GEOGRAFIA E ACÇAO Introdução à Geografia Aplicada Por MICHEL PHLIPPONNEAU Professor na Faculdade de Letras e Ciências Humanas & Rennes Professor convidado na Universidade de Montréal 1964 EDIÇÕES COSMOS LISBOA. EXPLICAÇÃO Planejara-se o Panorama da Geografia em quatro volumes, de modo a abarcar desde a geografia física a geografia cultural, ou seja, todos os aspectos da influência do meio nas sociedades humanas esforço de humanização da paisagem. Mas esbarramos com insuperáveis dificuldades na realização desse plano. A geografia social é domínio inteiramente novo, onde por enquanto só se contam monografias e nenhuma síntese (o que o anglo-saxônicos chamam social geogaphy é a nossa geografia humana); os geógrafos, nacionais e estrangeiros, convidados a lançarem ombros à tarefa, reconhecendo embora que ela se impõe com urgência e poderá mesmo representar uma viagem nos estudos geográficos, tem recuado ou pelo menos adiado o empreendimento. Não é tão grave, aparentemente pelo menos, o atraso quanto à geografia cultural, mas também aqui continuamos sem dispor de uma panorâmica de conjunto actualizada e autorizada, embora já haja quanto a alguns dos capítulos essenciais. No que respeita à geografia política, houve que aguardar a refundição e ampliação que Gottmann ultima da primeira traça que dela nos dera. Nestas condições pareceu-nos melhor lançar uma série complementar aos três volumes do Panorama da Geografia já publicados, onde, iremos realizando a Parte final do plano à medida que surgirem os trabalhos capazes de a preencher, e onde, por outro lado, graças, a esta fórmula mais flexível, incluiremos outras obras sobre problemas inicialmente não previstos ou, de actualização, complemento e nova visão dos problemas já abordados. Iniciamos esta Série complementar com uma Geografia Aplicada tema que quase nem se suspeitava há uma dezena de anos. V. M. G. GEOGRAFIA E GEOGRAFIA APLICADA A ciência nasceu do pensamento mítico, do pensamento mágico e do pensamento prático, mas graças a uma tríplice ruptura com eles e à fusão desses factores com passagem a um outro plano. Desligou o mito do rito, quebrando o princípio da unanimidade colectiva sagrada pela busca pessoal e livre de uma universalidade racional; mas do mito reteve de início muitos dos elementos de explicação e sobretudo a tensão de dar-se conta do mundo e do próprio homem. Da magia herdou essa afirmação de personalidade face ao colectivo e a ânsia de agir no mundo, mas escancarando o esotérico em público. A prática legou-lhe relações empiricamente estabelecidas, que agora se elevam ao plano da demonstração e verificação, e uma operatória concreta infelizmente longa em frutificar. Longos séculos todavia as ligações entre ciência e prática serão meramente ocasionais, devido ao meio social a que pertencem os pensadores e aos preconceitos quanto ao trabalho manual; e serão predominantemente no sentido de influência da segunda na primeira, sugerindo-lhe problemas e constatações de relações, porquanto a teoria está insuficientemente desenvolvida para servir de base à transformação da realidade. Decerto aplicações da ciência não são então desconhecidas, mas o seu âmbito é limitado, sua eficácia de curto alcance. A náutica astronômica, uma das alavancas da formação da economia mercantilista, não supõe mais do que o velho sistema ptolomaico. A mecânica de Galileu inspira-se mais da artilharia e do arsenal do que promove o seu desenvolvimento. Só verdadeiramente com o século XIX é que, graças à álgebra, geometria analítica e cálculo infinitesimal, à mecânica racional, à óptica e à acústica, à teoria da electricidade e à química, à anatomia, histologia e biologia, sedimentadas principalmente desde Quinhentos, se abre a era das aplicações da ciência e tais aplicações devêm factor decisivo de crescimento económico e reestruturação social. Mais do que saber cientificamente organizado, consistiu a geografia até recentes dias numa acumulação de informações, de interesse para cada sociedade, relativas aos outros povos e regiões. Saber descritivo, narrativo, justaposto, com fins acima de tudo práticos ou recreativos, tanta vez distinguindo-se mal de uma literatura de ficção – como no caso das viagens de Mandeville ou do Libro del Conoscimiento do medicante espanhol, ambos no século XIV. São itinerários para movimento de tropas ou peregrinações ou deslocações de mercadores, listas de produções, ou de bens à venda nos vários mercados, indicações políticas e de direito aduaneiro, referências a crenças e costumes, pinceladas