ARTE E CIDADE: CONSTRUINDO TERRITORIALIDADES1

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ARTE E CIDADE: CONSTRUINDO TERRITORIALIDADES1
Resumo
Este artigo pretende mostrar as alterações na relação entre arte e cidade nas últimas décadas, na
qual o espaço urbano deixa de ser suporte, elemento ou relação para constituir territorialidades.
Trata-se menos de construir objetos e mais de produzir conhecimento e relações sociais. A arte
constitutiva de territorialidades resiste criando alternativas por dentro do sistema, vaza pelas suas
fissuras, tira proveito de suas próprias regras rígidas e se (re)produz enquanto arte. Este novo ator
social é mais um projeto político que estético. Cria e é criado pelas territorialidades, numa
dimensão na qual já não é mais possível separar arte, espaço urbano e vida.
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Arte e Cidade
Há diversas maneiras de se entender a relação arte e espaço urbano. Propõe-se aqui a seguinte
leitura: espaço-museu, espaço-elemento, espaço-relação e espaço-territorialidade2.
Historicamente, para recortar os últimos cem anos, pode-se partir de um ponto de vista
museológico da cidade, a qual servia para distribuição de esculturas em seu território,
analogamente a um museu. A despeito dos planos urbanísticos, pontos de fuga, centralidade do
desenho urbano e outras premissas técnicas, as obras eram apenas dispostas pelo espaço
urbano, comumente adornando um projeto público de praça, avenida, jardins, entre outros.
Ressalta-se que não obstante a presença em diversas civilizações, com destaque para as cidades
do império romano, o uso do espaço urbano para a disposição de monumentos se multiplica
especialmente a partir do século XIX:
“eles são distribuídos em pontos privilegiados das cidades ou em locais simbólicos
relacionados com o evento ou o personagem celebrado” (FABRIS appud AZEVEDO 2003:
73)
Estes trabalhos tinham objetivos bastante específicos de tributos a cidadãos ilustres ou em
comemoração a grandes feitos de Estado. A relação com o espaço de entorno era superficial e
utilitária. Diz respeito apenas ao desenho urbano, geralmente descartando os afetos incidentes
naquele local. Desta maneira, o espaço urbano funcionava como suporte para monumentos.
Embora remonte ao século XIX, tal uso ainda é bastante corrente nos dias atuais. Vale lembrar a
polêmica registrada em São Paulo, nos anos 1990, concernente ao monumento em homenagem a
Ayrton Sena, no Parque Ibirapuera.
É somente a partir da segunda metade do século XX que este espaço passa a ser elemento da
obra, para, mais tarde, se constituir como relação (MOASSAB 2003: 67-72). Ao se apropriar do
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Andréia Moassab doutoranda PUCSP, colaboração Renato Rebouças
O conceito de espaço-elemento e espaço-relação foi amplamente discutido na dissertação de mestrado da pesquisadora.
Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
espaço como mais um elemento integrante e inseparável, tem-se uma diluição do limite entre
espaço da obra e espaço externo a ela. O espaço passa de contexto a texto:
obra/ambiente/observador tornam-se partes inseparáveis de um mesmo sistema e só podem ser
entendidos conjuntamente. O espaço-elemento é antes uma dimensão de percepção do que
física. À semelhança do espaço liso de Deleuze (1997: 179-214), não há mais perspectiva ou
ponto de vista, não há distância nem horizonte, não há contorno, não há estaticidade. O ‘objeto’
perde importância como tal, com uma impossibilidade de definição da forma, acompanhada de
uma mudança equivalente no observador que assume uma postura atuante em contraposição
àquela anterior, passiva.
Em sua maioria, trabalhos minimalistas, site specific, land-art e alguns conceituais, desenvolvidos
nos anos sessenta e setenta, usam o espaço como elemento, geralmente grandes espaços ao ar
livre ou a própria cidade. Há que se percorrê-los ao invés de contemplá-los. Uma boa ilustração
deste espaço-elemento são as grandes peças de Richard Serra, que obstruem a visão forçando a
um deslocamento, de modo que a obra deixa de ser o objeto construído, ou seja, a chapa
metálica é apenas um meio para apreensão do ambiente.
