científica, que esse trabalho mais mostre caminhos a seguir do que apresente respostas prontas a todos os questionamentos. O tema informação é jovem, mas cresce com força e velocidade impressionantes, no ritmo das mudanças próprias desses nossos tempos. Compreender sua complexidade, mais do que isso, aprender a trabalhar com ela, é o que se exigirá dos operadores do direito, quando se debruçarem sobre questões jurídicas onde a informação seja uma parte importante. 2) Partir da análise dos institutos jurídicos dos bens e das coisas, da compreensão da sua história e suas razões, além das nuances lingüísticas e psicológicas que permeiam o tema, permitiram um embasamento teórico e um esmiuçar analítico das idéias contidas nesses institutos. A parte geral fez isso bem, se não foi de forma completa, foi suficiente para permitir uma resposta adequada. Por outro lado, a parte especial apresentou, com a análise das situações a das aplicações, os vários quadros jurídicos onde a informação se apresenta com importância. Perceber esses quadros, pouco a pouco nos dá a idéia do todo, primeiro uma silhueta opaca, depois aos poucos desanuviando. 3) A criação, modificação e a gerência dos direitos ligados ao bem jurídico informação, acompanham a sua natureza fluida, e não se mostram susceptíveis de serem enquadradas numa teoria geral rígida e estruturada. Qualquer tentativa de positivação abrangente, que procure abarcar o assunto como um todo, tal qual utilizamos em muitos casos com a subsunção imediata do caso à norma, nos parece fadada ao fracasso. Uma teoria construída com essa visão seria por demais frágil, pois não suportaria as mais leves pressões da evolução social. Para que a comporte, a construção teórica deverá ser como seu próprio elemento, volátil, moldável e ágil. Para ter essas características, é impossível que seja profunda e detalhista, mais cabendo uma forma abstrata, geral e ampla, fundada em princípios e conhecimento do próprio direito. Somente nesse modelo é que poderemos fundar as novas formas de informação com valor jurídico. A compreensão da acelerada desmaterialização das relações sociais é vital para o direito civil, tanto pela importância adquirida a partir da segunda metade do Século XX pelos direitos fundamentais e sua expressão civilista dos direitos de personalidade, quanto nas questões patrimoniais com a advento de novas formas de riqueza e patrimonialização, diversos daquelas ligadas à propriedade material, móvel ou imóvel. Considerações da parte geral Ao longo do estudo, alguns dos conceitos e noções que foram estudados com fulcro na solução do problema, foram melhores compreendidas e são agora, e uma vez que sejam direcionadas ao tema, instrumentos dessa conclusão. 4) Aceitamos o fato de que não há como fugir por completo da noção utilitarista e da materialidade ética subjacentes às necessidades e interesses. Essas necessidades e interesses não são dadas ou constituídas ex-ante, mas sim, construídas no meio social, na percepção do relevo e da norma social, de forma argumentativa. Os direitos subjetivos privados são um reconhecimento construído de forma argumentativa, numa práxis dependente da própria forma jurídica e baseada na autonomia privada, como preceito de liberdade. Os direitos assim construídos são liberdades e não liberdades capazes de serem interpretadas como legítimas porque capazes de serem interpretadas conforme um sistema de princípios desenvolvido na sociedade de forma discursiva e, muitas vezes, positivada. O Direito, lembremos, é um sistema de princípios aberto ao futuro e o Direito democraticamente construído deve levar em alta conta a funcionalização social do indivíduo e dos bens. Ocorre aqui um aparente paradoxo. A restrição do acesso à informação alheia, longe de ser uma ocultação ou censura injusta, é feita para assegurar o livre exercício dos direitos de todos. O Estado como coletividade organizada tem por escopo proteger e sancionar os direitos individuais. O interesse público é a manutenção das liberdades individuais. Na concepção moderna, todo homem tem uma função social a desempenhar (e um dever social), como o dever de desenvolver sua individualidade física, intelectual e moral, tanto quanto lhe seja possível. Ninguém pode impedir esse livre desenvolvimento. 