Neutralidade Explorando os limites do campo analítico

Neutralidade
Explorando os limites do campo analítico[1]
Vera Lucia Blank Gonçalves
“A verdade não se alcança mas “existe”. Em simbiose, pensamento e
pensador se combinam e se transformam por equivalência. O pensamento
é imanente e o pensador evolui.”
Bion (1970)
Esse trabalho trata das transformações psíquicas vividas pelo analista, em decorrência do
seu trabalho. Ao se colocar na relação analítica de uma maneira viva, o analista também está
sujeito às mudanças psíquicas transformadoras da dupla. E aí uma questão se impõe para
mim, muito perturbadora porque gera uma série de questionamentos: como fica hoje o
conceito da neutralidade do analista ? Até onde pode o analista demonstrar seu interesse pelo
paciente, sua expectativa, a paixão pelo seu trabalho? E sem paixão pode o analista exercer
tão difícil tarefa?
Vimos recentemente no cinema o filme “A Máfia no Divã” onde esse tema fica muito em
evidência ao mostrar, numa sátira, a postura do analista, seu envolvimento fora do setting
analítico, o desejo de curar, a situação transferencial...Mas, como é isso dentro do setting
estabelecido, protetor... Estaremos por acaso menos suscetíveis de transformações?
Penso como era para mim essa questão da
neutralidade quando iniciei a minha
profissão, tão presa eu estava a modelos identificatórios que me tornavam uma mera
repetidora de supervisores e analistas, procurando me encontrar... Mas esse encontro se deu
através da minha experiência, adquirida ao longo do meu trabalho. Espero demonstrar,
através de vinhetas clínicas que foram me ocorrendo ao estudar esse tema tão difícil na
prática, a minha melhor compreensão e a minha transformação...
O que vem a ser a “neutralidade “ do analista, um dos pilares do método psicanalítico ?
Segundo Eizirik (1991,p.1), o termo neutralidade não aparece na obra original de Freud, que
nunca usou a palavra alemã Neutralitaet em seus escritos teóricos ou técnicos. O termo
empregado por Freud foi “Indifferenz” traduzido por Strachey como “Neutrality”. Indifferenz
pode ser usado, tanto no alemão como no inglês, no sentido científico de imparcial quanto ao
resultado. Os termos se confundem e é comum virar muitas vezes uma acusação do paciente
ao analista de que este é frio, sem sentimentos, indiferente, distante. Indiferença indica
também uma rigidez emocional no analista ou uma defesa contra seus sentimentos ou
impulsos.
Neutralidade descreve uma atitude geral do analista e envolve seu código de ética
profissional, isto é, respeito pela individualidade do paciente, o direito do paciente de dirigir
sua própria vida, sem ser invadido pelas preferências e gostos do analista.
O termo “neutro” hoje em dia está em desgaste : não existe nem na física nem na
matemática. Falamos então de uma neutralidade ativa, com disponibilidade para a verdade,
para a transformação . Na medida em que Freud abandonou o método de sugestão, o que
implicava numa influência deliberada do terapeuta sobre o paciente, foi sendo introduzida a
idéia de neutralidade. Freud (1912) em “Recomendações aos médicos” dá uma idéia do que
se pode entender por neutralidade :...”O analista à semelhança do cirurgião deve ter apenas
um objetivo : levar a bom termo a sua operação, com o máximo de habilidade possível.” Em
‘Linhas de progresso na terapia psicanalítica” (1918 ) recomenda Freud : ...” não procuramos
nem formar por ele o seu destino, nem incutir-lhes os nossos ideais, nem modelá-los à nossa
imagem com o orgulho de um criador”.
A exigência de neutralidade é estritamente relacionada ao tratamento; constitui uma
recomendação técnica. A neutralidade não qualifica a pessoa real do analista, mas a sua
função: aquele que fornece interpretações e suporta a transferência deveria ser neutro.