A partir de então, as questões temporais invadem o espaço. O ‘quando’ passa a importar
juntamente com o ‘onde’, sendo que o elemento espaço na sua dimensão quando/onde é
absolutamente mutante, criando resultados diversos a cada mutabilidade. O espaço real não pode
ser experimentado, a não ser em tempo real e, portanto, não se pode querer representá-lo com o
intuito de reproduzir esta experiência (MORRIS 1995: 193-194).
No Brasil, Hélio Oiticica tinha plena consciência da importância espaço-temporal, valorizando em
seus trabalhos, como Parangolés ou Penetrável, a experiência, a manipulação: “o que está
presente é a experiência desse espaço, é essencial entrar no labirinto, experimentá-lo, para poder
compreendê-lo” (JACQUES 2001:79), interessando-se pelo “espaço constituído no tempo e pelo
tempo” (DOCTORS 2000: 10). Desta maneira, as artes plásticas deixam
“de ser artes visuais para serem artes da presença. [...] as instalações, assim como todas as
outras formas expressivas da visualidade que rompem com a classificação tradicional das
belas-artes, não podem mais ser pensadas nem na ordem da visualidade nem na ordem da
espacialidade, mas na ordem da plástica da presença, como tempo espacializado. Como
espacialidade capaz de ser moldada por estados de tempo” (DOCTORS 1999: 10 e 11).
No caso do espaço como relação (MOASSAB 2003: 73-84), aponta-se um uso do espaço,
particularmente o espaço urbano, como agenciador de processos, numa renuncia a ser suporte ou
elemento. Perde-se definitivamente qualquer caráter objetual e sua potência é verificada pelos
agenciamentos que possibilita. Similar ao espaço como elemento, sua dimensão fundamental é o
tempo, estando sempre em processo, no gerúndio. Mais do que manipular o espaço trata-se da
manipulação do tempo. Se por um lado o espaço como elemento considera a base material do
espaço urbano, o espaço como relação toma suas intangibilidades, possibilidades e virtualidades
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
(MOASSAB 2003: 14-23). São trabalhos que consistem em ‘construir ou destruir‘ o espaço
público, uma vez que “o espaço urbano é o produto de conflito. [...] Conflito, divisão e
instabilidade, portanto, não arruínam a esfera pública democrática; são a condição de sua
existência” (DEUTSCHE 1996: 278 e 289)3. Esconder seus embates sob propostas estetizantes
seria superficializá-lo e colaborar para uma política urbana excludente, largamente utilizada nos
planos de ‘revitalização urbana’ das duas últimas décadas.
Krzysztof Wodiczko, artista polonês radicado nos EUA tem uma longa trajetória de trabalhos nos
quais engendra relações com o espaço urbano. Bons exemplos podem ser o Veículo para Semteto (NY, 1988) e Carrinho para Catadores (SP, 2002), nos quais há uma preocupação exógena,
somada a questões estritamente artísticas, não mais se destacando do espaço urbano. Estes
trabalhos colaboram para uma melhor compreensão das metrópoles onde:
“a democracia está doente, sofrendo silenciosamente, e devemos saná-la, fazê-la completa
das feridas de centenas de anos de mudez forçada e invisibilidade imposta a tantos de seus
sujeitos. Meu trabalho tenta sanar o torpor que ameaça a saúde do processo democrático,
estrangulando-o e rompendo-o, acordando-o e inserindo-lhe voz, experiências e a presença
daqueles que foram silenciados, alienados e marginalizado” (WODICZKO 1999: xiii)4.
Ainda sob este aspecto, pode-se citar alguns trabalhos apresentados no Arte/Cidade5 em 2002
que fazem uso do espaço como relação: estrutura para sem-teto (Vito Acconci); Mera Vista (Dias
e Riedweg); os quiosques em auto-construção (AVL); a questão do edifício São Vito (Koolhaas e
Casa Blindada); e o carrinho para catadores (Wodiczko), citado acima. São trabalhos e propostas
que lidam principalmente com uma arquitetura do movimento e do não-lugar. Ademais, nenhum
dos objetos físicos construídos nestes trabalhos dá conta da totalidade do projeto, sendo
necessário considerar o processo e agenciamentos envolvidos, isto é, um diagrama processual de
todas as etapas, instâncias e tratativas. Mesmo que tais propostas venham a se consumar em
objetos, estes são agenciadores de processos, não podendo ser destacados dos agenciamentos,
não constituindo valores em si.