sobre a flora e a fauna, apreciações dos ares sadios ou mórbidos, enumerações de monumentos ou estabelecimento de vária ordem, estimativas de fogos ou de habitantes. Satisfazia-se a curiosidade pelas realidades não vistas e davam-se os elementos de utilidade para os que queriam viajar, negociar a distância, evangelizar. São, por outro lado, as cartas de marear, os roteiros, os regimentos de navegação, os diários de bordo. E persistindo à parte, a geografia de gabinete, erudição livresca a repetir em vaso quase fechado descrições anacrónicas de séculos, embora com certos visos de integração numa geografia matemática. Assim, enquanto esta geografia livresca é elemento morto de uma cultura pouco articulada à vida quotidiana, as outras geografias são a do mareante, a do mercador, a do conquistador, a do missionário: o que diz bem o seu carácter essencialmente prático, a sua delimitação ao plano do relato. Apenas alguns pensadores, como Bodin e Montesquieu, elaboram concepções em que uma parte do social-humano se explica a partir do geográfico, sem que na base delas existisse realmente, porque não podia então existir, uma teoria geográfica propriamente científica. Quando a geografia, conhecimento embora do concreto ao singular – o globo terrestre -, se elevou a corpo de conhecimentos cientificamente organizado, passou por uma inevitável e benéfica fase de <<pureza>>, quer dizer, de ausência de preocupação pela utilidade imediata. Foi aliás por não Ter atravessado tal acesse e se ter mantido muito mais como guia prático do comerciante, do industrial e do transportador que a geografia económica tanto tem tropeçado em se elevara uma autêntica e necessária economia espacial – do espaço geohumano. Fora este caso, não se pedia em geral ao geógrafo para ajudara definir uma política ou meios de realização dela, as empresas também não recorriam a seus préstimos. É que, conquanto ciência actual (ao que tantos supunham), a marca que lhe impuseram um Vidal de la Blache, uma Albert Demangeon, um Lucien Febvre e tantos outros foi a de uma profunda historicização: o que coexiste não contém em si a sua própria explicação, há que regressivamente encontrar na sua gênese, tanta vez longínqua, a sua razão de ser – a sincronia (simultaneidade) supõe, implica a diacronia (sucessão). No espírito desses grandes Mestres a historicização não era de forma alguma uma fuga ao presente; e Monbeig recorda acertadamente que a Société Alsacienne de Banque pediu a Demageon e a Febvre a sua obra hoje clássica sobre o Reno – exemplo isolado, porém. A maioria dos problemas de actualidade apareciam tratados nos livros e revistas de geografia; por vezes o defeito estava antes (esquecendo a lição dos mestres) na excessiva preocupação pelos dados mais recentes , com falta de perspectiva temporal – emaranhado-se na conjuntura trepidante e por isso fugaz. Duas razões forçavam a geografia a conserva-se como ciência pura. Por uma lado, as condições econômico-sociais de conjunto, que não estimulavam o planejamento, logo não incitavam a estudar modificações conscientes da paisagem e da distribuição das gentes em larga escala. De outro lado, a insuficiência de desenvolvimento teórico da própria geografia e até o não se ter historicizado tanto quanto seria necessário para servir de instrumento na modelação do porvir. Depois da Guerra Mundial de 39 a geografia entrou em crise, como que esfacelada entre um conjunto de ciências e técnicas novas ou de renovada eficácia, beneficiárias das extraordinárias conquistas da física e da química; a meteorologia e a climatologia, a geomorfologia, a pedologia...; a sociologia norte-americana já antes, com os estudos de ecologia, ocupava uma boa parte das posições da geografia humana; agora a economia descobre o espaço, a prospecção de mercados anexa uma parte da geografia económica e até humana, o urbanismo faz concorrência à geografia das cidades, o paisagista e o agrónomo trabalham no que era domínio da geografia agrária, o planejamento da acomodação do território a todas essas geografias rouba o facho da pesquisa. Dir-se-ia que a geografia, disciplina de síntese, se esfrangalhou e assim perdeu a sua razão de ser profunda – mas embebendo da sua essência todas essas ciências e técnicas, afinal tornadas geográficas. O que há de mais novo todavia é que tais investigações são feitas em função da acção; o cientista não se limita a tentar explicar o que existe, busca prever as tendências, as probabilidades de transformação, e dar um balanço aos possíveis das medidas