5) A informação, a estrutura da informação como bem jurídico, já não cabe dentro da teoria estruturante da relação jurídica compreendida entre o direito subjetivo de um titular e o dever específico de outro. Da mesma forma, as teorias dos bens clássicas, de carácter utilitarista, econômicos ou de necessidade, são ultrapassadas pelas necessidades atuais de regulamentação das relações sociais, públicas e privadas, para se situar em um espaço mais amplo, e por isso mais abstrato e, a princípio, menos seguro. A construção doutrinária se faz essencial, o papel confirmador do direito dado pelas decisões jurisprudenciais devem se basear, não só em questões de fundo, como a filosofia, a sociologia, a economia, a psicologia e a política, para ficar nos exemplos mais comuns, mas acatar e reproduzir como centro de interesse as formas de informação e como situação jurídica grande parte dos fatos que a envolvem e foram aqui discutidas. Alie-se a isso, indiscutível e essencialmente, o reconhecimento público da necessidade e do valor da informação. Considerações sobre o bem jurídico 6) A informação tem a polivalência de ser tratada ora como um bem de capital (patentes), ora como elemento da personalidade humana (direitos morais do autor e privacidade), ora como valor social a ser preservado (privacidade). A informação como um bem jurídico sucede a uma outra informação préexistente e de conteúdo comunicativo idêntico. A diferença entre elas é que uma recebe a atenção do mundo jurídico pela geração de situações jurídicas. Já sua irmã gêmea, seu decalque não jurídico, passa a existir somente no mundo comunicativo, com importância sociológica, antropológica etc, mas sem importância jurídica. 7) É bem jurídico tudo aquilo que a norma diz que é um bem jurídico. Entretanto não basta dizer essa condição sem que haja algum valor social que primeiro induza e depois suporte essa determinação. Esse valor pode ser moral, ético, econômico ou baseado em justificativas do interesse público ou do Estado. O BGB diz o que são coisas, mas diz também que o animal não é uma coisa, sem necessariamente especificar do que ele se trata. O valor social que suporta essa determinação reside nos sentimentos de reconsideração em relação aos animais, por parte dos seres humanos, notadamente os primatas superiores pela proximidade biológica. É necessária uma evolução educacional que conduza a população a esse sentimento, a esse valor que é produto de um pensamento mais sofisticado e que pode ser explicado pela escala das necessidades humanas. 8) Seria inócua uma estipulação legal de que as pedras comuns passem a ser bens jurídicos. Apesar da escassez que já atinge quase tudo que se encontra na superfície do nosso globo superpovoado, as pedras comuns ainda não possuem um valor econômico ou outro qualquer que induza a sua consideração como um bem jurídico, para fins de proteção do direito de seu titular. Outras justificativas além da econômica são formadoras de bens jurídicos, como o fruto do trabalho e os aspectos da personalidade e seu desenvolvimento. 9) Na definição da informação como bem jurídico deve-se apurar o relevo social da situação em que se encontra. Essa apuração ontológica é que gera a juridicidade da informação. A apuração ontológica é dada por uma função axiológica: o ser e o valor, e essa função axiológica não se dará pela intuição humana e muito menos por motivações de fundo baseada em aspectos morais particularizados, mas somente poderá alcançada a partir de uma consciência coletiva, que possa ser universalizada como se exige num Estado Democrático de Direito, e que admita sua existência e sua conseqüente tutela. Há uma mudança significativa. Os bens jurídicos passam a ser tudo aquilo notado pelo Direito, mas antes percebido pela Filosofia, Psicologia, Ciência Política, Economia ou ainda pelos desdobramentos evolutivos do próprio Direito. Apesar dessa relação, não são todas as percepções