Laplanche
e
Pontalis,
no
“
Vocabulário
de
Psicanálise”
assim
traduzem
o
termoneutraliade: “Uma das qualidades que definem a atitude do analista no tratamento. O
analista deve ser neutro quanto aos valores religiosos, morais e sociais, e abster-se de
qualquer conselho”... ”neutro” quanto às manifestações transferenciais, isto é, “não entrar no
jogo do paciente” ...
Habitualmente as menções a esse fato se reduzem a descrever os processos
denominados contratransferenciais do analista, com a conotação de ser uma reação
transitória, que através da auto análise do analista é elaborada e se dissolve. Um acidente de
percurso, como diz M.Franco, do qual o analista deve sair incólume, tal qual entrou na
sessão... Mas esses não dão conta de descrever uma série de transformações duradouras. A
contratransferência é o ponto central para o analista manter sua neutralidade, e se torna uma
decorrência da sua própria análise.
Cria-se assim uma situação de impasse : de um lado, temos que defender a noção de
neutralidade do analista e de outro, o que a prática clínica e a experiência nos mostram , que
o analista é mais que um espelho.
Uma das mais importantes contribuições de Bion ao pensamento psicanalítico é a
investigação do funcionamento e da interação entre as partes psicóticas e não psicóticas da
personalidade. Bion não estabelece a distinção clássica entre Neurose e Psicose . Ele postula
uma “essência psíquica”, o “O” , que irrompe na totalidade do ser à procura do seu destino.
Esse destino depende das origens e vicissitudes da capacidade de pensar, que por sua vez
depende da forma como a função materna, que ele chamou de rêverie , é internalizada pelo
bebê. Bion percebeu que a teoria da Identificação Projetiva que M. Klein descreveu como
mecanismo de defesa tem uma outra função: a de ser o método originário de comunicação
das necessidades psíquicas. Portanto a mãe, para exercer sua função, necessita conter as
identificações projetivas de seu bebê, entendê-las (intuitivamente ) e devolvê-las de forma
adequada. A evolução bem sucedida dessa devolução dá origem à parte não psicótica do
self. Ao contrário, a falência dessa função vai produzir a parte psicótica: ambas se mantém
em desenvolvimento ao longo de toda a vida. Em outras palavras, a falha da função materna
pode ser considerada uma falência da capacidade de amar, produzindo uma vivência
extremamente dolorosa de contato com a realidade, contra a qual o sujeito se defende
fugindo das experiências emocionais. Como é delas que decorrem os significados, quanto
mais ativa é a parte psicótica, maior é a perda de significados das comunicações.
Portanto, com Bion , não mais está em jogo o quanto pode fazer o analista ou o
analisando, mas o par. As defesas do analista, sua capacidade de transformar os elementos
beta do paciente e dele próprio, é que escreverão a história da análise. Não está mais em
jogo o trabalho sobre a repressão ( Freud ) ou sobre a cisão (Klein) e sim sobre o “lugar”
para pensar os pensamentos, detendo-se mais no continente que no conteúdo. 1
Mas, como é possível a passagem da neutralidade à transformação? A passagem de
“K” para “O” sem que o analista aceite, ele também, seus momentos de desorganização
indispensáveis?
Em relação ao conceito de Transformação (Bion), mais abrangente que o conceito de
Transferência na prática psicanalítica, mudanças verdadeiras e significativas costumam vir
acompanhadas de sensações catastróficas de um medo de enlouquecer. É justamente neste
momento que a capacidade de rêverie do analista se torna de fundamental importância no
destino do processo analítico. Bion designa com a letra O um ponto de origem de uma
verdade que não se consegue conhecer, a não ser através de produtos das suas
transformações. Chegar a O significa que o analisando venha a ser o que ele realmente é.
Nas formulações mais atuais, a situação analítica é vista como resultado da interação
entre duas subjetividades sempre presentes. O campo analítico se institui a partir de ambas (
Baranger & Baranger,1961 ).
1
Pagliuch,V.L.,1998 em “Um encontro com A. Ferro”.