Em que pese a semelhança (ou até desdobramento), principalmente no que concerne à
dissolução dos limites espaciais e na questão do objeto, com a arte conceitual, estes trabalhos
contemporâneos debruçados sobre a complexidade urbana não devem ser confundidos com o
caráter crítico e a valorização da idéia incorporados por artistas nos anos 60 e 70, já que, mais
que conceitos, a execução destes trabalhos garante a potencialização dos processos envolvidos.
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original em ingles, tradução livre.
original em ingles, tradução livre.
Projeto de intervenções urbanas que destaca áreas críticas de São Paulo, com quatro edições que vêem ocorrendo desde 1994.
Em 2002 aconteceu o Arte/Cidade Zona Leste, com a participação de vinte e cinco artistas e arquitetos brasileiros e estrangeiros.
Maiores informações em www.artecidade.org.br.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
Além disso, não obstante os trabalhos que têm o espaço como relação serem desenvolvidos no
espaço urbano faz-se indispensável diferenciá-los do que vem sendo comumente denominado
‘arte pública’, entendida como obras que estão no espaço público. No caso do espaço como
relação, considerar-se-á aquelas propostas que agenciam relações no espaço urbano intervindo
diretamente na sua rede rizomática (DELEUZE e GUATTARI 1995: 11-37). São trabalhos que
abandonam
“as práticas convencionais de obras para sítio específico, nas quais a cidade é usada como
uma grande galeria, um palco para exposição de obras e intervenções artísticas. O foco é
colocado no processo [...] o espaço não é simplesmente um lugar para locar obras”
(BRISSAC 2002: 201).
Se, no espaço como elemento merece destaque trabalhos como de Serra, nos quais a obra deixa
de ser o objeto imediatamente apresentado para se constituir no feito de circundá-lo, por sua vez,
o espaço como relação engendra processos a partir do e no próprio espaço urbano, com exemplo
para os trabalhos de Acconci e Wodiczko, entre outros apresentados no Arte/Cidade Zona Leste.
No entanto, o que se propõe aqui é uma quarta abordagem de arte e cidade, que ultrapassa o
espaço suporte, elemento e relação, na qual o espaço urbano deixa de ser território e passa a ser
uma territorialidade, quer dizer, a dotação de sentido ao território. É a base material somada às
suas intangibilidades, possibilidades e virtualidades (MOASSAB 2003: 14-23), permeada por
sistemas de relações, as quais constroem o espaço e produzem cultura. À diferença do espaço
como relação, a produção de territorialidade prescinde de qualquer tipo de objeto, de qualquer
fisicalidade.
Neste momento, arte e vida se misturam indistintamente. Não há mais qualquer limite possível de
separação:
“[...] no contexto da produção biopolítica as divisões entre o econômico, o social e o cultural
tendem a se tornar indistintas” (NEGRI e HARDT 2005: 288).
A produção de cultura é a concepção da própria vida. Vale enfatizar que a produção de
territorialidades compreende um movimento de resistência que vaza pelas fissuras do sistema
hegemônico, em contraposição profunda aos ‘produtos de arte’ e similares, cujo valor pecuniário
pode ser economicamente mensurável. Arte e cidade como territorialidade trata da produção de
trabalho imaterial na economia global, ou seja, gera conhecimento e constrói relações sociais.
Territorialidade e Poder
No que diz respeito aos estudos da geografia, territorialidade é:
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
“a dotação de sentido ao lugar que se habita, ao qual se pertence através das práticas
cotidianas. Práticas mediante as quais um determinado grupo social consegue reproduzir
sua cultura” (CHAVEZ 2002: 02).
Cabe dizer, é a valorização do território pelo uso e posse, não necessariamente em obediência
aos seus limites jurídico-administrativos.