tomadas ou cujas propostas lhe são submetidas. Não podia o geógrafo, sob pena de s e condenar a si próprio, deixar de entrar na liça e de pôr a sua ciência ao serviço dessa variegada problemática prática. Aqui porém o perigo é de duas ordens. Por um lado, como Phlipponneau tão bem mostra, o geógrafo a soldo dos meios industriais e financeiros perde a sua independência científica, inevitavelmente será submetido a pressões no sentido de justificar “cientificamente” os projectos que agradam ou convêm aos seus patrões, mesmo em detrimento de outros interesses mais gerais ou pelo menos tão legítimos. A solução está, como Phlipponneau também aponta, na existência de institutos científicos independentes a que os interesses particulares dirijam as suas <<encomendas>>, sem que os encarregados dos estudos recebam directamente desses particulares o pagamento ou as directrizes. Mas por outro lado há que considerar o planejamento estatal, e ainda aqui há que assegurar a plena independência do investigador. O professor universitário não pode ser confundido com um funcionário executante; ao ensino na Universidade deve ser sempre garantida uma total autonomia de modo a que a pesquisa obedeça exclusivamente aos requisitos do espírito científico e que as conclusões sejam apresentadas sem nenhuma restrição de qualquer sorte. É excelente que a geografia se deixe renovar por essas lufadas de ar fresco dos problemas cruciais da reestruturação das sociedades nesta época angustiada de busca de novos equilíbrios ao serviço de todos os homens, ao serviço de cada homem como um fim em si próprio. Mas é preciso também que não se deixe enredar demasiado no imediato. As aplicações só são possíveis e fecundas a partir de uma vigorosa investigação de base – de um poderoso florescimento teórico. Maurice Le Lannou chegou a apodar a geografia-ciência de passatempo e a geografia aplicada, de engodo para defender uma geografia “tout court”, preocupada tão só de compreender mais profundamente para melhor colaborar1. Quarela de palavras, talvez. Na organização da pesquisa científica não discutiremos os alicerces que são a própria criação do espírito científico e a elaboração das bases donde tirar as aplicações. Porque muitas vezes as aplicações mais revolucionárias vêm de teorias e capítulos da ciência aparentemente sem interesse prático. Quanto não teria perdido a matemática, e através dela quer a física quer as próprias ciências humanas, se se tivesse suprimido a álgebra da lógica de Boole e Schroder, a lógica dos operadores e relações de Peano e Russell, as lógicas multimodais? Num país como Portugal, tão atrasado na criação científica, a investigação técnica, embora desde já possa fecundar a Universidade, requer que previamente, ou pelo menos simultaneamente, se modernize o elenco das disciplinas, as matérias ensinadas, o equipamento de trabalho, e sobretudo se forme o pessoal docente 1 Les limites de l’absurde, em Le Monde de 8-XII-1959. e auxiliar muito numeroso, bem a par das conquistas recentes e inspirado para dar a própria contribuição para ir mais além. Nunca é demais sublinhar que sem a criação de cultura não há autêntica cultura, e que a ciência é aventura intelectual mas com rigor, informada pela crítica, exigindo sempre a prova, rejeitando a conformidade para buscar a universalidade (racional-experimental). Essa necessidade de pesquisa de base, comum a todas as ciências técnicas, reveste afinal em geografia o sentido de historicização metodológica e de concepção. No cerne da crítica de Pierre Monbeig ao presente livro de Phlipponneau está precisamente, entendendo a geografia como disciplina de cultura acima de tudo, que as sociedades humanas- movediças, sensíveis e pensantes – se situam no centro de todos os estudos verdadeiramente geográficos (sejam desinteressados ou utilitários) e por isso a história – a de Marc Bloch e Lucien Febvre – deve continuar em lugar de relevo na formação do geógrafo2. É que, fundamentalmente explicação das paisagens, estas resultam muito menos da acção presente dos homens ou dos agentes .físicos do que da longa formação em que, em épocas sucessivas acção humana, ambiente natural e ambiente humanizado interagiram3. Como di.Z Maximilien Sorre, «Quando busca dissociar os elementos humanos da paisagem, o geógrafo constata que não são da mesma idade, logo, que não têm a mesma significação» 4. Cada estrutura é apenas um momento mais ou menos longo, por vezes milenário ou multissecular, num processo de estruturação, desestruturação e reestruturação, assim o