Ferenczi (redescoberto) já em 1928 valorizava a natureza vincular da relação analítica
com sua técnica sobre análise ativa. Winnicott, Alvarez, Antonino Ferro, Baranger e tantos
outros.
Quando Freud, em sua primeira teoria da histeria, acreditava ser a neurose produto de
uma situação traumática real -- de origem sexual -- vivida pelo indivíduo na primeira infância,
buscava através de transformações trazer à tona essa memória reprimida; mais tarde
concluía que a patogênese de uma neurose não estava apenas na lembrança reprimida, mas
sim em fantasias inconscientes.
M. Klein (1946) e seu conceito de Identificação Projetiva forneceu uma resposta à questão
de como, no paciente neurótico, as fantasias inconscientes vêm a se tornar ilusões
inconscientes: na medida em que o sentimento de que partes de si mesmo podem ser
projetadas para o mundo externo, dando a elas o status de realidade concreta, essas
fantasias passam a ser vividas como verdades (elementos beta) dentro da realidade psíquica
do paciente.
A verdade em Psicanálise é um consenso simbólico : é a experiência que vai dizer sobre
a verdade. O método psicanalítico é um método baseado no amor à verdade. Nesse sentido
fica fortemente apresentado como método de investigação dos processos inconscientes.
Esse conceito teve implicações óbvias para a compreensão da Transferência, agora
sendo vista como uma repetição da relação do paciente com os objetos do seu passado, mas
re-encenada no presente com o analista, ao invés de re-lembrada como parte do passado. O
paciente vê e sente o mundo externo de acordo com a sua visão interna de mundo -- sua
fantasia subjetiva -- e precisamente a essa distorção chamamos transferência.
“Enquanto a análise não atingir aquele ponto em que é capaz de desfazer a confusão
entre realidade interna e externa, suas lembranças do passado devem ser tomadas com certa
reserva”.2
Relato da paciente A (no início do tratamento) :
--- “Minha mãe era louca, quis se matar na frente dos filhos, tomando vários
comprimidos... Eu cuidava de meus irmãos menores ... não me lembro da minha mãe
brincando comigo. Só uma vez ela sentou numa mesinha e brincou comigo ...”
Trata-se de uma pessoa extremamente angustiada, em análise há cinco anos, com
sessões em que predominam longos silêncios, às vezes total silêncio; quando tentava me
aproximar, muitas vezes me disse:
2
Caper,R. em “Realidade psíquica e Interpretação da Transferência”.
--- “Eu não vou lhe dar o gostinho de saber de mim...” ou de outras vezes, menos
perseguida, se dava conta de que não era eu : “Não é com você, é comigo -- eu não me
suporto.”
Ao longo desses anos, a transformação sofrida na dupla, analista e analisanda, foi
ocorrendo. A função de continente do analista não é a de um mero recipiente para as
angústias do paciente; pelo contrário, se trata de um processo ativo. No modelo continente contido o analista deve ser capaz de acolher as angústias do paciente e devolver sua carga
projetiva devidamente desintoxicada e com um nome e significado.
Psicanálise é uma experiência afetiva da realidade psíquica com o paciente. Os objetivos
do tratamento mudaram, à medida que a Psicanálise amadureceu: a compreensão da
transferência, buscando re-significar os elos perdidos, não mais para resgatar o passado, mas
no aqui e agora, no presente. A transferência é a possibilidade para que, através do analista
,se atualizem os conflitos.
“O passado do paciente (principalmente sua versão da personalidade dos pais) tende a
mudar no curso da análise. E isso ocorre de modo perfeitamente paralelo à mudança de
percepção que o paciente tem do analista”. 3:.