Todavia, traz-se para discussão neste artigo uma abordagem de territorialidade na qual se
transcende o território; descola-se a idéia de territorialidade daquela de território. O espaço,
nestas condições, passa a ser uma territorialidade e como mencionado anteriormente, é a base
material somada às intangibilidades, possibilidades e virtualidades (MOASSAB 2003: 14-23). Vale
esclarecer que a base material é a sua fisicalidade mensurável, tanto no concernente às cidades
quanto outras organizações territoriais, sobre a qual se organizam as atividades humanas,
urbanas ou não. As intangibilidades são as relações de forças, subjetividades e vetores
aleatórios incidentes no espaço urbano, para o qual não é possível estabelecer padrões de
medidas convencionais. São dinâmicas abstratas à percepção cuja configuração espacial é
substituída pela configuração dos fluxos de informação. Por sua vez, as possibilidades são
definidas pelo conjunto dos eventos possíveis previstos pelos fatores históricos:
“o possível já está todo constituído, mas permanece no limbo [...] é exatamente como o real,
só lhe falta a existência” (LÉVY 1996: 15-16).
As virtualidades, ao contrário, são o conjunto dos eventos indeterminados que se atualizam no
espaço urbano resultantes de conexões imprevistas: “o virtual existe em potência e não em ato”
(LÉVY 1996: 15). Diferente das possibilidades, não têm existência prévia, seu acontecimento
depende de criação.
De fato, é desta maneira que se compõe uma territorialidade: um espaço permeado por sistemas
de relações, as quais o constroem, produzindo cultura. Constituem-se mais como dimensões
sociais, culturais, políticas: um espaço de relações, um espaço de encontros. Portanto, mais do
que espaço-físico, trata-se de espaço-tempo, fruto de uma memória corporificada e uma potência
de futuro: a territorialidade acontece sempre no presente, sempre na sua ação constitutiva.
Nos últimos anos, as territorialidades têm sido potencializadas pela constituição de redes de
comunicação e troca de conhecimento, especialmente a partir do uso de novas tecnologias:
“redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de
redes modifica de forma substancial a operação e os resultado dos processos produtivos e
de experiência, poder e cultura” (CASTELLS 1999: 497).
Têm-se elementos inter-relacionados, sem que haja hierarquia e fundações rígidas. Sua estrutura
é toda movente e aberta, de infinita capacidade de expansão.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
À semelhança do poder, o qual, segundo Foucault (1979: 71), é uma prática social em constante
transformação e formação, as estruturas de resistência vão moldando territorialidades, uma vez
que onde há poder há resistência (FOUCAULT 1979: 224). Deste modo,
“não existe propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que
também se distribuem por toda a estrutura social” (MACHADO 1979: XIV).
Ao entender o poder não como um objeto ou algo que se detem, mas uma prática e uma relação
da qual nada nem ninguém escapa é que se vislumbra em certas ações atuais a possibilidade de
resistência, posto que acontecem justamente no interior do sistema. São máquinas de guerra
(DELEUZE e GUATTARI 1997: 11-110) articuladas, flexíveis e dinâmicas, permitindo um desfazer
e refazer constantes. Na medida em que são capturadas se transmutam aparecendo por outras
fissuras, vazando nas tessituras esgarçadas do sistema.
Com efeito, grupos começam a se organizar nas mais diversas áreas. Em todo território nacional
vão se formando redes de trocas de idéias e experiências. Por exemplo, movimentos sociais,
rádios comunitárias, catadores de material reciclável, grupos de hip-hop. São redes presentes em
todos os lugares, configurando territorialidades, um espaço-dimensão, no qual, como o poder, se
estabelece na relação entre seus pontos em uma organização descentralizada e sem hierarquias.
É desta maneira, mimetizando e subvertendo a estrutura de poder, que estas aglutinações em
torno de algo em comum constituem importante instrumento de resistência fundamentais na
construção destas territorialidades contemporâneas, de espaços-dimensão das relações.
Entretanto, territorialidade não deve ser confundida com espaço de debates, mas de uma
condição de existência em sociedade, cujas resultantes podem interferir diretamente numa das
estruturas mais estriadas do aparelho de estado: seu aparato legal. Com isso, os próprios
instrumentos do sistema dominante são utilizados a favor da resistência.
Pode-se citar, por exemplo, a luta dos movimentos sociais responsável pela inclusão do direto à
cidade na constituição federal em 1988 e até recentemente a criação do Fundo e Conselho
Nacionais de Habitação de Interesse Social. Por sua vez, os catadores de material reciclável,
organizados em cooperativas nos últimos 15 anos têm sido fundamentais na discussão sobre
resíduos sólidos e sobre este trabalho na cadeia produtiva. Como resultado, em 2003 foi formado
o Comitê Interministerial da Inclusão Social dos Catadores pelo governo federal.