extra-jurídicas que se transformam em institutos jurídicos, posto que devem ser recepcionadas pela Ciência Jurídica. Caso haja um desequilíbrio entre a percepção extra-jurídica, ou mesmo jurídica, mas expressada somente em correntes minoritárias, a consciência coletiva e a técnica jurídica estaremos diante de uma situação crítica capaz de ensejar a alteração dos paradigmas jurídicos existentes. Um direito estabelecido e não reconhecido, seja pelos ramos de pensamento que nos fornecem as percepções, seja pela consciência coletiva universalizada, é típico dos estados totalitários e gerará uma reação negativa da sociedade. 10) É então um bem jurídico, toda singularidade transformada em necessidade e satisfação pelo consciente coletivo de uma sociedade, independentemente de suas características físicas. A necessidade exige o reconhecimento pela Ciência Jurídica e essa resulta na regulamentação sobre o bem. Bem jurídico é o ar puro que respiramos, a tranqüilidade e a intimidade da nossa família, a preservação do meio ambiente e a proteção dos animais, o direito de trabalhar e de participar da vida política, o direito de desenvolver sua personalidade conforme a própria maneira de ver o mundo. Dentro desse conceito de bem jurídico, não cabe falar unicamente em utilidade ou economicidade. Bem jurídico é uma singularidade sobre a qual incide um valor reconhecido pela sociedade e protegido pelo Direito. Ao se libertar dos requisitos da economicidade e da utilidade imediata, o conceito de bem jurídico também se liberta da relação com a necessidade de apreensão e da permutabilidade, pelo menos no seu sentido físico, não para abandoná-las, mas para reduzi-las somente àqueles bens dotados de economicidade. O conceito de bem jurídico atinge um ponto sem retorno do seu desligamento com as possibilidades da matéria. 11) Nesse cenário inserimos a informação. No variado elenco não-taxativo de formas com que foram apresentadas neste trabalho, a informação demonstrou a importância e a necessidade de seu estudo. Podemos evoluir para pensar que bem jurídico não é tudo aquilo passível de ser colocado em circulação, mas tudo aquilo passível de ser juridicamente protegido. Passamos de uma compreensão baseada na estrutura mecanicista da relação jurídica para outra estrutura, mais aberta, mais livre, baseada sobretudo nos valores humanos e da sociedade, protegidos por uma rede de deveres e de situações jurídicas. 12) Não ficou cabalmente demonstrado que a informação possa ser caracterizada, ela mesma, como um bem jurídico passível de proteção, como um objeto de direito independente de um outro direito. De resto, nada o é. Um diamante é objeto de um direito de propriedade, assim como um crédito é objeto de um direito pessoal e a imagem da pessoa é o objeto de um direito de personalidade. A informação como objeto jurídico está submetida a todas essas formas de manifestação do direito privado. São, aparentemente, conteúdos diferentes sobre uma mesma coisa, sobre um mesmo bem. Sobre esses variados conteúdos é que podemos especular poderem ser unificados sob uma mesma tutela jurídica. A se confirmar essa hipótese, caímos num aparente paradoxo onde uma mesma singularidade transformada em um mesmo objeto de direito e submetida a um mesmo conteúdo de direito são, na verdade, um mesmo direito. O paradoxo se daria pela conclusão de que a informação é, em todas as suas manifestações, um só direito, independente de sua justificação estar situada sob o signo dos direitos de propriedade, pessoais ou de personalidade. Mas não podemos afirmar isso ainda. 