0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LUCAS NÁPOLI DOS SANTOS “PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina RIO DE JANEIRO 2012 1 Lucas Nápoli dos Santos “PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Orientador: Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho Rio de Janeiro 2012 2 S237 Santos, Lucas Napoli dos. “Para que servem as doenças?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina / Lucas Nápoli dos Santos. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. 208 f.; 30cm. Orientador: André Martins Vilar de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. Inclui Bibliografia 1. Georg Groddeck. 2. Doença. 3. Filosofia Médica. 4. Biomedicina. I. Carvalho, André Martins Vilar de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde. Coletiva. III. Título. CDD 616.8915 3 Lucas Nápoli dos Santos “PARA QUE SERVEM AS DOENÇAS?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva. Aprovada em ___________________________. Banca examinadora ___________________________________________ Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho (IESC/UFRJ) ___________________________________________ Prof. Dr. Carlos Augusto Peixoto Jr. (PUC-RJ) ___________________________________________ Prof. Dr. Carlos Alberto Plastino (IMS/UERJ) 4 A Rosângela 5 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Quem designou a si mesmo como o Caminho, a Verdade e a Vida, por cuja graça pude me dedicar à escrita deste trabalho com a consciência de que “Nele nos movemos, existimos e respiramos”. À Rosângela Sousa Farias Nápoli, minha eterna namorada e hoje esposa que com palavras, atos e muito amor me ajudou a não desfalecer na caminhada árdua desses dois anos de mestrado, fortalecendo e aumentando minha potência de agir sobretudo quando as circunstâncias insistiam em refreá-la. Ao professor André Martins pelas oportunidades, pela gentileza, pelo companheirismo, pela simpatia e bom-humor, pela paciência, pela orientação e supervisão suficientemente boas e pelas observações e correções criteriosas na redação deste trabalho. À professora Diana Maul de Carvalho pelos “alertas” e contribuições importantes no exame de qualificação. Aos professores Carlos Alberto Plastino e Carlos Augusto Peixoto Jr., por terem aceitado o convite para fazerem parte da banca examinadora, o que me deixou muito honrado. À minha colega de mestrado Jaqueline Vitoriano, parceira competente no estágio em docência, que foi importante em minha trajetória ao longo do mestrado, sendo muitas vezes minha única interlocutora, compartilhando comigo a condição de “forasteiro”. Aos professores do IESC/UFRJ e do IMS/UFRJ pelas aulas inspiradoras que ora direta ora indiretamente exerceram influência na condução deste trabalho. Agradeço ainda a meu amigo Igor Madeira pela amizade sincera e fiel e pelas divertidas e, por vezes, angustiadas conversas sobre as dificuldades e alegrias da vida de mestrando. 6 “A imaginação não gera a insanidade. insanidade O é que gera a exatamente a razão.” (G. K. Chesterton, in “Ortodoxia”) 7 RESUMO SANTOS, Lucas Nápoli dos. “Para que servem as doenças?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Este trabalho apresenta algumas contribuições extraídas da obra do médico e psicanalista Georg Groddeck (1866-1934) que se mostram frutíferas para o enfrentamento dos impasses e limitações vivenciados atualmente no campo do cuidado em saúde em função da hegemonia da racionalidade biomédica. A biomedicina ergueu-se sob os fundamentos da racionalidade científica moderna e de seus reducionismos, fornecendo uma visão negativista da doença, como um inimigo a ser extirpado a qualquer custo. Além disso, a biomedicina tende a reduzir a patologia a um evento de ordem puramente orgânica, negligenciando, sobretudo, os aspectos subjetivos presentes em todo adoecimento. Essa exclusão da subjetividade é reforçada pela separação entre corpo e psiquismo presente de modo implícito no modelo biomédico. Esses e outros aspectos da racionalidade biomédica configuram impasses tanto na eficácia da assistência à saúde quanto na satisfação de muitos usuários. Através de um estudo de natureza teórico-conceitual sobre a obra de Georg Groddeck, verificou-se que esse autor propõe uma concepção de adoecimento radicalmente distinta da biomédica. Para Groddeck, toda enfermidade está radicalmente inserida na história subjetiva do indivíduo. A doença surgiria a fim de exercer uma função na vida do paciente. Logo, não se deveria buscar sua imediata eliminação, mas antes compreendê-la com o objetivo de desvendar seu sentido. Desse ponto de vista, a separação entre corpo e psiquismo é, portanto, dissolvida. Para Groddeck, embora uma doença possa se manifestar através de lesões orgânicas, a subjetividade se faz sempre presente, bastando que o profissional de saúde tenha olhos para ver. Ao final do trabalho faz-se uma articulação entre essas propostas extraídas da obra de Groddeck e enunciados eminentemente filosóficos de Georges Canguilhem e Baruch de Spinoza com o intuito de esboçar quais seriam os fundamentos conceituais de um novo modelo de 8 cuidado em saúde. Verifica-se que Spinoza, ao postular uma concepção de natureza como substância única, fornece um pano de fundo fecundo para a sustentação da tese groddeckiana da doença como manifestação da vida e não como inimigo. Canguilhem, com seu conceito de normatividade biológica, corrobora a proposição de Groddeck segundo a qual a natureza é dotada de um potencial inerente de cura e recuperação. Conclui-se que, conquanto Groddeck seja um autor cujos escritos datam do final do século XIX e início do século XX, suas concepções sobre saúde, doença e cura se mostram surpreendentemente atuais, indicando propostas bastante férteis para a formulação de um novo modelo de cuidado em saúde, capaz de suplantar os reducionismos, impasses e limitações da biomedicina. Palavras-chave: Georg Groddeck; Doença; Filosofia Médica; Biomedicina 9 ABSTRACT SANTOS, Lucas Nápoli dos. “Para que servem as doenças?”: Contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. This study presents some contributions drawn from the work of the physician and psychoanalyst Georg Groddeck (1866-1934). These contributions prove fruitful to face the dilemmas and constraints currently experienced in the field of health care due to the hegemony of the biomedical rationality. Biomedicine rose on the foundations of modern scientific rationality and its reductionism, providing a negativistic view of disease as an enemy to be extirpated at any cost. Moreover, biomedicine tends to reduce the disease to an event purely organic, neglecting, above all, the subjective aspects present in all illness. This exclusion of subjectivity is reinforced by the separation between body and psyche implicitly present in the biomedical model. These and other aspects of biomedical rationality configure constraints both in the effectiveness of health care and the satisfaction of many users. Through a theoretical and conceptual study of the work of Georg Groddeck, it was found that this author proposes a conception of disease radically different of the biomedical conception. For Groddeck, all illness is radically inserted in the subjective history of the individual. The disease appears to play a role in the life of the patient. Therefore, one should not seek his immediate disposal, but understand it in order to unravel its meaning. From this point of view, the separation between body and psyche is therefore dissolved. For Groddeck, although a disease can manifest as organ damage, subjectivity is always present, just that the health professional has eyes to see. At the end of the work makes up a relationship between these proposals drawn from the work of Groddeck and eminently philosophical statements of Georges Canguilhem and Baruch Spinoza in order to outline what are the conceptual foundations of a new model of health care. It appears that Spinoza, in postulating a conception of nature as a single substance, provides a fertile background for the support of the thesis groddeckiana disease as a manifestation of life and not as an 10 enemy. Canguilhem, with his concept of biological normativity, supports Groddeck’s proposition according to which nature is endowed with an inherent potential of healing and recovery. It is concluded that although Groddeck is an author whose writings date from the late nineteenth and early twentieth century, his views on health, disease and cure prove surprisingly current, indicating very fertile proposals for the formulation of a new model of care health, able to overcome the reductionism, dilemmas and limitations of biomedicine. Keywords: Georg Groddeck, Disease, Medical Philosophy, Biomedicine 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12 1 O MODELO BIOMÉDICO E SEUS IMPASSES .................................................. 21 1.1 Preâmbulo ........................................................................................................ 21 1.2 Das relações entre o pensar e o agir................................................................ 23 1.3 O solo conceitual da biomedicina: racionalidade científica moderna e suas ideologias ............................................................................................................... 24 1.4 As espécies e o corpo: aspectos do processo de emergência do modelo biomédico ............................................................................................................... 37 1.5 Retorno do recalcado ....................................................................................... 57 2 GEORG GRODDECK: UMA APRESENTAÇÃO ................................................ 63 2.1 O esquecimento da obra groddeckiana ............................................................ 63 2.2 Raízes biográficas do pensamento de Georg Groddeck .................................. 66 2.3 A influência de Ernst Schweninger ................................................................... 72 2.4 O encontro com a psicanálise .......................................................................... 76 2.5 A doença como criação simbólica .................................................................... 81 2.6 Para-além das fronteiras do eu: o conceito de Isso ....................................... 87 3. PROPOSTAS GRODDECKIANAS PARA A SUPERAÇÃO DE IMPASSES DA BIOMEDICINA ....................................................................................................... 98 3.1 O objeto do tratamento é o doente e não a doença ......................................... 98 3.2. Diagnóstico do ser humano e não apenas do corpo ....................................... 104 3.3 Compreensão e não combate à doença........................................................... 113 3.4 A transferência na relação médico-paciente .................................................... 124 3.5 Dualismo biomédico e monismo groddeckiano ................................................ 131 3.6 Inserção da doença na história subjetiva do doente ........................................ 139 4. POR UM NOVO MODELO DE CUIDADO EM SAÚDE: ARTICULANDO AS CONTRIBUIÇÕES DE GRODDECK A ASPECTOS FILOSÓFICO-CONCEITUAIS ............................................................................................................................... 148 12 4.1 Retomando o problema central: a concepção de natureza .............................. 149 4.2 Ego, Isso, cultura, natureza .............................................................................. 152 4.3 Spinoza, a natureza como substância única e o conatus ................................. 154 4.4 Canguilhem e a normatividade biológica .......................................................... 167 4.5 Isso, normatividade biológica e conatus ........................................................... 173 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 178 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 186 ANEXOS ................................................................................................................ 190 13 INTRODUÇÃO A palavra “crise” tem se feito presente com uma frequência cada vez maior na contemporaneidade. É comum ouvirmos no meio acadêmico e na mídia falar-se acerca de “crise ética”, “crise da ciência”, “crise financeira” etc. Esse aparente diagnóstico de crises nas mais diversas instâncias sociais pode ser tomado como o reflexo de um momento específico atravessado pela civilização ocidental e que parece ser marcado pela idéia de que está em curso uma transformação de grandes proporções. Nesse contexto, o afeto predominante parece ser a angústia, traço de uma sensação de insegurança advinda do fato de que o tecido simbólico no qual caminhamos se mostra movediço, inconstante, cambiante. As certezas do passado, que garantiam certa estabilidade e serviam como balizas relativamente seguras para a orientação da existência agora se mostram caducas, frágeis e amiúde inúteis para as novas situações que se apresentam. Quanto ao futuro, esse se mostra tal como é de fato: como pura imprevisibilidade, distinto do futuro projetado da modernidade, pré-determinado e que supostamente realizaria os sonhos planejados no passado. Nesse cenário, crise parece efetivamente ser a palavra que melhor define o processo de metamorfose que nossa sociedade experimenta. Trata-se, como a etimologia grega da palavra evidencia, de um momento difícil, de decisão e que, portanto, cria a necessidade do ato – que corta, cinde, separa e, ao mesmo tempo, cria uma realidade nova. Para nossos propósitos, convém lembrar que crise é palavra cara ao vocabulário médico, designando os momentos de virada no curso de uma doença. Há crises que são signos de uma mudança rumo à melhora, como também há crises que indicam a passagem para um estado pior. Trata-se sempre, todavia, de um ponto de desequilíbrio na evolução de um paciente que sinaliza a irrupção de um novo período de estabilização – eis a crise na medicina. Não obstante, a literatura mais recente do campo do cuidado em saúde tem registrado cada vez mais a palavra crise não apenas como conceito médico, mas como caracterizadora do momento pelo qual passa a medicina na atualidade. Nesse 14 caso, fala-se de uma crise da medicina. Como as demais instâncias sociais, o cuidado em saúde também estaria atravessando um período de crise e, em decorrência, de mudança, de transformação e, principalmente, de impasses. Com efeito, o que provoca o advento de uma crise é precisamente o impasse gerado pela desarmonia existente na relação entre as demandas da situação presente e os recursos existentes para fazer frente a tais demandas. O período de estabilidade é marcado justamente pela relativa complementaridade existente nessa relação. A crise manifesta o descompasso entre o velho e o novo, entre os antigos modelos ou modos de operar e as novas realidades que se apresentam. Esse descompasso, ao se fazer presente, revela o engodo de uma concepção desenvolvimentista das relações entre o homem e a realidade, que sustenta que o pensamento humano evolui de modo contínuo de acordo com as demandas da realidade. É desse ideário que brota a ilusão de que a ciência atual é mais evoluída do que a de outros tempos. As crises mostram justamente que não há tal continuidade no percurso histórico da humanidade, que esse percurso é guiado não por um suposto espelho da realidade (razão universal), mas por racionalidades, por modos de ver, de pensar e de conceber essa realidade, de sorte que sempre haverá um descompasso mínimo entre o homem e o real, o qual será menor ou maior dependendo do quão empáticas com a realidade forem as racionalidades vigentes. Os momentos de crise são justamente os períodos em que esse descompasso se exacerba. Quando a literatura do cuidado em saúde fala de uma “crise da medicina” ou “crise da saúde” o que está em jogo é precisamente o impasse entre os recursos teórico-metodológicos que se tem e aquilo que se quer ou se deve fazer considerando a complexidade do real. O que se tem é o que a maioria dos pesquisadores chama atualmente de biomedicina ou modelo biomédico. Paradigma, estilo de pensamento, modelo ou racionalidade, a biomedicina pode ser designada sucintamente como todo o conjunto de diretrizes teóricas e práticas que orientam a formação médica moderna e que, por conseguinte, guiam a prática não só dos médicos, mas também da maior parte dos profissionais de saúde. O prefixo “bio” indica precisamente o traço mais marcante dessa racionalidade: a supervalorização dos aspectos biológicos (notadamente a anatomia e a fisiologia) do humano em detrimento de outras dimensões fundamentais como a psicológica e a social. 15 A crise da medicina ocidental moderna refere-se à crise de seu paradigma dominante, o qual se identifica inteiramente com o positivismo ao não reconhecer o papel da sociedade, da cultura, da comunidade científica e da própria história na determinação não só do objeto do conhecimento como da maneira de abordá-lo (QUEIROZ, 1986, p. 310) É importante ressaltar que o próprio uso do termo biomedicina já se dá em um contexto de crise do modelo de cuidado em saúde sustentado por essa racionalidade. Em outras palavras, trata-se de um termo cunhado justamente como forma de localizar e nomear o alvo das críticas. Por conta disso, é muito comum encontrarmos profissionais de saúde que, por não estarem inseridos na discussão acerca dos impasses vivenciados atualmente pelo cuidado em saúde, por vezes desconhecem o termo biomedicina ou consideram-no apenas uma nova especialidade médica. No âmbito crítico, a biomedicina se refere ao modelo teórico-prático que vigora atualmente no campo do cuidado em saúde. O primeiro capítulo de nosso estudo tem a função de caracterizar esse modelo, apontando suas origens históricas e, especialmente, assinalando os impasses que ele enfrenta atualmente. Iniciamos com uma exposição do que denominamos de “solo conceitual da biomedicina” e que se refere aos fundamentos filosófico-conceituais que sustentaram o que Luz (1988) chama de “racionalidade científica moderna”, uma cosmologia, isto é, uma estrutura de explicação do ser humano e do mundo, que sucedeu a explicação de mundo religiosa vigente durante toda a Idade Média. Derivada da chamada Revolução Científica ensejada pelo Renascimento, a racionalidade científica moderna se constituiu fundamentalmente a partir da separação entre homem e Natureza e da elaboração dessa última como objeto de conhecimento. Abordamos, com o auxílio de textos de Martins (1999; 2009), a genealogia dessas novas idéias, demonstrando que se tratava de postulados construídos com base na pretensão de um controle absoluto sobre o real. Em decorrência, fora elaborado todo um imaginário marcado pela idéia de conflito e de luta entre o homem e a Natureza em que a racionalidade humana tinha como missão desbravar e tentar domesticar uma Natureza selvagem. 16 Concomitantemente, no contexto do advento da racionalidade científica moderna, emergiu a metáfora da Natureza como máquina, isto é, dotada de um funcionamento regular, previsível, mecânico, controlável, semelhante aos primeiros aparelhos mecânicos construídos nos séculos XIV e XV. É nesse contexto que surgem os princípios metodológicos que orientariam o desenvolvimento da ciência moderna e que acabariam por se converterem em ideologias, entre eles a especialização, a redução e a experimentação. Os três procedimentos podem ser considerados como legítimos e úteis para a produção de conhecimento desde que sejam reconhecidos como o que de fato são: estratégias de apreensão do real e não espelhos da natureza. Uma das marcas mais visíveis da racionalidade científica moderna foi justamente ter tomado tais princípios metodológicos como a verdade do real, fazendo da ciência uma ideologia, o cientificismo (MARTINS, 2009). As origens do modelo biomédico estão diretamente marcadas pela ideologia cientificista. Percorrendo a história do nascimento da medicina moderna com Foucault em seu “O Nascimento da Clínica” (FOUCAULT, 2008) vemos como, na pretensão de se constituir como ciência, a medicina acabara tendo que se afiliar ao cientificismo. Foucault traça dois grandes momentos na história dos primórdios da medicina moderna: a medicina das espécies (ou medicina classificatória) e a anatomia patológica. A medicina das espécies constituiu-se na tentativa feita no século XIX de fundar um cuidado em saúde baseado na classificação das patologias em gêneros, famílias e espécies, modelo de categorização já utilizado em outras ciências como a botânica, por exemplo. Para tanto, fora preciso considerar a enfermidade como entidade e não como processo de adoecimento. Assim, pensavase que o indivíduo ficava doente quando uma determinada entidade patológica se instalava em seu corpo. Já a anatomia patológica diz respeito à nova disciplina criada no século XIX caracterizada pela investigação, notadamente em cadáveres, de correlações entre os sintomas das doenças e lesões no corpo. A anatomia patológica marcara a entrada em cena dos dados anatômicos como critérios primordiais na determinação do estatuto da doença. Nesse contexto, já não se tratava mais de investigar apenas os sinais e sintomas de um quadro patológico a fim de determinar qual espécie de 17 doença adentrara no corpo do doente, mas sim de perscrutar as superfícies e tessituras do corpo na busca de informações. Assim, a localização e observação das lesões no organismo do paciente passaram a ser os expedientes principais da atividade médica. Conquanto se tratem de modelos de medicina gestados e praticados no século XIX e que diversos desenvolvimentos posteriores do conhecimento médico tenham suplantado a força desses modelos, alguns de seus traços ainda se mantêm na medicina contemporânea e são justamente as características que mais tendem a gerar impasses à biomedicina. A alta valorização da correta descrição dos sintomas por parte do paciente e a ênfase no diagnóstico como um elemento essencial para o cuidado em saúde podem ser vistos como heranças da medicina das espécies e sua necessidade de identificar e classificar a entidade patológica. Os impasses gerados por tais atitudes advêm do fato de que o diagnóstico que só leva em conta sinais e sintomas e que apenas com tais informações se considera capaz de determinar o que ocorre com o doente é reducionista, pois parte do pressuposto de que todos os doentes cujos diagnósticos os encaixam em uma mesma patologia apresentam um mesmo quadro patológico e devem ser tratados segundo estritamente os mesmos protocolos, em um procedimento muito mais próximo da engenharia do que de uma terapêutica singularizada que se valeria dos diagnósticos apenas como ferramentas de orientação clínica. Além disso, há um grande número de doentes que se apresentam com sintomas vagos, indefinidos, inclassificáveis e que, pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de serem diagnosticados, não recebe a devida assistência à saúde, evidenciando o prestígio que a enunciação do diagnóstico possui na biomedicina. A ênfase nos exames, nos testes e em todo tipo de procedimento de mensuração do corpo, desde a dimensão macroscópica das lesões visíveis a olho nu até a dimensão microscópica dos vírus e bactérias, deixa clara a força que o olhar adquiriu na medicina moderna. Força que podemos considerar como tendo sido forjada no momento em que a anatomia patológica começa a se fazer presente com maior intensidade na medicina. A idéia que parece ser considerada intocável desde aquele momento até os dias atuais é a de que apenas aquilo que pode ser visto ou de algum modo mensurado no corpo possui legitimidade para caracterizar um adoecimento. No entanto, uma série de condições de adoecimento não é 18 passível de ser adequadamente mensurada de acordo com os meios e os critérios biomédicos. Por conta disso, tais condições são tratadas de modo pouco criterioso e/ou os pacientes recebem simplesmente do profissional de saúde a célebre mensagem: “Você não tem nada”. Enunciado que expressa com clareza o impasse da biomedicina perante tais condições e a ideologia cientificista que nutre tal impasse. É como se o profissional de saúde estivesse dizendo: “Aquilo que você alega como sendo seu sofrimento e sua doença na verdade não existem, dado que minha ‘ciência’ não conseguiu identificá-los.”. Esses são alguns dos principais impasses enfrentados pelo modelo biomédico. No primeiro capítulo, buscamos traçá-los de modo mais pormenorizado delineando suas origens históricas e os fundamentos filosófico-conceituais sobre os quais se constituíram. O que fazer para dirimir tais impasses? A hipótese que norteia este estudo é a de que tal tarefa só pode ser levada a cabo mediante uma transformação direta não na superfície, isto é, no âmbito prático, onde esses impasses de fato aparecem, mas sim nas bases conceituais que estão em sua origem. Em outras palavras, não propomos aqui que a eliminação dos impasses referentes à questão do diagnóstico reducionista, por exemplo, passe por uma mudança de ordem meramente prática como a extensão do tempo de duração das consultas médicas. Tal estratégia provavelmente será frutífera, mas não haverá mudança efetiva se o profissional de saúde não modificar suas concepções acerca do que significa propriamente um diagnóstico e suas idéias acerca do que seja doença, saúde, cura, tratamento e, em última instância, do que significa natureza, vida etc. Em meio a esse contexto de crise que citamos anteriormente e no qual se inserem os impasses vivenciados pelo modelo biomédico, muitos autores contemporâneos têm trazido à baila, a fim de repensar os fundamentos de seu campo de estudo, contribuições de autores do passado, especialmente daqueles cujo pensamento se localiza em períodos anteriores à medicina moderna. Tem sido cada vez mais comum encontrarmos na literatura de diversos campos do conhecimento o resgate do pensamento de filósofos pré-socráticos, por exemplo. A tese é de que as proposições desses pensadores são bastante pertinentes à realidade pós-moderna marcada pela diluição das rígidas fronteiras geradas na 19 modernidade entre natureza e cultura, corpo e psiquismo, indivíduo e sociedade etc. Na área da saúde, vemos também pesquisadores recuperando e demonstrando a atualidade dos enunciados atribuídos a Hipócrates, por exemplo, o qual, embora seja considerado o pai da medicina ocidental, elaborou uma doutrina médica baseada na idéia de equilíbrio com o ambiente com a qual a biomedicina não se mostra compatível. Esta pesquisa também se insere nessa tendência de resgate das contribuições de autores do passado. A obra do autor que aqui colocamos em cena, Georg Walther Groddeck (1866-1934), jamais adquiriu significação de maior vulto nos campos em que atuava, a saber: a medicina e a psicanálise. Não obstante, em nossas leituras preliminares de seus escritos constatamos que suas idéias acerca do significado da atividade médica, da doença, da saúde e da cura poderiam ser consideradas justamente como um contraponto aos enunciados da biomedicina, de modo que um estudo mais aprofundado em sua obra possivelmente forneceria uma série de contribuições para a superação dos impasses vivenciados pelo modelo biomédico. Deste modo adveio nosso problema de pesquisa, o qual pode ser expresso da seguinte forma: “Quais as contribuições da obra de Georg Groddeck para a superação de impasses da biomedicina?” Groddeck ficou conhecido no meio psicanalítico apenas como um autor obscuro, que havia se dedicado ao estudo das doenças psicossomáticas e em quem Freud havia se inspirado para forjar o conceito de id (ou Isso). No segundo capítulo desta pesquisa, no qual realizamos uma espécie de “vida e obra” do autor, pretendemos fazer justiça ao seu legado, demonstrando, entre outras coisas, como o conceito freudiano de id é completamente diferente do Isso groddeckiano. Analisando sua concepção de doença, deixamos claro que conquanto Groddeck fizesse uso de expressões como “condicionamento psíquico”, o médico alemão jamais pensou o adoecimento como sendo fruto de uma psicogênese. Para Groddeck, a enfermidade é uma criação do Isso, o nome que ele dá à totalidade individual, a qual excede fartamente os limites do eu. Aliás, o eu para Groddeck é também uma criação do Isso, um arauto que crê ilusoriamente ser o autor da mensagem que seu real emissor lhe condena a entregar. O Isso não é nem corpo, nem psiquismo, mas utiliza a ambos como “dialetos” para expressar suas intencionalidades. Por isso, a doença, para Groddeck, não é um evento isolado da 20 história individual, mas está radicalmente inserida nela, servindo como meio de expressão individual, tal como a linguagem verbal. No segundo capítulo também buscamos dirimir os preconceitos que ao longo do tempo se depositaram ao redor do pensamento de Groddeck, derivados em grande parte de uma leitura superficial dos textos do autor. Através de uma análise cuidadosa de seus diversos escritos, demonstramos que não há nada de místico nas concepções do autor e que muitos dos enunciados aparentemente “escandalosos” e interpretações consideradas “forçadas” de Groddeck são apenas recursos retóricos próprios a seu estilo. Embora este segundo capítulo não aponte diretamente as contribuições do pensamento groddeckiano para a superação de impasses experimentados pela biomedicina, o consideramos necessário como forma de apresentar uma visão geral tanto da vida quanto das concepções teóricas do autor. Com efeito, Groddeck é um autor pouco conhecido e, como ressaltamos acima, mesmo aqueles que já ouviram falar dele amiúde não tiveram acesso mais aprofundado a suas idéias. No terceiro capítulo, que consideramos o segmento nuclear de nosso estudo, é que expomos efetivamente a resposta a nosso problema de pesquisa, isto é, as proposições teóricas encontradas na obra groddeckiana que julgamos capazes de contribuir para a superação de impasses da biomedicina. Através de um diálogo constante com o primeiro capítulo, no qual esses impasses são analisados, buscamos demonstrar o quanto as idéias de Groddeck, embora tenham sido elaboradas no mesmo momento histórico em que a biomedicina estabelecia suas bases teórico-metodológicas, se opõem radicalmente ao modelo biomédico. Ademais, a partir de uma análise minuciosa dos textos do autor, vamos colhendo o que de essencial há na doutrina groddeckiana capaz de auxiliar na formulação de um novo modelo de cuidado em saúde. Conquanto o objeto principal de nosso estudo já fosse atingido no terceiro capítulo, julgamos necessário inserir em seguida um quarto segmento a fim de cumprir duas tarefas complementares: (1) demonstrar que as contribuições extraídas da obra de Groddeck não são pontuais, mas têm sua relevância aumentada na medida em que estão inseridas dentro de um discurso mais amplo derivado das proposições de alguns autores do campo da filosofia; (2) apontar quais seriam os fundamentos filosófico-conceituais necessários para a formulação de um novo 21 modelo de cuidado em saúde no qual as contribuições de Groddeck poderiam se inserir. 