Nas artes, ponto central deste artigo, merece destaque como movimento de resistência e
construção de territorialidades, a formação dos grupos de discussão, e por vezes ação, coletivos.
Em São Paulo, as reuniões do Arte contra a Barbárie, desde 1998, formado inicialmente por 10
grupos de teatro bem como por artistas autônomos, foram fundamentais para a elaboração e
aprovação da lei municipal de fomento ao teatro. Esta lei tem servido de exemplo para todo o
Brasil e para outras categorias artísticas que vêm reinvidicando a mesma atenção do poder
público.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
Grupos de Teatro em SP e a Lei Municipal de Fomento
Com o intuito de demonstrar como espaço urbano deixa de ser território e passa a ser uma
territorialidade e como a arte pode ser uma das suas constituintes, ela própria territorialidade, trazse para reflexão o trajeto que culminou na elaboração na lei de fomento ao teatro no município de
São Paulo. Sancionada em 2002, a lei determina que a prefeitura destine pelo menos R$ 6
milhões, ajustados anualmente, a um programa de fomento que financie o trabalho de
companhias teatrais previamente selecionadas por uma comissão formada por quatro integrantes
escolhidos pela Secretaria Municipal de Cultura e três eleitos por entidades representativas da
classe teatral. Durante dois anos e meio, o programa beneficiou 53 grupos e 79 espetáculos, com
investimento de R$ 19 milhões em grupos teatrais permanentes.
É fundamental entender o contexto no qual a lei foi produzida, a partir de uma reivindicação da
classe teatral (re)organizada no final dos anos 90 em torno do Movimento Arte Contra a Barbárie.
Formado por grupos de artistas das principais companhias do teatro paulista e também por
personalidades ligadas ao meio teatral da cidade de São Paulo, a proposta nasceu com o objetivo
de discutir e promover mudanças em prol de uma política cultural estável para a atividade teatral.
Entendendo seu compromisso ético, os artistas envolvidos no movimento reivindicavam a
possibilidade de desenvolver processos continuados de trabalho através da criação de
mecanismos estáveis e permanentes de fomento à pesquisa e experimentação.
A independência de pensamento e a necessidade de discutir as relações entre arte e sociedade,
suas conjugações e implicações, têm sido alguns dos fundamentos que geraram e mantêm o
movimento que, ao longo de sua história, lançou três manifestos centrados na defesa da
produção, circulação e fruição dos bens culturais como um direito constitucional; e contra a
‘mercantilização’ da cultura oficial, nos planos federal, estadual e municipal.
Para ser contemplado com a lei, há a necessidade de os grupos apresentarem contrapartida ou
benefício social que diferentemente de assistência social, tem funcionado no sentido de
desenvolver relações com comunidades. Tal exigência acaba por solicitar dos artistas um projeto
que se comunique com a cidade através das comunidades específicas nas quais os grupos estão
inseridos. Com isso, primeiramente é criada uma ocupação que ultrapassa os limites do circuito
cultural estabelecido, possibilitando experiências teatrais a diversas camadas da população e de
regiões. Em segundo lugar, os coletivos artísticos oferecem atividades tais como oficinas, aulas,
iniciações teatrais e musicais, registro de histórias, interagindo com crianças, idosos, populações
marginalizadas, entre outros, dependendo da comunidade e local onde o grupo é sediado e/ou
realiza sua pesquisa e apresenta suas peças.
Esta relação é absorvida pelos grupos na forma de documentos, registros, laboratórios e
aprendizados práticos sobre seus objetos de estudo, sendo parte fundamental da construção dos
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
espetáculos. Vale dizer que se estabelece uma interação na qual os grupos e as comunidades
contaminam-se mutua e proficuamente. É neste sentido que há a constituição de territorialidades
através de sistemas de relações, as quais constroem o espaço e produzem cultura, descartando
neste processo a necessidade da construção objetual como pressuposto fundamental.
Na elaboração da lei também foi absorvida uma preocupação com a garantia do desenvolvimento
de processos artísticos contínuos, sem a dependência de patrocinadores ou do mercado, no qual
inclusive o público é finalmente entendido como espectador ao invés de consumidor. O fomento
da produção artística continuada e comprometida com a formação crítica do cidadão é o objetivo
dos projetos, e não o lucro, distinguindo-os, portanto, de outros tipos de espetáculos.