A decodificação de significados cede lugar à construção de sentidos . Interpretação e
Construção são conceitos diferentes mas não se excluem, para Freud. São abrangentes e
intrinsecamente pertencem ao mesmo espaço: espaço-tempo na mente, onde passado e
presente estão contidos... novas histórias se apresentam ao par para serem pensadas, como
uma proposta de um sentido insaturado (Bion) – “sem memória, sem desejo, sem
compreensâo .” Bion refere-se tão somente aos aspectos que saturam excessivamente a
mente do analista, sendo a mais discutida por provocar confusão e distorção do seu
verdadeiro significado a questão da memória. Mais do que uma proposta de modificação da
técnica, o que Bion postulou era uma mudança na atitude interna do analista, com uma certa
privação dos órgãos dos sentidos, que possibilitasse o máximo de intuição. Bion
fundamentou-se na atenção flutuante de Freud, (em carta para Lou Andreas Salomé -1916)
quando diz: “O analista deveria cegar-se artificialmente para poder ver melhor esses lugares
obscuros”. É do próprio Bion o seguinte trecho : “ Descarte-se de sua memória, de seu
desejo, esqueça-se de ambos, livre-se das certezas...para deixar espaço para uma idéia
nova. Pode ser que um pensamento, uma idéia não reivindicada, esteja flutuando pela sala
procurando por um lar. Entre essas, pode ser que haja uma que seja a sua, que parece brotar
do seu interior ou de fora de você, ou seja , do paciente”.
3
Caper,R., idem.
Essa recomendação refere-se ao inconsciente, sob a forma de pré-conceitos, pré-juízos e
de uma pouca receptividade, decorrente da mente do analista estar saturada.
Quando Bion se refere aos desejos, ele fala daqueles conscientes também, como o
desejo que a sessão termine logo, que o paciente o gratifique...porém o que se destaca é o
risco de que o analista tenha um desejo permanente de cura. ”Memória e desejo são
iluminações que destroem o valor da capacidade do analista de observação, como a
penetração da luz numa câmera destrói o valor do filme “( Bion).
Diz Rezende (1993) : “As estrelas somente são visíveis no escuro”.
Há mais ou menos dois anos atrás, esta paciente adormeceu numa sessão e durante o
seu sono eu me senti como a mãe que vela o sono do bebê. Ao dizer isso a ela, após um
breve silêncio diz com emoção :
--- “Será que a minha mãe sabia de mim?”
Essa paciente
evoluiu lentamente, com
nítidos momentos em que
a
transferência tinha características de transferência negativa: extrema inveja, agressividade,
alternada com momentos de delicadeza no falar comigo fora das sessões, no cuidado em me
avisar quando faltava etc.
Relato de uma semana atrás. Nessa sessão me atraso 7 minutos. Assim que se deita
no divã
fala que
está vivendo uma fase muito boa com sua família -- seu marido e seus
filhos. Mas que quando qualquer um deles se atrasa fica preocupada, aflita de que algo ruim
possa ter acontecido a eles. “Hoje, pela primeira vez, eu senti isso em relação à você... Não
digo nada, e ela continua: na minha família há muitas mortes por desastre: meu tio, meu
primo, um cunhado do meu marido ...
E eu completo a frase, pois omitiu uma morte por acidente de carro muito significativa
para ela. --- “Sua mãe”...
Nesse momento ela não consegue falar mais nada. Pensei no que eu significava para ela
agora, mas me calei. Não havia lugar para palavras. A emoção estava viva ali entre nós duas,
no “campo”.
Construção em psicanálise, mais abrangente que o próprio conceito de transferência, é
que permite a retomada da cadeia associativa, re-significando os elos perdidos.
A análise , para o paciente, tal como existe em sua realidade psíquica, pode ser sentida
de duas maneiras:
1ª) Todos os modos pelos quais o analista tenta se comunicar e 2ª) o modo como o
paciente transforma as palavras e os atos do analista, o seu modo particular de
interpretá-las.4 Podemos dizer: o paciente reagiu “como se” tivéssemos dito isso ou feito
aquilo. Essa
transformação
constitui a
transferência. Os modos pelos
contribuição
inconsciente
do
paciente
à
quais distorcem a interpretação também são de grande
interesse para melhor compreensão do paciente, que se torna “o melhor colega que se possa
ter”,5 porque descreve ao analista o seu distanciar-se ou a sua intolerância ao que ele ,
paciente, diz.