13) Nos parece claro que a teoria dos bens marcha a passos largos para mudanças importantes. Se a idéia de bem vinculada ao patrimonialismo já deixou de existir pela elevação do grau de importância dos valores extra-patrimonias, como aqueles protegidos pelos direitos de personalidade, falta-nos o passo seguinte, aquele que seria desconsiderar ou considerar relativo o requisito da apropriação da coisa tal como hoje a consideramos, ou seja, da dominação humana, do exercício do conteúdo do direito representado pelo ius excludendi alios. A desconsideração se dá para tê-la como requisito de um bem jurídico e consideração relativa se faz no sentido de tornar esse conteúdo do direito aplicável a qualquer bem imaterial e não só aos bens passíveis de apreensão física. A se implementar essa mudança, outra conseqüência será o do afastamento do requisito da permutabilidade e da limitabilidade. Então sobre quais requisitos se fundará o conceito de bem? Além do reconhecimento social, bastaria, mesmo se exigido fosse, a satisfação humana e o amparo da ordem jurídica. Dessa forma, poderemos incluir no rol dos bens jurídicos o ar que respiramos, o meio-ambiente distante, a água do mar e a biodiversidade. 14) O objeto de direito não é e não pode ser a pessoa humana, como poderia ser pensado, por exemplo, nas relações familiares. Em relação às pessoas, podemos exigir delas uma ação ou uma omissão sobre um determinado objeto de direito do qual temos a titularidade. Essa ação ou omissão corresponde, na verdade, ao conteúdo de alguns direitos, ou seja, aquele conjunto de poderes jurídicos cujo feixe constitui potencialmente o próprio direito e pelo qual uma pessoa pode exigir da outra uma determinada conduta, seja pela existência de um vínculo jurídico préestabelecido, seja pela imposição de um dever jurídico. Dessa mesma forma, o dever de resguardo à informação privada pela ordem constitucional e civil gera um direito subjetivo de todos poderem exigir o respeito à sua intimidade e privacidade, que não é um direito sobre a outra pessoa, mas um dever de conduta estabelecido no conteúdo do direito e sobre o qual é exigível, pelo titular, a ação ou omissão que o direito (e, as vezes, a lei) lhe garante. Esse vínculo jurídico entre as partes existe, queiramos ou não nos incluir nele, posto que é dirigido a todos. Diferentemente do conteúdo do direito estabelecido no vínculo familiar, onde o direito subjetivo se dá inter-partes, em face de uma outra pessoa já estabelecida, seja o pai, a mãe ou um parente próximo, quando tratamos da proteção à privacidade e à intimidade, cujo conteúdo do direito seja não propagar informações de que tenha conhecimento, o direito subjetivo se dá em oponibilidade erga-omnes, dirigida a toda a sociedade. 15) O estudo sobre a condição da informação abre, na atual e vetusta teoria dos bens jurídicos, uma cunha por onde novas idéias irão fluir. O reconhecimento da utilidade de um bem, sem interessar quem dele possa, de forma imediata, se beneficiar e colocando em segundo plano a circunstância econômica dessa utilidade, derruba, ou pelo menos coloca em xeque, a irrelevância jurídica das res communes omnium. Isso compreende do ar que respiramos ao conhecimento coletivo e esses clamam por tutela jurídica. 16) Podemos concluir contrariamente aos opositores da tese da inabilidade da informação como bem jurídico pela impossibilidade do gozo exclusivo. A postulação da informação como bem jurídico ultrapassa essa fronteira mecanicista, individualista e de caráter real, para ser reconsiderada em um novo ambiente cultural onde progride o discurso democrático e o consenso na valoração de novas singularidades imateriais e incorpóreas como bens juridicamente relevantes e, pois, tutelados no interesse individual ou social, patrimonial ou extra-patrimonial. Considerações sobre a tutela da informação 17) Resolvida a contento a questão da existência da informação como bem jurídico nos cabe aplicar sobre ela as faculdades, os deveres e os poderes concedidos pelo Direito para sua tutela. A utilidade social apreciável da informação deve encontrar no ordenamento uma avaliação em termos de merecimento de tutela 18) A proposta de construção de um Estado Democrático de Direito passa pela proteção que se exige para os bens jurídicos, especialmente aqueles advindos dos direitos da personalidade e dependerá não mais da ação passiva do Estado, de proteção perante demanda do interessado, mais de ações positivas de prevenção e proteção aos novos valores sociais. A tutela despendida na proteção da informação deve ser aquela dada pela ação positiva de um Estado fundado na ordem