As propostas fomentadas nos anos de vigência da lei têm em comum serem de interesse público
tanto para a cidade quanto para o teatro: referem-se à construção, manutenção e ocupação dos
teatros públicos e outros espaços, à ampliação e manutenção de mecanismos regulares de
circulação
de
espetáculos,
ao
fomento
à
formulação
de
uma
dramaturgia
nacional
contemporânea, entre muitos outros aspectos. Assim, edifícios teatrais antes abandonados em
regiões fora do circuito estabelecido, por exemplo, o teatro Flávio Império na zona leste de São
Paulo, foram reocupados pelas comunidades teatrais ali residentes; populações marginalizadas
como catadores, presidiários, moradores de rua, idosos, puderam reconhecer-se e manter um
diálogo com a sociedade; os projetos circularam em periferias nas quais nunca antes haviam sido
apresentadas peças teatrais. Neste sentido, tem continuidade permanente o debate “Teatro
Paulistano: novos vínculos com a sociedade e o exercício da diversidade”6 iniciado pelo
movimento Arte Contra a Barbárie, e posteriormente realizado em outras edições da lei, com os
artistas e a população, a fim de discutir formas claras e livres para o diálogo.
Deste modo, percebe-se nitidamente ficar cada vez mais indistinta a fronteira arte e vida, tanto
para os pesquisadores quanto para aqueles que são partes do processo de criação, no caso das
comunidades com residências de grupos. Ademais, as escolhas estéticas destes trabalhos são
profundamente contaminadas pelo meio. Pode-se citar a Cia. São Jorge de Variedades cujo
processo de pesquisa e construção de As Bastianas (2003) foi realizado no albergue municipal do
Canindé, local onde a peça foi encenada. Afora alimentar o grupo durante os ensaios, com
imagens, o ambiente foi determinante para a construção visual do espetáculo. Um carrinho usado
como elemento cênico foi construído a partir dos carrinhos dos catadores alberguistas, tanto
quanto figurinos e a própria encenação nutriram-se daquela realidade para serem realizados. Por
sua vez, o grupo Tablado de Arruar, pesquisador das relações entre espaço/cidade e sociedade,
montou Movimentos para Atravessar a Rua (2003) nas próprias ruas do centro da capital paulista,
fazendo entrevistas, observações e levantamentos de sua problemática, possibilitando o encontro
com pessoas e elementos daquele ambiente urbano. O trabalho criou, assim, “permeabilidade de
6
Encontro realizado em 30/06/2003 no TUSP/SP, a fim de discutir os temas continuidade e contrapartida social.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
relação com este público e com as questões de seu cotidiano”, conforme afirmas os artistas
envolvidos no espetáculo.
Ressalta-se que não apenas os grupos sofrem influência do meio, mas também as comunidades
intronizam estas experiências. Na Vila Maria Zélia, vila operária construída em 1917 na zona leste
de São Paulo, a discussão entre o público e o privado se fortaleceu a partir da residência
realizada pelo Grupo XIX de Teatro em seus edifícios históricos. Reabrir prédios fechados há mais
de 30 anos permitiu revelá-los às gerações mais jovens e reinseri-los na memória e vida dos
moradores mais antigos. A estadia de um grupo permanente em suas dependências possibilitou à
comunidade entender o caráter público dos edifícios ali existentes e valorizá-los como patrimônio,
ampliando as relações entre os moradores da vila e seu conjunto arquitetônico. Outrossim, a
presença do público nos finais de semana para assistir à peça Hygiene (2005), interessado pela
história da cidade, também redimensionou o caráter afetivo do local para a comunidade.