O conceito de transformação do Bion objetiva esclarecer a cadeia de fenômenos que se
passa entre analista e paciente, para compreender a evolução da experiência emocional entre
ambos. São exemplos de transformação na situação analítica : os sonhos, os sintomas, a
passagem do pensamento para o verbo e para o acting-out, o fenômeno da transferência e a
interpretação do analista. Nenhuma transformação pode ocorrer sem a concomitância de uma
experiência emocional.
Para Bion, uma interpretação é uma “transformação “ que se processa dentro do analista ,
no correr da sessão e visa a obter “transformação” no paciente. Quando isso ocorre no
processo analítico e se superam as dores que acompanham os estados derivados de uma
mudança catastrófica , o paciente se sente recompensado por uma sensação de
autenticidade e de liberdade.
Recentemente essa paciente me traz o seguinte sonho : “estava andando por uma rua, ou
estrada, não sei bem. Vinha com um amigo de mãos dadas . De repente esbarro num latão de
lixo que estava no caminho e cai um monte de lixo e papéis usados. Eu fico muito assustada
porque sabia que aquilo era meu. Mas ele não se assusta e recolhe com as mãos os papéis
sujos, sem nojo. Acordei e pensei que esse amigo é você, Vera. É você que não tem medo
das minhas angústias”.
Relato da paciente B -- uma mulher de aproximadamente 50 anos, gêmea, nasceu mais
fraca, com problemas cardíacos, fato que na sua infância, significava grandes desvantagens
em relação à irmã saudável. Na sua infância , por ser amblíope, precisava tampar a vista
para exercitá-la, o que lhe causava grande vergonha e sofrimento.
Relata que se sentava à esquerda de seu pai, às refeições, para que ele não olhasse para
seus olhos, pois ficava muito aborrecido e irritado com isso. “Se nem meu pai gostava de
4
5
Caper,R., idem
Ferro, A. (1995) em “A Técnica na Psicanálise Infantil “.
mim, e olhava para mim , quem vai gostar?” Em outros momentos conta ser o pai quem
cuidava dela nas doenças, quem ficava com ela nos exercícios para a vista, o que me parecia
ser um pai extremamente dedicado e amoroso, mas que era visto e sentido pela paciente
como pai autoritário e até cruel. Sofre até hoje com problemas de visão e recentemente teve
um descolamento da retina, o que veio a lhe causar sérios transtornos.
Nessa sessão vem muito queixosa, relatando que está muito esgotada, que seu trabalho
exige que bata laudos no computador, trabalha à noite, não enxerga bem mas “não dá o
braço a torcer.” Se não for ela a fazer isso, o marido não faz como ela. Mas se ficar sem esse
trabalho se sente imprestável. Da mesma forma sua relação com a filha, que teve bebê, e
a solicita para ir a São Paulo ajudá-la. “É lindo o meu netinho” ... mas vou dirigindo, não
enxergo mais, adoro dirigir, não tolero ir de ônibus, pegar metrô. Vou literalmente quebrando a
cara ... Fico muito cansada!”
Digo-lhe que sua relação com o trabalho assim como com seu neto é amorosa, mas
reconhecer seus limites nessas situações também é uma questão de amor para com ela
mesma e com seus objetos.
Ouve em silêncio, interrompendo de chofre a fala, ao que lhe digo que me parece que
ouviu o que eu lhe disse como crítica, ao invés de colaboração.
Na sessão seguinte, surpresa, escuto: “Você ficou muito brava comigo ontem, Vera”!
Isso me soa estranho, esforço-me para saber a que fato se refere, então a paciente diz:
“Vou subir para São Paulo de Expresso: pronto, resolvi o problema! Assim você não
precisa ficar brava comigo!”