democrática de Direito, protegendo seus cidadãos das violações aos bens imateriais. Pela característica do bem e da violação toda a ação se torna idealizada. Nada de materialidade, quase nada de desforço imediato. Apenas compreensão e entendimento aos valores imateriais da pessoa e da humanidade. Essa é a proteção ideal. Não se pode, entretanto, dispensar a proteção pessoal, a ação do indivíduo ameaçado ou violado em sua esfera pessoal. Nesses casos, a demanda por proteção deve abarcar a ameaça, a violação e a recuperação dos bens. 19) Da mesma forma que o titular reconhecido de um direito sobre um bem corpóreo deve poder livremente usar, gozar, dispor e reaver o bem de quem injustamente o detenha, o titular de uma informação, independente da sua origem e do direito que representa, deve poder exercer as mesmas faculdades. Essa constatação nos é dada pela apreciação das manifestações da informação trazidas na parte especial deste trabalho. A informação pode ser alienada sob todas as formas jurídicas que permitem a alienação dos bens imóveis. Da mesma forma, o seu titular pode afastar toda a sociedade do conhecimento de uma informação que deseja permaneça oculta. Pode cedê-la ou torná-la pública pelo abandono. É possível que duas ou mais informações se mesclem numa confusão, como no caso das obras de arte complexas, nos programas de computadores e nos equipamentos de alta tecnologia com múltiplas patentes incorporadas. É possível ao titular da informação transferir a sua posse direta como nos contratos de know-how e joint-venture, mantendo consigo a titularidade da propriedade e também a posse direta, privilégio dos bens imateriais. Da mesma forma, pode confiá-la temporariamente a um detentor sem que com isso perca o poder de reavê-la e de delimitação a sua utilização. O último bastião da resistência é a utilização dos interditos possessórios. Se o direito ainda não o faz por uma interpretação conservadora das leis, devemos procurar demonstrar que as mudanças sociais e econômicas ainda não foram devidamente assimiladas pelo Direito e provocar essas alterações. 20) O entendimento de que a apropriação de um bem deve dizer respeito somente aos bens materiais e a tutela dos interditos possessórios não pode ser ampliada para abarcar todos os bens materiais (apreensão) ou imateriais, já não pode ser considerado uma verdade. A suposição é baseada numa compreensão parcial e excessivamente dogmática do direito de propriedade a partir do Código Napoleão. Não há inconveniente jurídico que impeça que a proteção concedida à posse pelo ordenamento possa ser imediatamente ampliada e utilizada para abarcar os bens imateriais. A ausência de uma tutela imediata daquelas informações que são o conteúdo de direitos da personalidade acaba por torná-lo, no caso, um direito sem aplicação imediata. Os remédios disponíveis para a proteção desses direitos acabam sendo as vias dos mandados de segurança e da indenização por danos morais. Ambos sofrem de dificuldades de aplicação, seja pela possibilidade dos particulares lesarem direitos de personalidade, seja pela característica a posteriori da indenização por danos morais. 21) Ao assumir o desenvolvimento da personalidade como justificativa ou motivação do direito, deixamos livre a sua tutela para as medidas já existentes nos direitos reais. Bens são coisas vistas pelo direito e a informação deve ser considerada como um bem, mesmo que esse bem jurídico não seja somente aquilo que possa ser retido pela pessoa, devemos aceitar que os direitos que a tutele possam existir com as faculdades semelhantes à apropriação. 22) Ao tratarmos da detenção, concluímos que é possível e aplicável esse instituto jurídico às informações. O detentor da informação, assim como o detentor da coisa corpórea, conhece da informação, mas somente pode utilizá-la nos limites traçados pelo seu titular ou possuidor. Ao fim do vínculo jurídico entre detentor e o titular do direito sobre a informação, o detentor não pode fazer uso da informação ao seu alvedrio. A possibilidade de posse da informação também é vislumbrada nos casos apresentados. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos contratos de cessão de informação como o contrato de know-how e joint-venture, que foram pouco explorados neste trabalho, mas compreendidos quando tratamos a informação como objeto do contrato. Por esse raciocínio, um contrato pode permitir o uso temporário de uma informação ao termo do qual fica o cessionário impedido de utilizar-se dela para quaisquer outros fins não expressamente concedidos pelo seu proprietário. 23) Com isso, podemos concluir que quando se trata de informação, o melhor seria protegê-la pelo conteúdo do direito e não com o objeto de um direito que muitas vezes se perde numa tutela difícil. Mesmo nos casos em que o bem protegido informação passa a representar um direito, pela representação de todo o seu objeto. A propriedade é um direito que se descreve pelas faculdades que representa. Ao protegermos essas faculdades estamos protegendo um direito que corresponde a um valor socialmente relevante. Da mesma forma, ao protegermos a privacidade, a intimidade ou outros direitos acabamos por confundir e nomear o valor como direito tentando protegê-lo, quando melhor seria proteger as faculdades que o compõem na mesma fôrma aplicada aos bens materiais submetidos ao direito de propriedade. 24) A doutrina deve provocar e a jurisprudência deve sedimentar. A partir de decisões menos dogmáticas e mais pragmáticas é que essas novas possibilidades poderão ser testadas. A partir delas, mediremos a aceitação pela sociedade das decisões judiciais sobre novos casos, se estão em consonância e não em contraposição ao que as normas sociais, anteriormente à lei, já adotavam ou aceitavam. No que diz respeito à informação, esse é o caminho. As normas sociais e os casos concretos andam a frente da percepção jurídica e da regulamentação estatal. Pela mutabilidade dos casos, não há como estabelecer regras ex-ante, aplicáveis a todas as possibilidades, mas somente normas de proteção gerais e abstratas. E evoluir a doutrina e os julgados conforme o aparecimento dos problemas, num modelo emprestado da Common Law e que o direito brasileiro tem aprendido a utilizar a partir das normas abstratas da Constituição da República de 1988. Considerações da parte especial 25) A compreensão do quadro jurídico que envolve o tema em muito depende, após uma compreensão inicial dos institutos básicos do direito civil, do trabalho de seleção e classificação dos casos empíricos, do encontro de elementos de conexão entre esses casos e da conseqüente denominação destas classificações. Essa tese trabalhou nesse sentido 26) Há uma evidente dificuldade na orientação do problema. Ainda que a cada manifestação empírica, trazida na parte especial, tenhamos conseguido argumentos suficientes para uma solução individual, algumas vezes ótima, outras menos do que razoável, uma idéia geral em torno do tema, uma linha mestra de raciocínio não ficou tão óbvia. Daí uma aparente desconexão entre as partes geral e especial. Estas partes serviram à abordagem proposta e as formas de raciocínio analítico de um lado, e global, pelo outro, na tentativa de construção de uma teoria geral. A compilação trazida na parte especial nos permitiu, pela aproximação dos fatos descritos e das soluções apresentadas, trabalhar com a analogia da aplicação das idéias de um para outro caso. O direito já percebeu a importância da informação, mas somente agora começamos a entender como ela é criada, usada e transmitida. Ainda temos um longo caminho pela frente. 