Merece destaque ainda a ocupação do teatro municipal Flávio Império, também na zona leste da
capital, pela Cia. Estável. Desde 2000, com o projeto sociocultural Amigos da Multidão, foi
estabelecido um compromisso com a região em relação à difusão teatral e à cidadania. Ao
recuperar o uso deste espaço numa área desprovida de outros equipamentos culturais, a
companhia dedicou-se em realizar uma aproximação com a comunidade e o fazer teatral,
envolvendo-a em diversos níveis do projeto: participação em oficinas e espetáculos, manutenção
do teatro e preocupação com aspectos como segurança e acervo. Atualmente, a população da
região é parte ativa do funcionamento do teatro, tendo se apropriado afetiva e efetivamente do
espaço a fim de reconhecer-se e experienciar-se como grupo social, atuando diretamente no
processo de construção de sua história. Similar à multidão, conceito desenvolvido por Negri e
Hardt (2005), a comunidade vai se concretizando mediante práticas políticas. A partir desta
ocupação pela Cia Estável foram fornecidas ao grupo e à comunidade chaves para uma
conscientização da existência: produziu-se conhecimento e amadureceu-se relações sociais, isto
é, configurou-se uma nova territorialidade.
Outra conquista fundamental com a lei é não haver interferência direta do poder público ou das
empresas (como no caso dos patrocínios) nos processos criativos, cuja gestão é exclusiva e de
autonomia do grupo proponente. Através de um compromisso histórico, sociedade e governo
passam a compreender juntos que é mais do que urgente refazer os caminhos da política cultural
no país, no qual o poder público retoma sua natureza de fomentar processos culturais. E mais, a
defesa deste ponto de vista passa a interferir nos modos de produção predominantes. Empresas
privadas, como Eletrobrás e Furnas Centrais Elétricas, recentemente anunciaram novos critérios
para incentivo de projetos culturais por meio de renúncia fiscal em nome de contrapartida social:
ingressos gratuitos, geração de empregos, vinculação a projetos sociais oficiais como o Fome
Zero etc. Tem-se assim, ainda que inicial, um movimento de transformação nos modos de
produção cultural.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
Finalmente, o Movimento Arte contra a Barbárie vem pouco a pouco conquistando
reconhecimento, com destaque para o Prêmio Especial concedido pela APCA – Associação
Paulista de Críticos de Arte – em 2005, pela mobilização que resultou na criação e manutenção da
lei de fomento
Além disso, a lei paulistana se tornou modelo para o país, em diversas instâncias governamentais,
e para outras categorias artísticas com a intenção de garantir seu espaço na gestão pública da
cultura
Por conseguinte, o sistema hegemônico vai sendo paulatinamente reconfigurado de modo que a
territorialidade produção cultural se constitui e se modifica com a existência dos grupos de
resistência, sendo inviável nos dias de hoje, desconsiderar a lei de fomento ao teatro. É
justamente nesta guerrilha em que pequenas áreas vão sendo conquistadas, num dissolver e
refazer constantes que o ‘contra-poder’ sobrevive e constrói parte significativa das territorialidades
contemporâneas:
“os movimentos têm um efeito constituinte na geopolítica e nas possibilidades da ordem
global”(NEGRI e HARDT 2005: 395).
Sob esta perspectiva, a idéia de resistência alia-se à de cooperação, pois:
“não só a produção de idéias, imagens e conhecimentos é conduzida em comum – ninguém
realmente pensa sozinho, todo pensamento é produzido em colaboração com o pensamento
passado e presente de outros [...]” (NEGRI e HARDT 2005: 195).
Justamente no âmbito da cooperação, em 2004, foi formada a Redemoinho – Rede Brasileira de
Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral. Trata-se de uma associação que
reúne grupos teatrais e entidades culturais de várias partes do país para a administração de
espaços de criação, pesquisa e desenvolvimento de ações de formação, investigação e exibição
em torno das artes cênicas. O segundo encontro nacional, em dezembro de 2005, reuniu 71
grupos teatrais, convidados e representantes do sistema público de cultura e de instituições
federais para discutir políticas públicas para as artes nas esferas federal, estadual e municipal e a
necessidade de mobilização da classe teatral. A reunião de representações provenientes de
diferentes lugares do país motivou importantes trocas de experiências. Movimentos como o Arte
Contra a Barbárie, de São Paulo, e o Arte Contra a Barbaridade, do Rio Grande do Sul, que
reúnem e mobilizam grupos de teatro em seus estados, serviram de exemplo a outras regiões que
têm menor tradição na organização política. O objetivo do encontro era manter os representantes
do teatro e das artes cênicas dos mais distintos pontos do país em contato e discussão através
dessa rede de ação e pensamento.