22 1 O MODELO BIOMÉDICO E SEUS IMPASSES 1.1 Preâmbulo Neste primeiro capítulo, nossa intenção é a de apresentar ao leitor o campo de problemas, impasses e limitações enfrentados pelos profissionais de saúde em sua atuação cotidiana, partindo da hipótese de que tais dificuldades advêm da prevalência de um tipo específico de matriz teórica, filosófica e conceitual que fundamenta as ações desenvolvidas no cuidado em saúde contemporâneo. Tal matriz, usualmente denominada de biomedicina ou modelo biomédico, cujo modo de incidência no campo da saúde permite qualificá-la como um paradigma (no sentido kuhniano) ou um estilo de pensamento (na acepção de Fleck), vem sendo alvo de críticas há algum tempo na literatura das diversas áreas que compõem o vasto campo do cuidado em saúde. No entanto, posicionamentos dessa natureza não se configuram efetivamente como formas de resistência e de intervenção com vistas à superação do modelo biomédico. Em geral, as críticas tendem a ‘chover no molhado’ insistindo em questões como a ausência de um ponto de vista integral da pessoa na biomedicina, isto é, que a medicina moderna não vê o indivíduo, mas apenas seus órgãos ou que o modelo biomédico reduz o processo saúde-doença ao que se passa no âmbito do organismo e da biologia. Não estamos dizendo que tais juízos não sejam pertinentes. No entanto, tememos que a insistência nesses mesmos pontos e em fatos que qualquer usuário de serviços de saúde sabe de cor, sem a apresentação de possíveis alternativas ou soluções, acabe fazendo com que a crítica se transforme em flatus vocis, como tem ocorrido de forma semelhante com as condenações ao modo de produção capitalista nas sociedades contemporâneas. Mais: essa espécie de crítica pela crítica pode provocar efeitos totalmente adversos (para usar a expressão pertinente ao tema), pois embora a biomedicina tenha que lidar com uma série de furos teóricos e práticos em seu funcionamento enquanto modelo, foi justamente o seu desenvolvimento que permitiu uma série de avanços na compreensão e no tratamento de muitas enfermidades, o que significa dizer que o modelo biomédico conta a seu favor com um argumento extremamente forte na medida em que é pragmático: as intervenções que dele decorrem são efetivas em 23 grande parte dos casos. Assim, se os críticos não apresentam formas de superação dos impasses que o modelo enfrenta, seus posicionamentos podem ser vistos como um retrocesso, como uma tendência de retorno a um modo ultrapassado de cuidado em saúde. Outro problema que acomete a maior parte das críticas ao modelo biomédico é a ausência de uma fundamentação histórica ou genealógica tanto da crítica quanto daquilo que é criticado, fazendo com que muitas vezes o juízo condenatório assuma apenas um tom de lamentação. Posturas como essas fazem com que a crítica se torne um mero lugar-comum, pois dá a entender que o autor não sabe por que está criticando nem as razões pelas quais o objeto alvo de crítica a merece. Com vistas a nos livrarmos de armadilhas e ciladas desse tipo, nas quais qualquer procedimento de resistência tende a cair, começaremos esse capítulo do começo. O pleonasmo é proposital, pois nossa descrição partirá não dos impasses e limitações enfrentados pela biomedicina – o objeto central desse segmento – mas das condições sociais, filosóficas, históricas e ideológicas que permitiram o desenvolvimento e a manutenção do modelo biomédico como o paradigma hegemônico do cuidado em saúde. Dessa forma o leitor será levado a perceber onde se situa a gênese dos problemas, pois acreditamos que somente a intervenção naquilo que funciona como esteio dos impasses poderá servir como forma de superação dos mesmos. O erro, a nosso ver, do famigerado “projeto de humanização” da saúde é justamente o de não atentar para os fundamentos teórico-conceituais do objeto de contestação: ele pressupõe uma alteração no nível das práticas de saúde, mas deixa intocados os conceitos e teorias que efetivamente estão na origem das práticas “desumanas”1. Nosso interesse, portanto, é pragmático: exporemos as condições que originaram os atuais problemas enfrentados no cuidado em saúde de forma a demonstrar nos capítulos posteriores as contribuições que a obra de Georg Groddeck pode fornecer para a superação desses impasses, justamente porque tais contribuições incidirão no âmbito dos modos de pensar, os quais fundam os modos de fazer. 1 Exceções a esse quadro têm sido os trabalhos desenvolvidos por José Ricardo Ayres, nos quais é possível notar uma preocupação em situar e discutir os fundamentos conceituais que devem embasar a proposta de humanização do cuidado em saúde, utilizando como ferramenta discursiva a hermenêutica filosófica. Cf. AYRES, 2004; 2005; 2007. 24 1.2 Das relações entre o pensar e o agir Nem sempre se pensou o corpo tal como hoje o concebemos e descrevemos. Essa afirmação aparentemente banal pode não o ser se levarmos em conta o fato de que na maior parte do tempo talvez nos esquecemos completamente dela. Dificilmente um doente consegue discernir que no momento em que um profissional de saúde lhe diz que ele possui cálculos renais, por exemplo, ele não está descrevendo o que de fato acontece em seus corpos (como se estivesse exercendo uma função análoga à do espelho), mas está efetivamente fazendo uso de uma construção lingüística em que ambos, tanto o profissional quanto ele, paciente, acreditam como devendo corresponder a determinadas estruturas corporais. Geralmente não se coloca em questão, portanto, o fato de que tanto o profissional de saúde quanto os pacientes estão construindo um corpo no exato momento do diagnóstico, isto é, que estão ambos recortando em suas próprias mentes uma superfície a respeito da qual não se pode afirmar a priori que possua determinadas demarcações, fronteiras ou subdivisões. Admitindo esse postulado, qual deveria ser, portanto, o critério para a escolha, por exemplo, entre uma caracterização do corpo como sendo constituído de sistemas, órgãos, tecidos e células ou como comportando apenas uma cabeça, tronco e membros, já que não seria a correspondência a uma suposta natureza real? Não seria uma resposta possível: a partir das conseqüências que decorrem de cada uma das visões com vistas e quanto tais conseqüências contribuem para a realização de nossos interesses práticos? Ou seja, em vez de buscarmos uma correspondência entre nossas descrições e o real – correspondência que à primeira vista parece impossível de ser feita se considerarmos que a realidade admite diversas descrições (todavia, não qualquer descrição) – não deveríamos pautar nossas escolhas teóricas nas possibilidades que determinada descrição da natureza tem de nos auxiliar no alcance dos objetivos a que nos propomos, por exemplo, a efetividade do cuidado em saúde? Se esse for nosso critério, o questionamento que deve ser feito, portanto, para a biomedicina, quando ela pressupõe que a doença seja vista como uma questão de ordem puramente orgânico-biológica, é se essa forma de descrever as coisas facilita ou dificulta nossa compreensão do adoecer e não se essa tese corresponde ou não 25 à “realidade-real-verdadeira” da doença. Certamente, não foi esse o parâmetro adotado no desenvolvimento da medicina moderna. Essa, como diversos novos campos científicos, é herdeira de uma tradição que pretendia encontrar a correspondência identitária entre o pensamento e a realidade, ou seja, um tipo de concepção que via como possível ao sujeito humano ter acesso à verdade imanente à natureza. Falemos um pouco mais sobre essa tradição. 1.3 O solo conceitual da biomedicina: racionalidade científica moderna e suas ideologias Evidentemente, essa tradição a que nos referimos, a saber: a racionalidade científica moderna, possui uma história e um desenvolvimento cujas linhas de evolução será preciso traçar de modo que se possa compreender a gênese de determinadas formas de pensar que, embora tivessem sido funcionais num dado momento histórico e ainda o sejam em alguns aspectos, acabaram por se constituir em fatores impeditivos da consecução dos próprios objetivos a que se propuseram as disciplinas que compõem o cuidado em saúde. Para contarmos essa história, teremos como guia principais a obra de Madel Luz, “Natural, Racional, Social” (LUZ, 1988) e textos de André Martins que enfocam as relações entre a racionalidade científica moderna e o campo da saúde (MARTINS, 1999; 2004a; 2004b; 2008; 2009) o que não significa que negligenciaremos a contribuição de outros autores. A escolha da obra de Luz e Martins não foi arbitrária. Com efeito, correndo o risco da simplificação, pode-se dizer que é possível adotar duas perspectivas distintas ao se fazer a história de formas ou sistemas de pensamento. Uma é a perspectiva epistemológica que analisa as continuidades, descontinuidades e rupturas teórico-conceituais no interior do próprio sistema que está sendo objeto de estudo. Ao adotar-se esse ponto de vista, não se está preocupado com fatores exteriores ao sistema que porventura determinariam a evolução dos conceitos. Parafraseando Husserl, a forma de pensamento em apreço é colocada “entre parênteses”. A outra perspectiva é a que pode ser chamada genericamente de genealógica. Desse ponto de vista, nenhuma forma de pensamento é neutra em relação ao contexto afetivo, político, social, econômico e ideológico no qual foi gestada. Pelo contrário, entende-se que ela é 26 função desse contexto. Nesse sentido, a origem de determinados conceitos dentro de um dado modo de pensar não pode ser remetida apenas a outros conceitos que o antecederam no tempo, mas também e, principalmente, a uma ampla rede de relações dentro do meio social que, em última instância, se fundam na dinâmica dos afetos humanos. A genealogia enquanto método de análise histórica começa com Nietzsche no momento em que esse concebe a moral como um precipitado de pensamento gestado em meio a disputas de índole que poderíamos eminentemente chamar de narcísica. De acordo com André Martins (2004a): É com Nietzsche que a genealogia torna-se um método investigativo, que consiste basicamente em remontar às causas afetivas das ações, valores e argumentos aparentemente racionais presentes. Perceber o que está em jogo por detrás de explicações que não levam em conta o sensível e suas interações narcísicas, egoístas, emocionais (MARTINS, 2004a, p. 953). A remontagem histórica feita por Madel Luz e por André Martins adota essa perspectiva. De fato, no caso de Luz, não se trata de uma genealogia feita no sentido estrito do termo (tal como Nietzsche a faz), mas da adoção de um método descritivo de inspiração genealógica semelhante à “arqueologia” de Foucault, que Luz denomina de “análise sócio-histórica”. A autora expõe de maneira clara suas intenções no seguinte trecho: O exame dessa “produtividade” [da ciência] será conduzido, metodologicamente, através da análise histórica de teorias e de conceitos, de sua origem e da mutação de seus conteúdos no contexto social. Aqui sim, se está falando mais de arqueologia – ou de genealogia – que de epistemologia histórica (LUZ, 1988, p. 09). Portanto, ao convocarmos “Natural, Racional, Social” como guia de nosso percurso histórico, estamos deliberadamente adotando uma perspectiva genealógica, a qual julgamos não apenas mais interessante aos nossos propósitos como também mais honesta na medida em que explicita fatores que entram em jogo tanto na criação quanto na manutenção de certas formas de pensamento e que via de regra se encontram velados justamente com o objetivo de conferir um tom de neutralidade àquelas. É importante também deixar claro que a obra de Madel Luz tem objetivos próprios, distintos das intenções deste trabalho. O objetivo principal da obra de Luz é demonstrar as imbricações existentes entre as categorias do Natural, 27 do Racional e do Social e como tais imbricações incidem na medicina. O uso que fazemos de alguns aspectos do desenvolvimento histórico que a autora propõe terá como fim evidenciar como se deu a constituição da matriz teórica na qual a biomedicina se insere. A autora caracteriza a racionalidade científica moderna como uma “estrutura de explicação do mundo e do ser humano” cujo advento se dá concomitantemente a uma ruptura e enfraquecimento de outra estrutura de visão e organização do mundo, qual seja, a cosmovisão religiosa, a qual vigorou durante todo o período compreendido como Idade Média. Assim, todo um modo de organizar e explicar o mundo baseado na idéia de um Deus transcendente que cria e determina as formas de manifestação dos fenômenos à sua maneira começa a sofrer um enfraquecimento que culmina na emergência de um movimento artístico, filosófico, ideológico e científico que repercute nos vários âmbitos da sociedade: o Renascimento (LUZ, 1988). É no Renascimento que devem ser buscadas as raízes do que muitos autores chamam de Revolução Científica. Isso porque é no Renascimento que pela primeira vez desde os gregos ganha força a idéia de que é possível transformar o meio em que se vive. De fato, essa idéia não era plausível no contexto anterior de prevalência da doutrina teocêntrica. Se é Deus quem está no comando de tudo, qualquer modificação no real tem que partir de uma mudança na própria vontade divina – isso explica em parte o rígido sistema feudal e a inexistência de mobilidade social na Idade Média. Assim, a noção de indivíduo como potencial de mudança do mundo também ganha força no Renascimento. Troca-se o teocentrismo por um antropocentrismo. Evidentemente, uma série de transformações de cunho social, político e econômico estiveram na base dessa ruptura com a visão de mundo medieval, entre as quais a emergência da classe burguesa, o mercantilismo e o advento das monarquias seculares (LUZ, 1988). O termo Renascimento é utilizado como alcunha dessa ruptura com a Idade Média justamente porque se supunha um retorno a uma vida grega clássica anterior que teria sido perdida durante o período medieval. Em função disso, toda a tradição não só artística, mas também filosófica grega é retomada. Tal resgate ensejará o desenvolvimento de alguns postulados fundamentais do pensamento grego a partir 28 de outros conceitos. Talvez o maior incremento nesse sentido tenha sido o desenvolvimento da idéia platônica do corpo como prisão da alma e dessa como a essência do humano. Tal noção, como demonstra Martins (1999) certamente está na origem da visão do homem como proprietário da Natureza que esse estabelece a partir do Renascimento. Se antes apenas Deus era separado da Natureza, agora o homem também passa a ser visto como distinto dela e “herda” de Deus a propriedade sobre o “reino natural”. Emerge a idéia de uma Natureza exterior ao humano. De acordo com Luz, esse é um dos primeiros traços discerníveis da então nascente racionalidade moderna: Essa atitude antropocêntrica ativa que caracteriza o Renascimento, humanista por um lado, “naturalista”, por outro, é um primeiro rasgo da racionalidade moderna, um primeiro traço constitutivo discernível. Antropocentrismo que valoriza acima de tudo as iniciativas do gênero humano – (individuais, coletivas) de conhecimento do “mundo natural”, com a finalidade de desvendá-lo, desbravá-lo, explorá-lo (LUZ, 1988, p. 18, grifo da autora). Num primeiro momento, o conceito de Natureza aparece investido de atributos com os quais a tradição patriarcal usualmente caracterizava o sexo feminino, como o “mistério”. As metáforas utilizadas na época refletem essa operação: a Natureza é chamada de mãe, “mulher misteriosa”, “tesouro escondido”. Em contrapartida, seria tarefa do homem, através da ciência, revelar os segredos ocultos do mundo natural. Nesse sentido, inicialmente a relação do homem com a Natureza é vista sob o signo das relações entre os sexos. Outras características geralmente associadas ao sexo feminino na época também são incorporadas à visão da Natureza como a imprevisibilidade, o caráter perigoso, traiçoeiro. Em suma, a tarefa do homem para o com o mundo natural seria análoga à relação à época do sexo masculino com o feminino numa relação conjugal: o primeiro deveria controlar o segundo (LUZ, 1988). Posteriormente, a partir dos séculos XVII e XVIII e principalmente em função da influência da filosofia cartesiana, as imagens da Natureza vão sofrer uma transformação importante. De um mundo natural feminino, obscuro, imprevisível e traiçoeiro, passa-se a uma Natureza pensada como máquina, com um funcionamento logicamente determinado e cujos mecanismos podem ser conhecidos pela via da razão e da ciência. Não obstante essa modificação, o caráter exterior da 29 Natureza face ao homem permanece. A Natureza, o Real, o mundo, gradualmente vão se constituindo como objeto cujo modo de funcionamento pode ser conhecido justamente por ser exterior ao sujeito humano. A pretensão de controle da Natureza também não desaparece com essa transformação. Se no primeiro momento, o ímpeto dominador visava uma espécie de amansamento do mundo natural, potencialmente ameaçador, agora o desejo de controle torna-se o segundo passo de um processo que se inicia com o conhecimento das leis de funcionamento da Natureza. Deseja-se saber como a máquina funciona, para posteriormente fazê-la trabalhar a favor do homem (LUZ, 1988). De acordo com Martins (1999) esse novo modo de conceber a Natureza, isto é, como uma máquina cuja lógica pode ser conhecida, remonta aos gregos, em especial a Aristóteles. O filósofo, discípulo de Platão, ao contrário de seu mestre, não concebia as essências das coisas como estando situadas numa realidade transcendental da qual o mundo empírico seria apenas uma cópia imperfeita. Para Aristóteles, as essências dos objetos estavam nos próprios objetos. Ou seja, a lógica do mundo era imanente ao próprio mundo. Para aceder a ela, o homem deveria exercitar a observação e o raciocínio lógico. Ora, são justamente esses os dois passos fundamentais da racionalidade científica moderna. É preciso observar o comportamento da natureza, seus modos particulares de ser para, num segundo momento, pela via do raciocínio, passar desses modos particulares a uma lógica universal. As chamadas “leis de Newton” são a maior expressão desse processo, constituindo-se como enunciados universais que supostamente revelariam os princípios que regulam o comportamento de todos os corpos. Martins resume o ideário da racionalidade científica, construído a partir dessas bases, da seguinte forma: [...] a complexidade do mundo em contínuo devir pode e deve ser reduzida a leis pelas quais seus movimentos, complexos, podem ser tidos como mecânicos. As leis mecânicas aparecem assim como as regras ocultas que regem a natureza, e que podem ser desta apreendidas, submetendo-se a natureza a experiências, sendo estas determinadas e analisadas pela razão, pela inteligência humana. Assim, o homem racional poderá prever e portanto determinar, pela análise do presente e do passado, o que ocorrerá no futuro, contanto que controle as variáveis presentes (MARTINS, 1999, p. 88). 30 O texto de Martins cita duas características da racionalidade científica que merecem um comentário mais aprofundado: o reducionismo e o experimentalismo. O reducionismo é seguramente a arapuca em que com maior freqüência as disciplinas científicas tendem a cair e na qual a biomedicina certamente caiu. O reducionismo ocorre quando acreditamos que os modelos e instrumentos conceituais que utilizamos para entender os fenômenos que estudamos são idênticos à natureza mesma dos fenômenos. Por que isso implica numa redução? Porque, agindo assim, nós substituímos a complexidade do objeto estudado por uma visão simplificada dele, a qual foi gestada com o modesto objetivo de facilitar nossa abordagem. Ou seja, a redução não é em si mesma deletéria. Pelo contrário, ela é necessária dado que o real se nos apresenta de maneira assaz complexa. Rozemberg e Minayo (2001) concordam com essa assertiva ao dizer que a redução [...] é condição mesma do ato de conhecer, pois assim que racionalizamos algum aspecto da experiência, mesmo que momentaneamente, excluímos os demais. Ao focalizar a atenção na tentativa de apreender algum aspecto da experiência nosso olhar é necessariamente redutor dessa experiência. O maior problema, ao nosso ver, não está, portanto, no reducionismo em si, mas na pretensão de totalidade e de controle que as correntes de pensamento tendem a advogar para si mesmas e ainda, na instituição de uma forma de ver o mundo sob um determinado ângulo, desconhecendo e desqualificando outros olhares (ou até mesmo o nosso próprio em outro momento ou contexto) (ROZEMBERG & MINAYO, 2001, p. 117). Martins, em outro trabalho, nos dá um ótimo exemplo da relação entre a necessária redução e o prejudicial reducionismo tomando o caso dos mapas. Um bom mapa não pode ser do tamanho do território a que ele se refere, mas há de ser uma versão reduzida do mesmo e que não necessariamente reflete exatamente suas fronteiras. Sua função é a de nos auxiliar no processo de localização fornecendo-nos pontos de referência. Por não se acreditar que os mapas são cópias fiéis do mundo é que eles estão em permanente modificação, sendo alterados à medida que novos aspectos da realidade complexa vão sendo captados (MARTINS, 2009). Essa deveria ser a postura ideal das ciências frente a seus objetos de estudo e efetivamente o é em grande parte dos campos científicos. Algumas disciplinas, no 31 entanto, permanecem aferradas a seus modelos mesmo quando a complexidade do Real lhes bate à porta e lhes demonstra sua caducidade. No caso da medicina dita científica, a descrição do indivíduo doente a partir das categorias do corpo, do biológico e do orgânico sem dúvida são importantes para a compreensão daquele. No entanto, essa descrição não é suficiente dada a imensa gama de aspectos para além da realidade orgânica que intervêm no domínio das doenças. Falaremos mais sobre isso adiante. As raízes da tendência reducionista da racionalidade científica, de um ponto de vista genealógico, podem ser remontadas aos afetos que emergem da relação entre o campo científico e o real. Com efeito, a percepção da indissociabilidade dos aspectos da realidade, isto é, a comprovação de que na verdade a separação entre disciplinas da natureza, disciplinas do espírito e disciplinas do social trata-se tãosomente de uma ficção; que, para usar uma expressão forte, “tudo está ligado a tudo”; enfim, que o real será sempre mais complexo do que as descrições que dele fazemos. Pois bem, essa constatação torna-se profundamente angustiante e amedrontadora se nosso desejo é justamente o de controlar toda essa complexidade. Considerar a Natureza como exterior a nós, ir até ela, desbravá-la, buscando descobrir os segredos de seu funcionamento com vistas a domá-la inteiramente, tudo isso só pode redundar no sentimento de decepção visto que tais tarefas se afiguram como impossíveis. Uma das saídas, para tentar remediar a situação sem que o desejo de controle tenha que ser abandonado é justamente o reducionismo. Passamos, então, a acreditar que nossa versão simplificada do real é o próprio real e negamos a complexidade. O outro termo que destacamos do texto de Martins, o experimentalismo, também é um dos traços marcantes da racionalidade científica moderna e que indica o modo como o tema da verdade adquire uma dimensão inteiramente nova a partir da Revolução Científica. Evidentemente, como afirma Madel Luz (1988), o experimentalismo pode ser visto como uma resposta no domínio da ciência às alterações sociais, econômicas e políticas que vinham acontecendo na Europa desde o século XIV, como a necessidade de estabilizar a produção agrícola e de controlar determinados fenômenos naturais de modo a poder promover a organização dos portos os quais passaram a ser extremamente importantes a partir do advento das grandes navegações. As revoltas populares e guerras entre nações 32 e problemas sociais como epidemias e fome também foram condições que, de alguma forma, demandaram a elaboração de um novo modo de conhecer. Esse novo modo é justamente o método científico cuja característica mais diferenciadora em relação a outras formas de conhecimento é a de não apenas interrogar o real quanto a sua verdade, mas de ir até ele, observá-lo, tocá-lo, modificá-lo – eis o experimentalismo. As novas necessidades advindas do meio social e econômico reivindicam um método de produção de enunciados verdadeiros que seja capaz de produzir verdades aplicáveis, úteis. Já não é mais possível pensar a colheita ou a dinâmica dos ventos apenas como obras da vontade de Deus. Torna-se preciso saber quando é mais propício plantar sementes de feijão e quando não o é como também se torna preciso criar instrumentos para verificar a direção dos ventos de modo que os navegantes possam fazer uso dessa informação para melhor atingirem seus objetivos. Em outras palavras, já não dá mais para contemplar a Natureza à procura de verdades, como o fazem a religião e a filosofia. Quando Deus é separado da Natureza, a fé torna-se inútil como forma de compreender o real e a razão filosófica agora tem que estar apoiada nos dados fornecidos pelos sentidos, constituindo-se como uma espécie de arremate final àquilo que veio a ser descoberto pelo toque, pelo olhar. Nas palavras de Luz: [...] descobrir a ordem oculta da natureza não significa contemplar, para maior glória de Deus e iluminação do espírito humano, uma criação estabelecida para a eternidade. Significa, ao contrário, recriar continuamente, através da busca de evidências empíricas e de significados racionais que se encaixam uns nos outros, uma ordem de sentidos ou conjuntos de ordens de sentidos, que se constroem como um quebracabeça (LUZ, 1988, p. 21). Esse advento do conhecimento científico enquanto método está na raiz da idéia ainda fortemente enraizada na cultura ocidental do “cientificamente provado” e que acaba incidindo no domínio do cuidado em saúde na forma da atualíssima “medicina baseada em evidências”. O experimentalismo se constitui, portanto, na ideologia segundo a qual o que garante a veracidade e/ou fidedignidade de um enunciado é o método utilizado na sua produção. O “Discurso do Método”, publicado pela primeira vez em 1637 por René Descartes, é o documento onde se pode ver com maior clareza essa transformação no modo de conceber a verdade. No texto, Descartes enuncia uma série de regras e procedimentos que visam a impedir que o 33 pesquisador incorra em erros (DESCARTES, 1996). Os enunciados de verdade podem ser abandonados e substituídos por outros ao longo do tempo, mas não o método. Enquanto no conhecimento religioso, as verdades são perenes, isto é, não estão sujeitas a reformulações, no conhecimento científico elas passam a ser provisórias, como etapas rumo a um conhecimento total do real. A pavimentação desse caminho é feita pelo método – esse sim não deve mudar. Como é possível notar, as duas ideologias científicas citadas, tanto o reducionismo quanto o experimentalismo só se tornaram possíveis mediante a instituição do objeto Natureza. É só a partir do momento em que se opera uma divisão entre um sujeito dotado de racionalidade e um objeto Natureza passível de ser conhecido é que se pode reduzir a complexidade desse objeto a modelos conceituais de entendimento e elaborar um método específico de abordá-lo que se constituirá como o único adequado. Tais ideologias científicas também só são plausíveis a partir de uma concepção da Natureza como sendo um imenso engenho mecânico, cujas partes e regime de funcionamento são apreensíveis através da razão. De acordo com Luz, essa imagem da Natureza como uma máquina