27) Parece-nos claro que, em todos os casos estudados, a tensão no universo acerca da informação, amplo que seja o seu espectro, resume-se à tensão entre a criação e o uso. Naqueles casos onde os direitos sobre a informação são bastante definidos, como os casos que envolvem a propriedade intelectual, nas diferentes matizes, não mais se questionam a titularidade de direitos do criador e as formas de uso, gozo e defesa deste bem e direito. Lado outro, naqueles tópicos onde os direitos sobre a informação ainda não são suficientemente desenvolvidos, ou seja, quase todos os outros quadros empíricos apresentados, a dificuldade de uso, gozo e defesa pelo criador é evidente. A doutrina jurídica em torno de cada um desses direitos desamparados é vacilante e indecisa. A aplicação de um julgado raramente se desdobra, no mesmo sentido, em um outro caso. Muito disso, consideramos agora, deve-se a ausência de uma estrutura basilar em torno do trafico das informações, de uma estrutura sobre a qual possamos construir proteções jurídicas para todos os casos. Continuamos a escolher um argumento ali e outro acolá para proteger direitos que sentimos serem justos. Argumentos esses tão díspares quanto a utilização do direito constitucional ao trabalho para justificar o uso de informação alheia ou o direito à informação para justificar a bisbilhotice da imprensa em assuntos íntimos. 28) Nos casos estudados percebemos a similaridade entre o conteúdo dos direitos da informação quando essa é alçada à categoria de bem jurídico e ao conteúdo do direito de propriedade no que diz respeito às faculdades específicas atribuídas ao sujeito titular tanto de um, como de outro direito. 29) A informação representa riqueza. Quem a possui, pode mais. Um negociante que possua informações melhores que a outra parte é obrigado a compartilhá-las. O investidor que tenha acesso a informações privilegiadas não pode utilizá-las. Um Estado necessita de uma política de informações públicas onde torne disponível a maior quantidade possível de informações, estimulando a eficiência dinâmica e ao mesmo tempo, permitir que os proprietários possam ser recompensados pelo bem que criaram. A solução é que o Estado compre as informações e as torne públicas. Como públicas devem ser as informações que já pertencem ao Estado, com exceção das informações sensíveis à segurança nacional e daquelas que não pertencem ao Estado, sendo ele mero possuidor ou detentor. 30) As informações que pertencem a uma ou mais pessoas, como as informações genéticas ou relativas às atividades privadas seriam melhores tratadas e tuteladas pelos institutos do condomínio e da composse. Sobre a confirmação ou rejeição das hipóteses 31) O primeiro postulado teórico que lançamos no projeto da tese, ainda de bases empíricas, era de que a informação é um bem susceptível de apropriação, sendo sua vocação natural a de possuir, salvo exceção, um valor patrimonial. Da mesma forma, seria possível a apropriação da informação, em que pese a idéia de apropriação ser um conceito e uma idéia vinculados ao caráter corpóreo de um bem, da mesma forma que é ligado à patrimonialidade desse mesmo bem. Após o estudo podemos confirmar que a informação é um bem susceptível de apropriação, mas não ainda sem algumas dificuldades teóricas, mas principalmente, dificuldades práticas importantes. Para tal, teria que ser assimilada como um bem passível do objeto de direito de propriedade, seja a informação de valor patrimonial ou não. Essa última distinção é irrelevante. A possibilidade de apropriação é uma possibilidade que não se vislumbra sem dificuldade. A idéia de apropriação ligada à apreensão e domínio, mesmo tendo sido demonstrada um desvio histórico do Código Napoleão, é antiga e arraigada demais para ser facilmente contornada. Mas as hipóteses de apropriação são reais e factíveis. 32) Assim, a hipótese principal de que é possível um campo unificado do direito em relação às várias manifestações da informação na vida social, passível de tutela e de sistematização que deságüe na formação de uma teoria, não se confirmou de forma irrefutável. Podemos afirmar que existe a única possibilidade de uma unificação que se daria a partir dos institutos dos direitos reais. A afirmativa ainda é incipiente, mas as conclusões parciais acerca da teoria dos bens jurídicos, dos aspectos jurídicos da informação, dos direitos de propriedade e das manifestações da informação nos direitos constantes da parte especial, nos permitem avançar e propor essa unificação. 