Digo-lhe que ela me vê assim como o pai bravo que exigia que usasse os óculos
tampados para não forçar a vista, eu me tornara também um “pai bravo” quando apontava os
seus limites; que a criança que ela foi não aceitava e não compreendia esses limites, mas a
mulher adulta que ela era poderia compreender e transformar a relação dela com seus
objetos numa relação amorosa, pois o meu cuidado com ela era por amor a ela.
Nesse momento eu me transformei no pai bravo visto pela paciente, cheia de desejos por
ajudá-la.
Mello Franco, Odilon, em seu trabalho: “Mudança Psíquica do analista: da neutralidade à
transformação, refere-se a
Searles” no esforço que analisandos psicóticos fazem para
habilitar a mãe (e no contexto, o analista) a se tornar uma mãe completa e afetiva. A não
compreensão dessa função do analisando por parte do analista, através de interpretações
centradas nas atuações do paciente, viria a repetir situações na vida passada do analisando,
que levaram tais impulsos a serem reprimidos, e então transformados em sintomas.”
Paciente C -- uma moça homossexual, em análise há 1 ano. Controladora, me presenteia
com poemas seus, livros, numa tentativa de sedução que me incomodava. Descobriu minha
data de aniversário, lugares que freqüento, tentando encontrar-se comigo fora das sessões.
Digo a ela que me sentia como um peixe que ela tentava fisgar -- mudando de margem,
trocando de iscas ...o que me causava grande desconforto.
Numa sessão relata sobre o controle que sua mãe exerce sobre ela, exigindo só sua
presença para ir ao médico, para tomar remédios, quer saber de sua vida ... Não consegue se
livrar dessa mãe... Enquanto relata, compreendo ser exatamente assim que me sinto em
relação a ela, e que estava, através da identificação projetiva, me comunicando o quanto se
sente controlada e invadida por essa mãe.
Quando digo isso a ela, a paciente se surpreende e me diz: “Sou tão terrível assim? Que
horror !” Digo-lhe que esse era o modo como ela me comunicava o quanto ela sofria em
relação a esse controle, mas que na realidade nem ela nem sua mãe controlavam nada. A
partir dessa compreensão houve uma transformação em mim -- metabolizando minhas
próprias reações, valores e preconceitos e uma transformação na paciente, que se tornou
menos perseguida, e a nossa relação pode seguir mais relaxada.
Ao descrever essas vinhetas clínicas, consegui compreender o conceito de neutralidade
psíquica que me parecia incompreensível : algo mais que um desconforto, algo mais do que
uma angústia, algo mais estrutural que pode acontecer com o analista, pelo fato dele estar no
campo, transformando essas vivências, pela sua própria análise e desenvolvimento, em
conhecimento de si mesmo.
Conceito de “campo”: “a situação de análise como a de um campo bipessoal no qual se
conhece somente a fantasia inconsciente de par”.6
Com a paciente A, aprendi a lidar com a angústia de não saber, de aguardar, de entender
que a transferência é a possibilidade para que o conflito se torne atual (com o analista),
embora remeta a um passado, que não é com quem é, mas com quem representa. E isso me
ajudou a tolerar a agressividade, a raiva projetada em mim, a dor da paciente.
“Psicanálise é a relação humana na qual o analista minimiza ou controla suas próprias
necessidades num esforço para perceber as necessidades do paciente terapeuticamente. Em
qual outra situação pode uma pessoa dizer o que deseja, ser compreendida dizendo,
provocando freqüentemente reações emocionais no outro e não ser repreendida, censurada,
desencorajada ou punida?
6
Ferro, A., idem.
É a neutralidade que diferencia a ajuda que o paciente obtém do analista de qualquer
outra ajuda externa. Sem esse espaço neutro o analista não poderia olhar o conflito de seus
pacientes com necessária objetividade.” 7
Com a paciente B, aprendi a lidar com a angústia do paciente que não ouve, que não
pode evoluir, que não aprende com a experiência, porque talvez durante esse tempo eu
ficasse como esse pai querendo forçá-la a enxergar algo que não era possível para ela: eu
também não enxergava nem compreendia os seus limites...