gigante tem suas raízes no período final da Idade Média a qual foi marcada por uma produção crescente de maquinismos e objetos autômatos. O mecanicismo nasce então como uma tentativa de estender o modo de funcionamento de artefatos produzidos pelo próprio homem a tudo o que o que se busca conhecer. Trata-se, novamente, de uma questão que diz respeito à dinâmica dos afetos. Afinal, face ao espanto gerado pela complexidade do Real, por que não nos tranqüilizarmos, imaginando que esse real funciona do mesmo modo que o relógio que nós mesmos fabricamos e, portanto, sabemos como funciona? Como veremos adiante, a visão da Natureza como máquina será também estendida ao corpo humano, originando uma fisiologia que o descreverá como uma espécie de locomotiva viva. Por ora, indiquemos as características essenciais da doutrina mecanicista. De acordo com Martins (2009), o eixo central do mecanicismo está na idéia de que é possível dividir o todo do real (ou do objeto de estudo, como o corpo humano) em partes e cada parte ser analisada isoladamente. A análise de todas as partes corresponderia, portanto, à análise do todo. Não se atribui ao todo um caráter 34 gestáltico, isto é, uma dinâmica própria, uma configuração interna. Isso não implica em dizer que para o mecanicismo não há ligação entre as partes. Evidentemente, um aparelho mecânico como um relógio, por exemplo, precisa, para funcionar, de conexões entre seus componentes. No entanto, tais conexões são vistas como meras adições e não sob o signo da interdependência. Portanto, continuando com o exemplo dos relógios, há a curiosa experiência de pessoas que os desmontaram e, ao remontá-los, deixaram de retornar com algumas peças. Ainda assim, em muitos casos os relógios continuaram a funcionar como antes, sem qualquer defeito, o que evidencia que, de fato, em artefatos mecânicos, a adição ou subtração de determinadas partes pode não interferir no funcionamento do todo, ou seja, as partes não são interdependentes. Todavia, será que tal lógica poderia tão facilmente ser transposta para o campo da saúde humana? A extração de um rim, por exemplo, deixaria intacto, como no caso do relógio, o funcionamento total do indivíduo do qual o órgão foi extraído? Tais questões serão refeitas mais à frente quando demonstrarmos quais foram as conseqüências da introdução do modelo mecanicista na medicina. É preciso reiterar novamente que ao apontarmos a ligação do mecanicismo a ideologias científicas como o reducionismo e o experimentalismo e discutirmos suas limitações, não estamos negando que tal modo de ver as coisas foi de grande valia e eficácia para o contexto humano, político, social e econômico que o gerou. Com efeito, se a doutrina mecanicista não houvesse se tornado o paradigma dominante nos anos iniciais da ciência moderna, dificilmente avanços cruciais de cunho tecnológico para o desenvolvimento das sociedades se tornariam possíveis de serem alcançados. Arriscamos a dizer que mesmo hoje o modelo mecanicista é útil para pensar uma série de aspectos da realidade, principalmente no campo das ciências naturais (a saber: física e química). Por mais que se alegue que a Física, por exemplo, atualmente trabalhe com o paradigma quântico, os princípios da física clássica newtoniana não foram abandonados. A eles foram acrescidas novas constatações, as quais exercem uma função de complementação e não de total substituição. A visão mecânica claudica quando se transforma em reducionismo, isto é, quando deixa de ser um modelo de entendimento e passa a postular que o mundo é apenas e tão-somente mecânico. Para Plastino (1996) isso ocorre precisamente em função da funcionalidade da doutrina mecanicista no tratamento de alguns 35 aspectos da realidade. Segundo o autor, o mecanicismo “[...] demonstrou ser extraordinariamente fecundo na manipulação do mundo natural. Foi precisamente em função dessa capacidade de manipulação e do fascínio que esta exercia, que ele passou a ser considerado como o reflexo do ser do real” (PLASTINO, 1996, p. 208). Não se pensa, portanto, o modelo mecânico como um mero e relativo instrumento conceitual de abordagem do real. Se assim fosse, a complexidade da Natureza manter-se-ia intacta, à surdina, sempre pronta a assaltar o pensamento com manifestações do incognoscível, do estranho. É preciso, para que não se corra o risco dessa invasão, crer firmemente que se o mundo não está sob o domínio dos caprichos de Deus. Mas a divindade pelo menos o fez perfeitamente inteligível, no formato de uma máquina milimetricamente ordenada. Logo, nada haverá de estranho para causar incômodo. Qualquer fenômeno pode ser mecanicamente inteligível. A ideologia mecanicista não só permitiu a emergência do reducionismo e do experimentalismo como também deu origem à especialização, tendência que ainda hoje se manifesta com toda a sua força. Já que o real é visto como sendo constituído de partes perfeitamente isoláveis uns das outras, logo é preciso constituir diferentes disciplinas que tomem, cada uma, determinada parte da Natureza como objeto de estudo. Assiste-se, então, a uma explosão de novos campos do saber principalmente a partir de fins do século XIX, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história e a própria medicina que, como veremos adiante, deixará de ser uma práxis social, isto é, uma arte cuja finalidade era a cura dos doentes para se constituir como uma ciência que tomará justamente aquilo que buscava combater como objeto de estudo, a saber, as doenças. Evidentemente, a especialização, bem como a redução e o método experimental, não constituem em si mesmas estratégias equivocadas. De fato, não se pode negar sua utilidade. Qualquer criança sabe que a divisão de uma tarefa complexa em partes constitui um método bastante eficaz para a realização da tarefa. O problema começa quando se toma essa estratégia não mais como uma ferramenta, mas como a descrição da verdade do Real. No exemplo citado, seria como dizer que a operação de dividir a tarefa em partes só fosse possível porque ela de fato é naturalmente constituída de partes claramente distinguíveis pelo intelecto. 36 Destarte, ocorre um engodo: nós produzimos formas discursivas sobre as coisas e depois nos “esquecemos” que as produzimos e passamos a acreditar que as descrições já estavam lá, nas próprias coisas, simplesmente à espera de serem espelhadas por nosso olhar racional. A especialização deixa, portanto, de ser um procedimento pragmático de abordagem da Natureza e passa a se constituir também como uma estratégia defensiva contra a angústia gerada pelo caráter complexo do real, como aconteceu com a redução e o método experimental. Assim, esquadrinha-se a Natureza em partes e propositalmente “esquece-se” desse procedimento humano, demasiado humano e passa-se a lidar apenas com o resultado da divisão operada, negando a íntima conexão de todas as partes entre si na totalidade que constitui o real. Como assevera Martins (2009): [...] as especialidades têm como origem não somente o intuito de aprofundar o conhecimento específico de setores de algum saber da natureza, mas a crença de que um saber isolado seria preferível a um saber do todo, pois que, como descrevera Descartes, o todo nada mais seria do que a soma de suas partes discretas (MARTINS, 2009). Uma das provas de que a especialização perde seu caráter instrumental e se transforma em ideologia perfeitamente inteligível como uma defesa neurótica é que ela passa a ser realizada de forma compulsiva, de modo que no interior das próprias disciplinas que foram formadas a partir de um primeiro processo de especialização, passam a se desdobrar inúmeras outras que passarão a se ocupar de objetos cada vez mais delimitados. Esse é o caso da Medicina com suas múltiplas e ainda crescentes subdivisões. É em função da especialização que Madel Luz prefere dizer que o mecanicismo não constituiu na verdade uma síntese epistemológica, como a que se verifica, por exemplo, no nascimento da filosofia grega, pois não há uma articulação sistemática e unitária entre os saberes. Em função disso, a autora prefere falar do mecanicismo como um amálgama composto de uma cosmologia, um método experimentalista e um sistema de produções discursivas sobre o objeto Natureza. Com efeito, “a fragmentação de disciplinas ou a criação de novas disciplinas, e a elaboração teórica diversificada, concernindo os aspectos mais variados da 37 ‘natureza’, não levam à constatação de uma síntese epistemológica mecanicista” (LUZ, 1988, p. 32). Uma tentativa contemporânea de tentar solucionar os problemas gerados pela manutenção da perspectiva da especialização tem sido a elaboração de pesquisas e práticas chamadas “multidisciplinares”. Isso tem ocorrido com mais freqüência no campo da saúde onde os prejuízos da especialização se fazem mais visíveis muito mais porque o que está em questão é a vida de muitas pessoas. Nas pesquisas e práticas multidisciplinares se busca promover oportunidades de que os olhares de diferentes disciplinas sejam reunidos em torno de um mesmo fenômeno. A intenção é de que os olhares restritos e redutores de cada campo sejam relativizados e colocados em interface com as perspectivas dos outros. No entanto, o que efetivamente ocorre é tão-somente o ajuntamento de olhares e não a conjugação de todos numa mesma totalidade. Assim, principalmente no âmbito das práticas de saúde, a multidisciplinaridade acaba se transformando num processo em que cada profissional isoladamente dá o seu parecer sobre determinado caso, havendo a prevalência da perspectiva do médico como uma espécie de “palavra final”. Nota-se, portanto, que o processo de especialização não distribui de forma equânime a autoridade de produção de enunciados verdadeiros entre as disciplinas. No processo de especialização, algumas disciplinas adquirem certo quantum de poder sobre outras, de sorte que alguns campos do saber passam a representar meras visões alternativas sobre os fenômenos, não sendo a elas atribuída a capacidade de produção de verdades como outras, as quais passam a se constituir como arautos da visão oficial. A saída, portanto, para a recuperação de uma visão, por assim dizer, mais “integral” dos fenômenos, em especial na área de saúde, não passa apenas pela reunião de múltiplas disciplinas, mas também por uma crítica à relação de submissão de determinados olhares a outros. Isso só é possível mediante a apresentação das limitações e impasses a que está sujeito o “olhar oficial”. É justamente essa a nossa intenção neste capítulo: apontar os entraves e obstáculos encontrados no cuidado em saúde atual resultantes precisamente da prevalência da perspectiva biomédica sobre outras formas de descrição do sofrimento humano. 38 Antes de adentrarmos diretamente nesse campo, recapitulemos o que vimos até agora como sendo o manancial teórico-ideológico do qual emergirá o modelo biomédico, isto é, a racionalidade científica moderna. Como foi visto, tal racionalidade possui suas raízes num primeiro momento de transformação radical da visão de mundo ocidental, que deixa de ser constituída a partir de uma ordenação teocêntrica e a humanidade passa a ser vista sob o signo da autonomia. Dessa profunda alteração na organização social vão emergir no plano conceitual uma série de separações que vão permitir o desenvolvimento primitivo da ciência moderna. Entre tais separações, a mais radical e basal é a que se estabelece ente homem e Natureza. O reino natural passa a ser o objeto a ser conhecido pela razão do sujeito humano. Na medida em que esse desejo de conhecimento do real adquire como obstáculo a constatação de que se trata de um trabalho hercúleo (para não dizer uma tarefa de Sísifo) emergem estratégias de apreensão do real que, elevadas ao estatuto de crença, acabarão por se converterem em ideologias científicas. O conjunto dessas estratégias é tradicionalmente denominado de mecanicismo, o qual se baseia na firme adesão à idéia de que o Real é estruturado como uma máquina, ou seja, passível de ser decomposto em elementos e conhecido a partir de um único método verdadeiro, o experimental. 1.4 As espécies e o corpo: aspectos do processo de emergência do modelo biomédico Veremos agora como a medicina moderna ou, como vimos chamando, o modelo biomédico ou biomedicina se constituiu a partir dessa racionalidade e quais os principais impasses enfrentados na contemporaneidade pela manutenção desse modelo. Essa história começa inevitavelmente com a revolução provocada pelo pensamento de René Descartes. Embora atualmente se utilize amiúde o adjetivo “cartesiano” para qualificar práticas, discursos ou posicionamentos retrógrados e o autor deste texto abomine a superficialidade desses “lugares-comuns”, é impossível negar que quando Descartes afirma que a realidade é composta de duas substâncias, uma material e outra racional, ele está implicitamente abrindo o terreno epistemológico e filosófico para se pensar a medicina não mais como apenas uma arte, mas como uma ciência. Isso porque a distinção promovida por Descartes entre 39 res extensa (matéria) e res cogitans (pensamento) não diz respeito apenas ao mundo externo, mas também, e principalmente, ao próprio homem. O que Descartes está dizendo, portanto, é que o próprio ser humano possui um corpo (matéria) que é, em essência, distinto de sua mente (pensamento). Na medida em que é através do pensamento que se processa o conhecimento, pois só através do pensamento é possível a emergência da “verdade primeira”, a autoconsciência (“Cogito ergo sum”: “Penso logo sou”), logo é a materialidade, a Natureza, o objeto a ser conhecido. E o que é a Natureza em nós, senão o corpo? Esse perde, portanto, seu estatuto ontológico diferenciado que o fazia ser visto como algo sagrado2 e passa ser visto como mais um objeto material da Natureza. Assim, entre um corpo e um relógio a diferença é apenas de níveis distintos de complexidade – não há nada de singular no corpo. Como vimos anteriormente, assim como a Natureza é pensada como um grande engenho mecânico, o corpo também será metaforizado como máquina. Descartes exprime literalmente essa analogia, postulando-a como naturalmente dada, no seguinte trecho de seu “Discurso do Método”, ao dizer que: [...] de modo algum parecerá estranho aos que, sabendo quantos autômatos diferentes, ou máquinas que se movem, o engenho dos homens pode fazer só empregando muito poucas peças, em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias, e todas as demais partes que há no corpo de cada animal, considerarão esse corpo como uma máquina que, feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer uma das que podem ser inventadas pelos homens. (DESCARTES, 1996, p. 62-63) É justamente essa espécie de “secularização do corpo” e a concepção do mesmo como um conjunto de peças e engrenagens que será a condição filosóficoconceitual de entrada da anatomia como uma das disciplinas angulares da medicina moderna. De fato, nossa hipótese é de que não se trata da evolução de uma medicina obscurantista que, por uma superstição, não investigava a relação das doenças com o corpo para uma medicina mais avançada que o faz. A nosso ver, o 2 Afinal, para o cristianismo, a ressurreição não será apenas da alma, mas também do corpo, o que talvez explique tal equívoco doutrinário que acometeu algumas correntes cristãs. 40 corpo que passará a ser objeto da medicina é conceitualmente produzido por um olhar que, gradualmente se torna externo a ele. Logo, não há um progresso, mas sim uma transformação no âmbito das formas de descrição da experiência humana. Como afirma Foucault (2008): A medicina moderna fixou sua própria data de nascimento em torno nos últimos anos do século XVIII. Quando reflete sobre si própria, identifica a origem de sua positividade com um retorno, além de toda teoria, à modéstia eficaz do percebido. De fato, esse presumido empirismo repousa não em uma redescoberta dos valores absolutos do visível, nem no resoluto abandono dos sistemas e de suas quimeras, mas em uma reorganização do espaço manifesto e secreto que se abriu quando um olhar milenar se deteve sobre o sofrimento dos homens (FOUCAULT, 2008, p. VIII). Se a Anatomia é, portanto, a caracterização das peças da máquina, a Fisiologia moderna, cujas raízes podem ser encontradas em William Harvey no século XVII, se ocupará da descrição de como essas peças se concatenam entre si, ou seja, de como a máquina funciona. O próprio Harvey fará uso de uma série de analogias ente o funcionamento da circulação sanguínea e a engenharia hidráulica, formulando a metáfora que se popularizou e mantém sua força até os dias de hoje segundo a qual o coração funciona como uma bomba hidráulica (LUZ, 1988). Ainda que, como aponta Madel Luz, já existam estudos de anatomia com Leonardo da Vinci e André Vesálio em fins do século XV, é a partir do imaginário mecanicista que tanto a Anatomia quanto a Fisiologia se desenvolvem e juntas vão se conjugar como vigas mestras da então nascente ciência médica. Até então e durante toda a Idade Média, os referenciais teóricos da Medicina eram fundamentalmente os postulados da obra de Galeno (130-201 d.C.). Esse exerceu sua prática principalmente em Roma e é considerado o fundador da terapêutica ocidental, deixando uma série de escritos e estabelecendo os textos do pai da medicina, Hipócrates. De acordo com Galeno, os textos atribuídos ao médico grego eram na verdade de vários autores. Galeno apresentava-se como herdeiro e seguidor de Hipócrates, embora muitas de suas práticas diferissem essencialmente do modo como o médico grego atuava. No entanto, a concepção galênica de doença era basicamente a mesma de Hipócrates. A enfermidade era vista como um 41 desequilíbrio dos humores3. Em função disso, a maior parte da sua terapêutica enfatizava a prevenção e medidas de higiene, mas também a aplicação de catárticos como sangrias e a administração de panacéias como a chamada theriaka, uma poção composta de dezenas de ingredientes. De acordo com seu ponto de vista vitalista, Galeno sustentava a idéia de que os remédios deveriam conter muitas substâncias, pois o próprio organismo escolheria as melhores para si (SAYD, 1998). Embora Galeno se intitulasse um autêntico médico hipocrático, já há em seus escritos e em sua prática uma preocupação um pouco mais acentuada com o potencial curativo de corpos exteriores ao próprio organismo, tendência que destoa do pensamento hipocrático que postulava a idéia de que o próprio organismo buscava oportunamente seus meios de cura. Nesse sentido, já é possível encontrar em Galeno um dos traços que irá marcar a medicina moderna, qual seja, a da concepção do organismo como passivo diante do meio, o que redundará na visão da doença como algo que vem de fora e que precisa ser eliminada também por uma ação proveniente do exterior. De acordo com Sayd, falta em Galeno, com relação a Hipócrates [...] a noção mais profunda da natureza associada à virtude, de organismo com vitalidade e sabedoria próprias, conceitos que se esfumaçaram no decorrer do período helenístico. A sua proposta, de ministrar uma polifarmácia para que o organismo escolha a melhor substância, não é, de forma alguma, idêntica à idéia de que o organismo busca, por si só, o regime mais adequado ao seu estado. No primeiro caso, trata-se de uma espécie de absorção passiva por “simpatia” (SAYD, 1998, p. 35). Pode-se dizer, portanto, que em Galeno temos ao mesmo tempo o desenvolvimento e efetivação dos princípios da medicina hipocrática e também o nascedouro de um novo modo de conceber o cuidado em saúde, em que a noção de uma tendência autocurativa imanente ao organismo, a vis medicatrix naturae (SAYD, 1998) será gradativamente descartada. A confiança na natureza será substituída 3 De acordo com Hipócrates, existiriam no homem quatro humores que, na saúde se encontrariam em equilíbrio de distribuição pelo corpo: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. O desequilíbrio dos humores não geraria apenas doenças corporais mas também modificações na personalidade. Por exemplo, pessoas com maior concentração de bile amarela seriam mais irascíveis e agressivas. A teoria dos humores foi a primeira explicação não-religiosa da doença no Ocidente (LOQUE, 2009). 42 pela confiança no médico. O corpo vivo que demandava uma arte de curar será convertido nos cadáveres dos laboratórios de anatomia. No entanto, o processo de alcance desse novo modelo de cuidado em saúde será marcado por tentativas de manutenção da idéia de uma natureza que busca sua autopreservação concomitantemente à emergência da anatomia e da fisiologia como disciplinas científicas. Filósofos como Montaigne (1533-1592), Leibniz (16461716) e o próprio Descartes vão associar a noção então nascente de uma Razão Divina que engendra uma Natureza cujo funcionamento é perfeito à idéia de que o organismo, na medida em que é a Natureza em nós, possui forças próprias de cura. Não obstante, essas tentativas de manutenção de uma visão vitalista da doença, da saúde e do tratamento só será possível pela instituição do objeto Natureza, que passa a ser visto como algo distinto do homem (cujo atributo essencial não é o corpo, mas a racionalidade) e que o afeta (SAYD, 1998). O pensamento de Descartes é particularmente interessante nesse ínterim, pois nele se encontram justapostas as duas correntes doutrinárias que vão se digladiar no século XVIII pela prevalência na descrição dos fenômenos da doença e da saúde, que são o vitalismo e o mecanicismo. Ao mesmo tempo em que concebe o corpo como uma máquina, noção oposta à visão de um corpo vivo distinto dos demais objetos, Descartes preconiza que se escute a natureza, pois seria ela quem nos educaria com a doença e nos devolveria a saúde. Temos, portanto, um Descartes que atribui à vida uma singularidade e, portanto, enxerga o corpo humano como um fenômeno particular e outro Descartes que vê o corpo apenas como uma máquina mais complexa, ou seja, que o inclui no conjunto da mecânica do mundo. Esses dois pontos de vista, vitalista e mecanicista, permanecerão em constante oposição ao longo da história do cuidado em saúde, manifestando-se com relevo maior no advento da homeopatia que pretendeu justamente solucionar essa querela, ao conciliar a idéia de uma vis medicatrix naturae com o uso de medicamentos (SAYD, 1998). A chamada medicina científica, no entanto, vai se constituir sob a égide do mecanicismo. E se o corpo humano é uma máquina, logo as doenças serão todos os fenômenos que podem vir a danificar esse aparelho. A medicina, portanto, será a disciplina cujo objeto será justamente isso que pode prejudicar ou inviabilizar o 43 funcionamento da máquina. Embora os estudos em Anatomia e Fisiologia comecem a se desenvolver, não é o corpo doente que vai se constituir inicialmente como objeto da medicina. Enquanto anatomistas e fisiologistas elaboram um saber sobre a estrutura e funcionamento do corpo, os primeiros profissionais da ciência médica estarão preocupados com a descrição e o escrutínio das entidades mórbidas. Como Foucault demonstra em seu “Nascimento da Clínica” (FOUCAULT, 2008), o corpo não foi o primeiro espaço de origem e repartição da doença na medicina moderna: A coincidência exata do “corpo” da doença com o corpo do doente é um dado histórico e transitório. Seu encontro só é evidente para nós, ou melhor, dele começamos apenas a nos separar. O espaço de configuração da doença e o espaço de localização do mal no corpo só foram superpostos, na experiência médica, durante curto período: o que coincide com a medicina do século XIX e os privilégios concedidos à anatomia patológica (FOUCAULT, 2008, p. 02, grifos do autor). O que Foucault procurará mostrar nessa obra é precisamente como aconteceu essa identificação da doença com as lesões, isto é, com alterações no nível do corpo; identificação que não é natural, mas produzida e condicionada historicamente. A idéia de que para cada doença existe uma lesão corporal correspondente será um dos traços mais marcantes da biomedicina (CAMARGO JR., 1997). Faremos agora uso da análise histórica que Foucault empreende em “O Nascimento da Clínica” justamente para evidenciar de que modo o corpo se constituiu como a verdade da doença, no intuito de deixar claro que a relação conceitual entre corpo e enfermidade não é necessária, mas contingente e que, portanto, pode ser relativizada caso não se apresente como eficaz na descrição e tratamento de diversas formas de sofrimento humano. De acordo com Foucault (2008), o primeiro modelo de concepção das doenças na medicina moderna e que antecedeu o método anatomoclínico foi o da chamada “medicina classificatória”. Esse primeiro modelo prescindia de qualquer referência à localização para a descrição e análise das doenças. Com efeito, havia um espaço no qual se dispunham e se organizavam as enfermidades. No entanto, trata-se de um espaço abstrato em que as doenças são hierarquizadas em famílias, gêneros e espécies, uma clara e explícita apropriação dos modelos de classificação 44 da botânica. A idéia, portanto, é de que a doença existe independentemente do doente, de tal modo que no processo de adoecimento, o último é concebido como tendo sido tomado pela primeira. A tarefa da ciência médica é a de circunscrever meticulosamente o caráter das doenças. Não se trata, no entanto, de um procedimento que tem como finalidade estabelecer regularidades entre formas de sofrimento de modo a facilitar a comunicação entre os profissionais ou a aprendizagem e memória dos quadros nosológicos. Pressupõe-se de fato a existência de uma configuração das doenças e uma estrutura de parentesco real entre as formas de adoecimento. A intenção, portanto, não é classificar para auxiliar o entendimento. Trata-se de uma ordenação que pretende se constituir em uma descrição verdadeira das doenças. Esse é um dos pontos em que se manifesta de forma evidente a herança reducionista da medicina moderna. A medicina classificatória pressupõe, portanto, a existência de uma espécie de “mundo inteligível” das doenças semelhante ao “mundo das idéias” de Platão em que as doenças existiriam na sua forma pura. Assim como o mundo real era visto por Platão como um mundo imperfeito em que seus objetos são apenas versões defeituosas de suas idéias no mundo inteligível, assim também a medicina classificatória pensará o corpo do doente como o espaço que deturpa a assunção da doença em toda a sua limpidez. O doente, com suas peculiaridades, perverte a configuração precisa da doença, de tal modo que é tarefa do médico, ao tomar contato com ele, separar aquilo que é constitutivo da própria doença daquilo que é uma idiossincrasia do doente. Para tanto, o médico deverá buscar as qualidades específicas da doença e, para fazer isso, a localização corporal ainda não é relevante, pois, como exemplifica Foucault, “uma hemorragia nasal pode tornar-se hemoptise ou hemorragia cerebral; subsiste unicamente a forma específica do derrame sanguíneo” (FOUCAULT, 2008, p. 10). É por isso que o autor vai dizer que o olhar do médico nesse momento é essencialmente qualitativo: ele busca as qualidades dos sintomas, não sua intensidade. Essa advém do corpo do doente e não é essencial para o diagnóstico. O corpo serve apenas como uma superfície de manifestação da entidade mórbida. Ao analisarmos a medicina classificatória, não seria surpreendente que cogitássemos a hipótese de que se trata de um modelo menos deletério do que o anátomo-clínico na medida em que não estaria fundamentado em um reducionismo 45 biológico, o qual advoga que o corpo é o lócus de origem de todas as doenças. De fato, a medicina classificatória permite pensar a possibilidade de um modo de conceber as doenças que seja capaz de prescindir da referência à biologia e, nesse sentido, ela depositaria um valor maior na fenomenologia da doença, a qual na anátomo-clínica será posta em segundo plano em função da busca pelas lesões correspondentes a cada sintoma. No entanto, a medicina classificatória ou “medicina das espécies” é tributária de um postulado teórico também problemático, a saber: o da naturalização das doenças, isto é, a visão da doença como uma coisa que tem existência independente do contexto em que emerge. Mesmo tendo sido substituída pelo modelo anátomo-patológico, a medicina classificatória deixará justamente esse traço naturalizante como herança para a medicina contemporânea: a idéia de que as doenças são entidades de existência fixa e imutável e, por conta disso, um privilégio concedido à doença em detrimento do doente. Na atualidade, a ênfase na definição dos diagnósticos nas consultas médicas é uma das formas mais visíveis de se verificar a manutenção da tendência classificatória de extrair a doença do doente. Canguilhem (2005) corrobora esse argumento a partir de uma análise sobre o próprio significado da cura na medicina dita científica. Enquanto no domínio do curandeirismo, a cura resultante das ações do curandeiro constitui um signo do poder do feiticeiro sobre a enfermidade, isto é, o seu dom, na medicina tradicional a cura é tomada como um fenômeno de validação não da eficácia da medicina enquanto arte de curar, mas da assertividade do diagnóstico e da terapêutica empregada. Ou seja, a cura se torna uma espécie de resultado de pesquisa que comprova o conhecimento da medicina sobre a doença. A cura, portanto, se constitui como um meio para o verdadeiro fim que