33) Em relação às outras hipóteses lançadas: a) Não foi constatado nenhum caso em que a informação possa, independentemente do direito do qual é conteúdo, ser considerada como um bem jurídico, por si só. A informação está coligada e é dependente de um outro direito que represente, ele mesmo, um valor social aceito e um valor jurídico protegido. b) A informação, mesmo incorpórea e sem valor patrimonial-econômico, é passível de apropriação com conseqüente bloqueio de acesso de terceiros. Em relação a essa hipótese não nos restou dúvida, apesar da previsível resistência da comunidade jurídica em aceitá-la, conforme já sinalizou a doutrina consultada. c) A informação não é o mesmo bem jurídico tanto para o direito privado, quanto para o direito público. Correspondem a ratio diferentes. Entretanto, podem ser protegidas com base nos mesmos institutos dos direitos reais. 34) Facilmente percebemos como a doutrina e a jurisprudência estão ausentes e vacilantes quando o tema abordado é a informação. Como prováveis causas disso, podemos enumerar: a complexidade do assunto, os desajustes provocados entre o novo bem jurídico e os paradigmas teóricos atuais do direito privado, o excessivo dogmatismo de nossa doutrina, o positivismo de nosso ensino jurídico e o despreparo, ainda, dos juristas, em trabalhar com bens imaterias, notadamente a informação. A singularidade é uma só – informação – mas a quantidade de direitos que se levantam em argumentos muitas vezes infundados, é vasta. De direitos da personalidade aos direitos de propriedade, tudo se utiliza para justificar a tutela da informação dentro de outro modelo jurídico ou normativo, menos dentro de um direito que seja baseado na sua própria identidade, o que compreenderia a sua relevância social, o seu valor jurídico e a sua proteção. E qual seria esse direito? Ao final desse trabalho, a título somente de provocação para os próximos trabalhos nesse tema, tendemos a aceitar o tratamento que os direitos reais dão à informação e, assim, localizá-la neste ramo do direito civil. Assim, independentemente da justificativa jurídica para a proteção da informação, seja ela o direito de privacidade, uma obrigação principal ou uma propriedade intelectual, a forma de proteção mais efetiva é a proteção dada a partir das faculdades do direito de propriedade. Voltamos às lições que sobre um mesmo objeto do direito, vários conteúdos são possíveis. Corroborando essa tese, notamos durante o desenvolvimento da parte especial que as faculdades do direito de propriedade, bem como as formas de sua tutela, inclusive os interditos possessórios, em muito se assemelham a uma proteção ideal da informação. Outros institutos aplicáveis às coisas e às propriedade, como o condomínio e a composse, são a solução para a proteção de informações compartilhadas por duas ou mais pessoas, o que ocorre nos casos da informação genética e nas informações de caráter existencial. Essa posição serve, inclusive, para ser aplicada à tutela da informação no âmbito do direito constitucional e administrativo. Nessa seara as informações podem ser consideradas como propriedade do Estado, o que lhes facilitaria o tratamento, o segredo e a divulgação, conforme o caso. O tratamento das informações de caráter público, em que pese a sua importância pública e seus diferentes escopos, não difere, na essência, do tratamento dado às informações de caráter privado. Resguarda-se, no caso, o interesse público representado pela manutenção das liberdades e que se satisfaz com a transparência dos atos do governo representada pelo acesso público às informações estatais. As demais informações em poder do Estado podem ser tomadas como: informações pertencentes aos particulares e somente de seu interesse e essas devem ser entregues incontinenti aos seus proprietários; ou informações pertencentes a terceiros, que foram permitido o conhecimento pelo Estado brasileiro e que passa a ser mero detentor da informação, não podendo utilizá-la sem permissão do terceiro e nem torná-la pública. BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA TÉCNICA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT 6023:2002. Rio de Janeiro. 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT 6028:2003. 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