Segundo Laplanche e Pontalis (1973), neutralidade é uma qualificação que diz respeito à
função do analista: a pessoa que interpreta e que sustenta a transferência deve ser neutra
“...” 8
Com a paciente C, aprendi a perceber melhor meus sentimentos contra-transferenciais,
re-significando o meu próprio mundo mental.
Percebi mudança de valores em mim -- da expectativa de “mudar” o paciente para o
verdadeiro significado do termo “neutralidade”, não compreendido erroneamente como
“indiferença” mas como uma disponibilidade para a verdade.
Numa
relação
analítica
estabelecida
de
forma
que
a
neutralidade
signifique
disponibilidade para o novo, todos os valores do analista e sua própria identidade se colocam
em risco, ou seja, passíveis de mudança.
Situação paradoxal do conceito e de sua aplicação prática, pois em ordem de manter a
aparência de neutralidade, o analista não pode ser neutro.
De la Torre, em seu trabalho, examina três componentes desejáveis de neutralidade: 1)
que o analista possa usar de abstinência, no sentido de frustrar seu paciente em seus
desejos para com ele, transferencialmente; 2) a necessidade do anonimato, para dar ao
analista a necessária distância para receber e interpretar as identificações projetivas e 3)
passividade e atividade : passividade freqüentemente confundida com fraqueza,
insuficiência, falta de iniciativa; isto está longe do que significa neutralidade, e se torna uma
caricatura desta, pois o analista fica entrincheirado em suas defesas, o que prejudica o seu
desempenho.. Receptividade, respeito à não intrusão, aceitação e tolerância às distorções
que os pacientes fazem transferencialmente são mais aptos de capturar os elementos
passivos da neutralidade. A compreensão do processo requer uma grande dose de técnica
ativa, (Ferenczi) viva, de re-significação também para o analista.
7
8
De la Torre, J. (1977) “Psychoanlytic neutrality : an overview”.
De la Torre, J.,idem.
Tendo em vista que a finalidade de um tratamento psicanalítico é a obtenção de um
crescimento mental, o significado desse termo deve ser claramente distinguido da “cura”, tal
como se usa : não dá para tirar a “dor” do caminho do paciente. Ele tem que, ao contrário, ter
e conter a experiência da própria dor mental para se desenvolver e aprender a pensar. Assim,
crescimento mental vai muito além do alívio de uma dor, da supressão de sintomas, ou de
adaptação social /profissional. Ao contrário, ao invés de um” fechamento” tranquilizador, o que
se espera é que a análise propicie novas aberturas, em um processo interminável – o do
paciente e o do analista.
Como teoria de Bion, o termo Transformação não significa necessariamente mudança ou
evolução no sentido comum em que são empregados. Etmologicamente, Trans + formar
significa formar para além .Consiste na aquisição de novas formas no paciente, no analista,
no processo analítico.
Referências Bibliográficas
Bion, W. R. (1970) “A atenção e interpretação”
Caper, Robert (1996) “Realidade psíquica e interpretação da transferência. -- em Rev. Id,
nº 29.
De la Torre, Jorge (1977) - “Psychoanalytic neutrality: an overview”
Eizirick, C.L. (1991) - “Da teoria à clínica: a questão da neutralidade e suas repercussões
transferenciais e contratransferenciais. Trabalho apresentado no 13ª Congresso Brasileiro
de Psicanálise, SP 1991.
Ferro, Antonino (1995) - “A técnica na psicanálise infantil”
Mello Franco F., Odilon (1994)- “Mudança psíquica do analista: da neutralidade à
transformação in Rev. Bras. Psicanálise, 1994 - vol. 28 nº 2
Pagliuchi, Vera L. Palma (1998) -“Um encontro com Antonino Ferro” trabalho apresentado
na SBPSP em 23/05/98.
Zimerman, David E. (1995 ) - “Bion: da teoria à prática- Uma leitura didática.
[1]
Tema Livre apresentado no XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise - SP - 2001.