é a confirmação do diagnóstico. Esses dois traços deixados como herança pela medicina classificatória estão na raiz de muitos impasses enfrentados atualmente pelo modelo biomédico. A visão da doença como um fenômeno de existência autônoma é naturalizante na medida em que deixa implícito que a enfermidade é algo que se apossa do indivíduo, o que faz com que se perca de vista os diversos condicionamentos que permitem o desenvolvimento da doença. Mais: não permite a apreensão dos processos através dos quais uma determinada entidade patológica toma forma na mente dos médicos, fazendo com que determinadas patologias que recentemente passaram a ser 46 descritas pareçam ter estado sempre lá, à espera de um olhar que as trouxesse à cena principal. É o caso, por exemplo, do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). No momento em que esse transtorno é possível de ser “diagnosticado”, toda a história que lhe antecedeu é ressignificada e uma série de comportamentos que anteriormente não recebiam esse “parecer” passam a ser vistos à luz dele, como se o TDAH antes de ser conceituado já existisse e estivesse meramente à espera de que os pesquisadores finalmente o encontrassem. A ideologia que fundamenta essa idéia é a de que a medicina, como ciência que é, caminha numa via de progresso. Nessa perspectiva, as obscuridades do mundo das doenças passam paulatina e evolutivamente a serem iluminadas pelo olhar médico. Esse olhar não cria doenças, não etiqueta comportamentos e fenômenos, não constrói realidades; ele descobre, desvela, traz à baila o que já estava lá. Em outras palavras, ele é um olhar moderno que, finalmente, limpo das fantasias religiosas e dos sistemas filosóficos, é capaz de espelhar a natureza. Nesse sentido, a medicina se constitui como um dispositivo bastante fecundo para o mascaramento dos diversos fatores que estão em jogo e que determinam a emergência de um novo diagnóstico como as condições sócio-econômicas, por exemplo. Nenhuma “nova doença” nasce desvinculada do contexto social dos pesquisadores que a descreveram. Retomando como exemplo o caso do TDAH, é impossível não articular a emergência dessa nova categoria às condições de vida contemporâneas, marcadas por uma exposição muito maior dos indivíduos e, principalmente das crianças nas quais o transtorno é mais freqüentemente “identificado”, a uma maior magnitude de estímulos que certamente demanda uma “hiper-atividade” a qual, por outro lado, implica numa redução da capacidade de concentração. O advento da etiqueta TDAH, portanto, faz com que esses fatores que incidem sobre os comportamentos que ela pretende caracterizar não sejam apreciados, pois o transtorno é visto como uma configuração, uma espécie que existe de maneira independente. O argumento de que a doença não é uma realidade dada, imediata, que se desvela em sua estrutura ontológica para o espectador médico, mas sim um objeto construído, o produto final da conjugação de diversos fatores expressa um posição 47 social-construcionista para a qual as doenças são realidades socialmente construídas. Todavia, para Rosenberg (1992), essa idéia não faz mais do que expressar uma tautologia, um truísmo, visto que qualquer aspecto da identidade individual poderia ser pensado como essencialmente construído. Na medida em que a doença pode ser tomada como algo que faz parte da identidade de um doente, ela também seria construída – um corolário óbvio. O que nos parece problemático na crítica do autor é justamente o fato de considerar como dado que a doença possa ser entendida como um atributo identitário, uma tese que não é consensual. A própria biomedicina não compartilha dessa visão, pois trabalha com a idéia de que as doenças são entidades que se alojam no indivíduo e não um atributo que o caracterize. Aliás, essa é uma das principais críticas ao modelo biomédico: a de que ele não considera que a enfermidade rearranje de maneira total a experiência subjetiva do doente. Portanto, a assertiva de que considerar a doença como construção social é uma tautologia nos parece equivocada. Outra faceta da crítica do autor ao social-construcionismo é mais pertinente. De acordo com ele, a idéia de “construção social” deve ser evitada, pois ela tende a “enfatizar em demasia uma certa finalidade funcionalista e um grau de arbitrariedade inerente às negociações que resultam em imagens aceitas de doença”4 (ROSEMBERG, 1992, p. XIV-XV). Assim, o social-construcionismo apresenta “uma visão do conhecimento e de quem o produz como racionalizadores e legitimadores, geralmente sem intenção, de uma ordem social opressiva” (ROSEMBERG, 1992, p. XV). Nesse ponto, a crítica de Rosemberg parece interessante, pois ela aponta para um risco da crítica às tendências naturalizantes da ciência que é de cair no extremo oposto e considerar que toda a realidade não passa de uma convenção linguajeira, o que implica na conclusão absurda de que é possível estruturar a realidade arbitrariamente de infinitas formas possíveis. Como alternativa a essa idéia, Rosemberg utiliza a idéia de “frame” (enquadramento) em vez da metáfora da construção para analisar a relação das doenças com o social. Para ele, há efetivamente uma realidade biológica – semelhante à idéia de Castoriadis da 4 As traduções do texto de Rosemberg são de nossa lavra. 48 natureza como magma – que modela, ou seja, que define uma variedade finita de possibilidades de respostas de enquadramento conceitual e institucional da doença. Talvez a ênfase dada pelo social-construcionismo aos usos que determinados tipos de descrição de patologias têm para a manutenção do status quo de setores específicos do meio social tenha sido necessária para que a crítica à postura naturalizante da ciência pudesse ser feita. Com efeito, na história dos saberes parece ser preciso que posições diametralmente opostas sejam elaboradas e contrapostas a modos de pensar dominantes para que um caminho alternativo que contemple a ambos, mas ao mesmo tempo não seja redutível a eles seja vislumbrado. Se há algo a ser conservado da aventura hegeliana, é justamente essa idéia. Destarte, podemos interpretar a naturalização da doença por parte da medicina não como um procedimento pragmático, útil, funcional à consecução da terapêutica, a qual deveria ser o objetivo da medicina, mas sim como uma condição necessária para o desenvolvimento da medicina como ciência médica. É só convertendo seu objeto de estudo de um processo em uma entidade é que ela pôde advogar um lugar entre as ciências. O médico constitui-se então como o profissional que sabe sobre os mecanismos de funcionamento das doenças e não mais como um herdeiro das conjurações xamânicas que exerce uma arte de curar. A outra conseqüência da visão classificatória da doença deixada como herança pela medicina classificatória é a colocação do doente em segundo plano. A biomedicina apenas exacerbou o privilégio que a medicina classificatória dava à doença e não ao doente. Não se trata nessa crítica de uma tentativa de trazer uma perspectiva humanista ingênua para a medicina. Se esse fosse o caso, a análise perderia o sentido uma vez que ambas as perspectivas, tanto a humanista quanto a cientificista se equivalem se tomarmos como parâmetro a coerência interna de seu corpo de argumentos. O critério que nos leva a um questionamento da tendência a buscar a doença no doente e não a tratar o doente é de ordem puramente prática. Nossa crítica incide sobre a eficácia dessa estratégia. A ciência, ao converter-se em ideologia, perde justamente aquilo que lhe permitiu ser vista sob o signo ilusório de um saber absoluto, isto é, sua efetividade na transformação do real. É precisamente isso o que ocorre com a biomedicina. No 49 momento em que o diagnóstico perde seu valor pragmático de delimitação de um conjunto de fenômenos e passa a ser tratado como o enunciado da verdade da doença, a ciência médica converte-se em ideologia e o diagnóstico, de um instrumento útil, se transforma em um obstáculo à realização dos objetivos do profissional de saúde. Em termos filosóficos, é como se a medicina deliberadamente deixasse de lado o mundo real, o único mundo que existe, e quisesse trabalhar com um suposto mundo inteligível das doenças. O mundo real, o campo fenomênico com o qual o profissional de saúde lida não é a doença, mas sim o sujeito que a ele endereça suas queixas. A doença é uma abstração cuja existência como ente só se dá no nível simbólico. Na realidade, o que o médico tem diante de si são fenômenos, manifestações, queixas, ou seja, eventos que são anteriores ao diagnóstico. Não são manifestações da doença, mas sim fenômenos que ensejam uma conceituação como a doença X, Y ou Z. Portanto, ao prescindir do mundo real do doente para alcançar a luz do mundo inteligível das doenças, o profissional de saúde perde a referência de seu campo de ação, pois a tarefa passa a se constituir em eliminar a doença e não em tratar o doente. O modo como cada doente, singularmente, expressa seus sintomas passa a ser mera matéria excedente a ser polida. O objetivo é descobrir por detrás dessa enxurrada de fenômenos, as águas mansas dos caracteres essenciais da patologia. Daí o entusiasmo de alguns profissionais ao encontrarem os chamados “casos de livro” cuja sintomatologia é idêntica ou quase idêntica às descrições de uma determinada doença nas obras de referência médica. Parafraseando Heidegger, assim como a metafísica está fundamentada num “esquecimento do ser” a biomedicina está calcada num “esquecimento do doente”. Assim, na lógica hegemônica da biociência, a realidade supostamente objetiva da doença se manifestaria através dos “dados objetivos” obtidos de maneira sistemática,seja das pesquisas científicas,seja de cada doente. Das primeiras obterse-ia a real definição, classificação e mecanismos de ação das doenças, com respectivos corretivos mecânicos e químicos – no que consiste o saber médico diagnóstico e terapêutico. De cada doente só se teria que resolver o enigma de descobrir qual a entidade doença que nele se apresenta e eliminá-la (TESSER & LUZ, 2002, p. 366) A língua inglesa diferencia dois tipos de doença, a disease e a illness. A primeira seria a patologia tal como descrita pela biomedicina e a segunda a experiência do adoecimento, isto é, o conjunto dos fenômenos vividos pelo 50 indivíduo. A tendência da biomedicina é reduzir a disease à illness (WADE & HALLIGAN, 2004). Logo, para o modelo biomédico, a disease seria a essência ou a verdade da illness e o trabalho do médico seria o de identificar e trazer à luz essa verdade. Como veremos adiante, a entrada em cena da anatomia patológica como base da medicina radicalizará essa tendência, pois de um espaço abstrato, as doenças passarão a estar fundadas numa realidade material orgânica. Assim, além da illness, o próprio sujeito doente passará a ser tomado como aparência, pois é seu corpo que será alçado ao estatuto de fonte da verdade. Por isso, precisamente num texto sobre a verdade na biomedicina, Charles Tesser dirá que O mais importante, aí, seriam as doenças e os problemas físicos [...]. De modo que o “resto” dos adoecimentos narrados, apesar do discurso ético, na prática acabam sendo relegados a um segundo plano, e muitas vezes simplesmente ignorados ou mesmo abortados [...] (TESSER, 2007, p. 473-474) Não é possível, portanto, prosseguir em nossa crítica sem analisarmos o impacto que a anatomia patológica provocou no conhecimento médico e como ela passou a estruturar os modos de produção de verdades no domínio da medicina. Como dissemos anteriormente, a incorporação do arsenal anátomo-patológico à prática médica não se deu de maneira imediata, isto é, subseqüente aos primeiros estudos anatômicos de Leonardo da Vinci e Vesálio. A prática da medicina galênica e posteriormente da medicina classificatória, para as quais a necessidade de se localizar a doença no corpo era praticamente irrelevante, ocorreu concomitantemente a diversas pesquisas anatômicas com cadáveres. Após a assimilação do referencial anátomo-patológico à ciência médica, os médicos, como forma de justificar essa espécie de atraso na utilização das pesquisas sobre o corpo, reconstruíram a história da anátomo-clínica como a vitória de um olhar científico, iluminado pela Razão, contra o obscurantismo da Igreja que não permitia outrora a pesquisa com cadáveres, de tal modo que a medicina teria ficado séculos presa a sistemas e modos pré-científicos de lidar com a doença porque a religião ingenuamente supersticiosa teria impossibilitado a investigação dos cadáveres e, por conseguinte, o estudo da correlação entre as doenças e o corpo. Foucault (2008) trata de desconstruir essa fábula mostrando que desde meados do século XVIII alguns estudiosos, como Morgagni, já realizavam autópsias e algumas clínicas já possuíam até salas de dissecção, ou seja, não faltavam cadáveres para servir de 51 fonte de estudo da medicina. Logo, as razões pelas quais não se fez uso desse conhecimento no âmbito médico não podem ser remetidas à ignorância religiosa. A Idade Média já havia ficado para trás... Portanto, nenhuma escassez de cadáveres no século XVIII, nem sepulturas violadas ou missas negras anatômicas; está-se em pleno dia da dissecção. Por uma ilusão, freqüente no século XIX, e a que Michelet impôs as dimensões do mito, a história emprestou ao Antigo Regime as cores da Idade Média em seus últimos anos, confundiu os problemas e debates da Aufklärung com os dilaceramentos do Renascimento (FOUCAULT, 2008, p. 138, grifo do autor). Por que, então, houve esse “tempo de latência”, como diz Foucault, de cerca de 40 anos entre a publicação da principal obra de Morgagni, “De sedibus et causis morborum” (“A sede e a causa das doenças”) em 1760 e a utilização desses dados de pesquisa na clínica com Bichat e Corvisart? Para Foucault, essa lacuna temporal compreende justamente a fase de elaboração do método clínico. Em outras palavras, à época da publicação de “De sedibus” a clínica médica ainda não havia estruturado um modo específico de leitura da doença que permitisse a incorporação do referencial anátomo-patológico, de modo que mesmo após essa assimilação, o olhar do médico ainda é o olhar cuja formação se deu antes de anatomia patológica, o olhar clínico, que é analítico por excelência. Esse olhar, que separa a doença em seus elementos sintomatológicos constitutivos, que não busca mais a essência da doença por detrás da aparência dos sintomas, mas que os considera como a própria doença em si, é esse mesmo olhar que vai agora se dirigir para o corpo. Por isso, o modo como Bichat conceberá a anatomia patológica é distinto do de Morgagni. Enquanto o olhar do último é diferenciador, dirigido à especificidade de cada órgão e sua relação com as doenças, o olhar de Bichat busca encontrar semelhanças, relações de parentesco. Daí sua redução dos volumes orgânicos a superfícies tissulares. Para Bichat o mais interessante não é a diferença entre os órgãos, mas o que estabelece continuidade entre eles. Portanto, temos Duas percepções estruturalmente muito diferentes: Morgagni deseja perceber, sob a superfície corporal, as espessuras dos órgãos cujas figuras variadas especificam a doença: Bichat deseja reduzir os volumes orgânicos a grandes superfícies tissulares homogêneas, a regiões de identidade em que as modificações secundárias encontrarão seus parentescos fundamentais. [...] O olho de Bichat é um olho de clínico, 52 porque concede um absoluto privilégio epistemológico ao olhar de superfície (FOUCAULT, 2008, p. 141-142, grifo do autor) Esse olhar de superfície a que se refere Foucault, não teria ele se convertido num olhar superficial? Essa pequena intervenção irônica será apreciada em toda a sua extensão adiante. Por ora, é importante dizer que se esse olhar de superfície era próprio da base epistemológica da clínica (que, segundo Foucault era a filosofia de Condillac), no encontro com a anatomia patológica essa superfície é finalmente tornada palpável. Se antes as doenças figuravam numa taxonomia abstrata, agora elas se depositam nesses grandes agrupamentos de tecidos. Todavia, ainda não importava o órgão ou região atingidos pela doença. As patologias são agrupadas de acordo com o tipo de alterações que lhes correspondem em cada sistema tissular. É por isso que num primeiro momento, “a anatomia patológica foi ordinal antes de ser classificadora” (FOUCAULT, 2008, p. 143, grifos do autor), ou seja, inicialmente o referencial anatômico foi interessante como um modo de dar um fundamento objetivo à descrição das doenças. Mas o mais importante ainda era justamente a descrição e a busca pelo estabelecimento de semelhanças e parentescos. O corpo, portanto, ainda não era o espaço em que a doença se localizava, mas onde a doença se arranjava, se distribuía. Os correlatos anatômicos serviam de eixos para o estabelecimento de uma nosografia. O entusiasmo que Bichat e seus discípulos logo sentiram com a descoberta da anatomia patológica adquire, desse modo, sentido: eles não reencontravam Morgagni além de Pinel ou Cabanis [expoentes da medicina classificatória]: reencontravam a análise no próprio corpo; desvelavam na profundidade das coisas a ordem das superfícies; definiam para as doenças um sistema de classes analíticas em que o elemento de decomposição patológica era o princípio de generalização das espécies mórbidas (FOUCAULT, 2008, p. 144, grifo do autor) Não obstante os princípios essenciais do olhar clínico não tenham sido modificados no encontro com a anatomia patológica, no ato mesmo dessa convergência alguns problemas metodológicos se tornaram patentes. Um dos principais era referente ao ajuste entre a percepção anatômica e a leitura dos sintomas. Se os sintomas possuíam uma coerência e encadeamento temporal, como poderiam ser correlacionados a uma dimensão espacial? Afinal, a leitura e a apreensão dos sintomas pressupõem um corpo que padece, isto é, um corpo vivo. Já as descobertas da anatomia patológica são derivadas dos cadáveres. Seríamos 53 precipitados, portanto, em dizer que o que estava em cena era uma contradição entre uma medicina da vida e uma medicina da morte? Além desse problema da possibilidade de um acordo entre uma ordenação temporal e uma espacial da doença havia ainda o impasse referente à distinção entre aquilo que no corpo era próprio da doença e o que eram apenas efeitos secundários: “as aderências do pulmão, no corpo de um pleurítico, constituem um dos fenômenos da própria doença ou uma conseqüência mecânica da irritação?” (FOUCAULT, 2008, p. 147). Outro problema era a dificuldade de correlacionar as alterações anatômicas com a intensidade da doença. Foucault cita o exemplo do tumor cerebral cuja alteração no organismo é ínfima se comparada ao que acarreta, isto é, a morte. Finalmente, como distinguir, no cadáver, o que é próprio da doença do que é característico dos fenômenos degenerativos da morte? É justamente aí que se situa o passo singular dado por Bichat no tocante à concepção da morte. Até então, o morrer significava tão-somente o instante em que a vida se extingue. A morte não possuía substância, sua definição era negativa: morte significava ausência de vida. Precisamente com vistas a distinguir a essência da doença nas alterações anatômicas do cadáver, é que Bichat terá que converter a morte de instante em processo. A morte, paradoxalmente, ganha vida. Surge então a idéia de um “processo de mortificação”. A morte advém como um personagem que possui seus próprios caracteres. Sua entrada em cena adquire tamanho relevo que a análise das “etapas” do processo de mortificação funciona de maneira inversa como um referencial para o esclarecimento das etapas da vida. A idéia é de que a morte constitui um desenvolvimento às avessas; ela repete no sentido inverso o crescimento do ser, de tal modo que a última etapa do desenvolvimento é a primeira a morrer e vice-versa. É por isso que Foucault dirá que apesar de Bichat ter postulado uma especificidade do organismo vivo, adotando, portanto, uma perspectiva vitalista, o que o médico teria como pano de fundo de suas concepções seria um “mortalismo”, pois é a morte que se torna a grande professora tanto da vida quanto dos processos patológicos: O sistema das dependências funcionais e das interações normais ou patológicas se esclarece [...] pela análise dessas mortes por partes: pode-se reconhecer que se existe ação direta do pulmão sobre o coração, este sofre apenas 54 indiretamente a influência do cérebro; a apoplexia, a epilepsia, o narcotismo, as comoções cerebrais não provocam nenhuma modificação imediata correspondente no coração; apenas efeitos secundários poderão se produzir por intermédio da paralisia muscular, da interrupção da respiração e dos distúrbios circulatórios (FOUCAULT, 2008, p. 158). Portanto, foi só dando corpo e substância à morte é que Bichat pode distinguir o que era próprio da doença do que era característico do morrer. Essa foi a solução que a medicina anátomo-clínica deu para o problema do encontro entre a doença e a morte no cadáver. Quanto ao outro impasse fundamental referente à relação entre a sucessão temporal dos sintomas no corpo vivo e a atemporalidade da anatomia do cadáver, mais uma vez a morte saiu como vencedora. A solução foi radical: se não se pode explicitar a ordenação temporal dos sintomas na anatomia, estabeleça-se, portanto, não mais os sintomas como referentes de descrição das doenças, mas sim as lesões. A sucessão cronológica dos sintomas passa a constituir uma gama de fenômenos secundários. É só nesse momento que a localização das afecções na anatomia se torna essencialmente relevante. Para solucionar o problema do tempo dos sintomas em face do espaço do corpo, a ordenação dos primeiros é assimilada à ramificação do espaço lesional. A medicina classificatória, portanto, é subsumida à anatomia. Agora, em vez de buscar determinar as classes das doenças, a ciência escrutinará a anatomia cadavérica em busca da sede da patologia no corpo. Eis o estabelecimento da tese a partir da qual a medicina moderna dará origem ao reducionismo biológico ou organicista: toda doença possui uma inserção no domínio orgânico através de lesões. Com o avanço das tecnologias médicas, não só a autópsia servirá de parâmetro para a identificação das lesões. Não será necessário esperar a morte do organismo para verificar o que aconteceu em seu corpo quando ele adoeceu. Surgirão diversos tipos de exames, como radiografias e ressonâncias magnéticas, que permitirão ao conhecimento médico ter um acesso imediato às alterações do corpo, o que reforçará ainda mais o reducionismo biológico ao fazer parecer que no tocante ao adoecimento não há nada mais além de um corpo anatômica e fisiologicamente alterado. A metáfora cartesiana do corpo como máquina adquire aqui toda a sua pregnância. Retroativamente, é a idéia de que o corpo é constituído por uma série de peças que se organizam a partir de uma lógica mecânica que será o correlato filosófico-conceitual da medicina anátomo-clínica. E justamente a 55 forclusão dessa herança teórica será um dos fatores que fará com que essa medicina não seja tomada como um modo relativo de ordenação e descrição do adoecimento, mas sim como o ponto de chegada de um olhar que sempre buscou a verdade, mas que outrora esteve embaçado pelas crenças religiosas e por sistemas teóricos. Se a anatomia patológica fomenta uma medicina que das doenças fará mais importante seus pontos de inserção no corpo do que sua fenomenologia, o que fazer nos casos em que não é possível encontrar essa inserção, ou seja, quando não há correlatos lesionais para os sintomas? O ponto de vista de Bichat preconizava uma espécie de marginalização desses casos em que um substrato orgânico não podia ser encontrado; era o que, no entender do médico, ocorria com alguns tipos de febres e afecções nervosas. Na medida em que não se podia correlacionar tais fenômenos a lesões no corpo, sua importância deveria ser subestimada. Como será visto adiante, essa atitude tem sido bastante freqüente no cuidado em saúde atual no trato com casos dessa natureza. Em que pese a importância da posição de Bichat que concedia um privilégio às descobertas da anátomo-clínica pela exclusão deliberada de afecções que não se encaixavam em seu modelo recém-elaborado, de maneira geral os médicos do início do século XIX adotaram um posicionamento que mesclava a incidência da anatomia patológica como matriz de entendimento da doença com uma estrutura formal de classificação herdada da medicina das espécies. Assim, dividiam as doenças em dois grupos cujos nomes variavam, mas que pretendiam englobar duas classes distintas de doenças: aquelas em que se poderia encontrar um substrato orgânico e aquelas em que isso não era possível. Assim, havia de um lado as doenças orgânicas e de outro as doenças nervosas (ou funcionais ou mesmo vitais, dependendo do autor que elaborara a classificação). Essa divisão entre doenças com lesão e doenças sem lesão explicita um resquício ainda da medicina classificatória sobre a anátomo-clínica, pois a alteração anatômica ainda não constitui o elemento definidor da doença; ela é ainda apenas um de seus traços que, ao ser trazido à cena, serve como uma informação primorosa para a delimitação da natureza da enfermidade. As estruturas do corpo alteradas durante um processo de adoecimento não constituem a própria doença, 56 mas funcionam como índices para a determinação de sua espécie. Por isso, os médicos classificadores como Pinel e Laënec aderiram de muito bom grado às descobertas da medicina patológica porquanto elas lhes forneciam finalmente um substrato palpável, tangível para a classificação das doenças. Pode-se dizer, portanto, que o primeiro movimento de inserção da anatomia patológica no domínio da medicina, encabeçado por Bichat, não foi suficiente para atingir o propósito a que almejavam, qual seja, o de fundar uma medicina do corpo, finalmente positiva e livre dos velhos sistemas classificatórios. Tal objetivo só será concretizado com o ônus de uma ideologia organicista partidária de um monismo patológico fundamental que redundará na premissa de que, em se tratando de doenças, não há nada para-além do orgânico. Quem estará na linha de frente desse segundo movimento de conquista da medicina pela anatomia patológica será Broussais principalmente através de seu posicionamento quanto à polêmica das febres. Passaremos deliberadamente ao largo dessa polêmica dada a multiplicidade de detalhes que a caracterizam. Para nossos propósitos, basta dizer que desde o século XVIII reinava uma discussão na medicina quanto à natureza das febres: se elas eram constituídas por lesões ou se se tratavam apenas de distúrbios vitais ou funcionais. Broussais resolverá definitivamente o problema (ainda que posteriormente sofrendo diversas críticas) asseverando que as febres e as inflamações dependem de um mesmo processo patológico. Com isso, a febre perde seu estatuto de um distúrbio vital (que não deixando rastros no cadáver, não pode constituir-se como doença orgânica) e passa a ser visto como um fenômeno também orgânico. Para operar essa transformação conceitual, Broussais terá também de modificar a idéia que se tinha a respeito do que constituía uma inflamação. Anteriormente, essa era caracterizada em função de determinados signos como rubor, calor, dor, etc. Broussais dirá que tais sintomas são na verdade apenas fenômenos visíveis de alterações que acontecem no âmbito dos tecidos: esses são desorganizados após uma prévia transformação desarmônica de alguma função orgânica – e é nisso que consiste uma inflamação. Logo, para se admitir tal descrição, será preciso aliar a anatomia à fisiologia, isto é, uma disciplina que contemple as funções do corpo em relação com agentes que nelas podem exercer algum tipo de influência. Tais agentes ocasionariam uma irritação dos tecidos, uma reação defensiva à a sua influência. Esse processo será 57 tomado como universal para todas as doenças. Com a descoberta dos vírus e bactérias, essa idéia ganhará ainda mais força visto que, por exemplo, já não seria preciso recorrer à hipótese herdada de uma medicina “ultrapassada” de que no caso da pneumonia o frio seria o agente causador da irritação. As bactérias e vírus com toda a sua “realidade independente do observador” passam a ser vistos como os “verdadeiros” agentes chegando ao ponto de, em determinado momento, alguns autores cogitarem a hipótese de que todas as doenças seriam causadas por agentes patogênicos dessa natureza. Com Broussais estabelece-se definitivamente uma espécie de padrão de entendimento das doenças que se tornará particularmente essencial para o desenvolvimento da biomedicina. Trata-se de pensar a doença como um processo que ocorre no interior de um aparato orgânico, constituindo-se como uma reação fisiológica que redunda em modificações anatômicas. A universalidade do modelo não permitirá sequer que as doenças ditas “mentais” escapem dessa descrição. No caso delas, temos uma desordem que se dá num órgão específico do corpo, o cérebro. Assim, o tratamento desses distúrbios deve consistir numa intervenção no nível das estruturais cerebrais, seja pela via do medicamento, por uma descarga elétrica ou qualquer outro tipo de intervenção que incida diretamente na anatomia cerebral. Evidentemente, a incorporação do ponto de vista biomédico às doenças mentais só pôde ser realizado de maneira mais expoente a partir de meados do século XX quando as pesquisas sobre o cérebro começaram a se desenvolver em maior profusão. No entanto, mesmo em fins do século XIX já é possível observar tentativas de fundar uma psicologia e psicopatologia em bases puramente neuroanatômicas como o Projeto para uma Psicologia Científica (1895) de Freud, à época um jovem neurologista (FREUD, 1996a). Correlato a essa redução organicista do fenômeno patológico pelo modelo biomédico, temos o prestígio adquirido pelo sentido da visão que, gradualmente, adquire um caráter hegemônico enquanto instrumento de apreensão da realidade da doença. Tanto é assim que a própria figura do médico como aquele a quem são dirigidas as queixas do paciente passa a se obscurecer pela prevalência de modos outros de “visualização” dos processos patológicos como toda a bateria de exames que hoje existem à disposição do profissional. Se a doença é um fenômeno que diz respeito meramente ao que se processa no corpo daquele que sofre, não se deve 58 mais perder tempo escutando o que esse que sofre tem a dizer justamente porque o que ele tem a dizer é irrelevante, não transforma a realidade de seu corpo. O que se tem que fazer, portanto, é auscultar, aferir, realizar exames de sangue, de fezes, de urina, eletrocardiogramas, eletroencefalogramas! São eles que vão nos apresentar a “realidade tal como ela é”, límpida, sem essa confusão de queixas que o doente nos apresenta. Mas há momentos em que toda essa mecânica harmônica e desenvolta encontra suas pedras de tropeço. E elas existem aos montes. Um exemplo são os chamados sofredores de sintomas “vagos”, “confusos”, “indefinidos”, cujas manifestações aparentes denunciam um padecimento, o qual não encontra correspondência no nível do organismo. Os exames não detectam nada, está tudo “em ordem” no corpo do paciente, mas ainda assim ele sofre e seu sofrimento é real. Como lidar com tais casos se o paradigma a partir do qual se trabalha postula que a doença é necessariamente uma desordem orgânica detectável pelo olhar dos exames que adentra a profundidade do corpo? 