Outra iniciativa colaborativa merece destaque. O jornal independente O Sarrafo, em São Paulo,
produzido atualmente por 17 grupos teatrais fomentados, tem o intuito de construir uma esfera
pública de debate sobre as relações entre a prática teatral e a sociedade. De acordo com seus
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
editores, busca-se “produzir e organizar o pensamento crítico, tanto na estética quanto na
política”7. Os artigos ali publicados dizem respeito ao modo de produção e administração dos
grupos, e questões relativas ao fazer teatral, sistemas de circulação cultural, entre outros.
Assiste-se, portanto, à formação de uma rede de troca de conhecimentos e experiências em torno
da produção cultural no país, de natureza descentralizada, sem a formação de estrutura de poder
e hierarquia, na qual cada grupo é independente e ao mesmo tempo integrante do bando:
“grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo arborescente que se concentra em órgãos de
poder” (DELEUZE e GUATTARI 1997: 21).
Cabe notar, outrossim, não se tratar, como observado, de uma massa de indivíduos
indiferenciados, ao contrário, é uma rede múltipla formada por singularidades. Cada grupo com
suas características próprias acrescenta um ponto, uma singularidade na rede, tornando-a forte
em sua heterogeneidade.
Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
A partir de uma análise da experiência exitosa da lei de fomento, com resultados concretos em
São Paulo, é possível perceber como um movimento de resistência pode interferir e alterar o
sistema a seu favor. A ação não é externa, mas interna ao biopoder (FOUCAULT 1979: 12).
Dentro de sua lógica dominante vai-se paulatinamente conquistando espaços.
Embora as atenções neste artigo tenham sido bastante centradas na lei de fomento ao teatro não
se está defendendo que toda resistência almeje alterações na legislação. Contudo, agir dentro de
uma das estruturas mais rígidas da organização social, seu corpo legal, é fato indicial da força
deste tipo de trabalho colaborativo. A resistência opera encontrando coletivamente as fissuras
esgarçadas do biopoder e se apoderando construtivamente destas fendas.
Merece analisar, ademais, que ao se constituir territorialidade, o teatro e sua ação na cidade são
atores sociais, com um projeto estético inseparável do projeto político, no qual a existência na
cidade, a produção de conhecimento e a construção de relações sociais se sobrepõem
indistintamente. Das experiências dos grupos de teatro paulistanos fica evidente que a prática
política contamina decisões estéticas e vice-versa. Desta inseparabilidade constrói-se a própria
vida, seja dos atores individualmente, dos grupos em sua singularidade, das comunidades locais e
do coletivo social. Com efeito,
“quando os produtos do trabalho não são bens materiais, mas relações sociais, redes de
comunicação e formas de vida, torna-se claro que a produção econômica implica
imediatamente uma forma de produção política, ou a produção da própria sociedade”
(NEGRI e HARDT 2005: 421).
7
Editorial do jornal nº 8, 2005, página 2.
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Arte e Cidade: Construindo Territorialidades
Desta maneira, a resistência pressupõe uma prática política, uma ação na cidade configurando
territorialidades. Não cessa jamais, pelo contrário, a conquista precisa ser sempre mantida e
ampliada. No caso da lei de fomento, uma vez sancionada, cabe aos grupos se organizarem,
apresentarem seus projetos, suas contrapartidas sociais, e periodicamente mostrarem a seriedade
de seus trabalhos para serem novamente contemplados. O que se vê é uma expansão virtuosa do
processo a partir do apoderamento das fissuras do biopoder.
Ressalta-se que tal expansão não se dá apenas localmente: a discussão sobre o papel do poder
público, produção cultural e fomento tem sido levada para governos estaduais e federais e outros
municípios por todo o país. Arte e cidade como territorialidade se esparge além do território, vaza
topologicamente em variadas dimensões.
Neste sentido, o que se propôs neste artigo é entender não mais obra de arte e espaço urbano,
ainda que sob a ótica exposta inicialmente de espaço como relação, mas de tratar tanto cidade
quanto arte como territorialidades que se contaminam e se produzem mutuamente numa relação
espaço-temporal indiscernível colaborando proficuamente na produção da contemporaneidade.
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Cooperativa Paulista de Teatro
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Teatro Fabrica São Paulo
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Jornal O Sarrafo
www.tabladodearruar.com.br
Grupo de Teatro Tablado de Arruar
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