Neuro blog - O homem que se vestiu de avião, dando asas à mente

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04/10/2006
O homem que se vestiu de avião, dando asas à mente
Outubro chegou e com ele a chance de celebrarmos novamente duas das mais
importantes conquistas da história da ciência brasileira.
Aliás, eu diria mais.
Se pudéssemos escolher um único mês que representasse a ousadia e a
criatividade da ciência nacional, não tinha para ninguém. Outubro ganhava de
goleada!
Tudo porque nesse mês comemoram-se duas das mais célebres façanhas de
Alberto Santos-Dumont, o maior de todos os nossos cientistas. Aquele que
assombrou o povo francês ao vivo, com a precisão dos seus vôos diários pelos
céus de Paris, e fascinou todo o mundo com a concretização do sonho coletivo
da humanidade de voar.
Na tarde de tempo dúbio e ventos traiçoeiros do dia 19 de outubro de 1901,
Santos-Dumont decolou do campo de Saint-Cloud rumo ao mais imponente
símbolo de modernismo francês da época: a Torre Eiffel. Após circundá-la com
manobras elegantes e precisas, Santos-Dumont retornou ao ponto de
decolagem sob o aplauso delirante da multidão que tomava as ruas de Paris.
O primeiro grande aeronauta demonstrava para quem quisesse ver que a
mistura de ousadia, tenacidade e paixão faz a gente voar.
Literalmente.
E foi justamente isso que Santos-Dumont fez.
Ele prometeu que iria voar e voou.
Como ninguem jamais havia feito.
Em pouco mais de 30 minutos, lá estava ele. Momentaneamente de volta ao
solo, ambiente hostil a esse homem-pássaro, ele ouvia a multidão reivindicar
que lhe fosse outorgado o primeiro grande prêmio da aviação: o Prêmio
Deutsch de La Meurthe.
Mas não foi fácil fazer história. Nunca é.
Devido a uma polêmica quanto ao momento preciso da conclusão da prova,
Santos-Dumont e os parisienses tiveram que esperar até o começo de
novembro para comemorar a decisão oficial do Aeroclube da França.
E como Paris comemorou! Como prometido, Santos-Dumont dividiu os cem mil
francos (mais juros) ganhos com o prêmio, metade entre os seus mecânicos e
o restante entre 3.950 pobres de Paris.
Cinco anos mais tarde, no dia 23 de outubro de 1906, Santos-Dumont
novamente assombrou os parisienses ao percorrer 60 metros de vôo, abordo
do seu legendário avião 14bis.
Quando eu era menino, e chegava o dia 23 de outubro, a maior neurocientista
que eu já conheci, minha querida avó Lygia, sempre me dizia:
“Hoje celebramos o dia em que o homem se vestiu de avião.”
Dona Lygia dizia isso porque sabia que, desde os seus primeiros dirigíveis,
Santos-Dumont havia criado um sistema complexo e eficiente de cordas, polias
e alavancas que o permitia sentir e controlar, como ninguém antes o fizera,
todos os componentes principais de cada uma das suas aeronaves. Tantos
eram esses instrumentos de controle que muitos que vistoriavam essas
aeronaves julgavam impossível que um homem só desse conta de manuseálos.
Cem outubros depois, a neurociência talvez possa explicar esse fenômeno.
Hoje nós sabemos que através de um processo chamado plasticidade neural
(ou neuronal, para contentar a todos), múltiplas áreas do cérebro que contêm
representações completas do nosso corpo alteram continuamente essas
representações (ou mapas) ao longo de toda vida. Tais alterações ocorrem
devido a mudanças que podem ser corriqueiras (mudanças de peso) ou mais
dramáticas e raras (amputação de um membro) na configuração espacial do
corpo. Na maioria das vezes, todavia, esses mapas cerebrais se alteram
devido à prática constante de tarefas motoras especializadas, ou como
resultado da mudança nos hábitos de exploração táctil do ambiente. Por
exemplo, ao longo de suas vidas, pianistas e violinistas desenvolvem
representações cerebrais dos dedos das mãos muito maiores e mais
elaboradas do que a maioria da população.
Recentes resultados sugerem que essas representações cerebrais do corpo
também sofrem alterações correlacionadas ao tipo de ferramenta utilizada no
dia-a-dia. Por exemplo, devido à prática constante, tenistas profissionais
provavelmente incorporam suas raquetes como simples extensões das
representacões cerebrais de seus braços e mãos.
Em outras palavras, a criação passa a fazer parte do criador.
De acordo com essa teoria, quanto mais eficiente a incorporação da ferramenta
pelo cérebro, melhor seria a destreza e precisão com a qual o operador a
utilizaria.
Assim, é plausível postular que, ao longo da sua carreira de aviador, com a
prática de vôos constantes, o cérebro de Santos-Dumont provavelmente
desenvolveu a capacidade de incorporar todos os componentes de suas
aeronaves; estabilizadores, asas, pneus, como se eles fossem nada mais do
que parte do seu próprio corpo.
Dessa forma, através da plasticidade cerebral, ao subir em seus pégasos feitos
de seda japonesa e cordas de piano, o franzino conterrãneo, subitamente, se
transformava num gigante pioneiro.
Aeronauta da humanidade.
Cientista brasileiro.
Corpo de avião.
Cérebro com asas.
Dona Lygia, quem diria, mais uma vez tinha razão.
Imperdíveis leituras pra esse outubro mais do que histórico
"O que eu vi, o que nós veremos". Alberto Santos-Dumont. Editora Hedra, São
Paulo, 2002.
"Santos-Dumont e a invenção do vôo". Henrique Lins de Barros. Jorge Zahar
Editor, Rio de Janeiro, 2003.
"Asas da Loucura". Paul Hoffman. Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2004.
Miguel Nicolelis, para o G1
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