1.5 Retorno do recalcado Guedes, Nogueira e Camargo Jr. (2009) numa pesquisa com médicos de diferentes especialidades de um hospital-escola, verificaram na prática como se processa a abordagem desses casos por profissionais imersos no modelo biomédico. Fica claro que a enunciação de queixas que, por seu caráter eminentemente subjetivo, não podem imediatamente serem reconhecidas como sintomas delimitados pela nosografia, geram desconforto, incômodo e irritação em alguns profissionais evidentemente por não conseguirem encaixar em seu conjunto prévio de representações sobre a doença o que o paciente lhe diz. Diante desse choque entre o fenômeno e o universo conceitual, uma das saídas comentadas por alguns médicos é a de subvalorizar o que o paciente apresenta e lhe dizer a célebre frase “você não tem nada” com o objetivo explícito de fazer com que o doente não dê importância para seu próprio sofrimento. Muitas vezes, o profissional alcança seu intento não porque aquilo que o paciente sente seja de fato irrelevante de modo que ao lhe ser retirada a atenção, 59 ele passe a não mais senti-lo. É comum que o médico recorra aos registros dos exames realizados como um recurso para demonstrar autoridade sobre o que diz, fazendo parecer que os exames consistem na realidade e as queixas do paciente num mero produto de sua imaginação. Outra estratégia bastante comum dos profissionais nesses casos é o encaminhamento do paciente a um psicólogo ou psiquiatra, manifestando e, ao mesmo tempo, fortalecendo a separação entre psíquico e somático que, como vimos, é uma das matrizes conceituais da biomedicina. Ainda que essa estratégia supere a anterior em termos éticos, na medida em que não utiliza a autoridade dos exames para negar a realidade do sofrimento do doente e perceba a necessidade de outro tipo de abordagem para o caso, ainda permanece o problema da cisão entre duas dimensões que são evidentemente imbricadas. Um de nossos objetivos com este estudo é precisamente o de demonstrar a possibilidade de que fenômenos que se dão eminentemente na superfície e espessura do corpo, ainda que estejam revestidos de conteúdos de ordem psicológica, possam ser tratados integralmente sem a necessidade de que o paciente seja dividido entre uma parte adequada para o médico e outra para o profissional psi. A administração de medicamentos ditos “sintomáticos” ou psicotrópicos também é uma constante saída encontrada pelos médicos para lidar com os sintomas indefinidos. A crença de que condições depressivas ou ansiosas associadas às queixas somáticas do doente podem ser tratadas mediante antidepressivos ou ansiolíticos constitui uma expressão nítida de duas das ideologias que estão na base da biomedicina: a primeira é a mais óbvia e que vem sendo nosso alvo principal de crítica desde o início deste trabalho, a saber, o organicismo, o qual pode ser claramente percebido pela crença de que basta interferir no funcionamento bioquímico do cérebro para que sintomas que possuem uma gênese complexa como a ansiedade sejam eliminados. Sem dúvida, o avanço no desenvolvimento de medicamentos psicotrópicos desde a década de 50 foi um dos movimentos que mais favoreceram a prevalência do modelo biomédico e de seus reducionismos como matriz de entendimento dos fenômenos relacionados à saúde. Se antes, problemas de cunho psicológico possuíam como recurso primordial de tratamento a psicoterapia – o que resguardava tais condições do organicismo 60 biomédico – com a entrada em cena dos antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, etc. a biomedicina conquista de vez um terreno que até então lhe fazia resistência. A segunda ideologia que se verifica manifesta nessa estratégia é a do mecanicismo, expressa na idéia de que um determinado efeito, no caso a extinção dos sintomas, se segue mediante uma única causa (o medicamento). Além disso, a consideração do corpo como máquina é aqui patente, uma vez que se pressupõe um mecanicismo universal de regulação das substâncias em circulação no corpo, circulação essa que não é interferida por nenhum fator que não esteja no interior da própria máquina. Os fenômenos afetivos do humor deprimido ou da ansiedade são vistos, portanto, apenas como epifenômenos de um processo mecânico que se desenrola no interior do organismo. Essas três estratégias utilizadas pelos profissionais de saúde para lidar com pacientes cujos sintomas carecem de uma realidade visível pelos exames no nível do organismo demonstram que o modelo biomédico se constitui tributário de uma exclusão de qualquer consideração à subjetividade. Essa exclusão, evidentemente, pode ter sido extremamente útil em determinados momentos da história do conhecimento médico: adotar um ponto de vista sobre o doente exclusivamente orgânico talvez tenha sido uma condição essencial para pesquisas no campo da anatomia e da fisiologia e de cujos resultados hoje nos beneficiamos. Todo o problema está no fato de que esse ponto de vista que por vezes foi útil se tornou o único ponto de vista possível, isto é, tornou-se hegemônico. Assim, utilizando-nos livremente dos termos de Freud, aquilo que outrora deveria ter sido simplesmente afastado provisoriamente foi de fato recalcado, isto é, voluntariamente negado e visto como irrelevante. Todavia, aquilo que foi recalcado retorna, insiste em se manifestar e, como na psicologia individual, o faz, mormente, através de sintomas bastante incômodos. Os portadores de sintomas indefinidos e todo esse contingente de pessoas que respondem por grande parte, senão pela maioria, das consultas médicas, e que peregrinam de especialidade em especialidade em busca de explicações para seus adoecimentos, pois bem, são eles a manifestação mais visível da subjetividade recalcada pela biomedicina. Para Guedes, Nogueira e Camargo Jr. (2006) a subjetividade constitui-se como uma anomalia para o paradigma biomédico. Na terminologia de Thomas Kuhn, 61 anomalias são problemas, fenômenos, questões que não estavam previstas pelo paradigma de uma determinada disciplina científica. A princípio, a anomalia é recebida com resistência pelo paradigma vigente, o que pode ser claramente observado nas estratégias adotadas pelos profissionais diante dos sintomas indefinidos conforme descrevemos acima. A presença de anomalias no interior das disciplinas – que faz com que os cientistas fracassem na resolução de alguns de seus problemas – não é necessariamente o que desencadeia uma crise e demanda a introdução de um novo paradigma. Não raro a ciência normal – que possui um paradigma hegemônico – consegue tratar da anomalia sem que haja a necessidade de mudança paradigmática. No entanto, tal transformação pode acontecer caso os problemas persistam e novas abordagens não consigam solucioná-los. Do nosso ponto de vista, as diversas críticas que já há algum tempo são feitas à biomedicina principalmente no que concerne à sua negligência a fenômenos de ordem psicossocial presentes nas enfermidades, indicam a necessidade de um novo paradigma para o cuidado em saúde que, ao mesmo tempo em que inclua os desenvolvimentos alcançados pelo modelo biomédico seja capaz de superar suas limitações. Atualmente, tem-se falado, num sentido diverso do kuhniano, em “crise da medicina” (AYRES, 2004; LUZ, 2005). Tal crise estaria ligada a diversos fatores, entre eles sócio-econômicos, políticos, ideológicos, mas também a aspectos de ordem epistemológica e filosófica, isto é, aos “modos de pensar” de que falávamos no início do capítulo. A crise da medicina se dá, portanto, [...] na medida em que o próprio paradigma que rege a medicina contemporânea afastou-se do sujeito humano sofredor como uma totalidade viva em suas investigações diagnósticas, bem como em sua prática de intervenção. Também, na medida em que esse sujeito humano sofredor deixou de ser o centro de seu objeto (como investigação) e de seu objetivo (como prática terapêutica). A situação desse duplo afastamento gerou uma dupla crise, na saúde das populações e na medicina como instituição, detectada a partir da segunda metade do século XX, que parece ter-se agudizado nos últimos vinte anos (LUZ, 2005, p. 151). Esse afastamento do sujeito humano entendido como totalidade que Luz denuncia se manifesta não apenas do lado do paciente, mas também no campo dos próprios profissionais de saúde. Esses também perdem seu estatuto de sujeitos na medida em que se colocam e são colocados na posição de meros fornecedores de 62 tecnologia de saúde sem que se considerem as variáveis intersubjetivas presentes em uma relação que estabelece entre uma pessoa que deseja ter sua saúde restabelecida e outra pessoa que se propõe a oferecer um ajuda quanto a isso. É a deliberada falta de percepção desses fatores que incidem na relação entre o profissional e o doente que muitas vezes está na raiz do que comumente se denomina de “falta de adesão ao tratamento” ou mesmo da ineficiência terapêutica. A tentativa de fundar o cuidado em saúde a partir de uma matriz cientificista opera um obscurecimento quanto ao que verdadeiramente o caracteriza, isto é, o seu estatuto de prática humana e social e, nesse sentido, muito mais ligado ao domínio da ética do que da ciência. A “crise da medicina” a que nos referimos acima, que coloca em xeque a própria eficácia da medicina tradicional, tem ensejado a busca de muitas pessoas por modelos alternativos de tratamento cujos fundamentos filosóficos e conceituais compreendam uma visão mais “holística” e “integral” do humano. Como aponta Luz (2005), essa busca não pode ser dissociada do contexto contemporâneo de preocupação com o meio ambiente e de valorização da saúde e do corpo manifestas em expressões como “geração saúde”. Tais fenômenos reivindicam uma compreensão do corpo e da saúde distinta da visão do corpo como máquina e da saúde como ausência de doença, postulados implícitos do modelo biomédico. Para onde então se encaminham os insatisfeitos com a biomedicina? Para as chamadas “medicinas alternativas”, como a homeopatia, a medicina tradicional chinesa e a medicina ayurvédica. Embora entendamos que tais práticas sejam extremamente relevantes enquanto movimentos de resistência à hegemonia da biomedicina, lamentamos que talvez eles não possam ultrapassar essa função e se constituírem como estratégias de fomento á transformação do paradigma biomédico. A alcunha “alternativas” lhes é precisamente devida visto que são medicinas que só possuem sua razão de ser, enquanto modelos de cuidado em saúde na sociedade atual, por referência à biomedicina. Além disso, são sistemas que se organizam segundo uma coerência interna relativamente fechada, com suas próprias concepções sobre como o corpo se organiza e funciona de tal modo que em face deles, é a biomedicina que se constitui como “alternativa”. Para usar um termo de Madel Luz, são racionalidades médicas distintas. Daí ser inviável tomar tais modelos alternativos como fontes para a transformação e superação dos limites e impasses do modelo 63 biomédico. Para fazer isso, seria necessária a extração de determinados aportes teóricos dessas medicinas e sua inclusão no modelo “oficial” de cuidado em saúde, o que geraria monstros teóricos com faces provenientes de diferentes racionalidades sem nexo interior ou a substituição da biomedicina por um dos modelos alternativos, o que significaria uma simples transferência de problemas visto que embora passassem a ser contemplados aspectos anômalos para o modelo biomédico, toda a produção anterior elaborada a partir da biomedicina seria posta de lado e certamente reivindicaria seu lugar na forma de anomalias para o novo modelo. Faz-se necessária, portanto, a transformação do modelo biomédico não em algo que lhe seja completamente estranho, mas em uma nova racionalidade que conserve sua produção, mas que, ao mesmo tempo, amplie seus pontos de vista e incorpore novos modos mais abrangentes de pensar os fenômenos da saúde e da doença e o cuidado em saúde. Nossa intenção com este estudo é demonstrar as contribuições que a obra de Georg Groddeck pode trazer para essa evolução. Groddeck nunca teve pretensões de fundar uma “medicina alternativa groddeckiana” porquanto seu próprio berço de formação tenha sido a medicina científica do século XIX, embrião do atual modelo biomédico. No entanto, a partir de intuições teóricas originais e de sua prática como clínica geral conseguiu ultrapassar os reducionismos de seus colegas, formulando uma série de proposições sobre saúde e doença que hoje nos parecem indispensáveis para a superação das limitações impostas pela estreiteza de olhar do cuidado em saúde contemporâneo. Antes, porém, de analisar de que modo as teses de Groddeck podem contribuir para essa tarefa que se mostra urgente, dedicaremos um capítulo à vida e obra desse autor que certamente é desconhecido para a maior parte dos leitores. Será uma espécie de introdução ao pensamento groddeckiano com vistas a possibilitar ao leitor a apreciação adequada das contribuições de sua obra. 64 2 GEORG GRODDECK: UMA APRESENTAÇÃO Neste capítulo abordaremos os principais tópicos das proposições teóricas e práticas de Georg Groddeck nos campos da psicanálise e da medicina relacionandoos a aspectos da biografia do autor. Consideramos necessário este capítulo como uma etapa preliminar ao capítulo no qual abordaremos efetivamente as contribuições a serem extraídas da obra groddeckiana para a superação de alguns impasses do modelo biomédico, os quais expusemos no capítulo anterior. A literatura existente acerca da obra de Groddeck é ínfima se a compararmos com o volume de textos escritos sobre o trabalho de outros psicanalistas como Freud, Winnicott, Melanie Klein, Lacan, Ferenczi, entre outros. Neste sentido, é provável que grande parte dos leitores vinculados ao campo analítico e, principalmente, ao campo da saúde, em particular no da medicina, não conheçam ou saibam de maneira superficial o conteúdo da teoria groddeckiana. Especialmente a tais leitores dedicamos esta apresentação. 2.1 O esquecimento da obra groddeckiana As razões que levaram a medicina e a psicanálise a negligenciarem a obra de Groddeck são diversas. Como veremos nas páginas seguintes, o fundador do método psicanalítico, Sigmund Freud, mostrou-se simpático e, por que não dizer, até bastante entusiasmado com o uso que Groddeck fazia da terapia psicanalítica no tratamento de pacientes com doenças orgânicas. No entanto, a forma como o último organizava seu pensamento e os conceitos que utilizava para explicar a efetividade da psicanálise em sintomas somáticos eram um tanto discrepantes em relação à ortodoxia freudiana. Em decorrência disso, a maior parte dos discípulos de Freud recebeu as teses de Groddeck com uma reação de escândalo e o próprio Freud manifestou nas cartas trocadas entre os dois autores seu repúdio ao que ele considerava como misticismo nos enunciados teóricos groddeckianos. Ao longo deste texto veremos que enunciados eram esses que causaram tamanha resistência por parte dos psicanalistas. Por ora, é suficiente frisarmos que o escândalo 65 provocado pelas idéias groddeckianas foi o principal fator que levou a obra do autor a ocupar um lugar marginal na comunidade psicanalítica. No tocante ao esquecimento de Groddeck pela medicina, trata-se, a nosso ver, de uma reação do modelo teórico da medicina moderna àquilo que nele se constituiria como anomalia. De fato, desde o início de sua formação como médico, Groddeck adotou um posicionamento teórico-clínico distinto e, não raro, oposto ao da medicina tradicional. As principais teses do autor acerca da compreensão de como se constitui o adoecimento e a terapêutica não cabem no modelo médico padrão, o qual caracterizamos no capítulo anterior como modelo biomédico, vigente na realidade ocidental desde o final do século XIX. Uma das proposições mais fundamentais de Groddeck, como a tese de que toda doença carrega uma significação e uma finalidade, não faz sentido algum no modelo biomédico, para o qual as doenças constituem apenas lesões orgânicas, fenômenos corporais sem qualquer relação com o que poderíamos chamar de subjetividade. Nesse sentido, a negligência da medicina em relação à obra groddeckiana não se assenta no escândalo face à radicalidade das teses do autor, como no caso da psicanálise, mas constitui um repúdio a um pensamento calcado numa racionalidade distinta. Além dessas razões, há ainda um outro motivo, relacionado especificamente à personalidade de Groddeck, que pode nos ajudar a entender o esquecimento de sua obra. Como afirma Lawrence Durrell, o escritor inglês que prefaciou a obra magna de Groddeck, “O Livro dIsso”, “como todos os poetas, ele [Groddeck] não é sistemático, nem dogmático ou didático – o que talvez explique a negligência de que é alvo por parte dos médicos. Seu procedimento é o da ‘intuição’ escolhida, com a habilidade de um escritor nato.” (DURRELL, 2008, p. XV). Groddeck nunca vislumbrou a possibilidade de fazer escola, algo como uma “Sociedade de Psicanálise Groddeckiana” ou uma “Medicina Groddeckiana”. Nem ele e nem mesmo aqueles que simpatizaram com sua obra e a adotaram como guia de trabalho. Pudera, trata-se de um empreendimento impossível a tentativa de fundar um sistema teórico a partir dos escritos deste autor. Veremos nas páginas seguintes que, conquanto da leitura de seus textos possa ser extraído um fio condutor que nos permita notar o eixo em torno do qual gira suas proposições, é uma tarefa ingrata e 66 fadada ao fracasso tentar definir com precisão, por exemplo, o conceito mais fundamental do autor, o Isso. Portanto, o caráter assistemático da obra groddeckiana inviabiliza uma das formas mais comuns de se fixar um pensamento original e distinto da ortodoxia reinante, a saber: a transmissão desse pensamento pela via de uma escola. A homeopatia, por exemplo, ainda hoje é um tipo de terapêutica que se fundamenta numa racionalidade médica discrepante em relação ao modelo biomédico. Todavia, não caiu no esquecimento precisamente porque as proposições de Hahnemann, seu fundador, puderam ser sistematizadas a ponto de hoje cursos de formação em medicina homeopática estarem difundidos em todo o mundo. No campo psicanalítico, o mesmo processo ocorreu com analistas que se afastaram do pensamento freudiano mais tradicional, como D. W. Winnicott e C. G. Jung. Atualmente é possível encontrar sociedades winnicottianas de psicanálise, cuja formação é baseada prioritariamente em textos de Winnicott e não de Freud. Jung, por seu turno, fundou, desde o rompimento de sua amizade com Freud, o que ele chamou de psicologia analítica e instituições para o treinamento de terapeutas a partir dessa matriz teórica. Feliz ou infelizmente, não teve o mesmo destino a obra de Groddeck. Abdicando do papel de mestre de uma escola teórica, o autor conservou o caráter poeticamente assistemático de seus escritos louvado por Lawrence Durrell, correndo o risco de que o tempo viesse a situá-los à margem dos campos médico e psicanalítico – o que efetivamente aconteceu. Como dissemos no capítulo anterior, nossa intenção aqui não é a de corrigir essa suposta injustiça fazendo uma apologia de uma pretensa “medicina groddeckiana”. Nossa proposta é a de demonstrar que, na obra de Groddeck, como nos baús enterrados das histórias infantis, habitam tesouros escondidos outrora com o objetivo de conservá-los e que agora são encontrados inopinadamente por um indivíduo qualquer que jubilosamente se espanta ao perceber que eles ainda são valiosos. Aqui, tais tesouros se materializam em contribuições para a reformulação do cuidado em saúde através da superação de alguns impasses enfrentados pelo modelo biomédico. Vejamos, então, quem foi o dono do baú que os encerrava. 67 2.2 Raízes biográficas do pensamento de Georg Groddeck Uma das conseqüências práticas mais revolucionárias que podem ser extraídas da descoberta freudiana do inconsciente é o questionamento da neutralidade ou imparcialidade de um cientista, filósofo ou pensador com relação a suas teses. As formulações de base da psicanálise a partir da investigação do inconsciente demonstram que aquilo que denominamos de racionalidade está inevitavelmente condicionada pelas experiências afetivas processadas ao longo de nossa história de vida, de modo que o exercício do pensamento, por mais lógico que seja, é indissociável dos elementos da biografia do indivíduo. Nascido na cidade alemã de Bad Kösen, em 13 de outubro de 1866, cerca de dez anos após o nascimento de Freud, Georg Walther Groddeck resolveu levar às últimas conseqüências essa descoberta psicanalítica. Por conta disso, irá apontar em diversos momentos de sua obra as vinculações entre suas teses e métodos de trabalho e sua história de vida, reconhecendo serem inseparáveis o homem Groddeck e o médico e psicanalista Groddeck. Levando em conta isso, abdicaremos do modo tradicional de se fazer a apresentação de um autor, qual seja, pela descrição linear dos acontecimentos de sua vida seguida de uma apreciação de suas teses. Ao estilo groddeckiano, tentaremos conjugar num mesmo todo traços de sua história de vida com particularidades de seu caráter e do seu modo de pensar. Um dos aspectos mais proeminentes dos conteúdos das teses de Groddeck bem como de seu método de trabalho é um afastamento dos cânones tradicionais da ciência. Groddeck não confere ao saber científico o estatuto de um conhecimento que se eleva acima dos demais por estar em condições mais favoráveis de acesso à verdade. Para ele, “a ciência nada mais é que uma variedade da fantasia” (GRODDECK, 2008, p. 5). Essa “aversão pela ciência” (Ibid., p. 1) é explicada não como um capricho, mas como estando relacionada diretamente a certos eventos de sua vida infantil. Sua mãe, após dar à luz o primeiro filho (Groddeck era o caçula de uma família de cinco) teve uma infecção nos seios e, como consequência disso, suas glândulas mamárias secaram. Por esse motivo, Groddeck foi obrigado a ser amamentado por uma ama-de-leite. É nessa contingência que o autor localiza a raiz de sua aversão pela ciência, em função do privilégio concedido à certeza nesse tipo de conhecimento. Com efeito, ele argumenta que a circunstância de possuir “duas 68 mães”, uma biológica e outra “de leite” coloca o bebê numa condição de terrível incerteza, pois De um lado está a mãe, em cuja barriga a gente viveu durante nove meses, sem nenhuma preocupação no quentinho, nadando na felicidade. Como não gostar dela? E depois, uma segunda pessoa, em cujo seio a gente se alimenta todo dia, cujo leite a gente bebe, sentindo sua pele fresca e respirando seu cheiro. Como não se afeiçoar a ela? E então, a quem se apegar? (GRODDECK, 2008, p. 5) Obviamente poderíamos aqui duvidar da fidedignidade dessa relação que Groddeck estabelece entre seu desprezo pela ciência e suas condições de amamentação. No entanto, não é a veracidade de suas conclusões que está em jogo. O interessante é notar a radicalidade do pensamento do autor que não teme em aplicar em si o mesmo método que utilizará no tratamento de seus doentes, a saber: o estabelecimento de pontes entre o que se apresenta no presente e a história do indivíduo em todos os seus pormenores. Fizemos menção acima ao fato de Groddeck ter sido o caçula de uma família de cinco filhos. Alguns aspectos do relacionamento com os irmãos, principalmente com a irmã Lina, serão vistos por ele como tendo influência decisiva em seu percurso profissional futuro. Groddeck atribui o despertar de seu desejo de ser médico a um episódio que depois lhe foi relatado por seu pai e que ocorrera quando possuía três anos de idade. Trata-se de uma ocasião em que o garoto estava brincando com uma boneca de sua irmã. O pai conta que, enquanto Lina insistia em colocar uma roupa extra na boneca, o irmão lhe repreendia dizendo que a boneca ia se sufocar. Segundo Groddeck, fora a partir desse episódio que seu pai concluíra que ele tinha vocação para a medicina (GRODDECK, 2008). Mas o papel de Lina no desenvolvimento profissional de Groddeck vai ainda mais longe. Segundo o autor, ele e a irmã costumavam brincar de mãe e filho. Na brincadeira, se o filho se comportasse mal, deveria levar algumas palmadas como castigo. Todavia, quando era Lina a ocupar o papel de filho, a punição deveria ser aplicada de forma mais suave, pois a garota possuía uma doença no coração. É nessa contingência que Groddeck encontra as razões que determinaram suas preferências em relação a métodos de trabalho na medicina: a impossibilidade de aplicar as palmadas com a força devida fez com que desenvolvesse um horror a 69 técnicas que de alguma forma implicam em levar o paciente a sentir dor, como a cirurgia, e desse maior valor a procedimentos não tão invasivos como a massagem e a psicoterapia. Ainda das brincadeiras com uma irmã cardíaca, Groddeck levará como traço uma preferência pelo tratamento de doentes crônicos (GRODDECK, 2008). De fato, o médico manterá por mais de 30 anos um sanatório na cidade alemã de Baden-Baden, atendendo pacientes, em sua maioria com doenças crônicas, que o procuravam vindo de diversos países (VALVERDE & RIVERAS, 2004). Outro evento que Groddeck considera como tendo influência direta sobre sua escolha profissional foi a ocasião em que seu pai lhe perguntou se gostaria de ser médico. A essa indagação, aparentemente banal, Groddeck atribuirá um significado singular: naquele momento, o questionamento do pai parecera lhe tornar diferente dos irmãos. “Foi assim que meu destino foi decidido, tanto em relação à escolha de minha carreira quanto ao modo pelo qual eu deveria exercê-la.” (GRODDECK, 2008, p. 1-2). A partir daquele momento Groddeck passaria a imitar de maneira consciente o pai, o que demonstra a grande transformação subjetiva que a pergunta ocasionou. A fantasia de que a pergunta do pai o fazia diferente dos irmãos pode ser vista retrospectivamente como uma das primeiras expressões daquilo que viria a constituir a marca do pensamento de Groddeck tanto no âmbito da psicanálise quanto no campo médico, a saber: a heterodoxia, manifesta pela produção de inovações conceituais e metodológicas que até o momento ainda levam a pecha de excêntricas. O desejo de ser diferente, original e, por que não dizer, pioneiro, é um dos traços mais visíveis de seu caráter. Além da própria análise de seus enunciados teóricos, pode-se comprová-lo pela observação de quem foram aqueles que lhe serviram de referencial ou modelo, a começar do pai. Carl Groddeck, que também era médico, é descrito pelo filho como sendo um “herege, reconhecendo sua própria autoridade, seguindo seu próprio caminho e às vezes perdendo-se nele, a seu bel-prazer” (GRODDECK, 2008, p. 3). A respeito disso, Groddeck afirma que o pai fazia chacota com a medicina tradicional, que à época iniciava as pesquisas sobre a ação de bacilos na etiologia do cólera e da tuberculose. A menção a esse posicionamento contrário do pai em relação à medicina de seu tempo parece deixar implícito que a tendência do próprio Groddeck 70 em seguir um caminho original, distinto da medicina tradicional, talvez tivesse origem numa identificação com o pai. Esse não-reconhecimento da necessidade de se estar alinhado com os dogmas da medicina tradicional, preconizado por Carl Groddeck, também se manifestou na própria formação médica de seu filho. Num texto dedicado à memória do pai, escrito em 1927 (GRODDECK, 1994), 42 anos após sua morte, Groddeck relata como passou a acompanhar as consultas do pai. Após a decisão (atribuída a sua família) de que deveria de fato estudar medicina, Groddeck é encaminhado ao Instituto de Educação para Médicos Militares, pois seu pai não possuía recursos para custear seus estudos em uma universidade. No entanto, ao chegar a Berlim, sede do instituto, Groddeck recebe a notícia de que sua inscrição havia chegado atrasada e, por conta disso, ele só poderia iniciar o curso no outono. Para não ficar ocioso meio ano, o futuro médico foi matriculado em um curso de química, no qual compareceu apenas três vezes, pois o pai acreditava que lhe seria mais útil acompanhar suas consultas. Após a morte do pai, Groddeck descobriria que na verdade ele não o havia matriculado no instituto, tarefa da qual sua mãe em seguida se encarregou (GRODDECK, 1994). Esse episódio demonstra o quanto Carl Groddeck valorizava o aprendizado clínico imediato no contato cotidiano com os pacientes e quão pouco crédito atribuía ao ensino médico tradicional, características que também estarão fortemente presentes na obra groddeckiana. Na época em que o filho o acompanhou, Carl Groddeck, trabalhava em Berlim como médico em uma instituição pública, de modo que a maior parte de sua clientela era constituída de trabalhadores. Desses momentos, Groddeck guarda uma grande parcela de aprendizado. Segundo ele, o pai gostava de conversar com seus pacientes e inquiri-los sobre os acontecimentos de suas vidas e o que pensavam. Poderíamos ver nesses encontros as primeiras situações em que Groddeck pôde notar a importância de ouvir o paciente e buscar extrair dele não apenas o relato de seus sintomas e enfermidades, mas também de suas condições de vida como um todo, procedimento que o médico de Baden-Baden tomará como guia fundamental de sua atividade clínica (GRODDECK, 1994). 