sublinha ajusto título Georges Gurvitch. Ora as reacções “presentes” (isto é, em cada época) face ao meio geográfico mais natural ou mais humanizado - resultam dessa estruturação ao fio do tempo, e do mesmo modo os objectivos, os meios e modalidades da acção «presente» para o transformar ou para a sociedade a ele se adaptar. A previsão dos efeitos de tal acção só pode fazer-se sopesando probabilidades que se calculam a partir das tendências de longa duração das estruturas e complexos histórico-geográficos 5. Como formular sequer as 2 Annales – Economies, Sociétés, Civilisations, 1961, nº 6, pp. 1225-9. Ver ROGER DION, La géographie humaine rétrospective, em «Cahiers Internationaux de Sociologie», vol, VI, pp. 3-27. 3 4 Les fondements de Ia géograpbie humaine, em «Cahiers Internationaux de Sociologic», vol. V, pp. 21-37. 5 Sobre estas noções, permita-se-nos remeter para o nosso artigo «Complexo histórico-geográfico», no Dicionário de História de Portugal dirigido por JOEL SERRÃO,vol. 1. opções que se nos põem sem as ligarmos a toda a evolução estrutural que as antinomias da boa capa e do mau capelo, do Infante D. Pedro. e da política de transporte e política de fixação, de Sérgio, de certo modo simbolizam ? Repensar o nosso passado (e o passado vem até o instante que vivemos, logo perdido _para o presente) em função desses operadores que são os complexos histórico-,geográficos é uma das inescapáveis vias de acesso a vermos claro em nós mesmos, a decidirmos como é que há que acomodar as paisagens aos nossos fitos; isso aliás visto no contexto ecumênico que é o actual, contexto segundo os mesmos operadores igualmente pensado. Escreveu magistralmente Fernand Braudel: Na sua base, a geografia é cartografia, estudo no terreno, reflexão face das paisagens. A explicação geográfica, quanto a nós, não diz respeito só a esta película tão fina do tempo actual, mas a todo o tempo dos homens. O inquérito da geografia deve atravessar com os raios da sua luz própria a espessura inteira das questões sociais6. Quer dizer que todas as ciências sociais são geográficas como são históricas, e que a geografia é histórica – ou nada é – de igual modo que geográfica é a história. Todos os problemas humanos têm de ser pensados em função dos espaços geohumanos e dos tempos geohumanos também, numa “geometria” dinâmica tina a múltiplas dimensões, _pois conta, além daquelas, toda a complexidade das “camadas em profundidade” de que fala Gurvitch, desde os aparelhos organizados, ecologicamente configurados, e dos papéis sociais às condutas simbólicas, ao efervescente da sociabilidade. Podem e devem o geógrafo e o historiador trabalhar com o meteorologista, o hidrologista, o pedólogo, o geólogo, o engenheiro, o médico, o veterinário, o agrônomo no estudo da maneira de transformar os desertos. Onde ir buscar a água para os irrigar? qual a energia para a aduzir, e qual o custo de tal adução ?poderá ser tal fertilizarão duradoura ? não será preferível aproveitar apenas as orlas semi-áridas?7 (2. Podem e devem o geógrafo e o historiador colaborar com o urbanista, o industrial, o engenheiro, o médico e tantos outros no estudo da concentração ou descentralização da indústria ou de outros ramos da actividade. Mas cabe-lhes pensar os problemas por integração dos 6 La géographie face aux sciences humaines, nos «Annales-Economies, Sociétés, Civilisations», 1951, n.O 4, pp. 485-492. 7 Colóquio internacional sobre as terras áridas, organizado pela UNESCO. Ver Le Monde, de 26-V-196 deferentes aspectos-porque é o homem total, os grupos humanos na sua totalidade que visam a compreender e a explicar - e encarar cada modificação parcelar em relação com as totalidades vividas, logo com os vectores que temporalmente as afeiçoam. Para isso, ao serviço embora da prática sem esquecer a pesquisa fundamental, manterem-se isentos, pois, como dizia o Infante D. Pedro, a verdade <<em o coração livre tem sua morada>>. Livro discutido, sob certos aspectos discutível, o de Phlipponneau que hoje vos propomos. Mas levanta problemas capitais, e ainda bem que suscita discussão, pois nada há pior do que o entorpecimento das verdades feitas, a falta de debate franco de idéias. Tem colaborado este geógrafo francês na planificação regional da província de Québec, no Canadá, e sobretudo da sua Bretanha, bem como no estudo dos arredores parisienses. Oxalá o exemplo frutifique e os geógrafos sejam largamente chamados a dar a sua achega para construir um espaço geohumano que melhor satisfaça os homens. Vitorino Magalhães Godinho