71 Groddeck se recorda também de que foi nessas consultas com o pai que apreendeu a relevância de uma experiência clínica não apenas com doentes, mas também com pessoas sadias, o que lhe seria asseverado posteriormente pelo seu mestre em medicina, Ernst Schweninger (GRODDECK, 1994). Não é possível registrar todas as contingências do relacionamento entre Groddeck e seu pai que tiveram uma influência direta no desenvolvimento do caráter e do pensamento do autor, mas pode-se notar que tal relacionamento foi efetivamente fundamental para as proposições inovadoras que Groddeck trará para a medicina. De fato, o reconhecimento da interdependência entre corpo e psiquismo, que o levará a estabelecer a tese de que todo sintoma orgânico pode ser lido como um símbolo, é atribuído pelo próprio Groddeck a uma observação feita quando seu pai estava doente e próximo de falecer. Naquele momento, Carl Groddeck sofria com dificuldades em respirar e, de acordo com o filho, tal sintoma físico era acompanhado de um distúrbio psíquico: uma mania de perseguição. Observador atento, Groddeck consegue perceber uma vinculação entre ambos os sintomas constatando o que acontecia quando o médico que havia sido chamado para cuidar do pai adentrava o local em que Carl estava: tanto a dificuldade de respirar quanto a mania de perseguição desapareciam ao mesmo tempo. Além de perceber, talvez pela primeira vez, a indissociabilidade entre o psíquico e o corpóreo manifesta no adoecimento, Groddeck levará dessa cena outro aprendizado, o do potencial terapêutico da simples presença do médico: “Tornou-se claro para mim, desde então, que o médico raramente chega a ver a real condição do doente, porque com a sua chegada todos os sintomas melhoram logo” (GRODDECK, 1994, p. 384). Se da relação com a irmã Lina, Groddeck levará como marca em sua história o despertar da vocação para a medicina e para o cuidado de pacientes crônicos com métodos menos invasivos, do relacionamento com o pai emergirá o médico heterodoxo e notável observador que Groddeck foi. Da indagação paterna que lhe atribuíra estatuto de exceção ao pouco valor concedido à medicina científica tradicional, passando pelo reconhecimento do condicionamento recíproco entre corpo e psiquismo na própria pessoa do pai, Groddeck ia recolhendo os traços fundamentais sobre os quais erigiria sua singularidade. 72 Mas há ainda duas figuras fundamentais cuja influência sobre Groddeck merecem uma consideração mais detida. A primeira delas é Caroline Groddeck, sua mãe, cuja influência sobre o autor repercutirá no âmbito de suas proposições teóricas mais fundamentais. Caroline era filha de um dos maiores historiadores da literatura alemã, o professor August Koberstein, que deu aulas durante 50 anos em Pforte, instituição de ensino próxima da cidade alemã de Bad Kösen (VALVERDE & RIVERAS, 2004). Coincidentemente, o filósofo Friedrich Nietzsche, ao qual Groddeck se referencia como seu predecessor no uso do conceito de Isso, foi aluno de August Koberstein em Pforte. Do pai, Caroline Groddeck herdará o gosto pela literatura alemã, em especial pela obra de Goethe. Em suas “Memórias”, um longo texto de cunho autobiográfico que não chegou a ser finalizado, Groddeck diz: “Para minha mãe, que era a pessoa mais importante na minha infância, havia dois deuses: um era Goethe – ela tinha sempre à sua mesinha de cabeceira um livro verde com uma seleção de poemas de Goethe, que ela chamava sua Bíblia [...]” (GRODDECK, 1994, p. 348). Consideramos que desse fascínio da mãe pelo maior nome da literatura alemã, Groddeck não sairá ileso. Do contrário, como poderíamos apreciar o ensaio “Rumo a Deus-Natureza” (“Hin zu Gottnatur”) que Groddeck publica em 1909, sem uma referência ao próprio conceito de “Deus-Natureza”, encontrado em Goethe? Esse autor, cujos interesses não se restringiam à literatura, mas se direcionavam também às ciências naturais e à filosofia, propusera uma concepção filosóficoteológica inspirada na filosofia de Baruch de Spinoza (1632-1677) cujo postulado primordial era a identidade entre Deus e Natureza. Seguindo a perspectiva spinozana, Goethe afirmava que a divindade não seria transcendente, mas imanente à Natureza ou, em outras palavras, que ambos seriam uma única e mesma coisa. Contudo, diferentemente de Spinoza, Goethe advoga intencionalidades para seu Deus-Natureza. Em estudo dedicado precisamente a apresentar as linhas centrais do pensamento de Goethe, Coelho (2007) sintetiza sua visão marcadamente romântica: Para Goethe, assim como para os herméticos, cabalistas e místicos, a Natureza cresce, vive e ama em todas as direções, criando e sustentando dentro de si mesma toda a infinidade de seres e modos de ser. E, o mais importante: ela se desenvolve 73 em todos os seus particulares e no seu Todo ao mesmo tempo, o que lhe dá um sentido e uma finalidade últimos [...] (COELHO, 2007, p. 63). Como o leitor poderá notar mais adiante, essa descrição da concepção goetheana do Deus-Natureza se coaduna perfeitamente ao conceito de Isso em Groddeck. Conquanto esse último conceito seja enunciado na obra groddeckiana com contornos próprios e uma singularidade irredutível a qualquer outra noção, é impossível negar que o conceito de Deus-Natureza em Goethe é, digamos, um embrião do Isso. Para-além da referência a Goethe, Groddeck levará do contato com o avô e a mãe o desejo de se enveredar pela literatura. Um exemplo que ilustra a manifestação desse anseio é a correspondência de Groddeck com Freud. Nela, desde o início, Groddeck já confidencia ao médico vienense o desejo de escrever um romance psicanalítico e frequentemente propõe a Freud hipóteses psicanalíticas para a análise de contos, poemas, peças e outros escritos literários. Em carta de 19 de outubro de 1919 (GRODDECK, 1994), Groddeck envia a Freud o manuscrito daquele que, após algumas revisões, seria publicado pela própria editora da Associação Internacional de Psicanálise, a International Psychoanalytischer Verlag, como: “O Fuçador das Almas” (Seelensucher). Essa foi a única ficção escrita por Groddeck tendo como mote a teoria psicanalítica. Embora em “O Livro dIsso” tanto o autor das cartas que compõem o texto quanto a amiga destinatária sejam fictícios, não se pode dizer que ali se tem uma obra literária. Diferentemente do primeiro, o interesse de Groddeck com esse livro não era estético. “O Livro dIsso” representa a tentativa do autor de expor e explicar suas proposições teóricas, conforme afirma na carta de 20 de novembro de 1920 a Freud, quando menciona pela primeira vez o projeto de escrever o livro (GRODDECK, 1994). 2.3 A influência de Ernst Schweninger A outra personagem que exercerá forte influência sobre o pensamento de Groddeck é o já citado médico Ernst Schweninger (1850-1924), que fora seu professor durante a formação médica e de quem Groddeck foi assistente. A primeira vez que Groddeck ouvira o nome de Schweninger fora num comentário do pai. Esse 74 falava com entusiasmo acerca do médico, louvando-lhe a façanha de haver conseguido fazer o chanceler alemão Bismarck obedecer-lhe. Groddeck afirma que, até então, nunca havia visto o pai elogiar nenhum médico, pois o patriarca se considerava como o único que de fato compreendia a medicina. Nossa hipótese é a de que tal exceção concedida ao médico de Bismarck elevara Schweninger ao patamar que o próprio pai já ocupava aos olhos de Groddeck, constituindo o mestre como um sucedâneo paterno no lugar do ideal de Groddeck. Ernst Schweninger começara a tratar do chanceler Otto Von Bismarck em 1881 de uma grave e perigosa doença cujo nome não é mencionado. Segundo Groddeck, Schweninger havia levado a cabo o tratamento através de uma observação minuciosa dos hábitos e condições de vida do chanceler e conseguira isso depois de cerca de cem médicos terem tentado e fracassado. Bismarck era conhecido por seu temperamento forte e, por essa razão, não se submetia facilmente às orientações que os médicos lhe recomendavam. Schweninger parece ter sido o único que conseguiu tornar Bismarck mais “dócil” às prescrições médicas. Groddeck assinala que, ao final do tratamento, Bismarck teria dito a Schweninger: “‘Até agora eu tratei de todos os médicos. O Sr. é o primeiro que trata de mim.’” (GRODDECK, 1994, p. 333) De fato, Schweninger não era como os médicos de sua geração. Como vimos no primeiro capítulo, o final do século XIX testemunhava a transformação da medicina em ciência médica, isto é, em uma disciplina que passava a não ter mais como preocupação central o tratamento dos doentes, mas sim o conhecimento das patologias e sua caracterização. Nesse contexto, o diagnóstico assume uma importância fundamental; passa a ser visto como um objetivo em si mesmo e não mais como uma etapa preliminar à escolha do melhor método terapêutico, como acontecia outrora. O desejo que motivava a intervenção médica era o de conhecer a entidade mórbida que o paciente portava em vez de efetivamente tratar. Schweninger pensava e atuava na contramão dessa tendência. No texto “A natureza cura” (GRODDECK, 1994), escrito originalmente como um necrológio dedicado a Schweninger, um ano após o seu falecimento, Groddeck tenta demonstrar que seu mestre estava muitos passos à frente de seus contemporâneos, antecipando-se, por exemplo, às pesquisas imunológicas que evidenciariam experimentalmente o papel do organismo no processo de cura. A maioria dos necrológios dedicados a 75 Schweninger se concentrava no fato de ele ter sido o médico do chanceler Bismarck e faziam poucas menções ao método propriamente schweningeriano de trabalho. Em “A natureza cura”, Groddeck dedicar-se-á, portanto, a defender as diretrizes clínicas que Schweninger adotava, explicitando-as. Groddeck conta no texto que Schweninger costumava sempre repetir-lhe duas frases que Groddeck tomaria como verdadeiros dogmas em sua atuação como médico: “A natureza cura, o médico trata.” (“Natura sanat medicus curat”, um ditado latino) e “Não são as doenças, mas os doentes o objeto do tratamento médico.”. Schweninger dizia que essas duas frases eram representativas do verdadeiro espírito médico (GRODDECK, 1994). Em relação à primeira frase, “A natureza cura, o médico trata”, o interesse de Schweninger era o de sublinhar o fato de que o verdadeiro agente da cura não é o médico ou outro profissional de saúde, mas sim o próprio organismo que padece. Esse não seria passivo em face de seu ambiente, mas constituir-se-ia naturalmente como tencionado para a saúde, de modo que a cura poderia ser vista como algo que decorre da própria essência do organismo e não uma condição que se lhe advém do mundo externo. Nesse sentido, a doença era vista por Schweninger como aquilo que obstaculiza as tendências de reparação e cura inerentes ao organismo, como uma pedra que impede o curso normal de um rio. O cuidado médico seria, em decorrência, aquilo que retira essa pedra e permite ao rio correr naturalmente. Podese concluir desse raciocínio que o tipo de tratamento escolhido não é o aspecto mais relevante da terapêutica, mas sim o decurso da ação que o método adotado exercerá no organismo, isto é, se ele efetivamente auxiliará o doente a atualizar sua potência imanente de cura ou não. Groddeck salienta que as pesquisas atuais acerca do chamado sistema imunológico conferem, de certo modo, validação empírica ao enunciado schweningeriano na medida em que demonstram o papel terapêutico que o organismo tem em relação a si próprio (GRODDECK, 1994). Além de enfatizar o caráter de agente do organismo no processo terapêutico, o ditado “A natureza cura, o médico trata” aponta correlativamente para uma relativização do papel que o profissional de saúde tem no tratamento. Ao longo da história, o campo do cuidado em saúde foi adquirindo um estatuto social elevado precisamente por se considerar que era o médico quem devolvia a saúde ao doente, 76 concepção que se fundava na idéia de uma natureza obscura, traiçoeira ou caótica, imagem esta surgida a partir do Renascimento. Contra essa natureza ruim, pecaminosa e tendente para o mal, a razão humana salvaria. É essa matriz que está como pano de fundo de uma tendência autoritária e intervencionista no cuidado em saúde que vê na racionalidade do saber médico o elemento principal do processo terapêutico. Ao postular a idéia de uma natureza que se exprime direcionada para a saúde, Schweninger coloca em xeque o caráter “salvífico” do campo do cuidado em saúde e sua soberania sobre o organismo doente. Em última instância, o modo como se concebe a natureza é um dos fatores que condiciona o lugar que o cuidado em saúde ocupará. Falaremos com maior profundidade sobre isso no próximo capítulo. A outra frase constantemente repetida por Schweninger explicita de forma ainda mais clara o quão distinto era seu pensamento em relação ao de seus contemporâneos. “Não são as doenças, mas os doentes, o objeto do tratamento médico” é a expressão radicalmente oposta do que pensava o que poderíamos denominar de o mainstream médico da época5. Como vimos no primeiro capítulo, grassava no final do século XIX a percepção da doença como uma entidade que existe por si mesma e se apossa do indivíduo fazendo-o doente, de tal modo que se pudéssemos elaborar uma frase que manifestasse o pensamento médico naquele momento, ela deveria ser exatamente o contrário da asserção de Schweninger. O mestre de Groddeck, no entanto, queria asseverar uma constatação óbvia: a de que o médico só tem acesso à doença manifesta no corpo do doente. Extrair a doença, enquanto entidade, do padecimento experimentado pelo indivíduo e estudá-la separadamente como o quiseram os médicos da medicina das espécies é um procedimento absolutamente inútil a não ser que o objetivo não seja o tratamento do paciente, mas apenas a produção de conhecimento... Groddeck levará consigo esses dois adágios schweningerianos como princípios fundamentais de sua prática clínica. O primeiro, em especial, será utilizado por Groddeck como título de um de seus principais livros, escrito antes de o autor ter conhecido a psicanálise. Trata-se de “Nasamecu”, nome formado a partir 5 No capítulo seguinte, veremos que a máxima de Schweninger permanece em contraste com o pensamento médico vigente, mesmo a doença tendo passado a ser vista mais como anomalia fisiológica do que como entidade. 77 das sílabas iniciais de “Natura sanat medicus curat”. Semelhante a inúmeros livros médicos da época, “Nasamecu” consiste numa espécie de tratado de medicina para leigos. Nele, Groddeck aborda aspectos da constituição física do organismo e como tais aspectos são apresentados pelo indivíduo sadio e pelo indivíduo doente. Ainda que a intenção primordial de Groddeck não tenha sido a de criar propriamente um livro de auto-ajuda médico, a obra acabou servindo a essa finalidade. O tradutor de “O Livro dIsso”, José Teixeira Coelho Netto, conta que, após alguns anos da publicação de “Nasamecu”, Groddeck teria recebido uma carta de um australiano dizendo que o livro havia salvado-lhe a vida: Aquele estranho lhe dizia que viajava pelo interior da Austrália quando ficou seriamente doente. Não havia por ali, no interior, assistência médica. Como sempre. Mas o missivista ouvira falar de um certo homem que vivia perto e que, dizia-se, fazia milagres. Era sua única e provavelmente última alternativa: foi procurá-lo. E curou-se. Mais tarde, aquele santo milagroso confessou-lhe que na verdade não era médico, mas tinha um livro que o ajudava em suas curas, um livro maravilhoso. O livro, claro, era Nasamecu (COELHO NETTO, 2008, p. IX, grifo do autor). 2.4 O encontro com a psicanálise Em “Nasamecu”, tem-se a primeira menção de Groddeck à psicanálise, mas não como defesa às idéias de Freud e sim como crítica ao tratamento psicanalítico. Cinco anos depois da publicação do livro, Groddeck reconhecerá em sua primeira carta a Freud, de 27 de maio de 1917 (GRODDECK, 1994), que seu desprezo pela psicanálise em “Nasamecu” não estava baseado numa apreciação criteriosa da obra freudiana, até porque Groddeck não havia lido sequer uma linha escrita por Freud. O que ele sabia acerca da psicanálise, sabia-o por terceiros, de modo que o juízo que se encontrava no livro era preconceituoso. Entretanto, todo preconceito, como evidencia a própria psicanálise, tem suas razões. E Groddeck não teve pudores em reconhecê-las logo no início de sua carta a Freud, fazendo uma espécie de mea culpa. O julgamento precipitado sobre a psicanálise teria se originado de sentimentos de inveja e indignação que Groddeck sentira em relação a Freud quando ouvira falar a respeito do método psicanalítico. 78 De fato, parecia que Freud havia chegado por seus próprios caminhos às mesmas conclusões que Groddeck havia extraído de sua experiência médica! A diferença é que Freud publicara tais conclusões primeiro, adquirindo, assim, precedência em relação a Groddeck. Este é um capítulo interessante da história da psicanálise que talvez não tenha sido devidamente apreciado. No senso comum da comunidade psicanalítica, considera-se Groddeck apenas como um dos vários discípulos de Freud, quando na verdade o primeiro descobriu, num certo sentido, a psicanálise por vias próprias. A sexualidade infantil, o impacto das palavras e dos símbolos na vida subjetiva, os fenômenos da transferência e da resistência, a tudo isso Groddeck não teve acesso lendo os textos de Freud, como acontecera com os demais discípulos, mas sim a partir da sua própria experiência clínica com os pacientes de seu sanatório em Baden-Baden. Em especial, foi uma paciente que Groddeck tratou em 1909 que lhe forneceu as primeiras amostras dessas descobertas que o médico posteriormente verificaria em outros doentes. Tal paciente – Groddeck garante – não possuía conhecimentos acerca da psicanálise, o que asseguraria que a descoberta groddeckiana fora realizada de modo completamente independente das investigações de Freud. No encontro com o trabalho freudiano, é possível notar o quão forte era em Groddeck o desejo de ser diferente e criar algo novo, conforme assinalamos anteriormente. Vendo nas obras do médico vienense a evidência de que não era pioneiro, só restara a Groddeck, tomado de inveja e decepção, defender-se através de um ataque à doutrina freudiana: “Como em minha vida toda, apesar das experiências contrárias, mantive o desejo de criar alguma coisa, recusei-me a reconhecer que, também desta vez, apenas havia acolhido e assimilado, por algum meio misterioso, idéias alheias.” (GRODDECK, 1994, p. 4). Apesar de Groddeck ter chegado a conclusões muito semelhantes às de Freud, é preciso assinalar uma contingência inusitada. Enquanto Freud elaborou o método psicanalítico e a estrutura teórica da psicanálise a partir da sua experiência com pacientes que apresentavam transtornos manifestos pela via psíquica, isto é, as chamadas neuroses, Groddeck, por sua vez, atendia pessoas que padeciam de doenças orgânicas, ou seja, que apresentavam lesões físicas: 79 Às minhas – ou devo dizer às suas – concepções não cheguei através do estudo das neuroses, [mas] mediante a observação de doenças chamadas comumente de corporais. Minha reputação médica, devo-a originariamente à minha atividade de fisioterapeuta, mais particularmente de massagista. Em consequência, a minha clientela é sem dúvida muito diferente da dos psicanalistas (Carta de Groddeck a Freud, de 27 de maio de 1917 in GRODDECK, 1994, p. 5). Ainda que essa própria experiência com doentes orgânicos lhe evidenciasse a indissociabilidade entre corpo e psique na medida em que era possível notar a influência de símbolos (fenômenos tradicionalmente agrupados na categoria de acontecimentos mentais) na produção e desenvolvimento de enfermidades corporais, Groddeck diz a Freud que, mesmo antes de haver tido acesso a essa experiência, já estava convicto de que corpo e psique eram apenas duas formas de abordar uma mesma realidade ou duas palavras distintas para se referir a uma substância única, o Isso. Deixaremos a abordagem mais detalhada deste que é o conceito central das proposições teóricas de Groddeck para mais adiante. Por ora, detenhamo-nos no processo de inserção de Groddeck no campo psicanalítico. Nessa primeira carta enviada a Freud, a intenção de Groddeck é saber do médico vienense se poderia ser considerado um psicanalista, pois desejava publicar em breve um livro relatando o que descobrira no tratamento de seus pacientes. Apesar da dúvida sobre se poderia ou não ser considerado um psicanalista, é possível notar claramente em Groddeck um desejo de que Freud o reconhecesse como tal, manifesto nos vários casos que o médico de Baden-Baden relata na carta para demonstrar a efetividade do tratamento psíquico de doenças orgânicas. São casos que vão desde simples herpes nos lábios a hemorragias na retina, passando por sintomas de sífilis e artrites. Em todas essas afecções, Groddeck havia operado um trabalho conjunto com o paciente de interpretação do significado simbólico dos sintomas. Na medida em que tal interpretação era levada a cabo, ou seja, quando se verificava a que questões de ordem subjetiva os sintomas respondiam, as afecções desapareciam, o que comprovava que elas funcionavam como substitutas de um sentido que precisava ser trazido à luz. A título de ilustração, citemos um dos exemplos relatados por Groddeck: Uma paciente acorda de manhã com o lábio superior bastante inchado; a inchação é provocada por vesículas de herpes. 80 Inquirida sobre uma data, ela menciona o dia anterior, e como hora, precisamente a da minha visita. Durante essa visita, eu havia dito em tom de brincadeira à paciente, de quem trato há muitos anos de uma grave poliartrite, que seus lábios eram finos demais, que isso indicava uma paixão incontida pelo beijo. Uma hora após essa constatação, o inchaço do lábio desapareceu. (Carta de Groddeck a Freud, de 27 de maio de 1917 in GRODDECK, 1994, p. 6). Ora, a dinâmica constatada por Groddeck no adoecimento somático era precisamente a mesma que Freud verificava com seus pacientes neuróticos: quando o sentido do sintoma vinha à luz, esse desaparecia, pois perdia sua função. A única distinção era que Freud verificava isso com sintomas psíquicos, próprios da neurose, e Groddeck o observava em sintomas orgânicos. Ao questionar a Freud, portanto, se poderia se considerar psicanalista, Groddeck estava de fato querendo mostrar a seu interlocutor que a psicanálise não precisaria ficar restrita aos neuróticos, mas poderia servir como um método útil de tratamento para todos os campos da medicina. A carta de resposta de Freud, escrita em 5 de junho de 1917 (GRODDECK, 1994), é ao mesmo tempo elogiosa e admoestadora. O médico vienense a inicia dizendo que gostou do que Groddeck lhe escrevera e, além disso, lhe assegura que Groddeck pode se considerar, sim, um excelente analista, pois havia compreendido a essência da psicanálise ao discernir os fenômenos da transferência e da resistência. A respeito da noção de Isso, Freud não se acanha em dizer que, a princípio, entre ela e o conceito de inconsciente a distinção é apenas de palavras e que não é preciso estender o conceito de inconsciente para abarcar afecções somáticas, pois isso já se encontra implícito no modo como elaborara o conceito. Cerca de seis anos depois, Freud adotaria uma posição diferente, reconhecendo a especificidade do conceito de Isso e adotando-o precisamente no lugar do termo inconsciente ainda que de maneira bastante diferente em relação ao modo como Groddeck o concebia. Na continuação da carta, Freud critica explicitamente o que ele supõe ser uma ambição banal de originalidade e pioneirismo em Groddeck e considera-a vã. Levanta inclusive a possibilidade de que Groddeck tenha se apropriado das idéias psicanalíticas por via criptomnésica, ou seja, o autor teria lido ou ouvido falar sobre 81 psicanálise em determinada época e, posteriormente, tendo se esquecido disso, julgara ter criado um método original sem notar a influência que aquele aprendizado prévio teria exercido sobre sua própria elaboração. Isso jogaria por terra a crença de Groddeck na autonomia de suas descobertas. Tal argumento, evidentemente, pode ser lido como a própria defesa de Freud com relação a sua originalidade. Após elogiar os exemplos clínicos de Groddeck e expressar certa surpresa para com eles, Freud tece sua segunda crítica ao médico de Baden-Baden: acerca de seu pressuposto monista, isto é, de não-separação entre corpo e psiquismo, que Freud afirma serem próprias de correntes filosóficas sem propósito. Para o médico vienense, seria preciso conservar essa separação: A mim me parece tão audacioso dar uma alma à natureza quanto desespiritualizá-la radicalmente. Deixemos-lhe, portanto, a sua grandiosa multiplicidade que se eleva do inanimado ao animado orgânico, do vivo corporal ao espiritual. O ics constitui certamente o intermediário correto entre o corporal e o espiritual, talvez o missing link buscado há tanto tempo. Mas, porque afinal percebemos isso, não devemos perceber nenhuma outra coisa mais? [...] Receio que o Sr. seja também um filósofo e que tenha a tendência monística a desdenhar todas as belas diferenças na natureza em troca do engodo da unidade. Estaremos assim nos livrando das diferenças? (Carta de Freud a Groddeck, de 5 de junho de 1917, p. 11, grifo do autor) Esse trecho da carta de Freud deixa explícitas as diferenças entre os dois autores no que diz respeito ao significado e às relações entre corpo e psique. Apesar de Groddeck fazer uso da expressão “condicionamento psíquico” no próprio título do artigo que marca sua entrada na psicanálise: “Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise” (GRODDECK, 1992), ao longo do texto o autor deixa claro que a expressão é equivocada: “Desse jeito eu estaria a ponto de admitir que não existe um condicionamento psíquico das enfermidades corporais. O inconsciente não é psíquico nem corporal” (GRODDECK, 1992, p. 26). Como havia dito em sua primeira carta a Freud, do seu ponto de vista, corpo e psique são duas dimensões do Isso, duas linguagens diferentes que o Isso utiliza para se expressar: “[...] não existe separação entre corpo e alma para o 82 inconsciente6; conforme suas conveniências ele se utiliza alternadamente do corpo e da alma” (GRODDECK, 1992, p. 19). Nesse sentido, as experiências clínicas de Groddeck não demonstram uma influência de fatores psíquicos sobre o corpo, como pensou Freud. Para Groddeck toda e qualquer enfermidade poderia ser lida simbolicamente, ou seja, toda doença seria potencialmente interpretável. Tal possibilidade não seria assegurada pelo fato de que em todas as doenças seria presumível um elemento causal de ordem psíquica, mas sim porque a doença é um fenômeno humano e, como todo fenômeno humano, não pode ser concebido como dissociado das redes simbólicas que constituem sua realidade. 2.5 A doença como criação simbólica Para Groddeck “[...] o ser humano é vivido pelo símbolo.” (GRODDECK, 1992, p. 31). A própria condição humana levaria o ser humano a simbolizar, isto é, a representar sua realidade, atribuindo a ela um sentido através da associação entre seus elementos: “Tão humanamente inevitável como o destino a simbolizar é a pressão à associação, que no fundo é a mesma coisa, já que associar é sempre unir um símbolo a outro.” (GRODDECK, 1992, p. 31). No entanto, do ponto de vista groddeckiano, tal processo de simbolização não seria realizado de maneira consciente, ou seja, um símbolo não seria gerado a partir de uma associação feita de maneira pensada, deliberada e racional. Podemos até fazer isso se quisermos, mas, agindo assim, estaremos produzindo uma mera racionalização, uma construção a posteriori, enfim, uma significação artificial. Os verdadeiros símbolos, aqueles que de fato operam na nossa leitura e vivência do mundo, seriam os símbolos gestados a partir da nossa experiência imediata com a realidade, uma experiência da qual o eu não participa, mas apenas recebe os frutos. Em decorrência, por não estarmos conscientes do processo de produção dos símbolos, 6 Groddeck costumava utilizar o termo “inconsciente” como sinônimo de “Isso” quando escrevia em revistas psicanalíticas ou se dirigia a uma platéia composta essencialmente de analistas. Nos demais escritos, o autor diferencia os dois termos, considerando o primeiro como uma parcela do segundo. 83 eles seriam capazes de agir em nós, determinando nossos pensamentos e ações mesmo que nós sequer tenhamos conhecimento de seu significado. A ilustração mais clara e freqüente que Groddeck fornece para demonstrar sua argumentação é o símbolo da aliança. Uma das interpretações mais comuns para o significado desse anel faz referência a sua forma circular, isto é, sem começo nem fim, que expressaria a idéia de vínculo amoroso eterno, em tese o objetivo de todo casamento. Groddeck, no entanto, mostra que a idéia de eternidade é uma construção racional e que não poderia ter sido formada espontaneamente, a partir de nossa experiência imediata, no símbolo da aliança. Trata-se, portanto, de uma explicação artificial, feita a posteriori. A hipótese explicativa de Groddeck fará referência ao que acontece de fato na experiência do casamento: ora, durante muito tempo o matrimônio era o momento que marcava a possibilidade de encontro carnal entre os dois amantes e selava um compromisso de fidelidade segundo o qual esse encontro só poderia ocorrer entre eles e mais ninguém. Assim a interpretação fica fácil: o anel representa o órgão sexual feminino, enquanto o dedo é o órgão masculino. O anel não deve ser tocado por nenhum outro dedo a não ser o do marido, portanto no anel da mulher há um juramento: não ser tocada por nenhum outro órgão sexual que não o do esposo. (GRODDECK, 1992, pp. 30-31) O espanto que muitos podem sentir frente a uma interpretação como essa não é disparatado. De fato, à primeira vista temos a impressão de que Groddeck está simplesmente inoculando significação sexual onde não há – o que, evidentemente, não deixa de ser uma possibilidade. Todavia, não se deve perder de vista que Groddeck não era um hermeneuta, mas sim um médico e, como tal, tem seu interesse maior não era propor interpretações “verdadeiras”, isto é, supostamente conformes aos fatos. Como ele próprio diz em diversos momentos de sua obra, suas construções interpretativas são hipóteses enunciadas com a intenção modesta de ajudar seus pacientes: Não se trata de explicar como ajudar o enfermo, e sim de ajudá-lo. A nossa função não é bem elaborar teorias corretas, mas encontrar hipóteses para o trabalho, que produzam resultados no tratamento. [...] A questão, portanto, não é saber se podemos afirmar com certeza: a doença surgiu através dessa ou daquela cadeia de pensamentos do inconsciente, mas sim de podermos afirmar que a doença desaparece com a 84 revelação dessa ou daquela ligação, ou, dito de outra maneira, se há perspectiva de uma intervenção benéfica nas enfermidades orgânicas, com a ajuda da psicanálise (GRODDECK, 1992, p. 26) A experiência clínica de Groddeck comprovava que interpretações daquele tipo eram efetivas no tratamento de sintomas orgânicos, como vimos no exemplo citado anteriormente da paciente com herpes. A conclusão óbvia que se pode extrair de experiências como aquela é a de que a doença é, tal como um conto, uma fábula ou um romance, uma criação simbólica que, diferentemente dessas outras produções, assim que é decifrada desaparece. Haveria, assim, uma equivalência entre literatura, comportamentos, pensamentos e doenças: todos esses fenômenos seriam manifestações humanas e, como tais, submetidas ao símbolo. Em suas palavras, Qualquer pessoa se submete ao símbolo, que nasce com ela, conduz suas mãos no trabalho, seus pés ao andar e sua língua ao falar, mas poucas são conscientes de sua dependência, e não há ninguém que consiga aplicar realmente esse determinismo na vida cotidiana, por mais que esteja convencido teoricamente de sua absoluta conveniência. A convicção de que o homem possui livre-arbítrio é uma condição de vida imposta pelo Isso, à qual realmente não se pode escapar. (GRODDECK, 1992, p. 37) A tese de que a doença orgânica é uma criação carregada de significação parece, à primeira vista, totalmente infundada, pois nos acostumamos a pensar os fenômenos artísticos e culturais como sendo derivados de uma intencionalidade por parte de seus autores, ao passo que para a doença admitimos apenas uma causalidade eficiente. Em outras palavras, nosso modo costumeiro de pensar não admite que possa haver uma finalidade por trás do aparecimento de uma patologia, o que talvez esteja ligado à separação entre corpo e psiquismo que, como vimos no capítulo precedente, é um dos postulados conceituais que alicerçam o modelo biomédico. Essa separação leva a supor uma diferença radical entre aquilo que é da ordem do corpo e aquilo que diz respeito ao psiquismo. Com efeito, supõe-se que haja deliberação, intencionalidade e propósito apenas nas manifestações psíquicas. No caso dos fenômenos do corpo, entre os quais a doença, aqueles atributos estariam ausentes, sendo as manifestações corporais fruto apenas da incidência de causas anteriores. 85 O fato de trabalhar com a inexistência dessa separação permite a Groddeck pensar o corpo como veículo de intencionalidades da mesma forma que o psiquismo. Na perspectiva groddeckiana, não existe o binômio sujeito-corpo, logo não se pode dizer que o sujeito possui um corpo; ele é o próprio corpo. Groddeck pensa o indivíduo como uma totalidade que possui modos diversos de manifestação, aos quais podemos qualificar como corporais ou psíquicos, mas com a consciência de que estamos fazendo referência apenas a formas distintas de apresentação de um único ser. Levando em conta tais pressupostos, a tese de que a doença é uma criação e não um mero acontecimento já não se mostra absurda e as seguintes palavras de Groddeck não parecem desprovidas de racionalidade: [...] a doença também é um símbolo, uma representação de um processo interior, uma encenação do Isso através da qual ele anuncia o que não se atreve a dizer de viva-voz. Em outras palavras, a doença, nervosa ou orgânica, e a morte, estão tão carregadas de significação quanto a interpretação de uma peça musical, o ato de acender um fósforo ou de cruzar as pernas. Esses atos transmitem uma mensagem do Isso com mais clareza e insistência do que o poderia fazer a fala, a vida consciente. (GRODDECK, 2008, p. 95) Groddeck era cônscio de que a idéia de que a doença possui uma finalidade é tomada pela maior parte das pessoas, principalmente pelos próprios doentes, como uma fantasia. Por conta disso, no tratamento de seus doentes, o médico realizava um trabalho preliminar de apresentação de seus pressupostos, de modo a levar o paciente à inevitável conclusão de que, de fato, sua doença poderia ter servido a algum propósito. Não se trata, porém, de uma tentativa de convencer o paciente. Groddeck, como vimos, não lida com seus postulados teórico-clínicos como se fossem verdades inquestionáveis. Pelo contrário, trata-os como meras hipóteses de trabalho. Nesse sentido, quando apresenta ao paciente novos pressupostos com o objetivo de levá-lo a pensar que em sua doença possa haver alguma finalidade, Groddeck está apenas tentando mostrar ao doente que a patologia pode ser entendida de um modo diferente e que olhar a doença a partir dessa nova perspectiva pode ser um procedimento frutífero para o tratamento: “Não sei se a doença tem uma finalidade, isso me é indiferente. Mas, na prática, essa minha atitude tem valido a pena. De um modo ou de outro, consigo assim pôr o Isso do paciente em movimento e não é raro que ele acabe contribuindo para o desaparecimento do sintoma.” (GRODDECK, 2008, p. 94). 86 Nesse trabalho preliminar que mencionamos, Groddeck tenta, primeiramente, levar o paciente à constatação de que nele age um Isso. O médico mostra ao enfermo que toda a complexidade que caracteriza a estrutura do corpo humano advém da união de apenas dois elementos minúsculos, o espermatozóide e o óvulo. Por conseguinte, deve-se supor que haja uma força que, a partir do encontro dessas células, promove o crescimento do organismo e o desenvolvimento dos órgãos. Após apresentar essa idéia, Groddeck indica seu corolário: se admitimos uma força capaz de criar órgãos com uma morfologia e funcionamento tão complexos, poderíamos negar a essa força a capacidade de desvirtuar a atividade desses mesmos órgãos, através de uma doença? Agindo assim, o médico demonstra ao paciente que sua doença pode ser concebida como a manifestação de uma força que o constitui e que tal força só se expressou assim em função de determinadas razões, buscando a realização de determinados propósitos: “Vou mesmo mais longe, afirmo ao doente que essa força faz de fato tudo isso, que torna as pessoas doentes a seu bel-prazer por determinadas razões, escolhendo à vontade, e por determinados motivos, o lugar, o tempo e o tipo de doença (GRODDECK, 2008, p. 94). A investigação dos objetivos aos quais o Isso, isto é, a força em questão, intentou atingir com a doença passa pela observação das conseqüências que se seguiram na vida do indivíduo depois que esse adoeceu. Apesar de cada doença produzir efeitos específicos, existem alguns resultados comuns à maioria das enfermidades, como a restrição das atividades do indivíduo, a necessidade de ficar em repouso e, não raro, a situação de estar sendo cuidado por outra pessoa. Para Groddeck, tais conseqüências podem ser entendidas não como meros desdobramentos da doença, mas sim como aquilo que é efetivamente visado pelo Isso quando cria uma doença. Uma das características observadas por Groddeck em relação ao Isso é a cautela. Assim, quando a vida se torna por alguma razão carregada de dificuldades e o indivíduo não conta com meios suficientes para lidar com as situações que se lhe apresentam, o Isso lança mão de uma doença, a qual proporcionará ao indivíduo justamente as condições de que necessita nesse momento: “Com a suscetibilidade à doença, o sensível Isso cria posições seguras onde refugiar-se. A doença, seja ela aguda ou crônica, infecciosa ou não, traz sossego, protege contra o agressivo mundo exterior, ou pelo menos 87 contra fenômenos bem determinados, que são insuportáveis” (GRODDECK, 1992, p. 16). Nota-se que Groddeck concebe a doença como uma espécie de estado de exceção ou de último recurso na vida individual. Em outras palavras, o Isso só recorre à doença quando não encontra nenhuma outra forma mais sadia de se manifestar. Por conta disso, a ênfase de Groddeck em relação ao tratamento será a busca pelo discernimento dos fatores que levaram o Isso a apelar para uma enfermidade e não o esforço no sentido de eliminar os sintomas a qualquer custo. O médico vê a terapêutica como um trabalho que visa restituir ao Isso a capacidade de expressão por vias sadias: “[...] ela deve motivar o enfermo a interpretar o sentido dos sintomas e levar o Isso a substituir a linguagem da doença pela da saúde, por intermédio da conscientização das vivências recalcadas” (GRODDECK, 1992, p. 136). O que Groddeck está chamando de “conscientização das vivências recalcadas” consiste na remontagem dos conflitos inconscientes que podem estar na raiz da patologia. Tal procedimento deve ser realizado conjuntamente com o paciente a fim de trazer à luz determinadas ligações simbólicas que, por seu potencial aflitivo, levaram o Isso a se defender com o adoecimento. Groddeck pôde constatar, por exemplo, que muitas doenças podem servir como veículos de expiação de sentimentos de culpa. O indivíduo, nesses casos, adoeceria como forma de se punir por determinados pensamentos, desejos e atos cometidos outrora. A doença teria, então, uma dupla função: a de aplicar o devido sofrimento como punição e, ao mesmo tempo, a de impossibilitar que o indivíduo tome consciência de seus pensamentos “proibidos” ou rememore seus atos “ilícitos” já que a responsabilidade pela enfermidade não é atribuída pelo indivíduo a si próprio, mas ao mundo externo: A doença encerra em si mesma alguma coisa mais para expiar a culpa, ela contém em si o castigo. E este castigo, que o ser humano, sem o perceber, aplica a si próprio, tem a grande vantagem de poder ser atribuído como injustiça eventualmente ao mundo exterior, ao destino, a Deus, de se poder censurar aquilo que não é o ego (GRODDECK, 1994, p. 209) Outra finalidade à qual toda doença pode servir é a demanda de amor. Afinal, a maior parte das enfermidades, em especial as de gravidade mais alta, tendem a levar o indivíduo a se colocar na posição de estar na dependência dos cuidados de 88 outra pessoa. O doente passa, então, a ser alvo de atenção e dedicação como poucas vezes foi ao longo da vida. Como Groddeck nota de maneira acurada, talvez apenas a criança receba do ambiente mais atenção e cuidado que um indivíduo enfermo. Tendo em vista tais conseqüências, torna-se, para Groddeck, inevitável a constatação de que o indivíduo possa ter ficado doente justamente para receber tamanha carga de amor por parte dos que estão à sua volta. É óbvio que a doença não é a única forma de atrair a atenção das pessoas e conseguir delas algum tipo de dedicação. No entanto, para alguns indivíduos e em determinado momento da vida, a demanda de amor se torna mais imperativa e as vias mais comuns de manifestação se encontram bloqueadas, de modo que a doença se torna o único meio encontrado pelo indivíduo para demandar amor ao ambiente: “A criança é o verdadeiro soberano do mundo, o rei dos reis. Existe apenas um ser que pode pretender o mesmo direito às vezes com os mesmos sucessos: é o doente. O doente, não importa entre quem esteja, sempre encontra quem o ajude, e enfermeiras e serventes” (GRODDECK, 1994, p. 208) O conceito-chave que permitirá a Groddeck pensar a doença como sendo dotada de significação e propósito e ao mesmo tempo negar a hipótese de uma psicogênese da enfermidade será precisamente a noção de Isso. Como o leitor pôde notar, até aqui estivemos utilizando esse termo sem, no entanto, analisarmos de maneira mais profunda o seu significado. Isto se deve ao fato de que é impossível separar o pensamento de Groddeck de tal conceito, posto que ele é central para suas concepções. É chegada a hora, portanto, de explorarmos, mais diretamente, o sentido que o Isso adquire na obra groddeckiana. 2.6 Para-além das fronteiras do eu: o conceito de Isso O termo Isso é a tradução em língua portuguesa mais próxima semanticamente do vocábulo alemão “das Es” utilizado por Groddeck. Trata-se, na língua alemã, de um pronome impessoal, ou seja, que pode ser utilizado para fazer referência tanto a elementos masculinos quanto femininos sem, no entanto, indicar explicitamente a que objeto se refere. 89 Freud, após trocar diversas cartas com Groddeck, reconhece no termo “das Es” um potencial heurístico mais elevado que a noção de inconsciente que vinha utilizando até então. Em decorrência, resolve adotar o conceito, mas utilizando-o não no sentido que Groddeck o vinha empregando, como veremos nas próximas linhas. Na carta de 17 de abril de 1921 (GRODDECK, 1994), Freud anuncia a Groddeck que vem refletindo sobre a possibilidade de passar a utilizar “das Es” em vez de inconsciente (ics) por constatar uma insuficiência desse último conceito: É por isso que há tempos recomendo ao meu círculo íntimo não pôr em oposição o ics e o pcs [pré-consciente], mas um ego coerente e uma coisa recalcada que é separada disso. Entretanto, isso também não resolve a dificuldade. O ego, em suas profundezas, é também profundamente inconsciente e, ainda assim, se confunde com o núcleo daquilo que é recalcado. Parece, portanto, que a idéia correta é que as articulações e as diferenciações que observamos só possuem valor nas camadas relativamente superficiais, não o têm em profundidade, para a qual o seu “isso” [das Es] seria a designação correta. (Carta de Freud a Groddeck, de 17 de abril de 1921 in GRODDECK, 1994, pp. 32-33). Apesar de admitir que Groddeck estava certo ao preferir o conceito de “das Es” em vez da noção de inconsciente, veremos nas próximas linhas que o “das Es” de Groddeck é radicalmente diferente do de Freud. Essa divergência no uso do termo é reflexo de uma diferença ainda mais profunda entre os dois autores e que está ligada essencialmente ao modo como cada um lida com a racionalidade. Enquanto Freud se insere numa tradição que poderíamos chamar de iluminista, de louvor à razão – ainda que sua descoberta demonstre a submissão dessa aos afetos, Groddeck é explicitamente um irracionalista e sua utilização do vocábulo “das Es” expressará precisamente esse aspecto. O próprio Freud captou a distância entre seu “das Es” e o “das Es” de Groddeck e observou que ela se assentava precisamente sobre essa radical diferença entre a visão de mundo de ambos: “No seu isso não reconheço naturalmente meu id [das Es] civilizado, burguês, destituído de mística. Mas o Sr. sabe, o meu deriva do seu.” (Carta de Freud a Groddeck, de 18 de junho de 1925 in GRODDECK, 1994, p. 70) 90 Com efeito, Freud utilizara “das Es” para indicar a dimensão atávica do sujeito, onde residem as chamadas pulsões7 sexuais (Eros) e pulsões de morte. Tais pulsões não emergiriam a partir da história de vida do sujeito, mas sim por vias filogenéticas. O termo “das Es” se afigurará, portanto, para Freud, como a noção ideal para fazer referência a essa dimensão hereditária ou filogenética do indivíduo a partir do qual o eu emergirá. Para Freud, o eu é uma diferenciação do “das Es” produzida a partir da relação entre esse último e o mundo externo. Dessa relação também advém uma nova instância psíquica, o supereu (“Uber-Ich”), um precipitado psíquico das identificações fundamentais do indivíduo com as figuras parentais que se tornará o representante dos ideais éticos e morais. Em um de seus últimos trabalhos, “Esboço de psicanálise”, Freud indica de maneira clara e sintética o uso que faz da noção de “das Es”: “Chegamos ao conhecimento deste aparelho psíquico pelo estudo do desenvolvimento individual dos seres humanos. À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome de id [das Es]. Ele contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está assente na constituição – acima de tudo, portanto, os instintos [pulsões], que se originam da organização somática e que aqui (no id) encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas.” (FREUD, 1996b, p. 158, grifo do autor)8 7 Seguindo a tradução já consagrada a partir da leitura lacaniana da obra de Freud, adotamos o termo pulsão em vez de instinto para fazer referência ao vocábulo alemão “Trieb” utilizado por Freud. As razões já são mais do que conhecidas: o termo instinto é utilizado no âmbito da biologia para qualificar tendências e comportamentos estereotipados dos animais que se expressam a partir de uma correspondência relativamente estável com o ambiente circundante. No caso da espécie humana, um regime fixo de funcionamento comportamental dessa natureza não existe. Além disso, a língua alemã possui o termo “Instinkt”. Nesse sentido, se Freud optou pelo termo “Trieb” em vez do primeiro, isso deve provavelmente às conotações próprias dessa palavra que sugerem apenas uma tendência, cuja manifestação não se dá de maneira pré-determinada como no caso dos instintos. 8 O leitor pôde notar nessa citação extraída da “Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud” que “das Es” é ali traduzido por “id” e não por “Isso”. De fato, em 1923, o médico vienense publica o livro “Das Ich und das Es” em que pela primeira vez utiliza o termo “das Es” como conceito. A tradução brasileira da Standard Edition traduziu a obra como “O Ego e o Id” adotando a tradução latina de “das Ich” e “das Es” que já havia sido consagrado no meio anglo-saxão. Não obstante, em todas as traduções dos textos de Groddeck publicadas no Brasil utiliza-se o termo Isso em vez de id. Do nosso ponto de vista, tal opção é a mais adequada, pois as associações semânticas do termo Isso, além de ser uma tradução direta do alemão para o português, tendem a levar às idéias de algo misterioso, enigmático, desconhecido, justamente alguns dos atributos com os quais Groddeck caracteriza o conceito. A palavra Id, por sua vez, só possui associação em língua portuguesa com a própria obra freudiana. Nesse sentido, se o termo fosse adotado na tradução das obras de Groddeck, a tendência a haver uma confusão entre os sentidos diversos com que os dois autores empregam a palavra seria muito maior. 91 Muito antes de conhecer a psicanálise, Groddeck já trabalhava a noção de “das Es”, o que se pode atribuir com certa segurança à influência, como já dissemos, de suas leituras de textos românticos, especialmente Goethe. Henri Ellenberger (apud Dimitrijevic, 2008) afirma categoricamente que o conceito de Isso em Groddeck é um sucedâneo da concepção romântica de um inconsciente irracional, isto é, uma noção de inconsciente anterior à elaboração freudiana. Com efeito, Groddeck tomou o termo de Nietzsche, filósofo cujo pensamento foi justamente influenciado pelo romantismo e que utilizara a noção de Isso no parágrafo 17 de “Além do bem e do mal” para criticar o privilégio concedido ao eu na filosofia de René Descartes expresso paradigmaticamente na famosa frase: “Penso, logo sou.”. Para Nietzsche, o pensamento teria uma autonomia em relação ao eu, de modo que em vez de “Eu penso”, seria mais adequado dizer: “Isso pensa.” (NIETZSCHE, 2008). Pelo fato de Nietzsche ter utilizado o termo Isso apenas essa única vez em “Além do Bem e do Mal”, alguns autores como Rudnytsky (2002) acreditam que a verdadeira fonte da qual o autor extrai a noção de Isso é o texto “A ressurreição da religião na arte”, de Wilhelm Bölsche, publicado em 1904, no qual Bölsche se refere ao Isso como uma potência criativa que une corpo e alma – características que de fato estarão presentes no Isso de Groddeck. Ademais, Bölsche defende em seu trabalho a relevância da idéia de Deus-Natureza de Goethe a qual, como vimos, exerceu influência direta sobre Groddeck. Conquanto uma hipótese não exclua a outra, o uso que Groddeck faz da noção de Isso parece ainda mais próximo daquele adotado por Bölsche do que da forma como Nietzsche a utiliza. Não obstante, o próprio Groddeck alega expressamente ter tomado o conceito da obra nietzscheana. Numa carta escrita a um paciente médico em 1929, Groddeck afirma: Talvez nessa altura lhe venha à cabeça que hoje o lembro de que existe um psíquico, isto é, algo que se compõe de consciente e de inconsciente e no qual o inconsciente é o mais importante, e que por trás do psíquico e do físico existe algo mais que Driesch chama de enteléquia seguindo Aristóteles, e que eu, na esteira de Nietzsche e por comodismo, chamei de isso. (GRODDECK, 1994, p. 113) 92 Apesar de reconhecer a precedência do filósofo, o uso que Groddeck fará do conceito do Isso é assaz distinto do de Nietzsche. Porém, as razões que levaram ambos os autores a adotá-lo serão parecidas. Se Nietzsche, com seu “Isso pensa”, estava interessado em mostrar as deficiências da filosofia cartesiana que postulava o eu e seu correlato, a consciência, como sujeitos do conhecimento do real e como condições do pensar, ao tomar o Isso como conceito, o propósito de Groddeck é justamente o de elaborar uma concepção de ser humano que seja capaz de ultrapassar a noção de eu. Conquanto nos dias atuais, principalmente após o advento da psicanálise e de filosofias de crítica à metafísica da subjetividade como a de Nietzsche, dizer que o eu não é o centro de nossa experiência como viventes seja quase um lugarcomum, no final do século XIX, uma afirmação do tipo “[...] Sou levado a viver por um isso, em vez de: Eu vivo” (GRODDECK, 1994, p. 189) era vista com bastante estranheza. Além disso, é preciso lembrar que, embora Freud já tivesse formulado o conceito de inconsciente no período em que Groddeck começa a elaborar a noção de Isso, o segundo ainda não havia tido notícias das descobertas que se processavam em Viena. Nesse sentido, dadas as suas influências românticas, o que contribuirá decisivamente para que Groddeck se ponha a questionar o estatuto do eu como centro de nossa subjetividade será sua experiência como médico. Ao notar que as doenças apresentadas por seus pacientes recebiam a influência de símbolos dos quais esses mesmos doentes não estavam conscientes, Groddeck observará que os processos mais importantes no nível do indivíduo ocorrem à revelia da consciência e do eu. Essa constatação levará o autor a empreender uma reflexão quase de cunho filosófico a respeito do caráter ilusório do eu. Com efeito, Groddeck notará corretamente que o eu constitui uma realidade abstrata, na medida em que não podemos definir de maneira absoluta e, talvez nem mesmo consensual, onde começa e onde termina a realidade egóica tanto em termos espaciais quanto temporais. Numa conferência intitulada “Destino e Coação” proferida em 1925 num colóquio de filosofia, ele diz: [...] o indivíduo homem é uma invenção arbitrária, oriunda da necessidade do nosso pensamento; pois para esse pretenso indivíduo homem não há começo nem fim, temporal ou espacial, não existem limites no tempo ou no espaço. Um ser 93 humano nunca nasce, ele já existia desde a eternidade, em outra forma, mas existia, e a denominação ser humano é apenas o nome de uma forma determinada do universo variável, mas sempre existente; um ser humano nunca morre; o que existe permanece, muda apenas a forma. (GRODDECK, 1994, p. 237) Nessa citação é possível notar que Groddeck critica concepções como a cartesiana, por exemplo, que postulam uma distinção entre o eu e o mundo. Quando Descartes deduz a realidade do eu a partir da impossibilidade – a seu ver – de que haja um pensamento sem sujeito, o que ele está dizendo é que é possível ao sujeito observar o mundo de fora, de maneira externa e não condicionada aos eventos que se processam na realidade. Groddeck, por seu turno, nota que tal concepção está baseada um recorte artificial. Não existiriam pontos fixos e consensuais no tempo e no espaço que pudessem servir como balizas para se dizer: aqui começa e ali termina o eu. A ilustração que Groddeck costuma dar para defender essa idéia é a seguinte: quando é que podemos dizer que um determinado alimento deixou de ser alimento e se tornou parte do nosso corpo? E, no que diz respeito à ausência de limites temporais, Groddeck se pergunta acerca do momento em que podemos dizer que o indivíduo existe: a partir da concepção, após determinado números de meses ou no nascimento? A inexistência de uma resposta absoluta para tais questões demonstra, no entender de Groddeck, que não há um elemento individual que possa ser colocado numa relação de antinomia com o todo. Em outras palavras, o que existe é o todo. O que enxergamos como indivíduos são apenas manifestações, formas, modos de apresentação desse único ser. A filosofia de Spinoza parece ter sido indiretamente, via influência romântica e, confessadamente, de Goethe, a referência filosófica utilizada por Groddeck para formular tais idéias. Com efeito, os postulados filosóficos de Spinoza receberam uma acolhida fervorosa pelo Romantismo, movimento que, no entanto, os subverteu ao utilizá-los numa perspectiva teleológica, diametralmente oposta à filosofia spinozana original. Contudo, no que diz respeito especificamente a essas idéias sobre as relações entre o eu e o todo, Groddeck parece ter seguido Spinoza à risca. Na proposição 14 da primeira parte de sua “Ética”, Spinoza afirma: “Além de Deus9, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância.” (SPINOZA, 2009, p. 22). 9 Spinoza utiliza os vocábulos “Deus”, “substância” e “natureza” como sinônimos. 94 Logo, há apenas a totalidade e mais nada para-além dela. Na proposição 15, o filósofo apresenta a asserção correlata à primeira: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.” (SPINOZA, 2009, p. 23). Portanto, aquilo que existe é um modo de manifestação dessa substância (todo). Até aqui, temos um Groddeck alinhado ao pensamento de Spinoza; um Groddeck que desconstrói a substancialidade do eu ao assinalar que aquilo que chamamos de indivíduo consiste apenas numa manifestação contingente e relativa do todo. No entanto, o médico não era propriamente um spinozista, mas um romântico e, como tal, não poderia deixar de dotar esse todo de intencionalidade. É no momento em que Groddeck faz essa operação de conferir à substância única causalidades finais que o uso do conceito de Isso lhe parece inevitável. Como vimos, Groddeck chega à constatação de que o eu é uma ilusão, que se trata de uma manifestação efêmera do todo. Por outro lado, ele próprio afirma que é impossível vivermos sem acreditar que somos um eu, no sentido de que possuímos uma substancialidade distinta do restante do mundo. Por que é impossível? Por que o próprio todo nos induziria ao engano de crermos que somos indivíduos, com capacidade de escolha, isto é, de sermos tomados como a causa última de nossos comportamentos. A natureza, portanto, teria essa intencionalidade de nos fazer acreditar na ilusão da existência individual separada do resto do mundo: Mas a expressão ‘eu’ existe, está sendo usada, tem algum sentido e finalidade. Se aquilo em que ela nos obriga a pensar – ou seja, que ao eu se defronta um não-eu separado, que o eu e o todo são coisas diferentes – for um pensamento incorreto, a palavra deve ter um significado diferente daquele que aceitamos comumente, e por trás dessa palavra deve-se esconder qualquer coisa que é forte o bastante para nos fazer pensar errado, sem que com isso seja prejudicado o curso do mundo [...] (GRODDECK, 1994, p. 187) Destarte, o homem não poderia existir sem se pensar como um indivíduo singular, diferente do resto do mundo. Ao se aperceber disso, Groddeck argumentará que a única solução para que não vivamos totalmente iludidos, crendo que nosso ser abrange apenas aquilo que ocorre no âmbito de nossa consciência, é imitarmos o próprio movimento da natureza que criou a ilusão egóica e produzirmos artificialmente uma noção de indivíduo mais ampla, capaz de contemplar não 95 apenas os fenômenos dos quais temos controle voluntário, mas também todos os demais eventos que se processam em nós e que julgamos serem involuntários. É justamente essa definição mais larga do indivíduo que Groddeck chamará de Isso. Na medida em que esse conceito estende a noção de indivíduo para-além dos limites do eu, ele passa a abranger o conjunto das funções orgânicas do corpo bem como a realidade inconsciente formalizada por Freud. Não obstante, ainda assim o Isso não pode ser reduzido a esses novos fenômenos que passam agora a ser incluídos na totalidade individual. Diferentemente do eu, que é sentido e conceituado como uma realidade dissociada do todo, o Isso é caracterizado por Groddeck como aberto ao meio circundante e enraizado na natureza. Para Groddeck, portanto, o ideal seria que não precisássemos de qualquer idéia de indivíduo, isto é, que pudéssemos conceber como causa ou sujeito de todos os fenômenos o próprio todo. No entanto, dado que o próprio todo não nos permite pensar assim, Não nos resta outra coisa senão imitar o que o cotidiano fez por meio da invenção da palavra ‘eu’, libertar o indivíduo das relações, aliás com a consciência de que, com isso, deturpamos intencionalmente a imagem do mundo, e dar a esse indivíduo um nome o mais elástico e indeterminado possível, uma designação que de antemão torne claro que toda tentativa de definição deve falhar. Há muitos anos uso, para esta finalidade, o termo ‘isso’ (GRODDECK, 1994, p. 189). Como se trata de uma construção teórica artificial, criada por Groddeck, será preciso, para melhor definir o conceito de Isso, estabelecer arbitrariamente os limites espaço-temporais que no nível da natureza não existem. Em decorrência disso, Groddeck institui a concepção, isto é, o encontro entre o espermatozóide e o óvulo, como o momento a partir do qual o Isso passa a existir e a morte como o marco de seu desaparecimento. Já no que diz respeito aos limites espaciais, Groddeck não os aborda. Trata-se, portanto, na afixação de pontos de referência acerca de onde começa e onde termina o Isso, de um procedimento puramente prático utilizado pelo médico com o objetivo de definir e localizar aquilo sobre o qual ele irá trabalhar: “[...] é preciso fixar um limite para a existência individual, e esse princípio, de acordo com 96 as minhas necessidades práticas e científicas, eu determino como sendo o momento da união entre o óvulo e o espermatozóide” (GRODDECK, 1992, p. 117). Diversas vezes ao longo da obra de Groddeck é possível notar o uso do termo Isso não apenas para fazer referência a essa nova totalidade individual concebida artificialmente como uma hipótese de trabalho; em muitos momentos, o médico chama de Isso justamente a natureza ou o todo que, para ele, possui intencionalidade. É por isso que, algumas vezes, Groddeck, em vez de usar o termo Isso, falará simplesmente de “vida”. Nesse sentido, podemos ler o conceito de Isso na obra groddeckiana como significando ao mesmo tempo a totalidade individual e a força da natureza que impele à formação do próprio indivíduo 10. Uma das características observadas por Groddeck em relação ao Isso entendido como totalidade individual é a inexistência das diferenciações que são observadas no nível do eu. No Isso não existe a distinção entre corpo e psiquismo, entre sexo masculino e feminino e sequer entre faixas etárias. Nesse sentido, podese dizer que todo ser humano constitui-se como “[...] uma misteriosa coexistência do que se convencionou chamar de corpo e alma” (GRODDECK, 1992, p. 125); é ao mesmo tempo homem e mulher e simultaneamente criança, jovem, adulto e idoso. Para Groddeck, quando o indivíduo se afirma como apenas homem ou apenas adulto, ele está deliberadamente optando por um dos variados pólos que o constituem e rejeitando os demais. Todavia, esses pólos que são rejeitados continuam ativos à surdina, de modo que não é raro observar-se indivíduos adultos se comportando de maneira infantilizada bem como é perfeitamente possível constatar crianças que, por suas atitudes, às vezes se assemelham a idosos. Falando a respeito desse assunto com sua destinatária fictícia em “O Livro dIsso”, Groddeck lhe faz os seguintes pedidos: Examine o ser humano no momento de suas dores mais profundas, de suas alegrias mais intensas: seu rosto se torna infantil, seus movimentos também; sua voz se torna mais flexível, o coração bate como se fosse de uma criança, os olhos brilham ou se enchem de lágrimas. [...] Ande pelas ruas e observe as menininhas de três ou quatro – a coisa é mais 10 Essa ambigüidade é a uma expressão do que dissemos no início deste capítulo acerca da impossibilidade de enunciar uma definição exata da noção de Isso. 97 evidente nelas do que nos meninos, e deve haver uma boa razão para isso –, você verá como elas agem do mesmo modo que suas mães. E todas elas, e não por acaso, se mostram particularmente marcadas pela vida; não é bem isso, é que todas elas têm, num momento ou outro, essa curiosa expressão de velhice (GRODDECK, 2008, p. 11) Do mesmo modo, seria impossível, no entender de Groddeck, dizer que o indivíduo é totalmente masculino ou totalmente feminino. Os atributos do sexo oposto se fariam presentes de maneira mais ou menos explícita ao longo da vida da pessoa, até mesmo através de uma doença. No artigo “A dupla sexualidade do ser humano” (GRODDECK, 1992), Groddeck reconhece que a própria psicanálise já havia evidenciado, através do tratamento de pacientes neuróticos, que todo indivíduo porta inclinações do sexo oposto e que tende a recalcá-las, manifestandoas, não obstante, pela via dos sintomas. Todavia, para Groddeck não se trata, nessa concepção, de um reconhecimento efetivo da bissexualidade humana, pois implicitamente ainda se considera que o indivíduo é de um determinado sexo, sendo as tendências do sexo oposto manifestações importantes, mas marginais, isto é, não seriam parte integrante do próprio indivíduo. Groddeck, por sua vez, será radical ao defender a tese de que todo ser humano é ao mesmo tempo homem e mulher. Ele procurará demonstrar isso através de uma análise de partes e órgãos do corpo humano, argumentando que cada órgão possuiria características femininas e masculinas. O nariz, por exemplo, “[...] pela sua forma, é realmente masculino, embora as narinas sejam uma representação feminina” (GRODDECK, 1992, p. 200) A idéia de uma sexualidade dupla em todo ser humano, bem como a da inexistência de diferenciações de idade no Isso evidenciam que, com esse conceito, Groddeck procura açambarcar todas as potencialidades de manifestação que o homem possui: “O isso é o próprio homem em todas as suas formas de vida [...]” (GRODDECK, 1994, p. 191). É como se no Isso estivessem contidos todos os fenômenos concernentes ao ser humano em estado latente. Nesse sentido, quando se opera uma diferenciação no nível do eu em termos de sexo ou faixa etária, como quando se diz: ‘eis ali um homem adulto’, o que se está fazendo é um recorte de uma realidade única e total do ser humano, da mesma forma que, ao se utilizar uma lanterna numa mata escura, se ilumina apenas uma pequena parte da floresta, deixando em trevas toda a imensidão à volta. 98 Na perspectiva groddeckiana, enfim, é justamente essa totalidade única e que nunca se dá a conhecer completamente o verdadeiro objeto do tratamento médico e não apenas o corpo como o quer o modelo biomédico. Entendendo tudo o que o homem faz, inclusive adoecer, como sendo uma expressão do Isso que o constitui, Groddeck propõe um exercício do cuidado em saúde que não concebe a doença como uma entidade separada dos demais eventos e relações que caracterizam o contexto atual e a história de vida do indivíduo. Trata-se, portanto, de um ponto de vista que vai ao encontro das novas demandas da sociedade por diretrizes e ações em saúde que reconheçam a integralidade e complexidade que caracterizam o processo de adoecimento. Vimos no capítulo anterior que a biomedicina não é capaz de atender a essas expectativas, o que não se deve à inexistência de tecnologia suficiente, mas sim aos pressupostos teóricos que fundamentam seu modelo de entendimento das doenças e sua terapêutica. Cremos ter demonstrado de maneira consistente que a insuficiência das práticas médicas tanto na compreensão quanto no tratamento, por exemplo, de inúmeros distúrbios em que o componente subjetivo salta aos olhos, resulta de uma racionalidade calcada em ideologias científicas, como o mecanicismo, o reducionismo, o organicismo e a especialização. Groddeck, por seu turno, nunca teve apreço pela ciência, muito menos por suas ideologias, jamais conferindo estatuto de verdade absoluta a seus enunciados, considerando-os como meras hipóteses de trabalho úteis no âmbito terapêutico. Nossa hipótese é a de que justamente por não estar preocupado em fazer ciência, mas sim em tratar seus pacientes, Groddeck teve acesso a descobertas e constatações para as quais a medicina moderna ficou cega precisamente por passar, a partir do século XIX, a buscar uma inserção no campo das ciências. Veremos então, a seguir, quais as contribuições que podemos extrair do pensamento groddeckiano com vistas à construção de um modelo de cuidado em saúde capaz de ultrapassar os impasses da biomedicina, concebendo o adoecimento em toda a sua complexidade e indo ao encontro das já citadas demandas por um cuidado integral. 99 3. PROPOSTAS GRODDECKIANAS PARA A SUPERAÇÃO DE IMPASSES DA BIOMEDICINA Consideramos este capítulo o núcleo de nossa pesquisa. No primeiro segmento, nossa intenção foi a de apresentar as origens históricas e a filiação teórico-conceitual bem como os modos contemporâneos de manifestação daquilo que temos chamado de “impasses” ou “limites” experimentados pelo modelo biomédico. Nosso propósito era o de explicitar os processos ocorridos na fronteira entre teoria e prática que produziram os referidos impasses, com vistas a preparar o leitor para as propostas de superação desses limites que serão descritas no presente capítulo. Não obstante, tais propostas só poderiam ser vistas como coerentes e plausíveis se o leitor estivesse familiarizado com o pensamento de Georg Groddeck. Em vista disso, no capítulo anterior buscamos estabelecer as coordenadas essenciais das teses do autor para que o leitor não chegasse incauto a este capítulo e pudesse perceber a vinculação entre as propostas groddeckianas e seu pensamento como um todo. Cremos, portanto, ter cumprido as etapas preliminares necessárias para o alcance do objetivo principal de nossa pesquisa que é investigar, na obra de Georg Groddeck, proposições do autor que possam contribuir para a construção de um novo modelo de cuidado em saúde capaz de superar alguns dos impasses enfrentados pelo modelo biomédico. Neste capítulo, portanto, apresentaremos os postulados e pontos de vista que encontramos na obra groddeckiana que podem servir como alternativa para pensarmos um tipo de cuidado em saúde que seja capaz de ultrapassar determinados aspectos do modelo biomédico, como o organicismo, a concepção da doença como entidade patológica, a cisão entre corpo e psiquismo, dentre outros fatores que denunciam a ineficácia dessa racionalidade médica na compreensão e no tratamento de inúmeros problemas de saúde. 3.1 O objeto do tratamento é o doente e não a doença Como vimos no primeiro capítulo, o traço mais marcante da medicina moderna é sua tendência em buscar se desvincular do âmbito da práxis para se 100 constituir como uma ciência natural, a exemplo da física e da química. Aliás, a utilização dos mesmos modelos conceituais dessas disciplinas seria supostamente a fiança que garantiria a medicina no clube seleto das ciências positivas. No entanto, a transição do estatuto de práxis para o de ciência demandará da medicina uma mudança igualmente drástica na parcela da realidade que lhe servirá de objeto. A medicina enquanto práxis se constitui a partir de um laço social entre um sujeito que sofre e que endereça suas queixas a outro que é autorizado por uma comunidade a curar. Porém, para ser alocada na categoria de ciência, a medicina precisará de um objeto de estudo mais palpável e preciso, bem como universalizável,. Em função disso, o sujeito que sofre cederá lugar a um objeto abstrato criado a partir de suas queixas e sintomas, o qual será tratado com a máxima concretude possível, a saber: a doença. Assim, a medicina que outrora se posicionava socialmente como uma prática cultural destinada ao tratamento e à cura de pessoas que sofrem, passa a ser vista como uma ciência das doenças, ou uma ciência que elabora métodos e técnicas para a eliminação das doenças. Groddeck, muito antes de se tornar um adepto da psicanálise, já expunha suas objeções a essa transformação da medicina em ciência das doenças. Numa carta endereçada a um professor de medicina de Berlim, do qual não se menciona o nome, o autor faz severas críticas à formação médica de sua época. A carta data de 1895, o que a situa no período em que a referida transformação estava em processo. Já naquela época, Groddeck nota o quão despreparados saíam os médicos das universidades, pois, do seu ponto de vista, a universidade parecia formar mais eruditos do que médicos de fato. A ênfase dada ao conhecimento das doenças e ao diagnóstico fazia do estudante de medicina um especialista na descrição de sintomatologias e quadros clínicos, com um conhecimento paupérrimo acerca de como verdadeiramente tratar: “No caos inextricável, os conhecimentos se confundem na cabeça do jovem médico, o impedem, o limitam. Ele se acha perplexo diante do doente que lhe implora salvação. Conhece certamente a doença, conhece até mesmo a saída, mas não conhece a ajuda.” (GRODDECK, 1994, p. 96) Naquele momento, o principal alvo da crítica de Groddeck era a tendência das universidades de formarem profissionais capazes de recitar de cor os sinais e sintomas da maioria das patologias bem como seus estágios de evolução e até mesmo os procedimentos necessários para intervir junto ao doente. Não obstante, 101 faltar-lhes-ia o que os americanos chamam de “know-how” ou o que os franceses denominam de “savoir-faire”, ou seja, um saber-fazer, conhecimento prático que lhes permitiria efetivamente realizar suas intervenções. Para Groddeck, a transformação da medicina em ciência das doenças fez com que a formação médica não mais privilegiasse o aprendizado de funções de ordem prática como a realização de curativos, massagens etc., aprendizado que, conquanto não fosse suficiente para garantir a formação de um médico competente, pelo menos forçava o estudante a desenvolver habilidades práticas relacionadas ao cuidado direto com o enfermo. Atualmente, o mesmo mote utilizado por Groddeck para criticar a formação médica de sua época pode nos ser vantajoso para pensarmos a formação médica atual. Com efeito, a medicina, na busca por se manter mais próxima possível das ciências naturais, tem cada vez mais dado ênfase ao conhecimento, ao saber, às evidências como principais matérias-primas de trabalho do médico e não o cuidado, a ajuda e a interação direta com o paciente. Assim, grande parte dos profissionais produz seus diagnósticos e escolhe tratamentos não a partir de uma compreensão singular da condição de saúde do indivíduo, mas sim baseada em protocolos preestabelecidos, ou seja, em conhecimentos produzidos a priori. Ao profissional cabe unicamente a tarefa de aplicar aquele saber elaborado alhures, o que é radicalmente diferente do que Groddeck propõe como sendo aquilo que o médico deveria realizar, ou seja, a ajuda, o saber-fazer, o qual está intimamente articulado ao conhecimento do doente como um ser singular. Outra denúncia feita por Groddeck diz respeito à utilização que se faz dos doentes na formação médica, a saber: como casos que servem de exemplo e ilustração para o conhecimento das doenças. Não se ensina o estudante a encarar o doente como alguém que deve ser ajudado, mas como o exemplar de determinada patologia que o aluno deve conhecer: “O interesse do caso é determinante para sua ação e seu ensinamento, não o interesse da pessoa.” (GRODDECK, 1994, p. 98). Assim, desde a universidade, o estudante passa a lidar com os doentes que se lhe apresentam como exemplos vivos que vão enriquecer seu saber. Ocorre, assim, uma inversão: o doente passa a servir à ciência e não a ciência ao doente. Evidentemente, essa inversão gerará um impasse no âmbito do cuidado em saúde, pois haverá na melhor das hipóteses um conflito de expectativas. Enquanto 102 do lado do profissional de saúde o interesse está na doença que supostamente o paciente traria consigo – pois na biomedicina a doença é tomada como um ente (CAMARGO JR., 1997) – e no conhecimento que se pode extrair daquele novo caso, no pólo do paciente as expectativas são outras. O paciente deseja ser curado, ou pelo menos tratado, e espera encontrar no profissional de saúde o desejo de lhe ajudar. Na medida em que as expectativas não se recobrem, não se estabelece o objetivo milenar do encontro entre o que sofre e aquele indivíduo autorizado a curar. A relação entre médico e paciente passa a ser marcada por outros matizes. A busca por encontrar a doença no doente leva o profissional a ficar restrito à dimensão do diagnóstico e a limitar seu trabalho ao fornecimento de uma etiqueta. Como do lado do paciente o desejo de ser tratado permanece, a enunciação do diagnóstico é não raro confundida com o próprio tratamento de modo que o doente passa a se satisfazer com o rótulo fornecido, não atentando para o fato de que aquele que em tese deveria lhe tratar não o fez. O próprio Groddeck constatara essa confusão entre diagnóstico e terapêutica: ... o público quer um diagnóstico e sente-se bem ao receber uma etiqueta. As poucas pessoas que rejeitam a plaquinha com o nome da doença, indicando o mal que as afeta, que só querem saber de sarar e não encaram sua doença como uma distinção concedida por Deus, essas pessoas não se levam em conta na clínica geral. (GRODDECK, 1992, p. 138) A multiplicação dos meios farmacológicos de tratamento intensificou ainda mais a tendência da formação de médicos conhecedores e não curadores. Na medida em que a ingestão de medicamentos passa a ser tomada como o método terapêutico principal, a ação terapêutica do profissional passa a ser apenas a de fornecer uma prescrição medicamentosa. Um agravante é que grande parte dos profissionais sequer possui conhecimento de como foram feitos os medicamentos que prescreve e quais os estudos e procedimentos em que sua eficácia está fundamentada. Tornam-se, assim, como dissemos anteriormente, meros técnicos aplicadores de um conhecimento a priori. O vocabulário popular registra expressões que ilustram o modo como os usuários se relacionam com o profissional de saúde na biomedicina. É comum ouvir frases do tipo: “Vá ao médico para saber o que você tem.” ou “O médico vai te passar um remédio”. Assim, o imaginário popular acerca da medicina passa a ser 103 construído colocando o médico na posição de um guru que consegue descobrir a doença que cada um tem e o remédio certo para curar cada patologia. Groddeck (1994) nos mostra, porém, que, conquanto aparentemente as pessoas se contentem com o diagnóstico e a prescrição de uma receita médica, o desejo de ser cuidado e tratado, que, para o autor, é uma realidade presente na própria gênese de uma doença, não se satisfaz com o laudo médico. Esse desejo reivindica escuta, olhar empático e, principalmente, a experiência de se sentir cuidado, que a biomedicina, em geral, se nega a fornecer, delegando ao medicamento a responsabilidade por tratar. Aqueles que conseguem discernir sua insatisfação e reconhecer essa limitação do modelo biomédico vão procurar a acolhida e o cuidado buscados em outras racionalidades médicas, como as medicinas orientais e a homeopatia, as quais, por estarem assentadas em modelos que concebem o adoecimento numa perspectiva de integralidade, tendem a satisfazer aquelas demandas 11. No entanto, há uma quantidade enorme de usuários que sequer percebem sua insatisfação latente, de modo que a única forma de manifestarem-na é produzindo sempre novas queixas e freqüentando os serviços de saúde várias vezes por semana. Tais comportamentos podem ser vistos como os signos de uma esperança na mudança do modelo. A mudança, no entanto, não ocorrerá através de transformações que fiquem restritas apenas ao nível puramente prático do cuidado em saúde. Não se trata de ensinar os médicos a escutarem mais seus pacientes, a aumentarem a duração das consultas ou a não limitarem sua atuação ao diagnóstico e ao provimento de uma receita. Se novas práticas não estiverem fundamentadas numa compreensão teórico-conceitual distinta da tradicional, qualquer mudança será instituída com características meramente protocolares. É esse o ponto de vista de Groddeck. Para o autor, os impasses enfrentados no domínio prático são resultantes não de uma má prática médica ou de incompetência por parte dos profissionais. Pelo contrário, tendo em vista o modo como foi formado, o médico moderno, ao dirigir seu olhar para a doença e não para o doente, estaria mostrando-se um exímio profissional, 11 Atualmente, essa busca por outros modelos de cuidado em saúde não tem ficado restrita apenas a usuários de maior poder aquisitivo que podem pagar por consultas particulares de profissionais que atuam a partir de racionalidades distintas da biomedicina. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem investido na oferta de medicinas complementares e alternativas, o que facilita o acesso da população de baixa renda a tais práticas de saúde. 104 pois é justamente essa modalidade de olhar que foi gradualmente sendo construído ao longo de sua formação. Portanto, para que essa perspectiva seja transformada e o foco passe a ser o doente e não mais a doença, é preciso uma mudança na formação do médico e nas diretrizes que fundamentam essa formação. Na grande maioria dos cursos de medicina, como nos demais cursos da área da saúde, o estudante primeiramente tem acesso às chamadas “Disciplinas Básicas” como Anatomia, Biofísica, Bioquímica etc. e só depois às disciplinas da área profissional como Clínica Médica. Em outras palavras, supõe-se que o aluno tenha que assimilar num estágio inicial uma série de conteúdos relativos ao funcionamento do corpo humano e aos elementos que o constituem para, num momento posterior, verificar a fidedignidade do que foi aprendido através da experiência viva do doente. Nesse sentido, a vivência prática do estudante junto aos pacientes passa a servir, na formação médica, como uma etapa de aplicação ou de confirmação da teoria aprendida em sala de aula. Considerando que os conteúdos aos quais o aluno tem acesso nas disciplinas básicas são de cunho universal, ou seja, dizem respeito a um funcionamento padrão do corpo humano e a um modo geral de apresentação das doenças, haverá sempre um choque entre teoria e prática quando o estudante for exposto à experiência real com os doentes. Com efeito, o aprendizado universal adquirido em sala de aula se encontrará com situações singulares de adoecimento, isto é, experiências com particularidades tais que as fazem constituírem-se como fenômenos únicos que correspondem apenas aproximativamente ao padrão. Em outras palavras, ao ser exposto primeiramente à teoria e só algum tempo depois à prática, o estudante tenderá a buscar na prática a exata correspondência com a teoria, empreitada na qual obviamente fracassará. Entretanto, o fracasso não será reconhecido como tal, sendo, em vez disso, recalcado, de modo que o descompasso entre a experiência existencial do adoecimento e o conhecimento teórico trazido pelo estudante será visto a partir da costumeira polarização ocidental platônica entre o imperfeito e o perfeito ou entre aparência e essência. O conhecimento teórico sobre a doença será visto como a essência escondida sob a aparência constituída pela vivência particular do doente. Logo, essa última tenderá a ser menosprezada ou, em alguns casos, até mesmo negada com vistas à afirmação da primeira. 105 A resolução desse impasse, do ponto de vista groddeckiano, passa por uma inversão na ordem da formação médica. Para Groddeck, no início o estudante deve ter contato com a prática, mesmo sem conhecimento algum de anatomia, fisiologia e patologia. Aliás, sobretudo sem possuir esses conhecimentos! O raciocínio do autor é simples: ao ter contato primeiramente com os doentes, o estudante poderá verificar a utilidade dos conhecimentos teóricos que posteriormente deverá aprender em sala de aula. Sua relação com esses conhecimentos passará a ser marcadamente utilitária e instrumental e não dogmática como ocorre no modelo tradicional de formação. O aprendizado teórico será visto por ele como uma caixa de ferramentas que o auxiliará no tratamento dos pacientes. Na formação tradicional, em muitos casos a teoria se constitui como uma verdade à qual a experiência tem que se adaptar, entre outros fatores pelo fato de o estudante ter acesso à teoria antes de conhecer a experiência. Ao se instituir a experiência com os doentes como etapa inicial da formação médica, a prática passa a se constituir como o fundamento sobre o qual o olhar do profissional será formado. Seu parâmetro será a experiência real daquele que lhe reivindica ajuda, passando seu foco a ser a experiência do adoecimento e não mais a patologia. Na sala dos doentes, ele [o estudante] deve primeiro ver para que servem os conhecimentos. Mostrem-lhe no ser humano como dói quando uma perna é fraturada; mostrem-lhe como é difícil curar um membro esmagado e depois enviem-no lá, para que aprenda no cadáver como são formados os ossos que a vida quebrou, como se espalham os músculos, os nervos e as artérias lacerados. Mostrem-lhe no doente como é terrível contorcer-se com a hidropisia na ofegante necessidade de respirar, como é difícil aliviar a dor e depois mandem-no ao laboratório e deixem-no praticar a química, tanto quanto for necessário. Mostrem-lhe quão devastadoras e furiosas são a difteria e a tísica, ensinem-lhe quão penoso é reprimir as epidemias, e depois deixem-no olhar ao microscópio os sinistros inimigos do gênero humano. Só assim ele aprenderá a ser um médico. Somente assim ele se tornará um prático e não um erudito, somente assim ele vai poder ajudar. E o médico deve ajudar, ajudar e unicamente ajudar. E nas escolas de médicos ele deve aprender isso, somente isso. (GRODDECK, 1994, p. 99-100) 3.2. Diagnóstico do ser humano e não apenas do corpo 106 No primeiro capítulo, vimos que a ênfase da biomedicina no diagnóstico é decorrente, sobretudo, de aspectos herdados da medicina das espécies. Ao conceber a patologia como uma entidade que supostamente se apossaria do indivíduo, a nascente medicina científica do século XIX ensejou a transformação do diagnóstico numa etapa de extração de uma verdade escondida no interior do corpo doente. Assim, a terapêutica que, até então, ocupava o lugar central da atividade médica, é colocada em segundo plano. Como afirma Tesser (2008, p. 352), “é na direção do diagnóstico que se orienta o fluxo de operações cognitivas na biomedicina”. Por outro lado, o advento da anatomia patológica no final do século XIX, que produziu um júbilo entre os profissionais pela possibilidade de se correlacionar sintomas a lesões, bem como o desenvolvimento da microbiologia e da genética, operou uma redução do diagnóstico aos achados dos exames físicos. Todas as demais contingências que incidem sobre a vida do indivíduo passam a ser apenas relativamente levadas em conta na formulação do diagnóstico médico. E na medida em que o tratamento é planejado com base no diagnóstico, se esse último fica restrito àquilo que se processa no corpo, não fazendo referência aos fatores psicológicos, sociais etc., logo o tratamento sequer tocará naqueles elementos que, conquanto não estejam no corpo, podem estar produzindo ou mantendo o adoecimento. Ratificando nosso argumento, Tesser (2008) diz que: [...] operou-se pela via do saber, da interpretação, um movimento de focalização da atenção na doença, como entidade distinta e alheia ao sujeito. Operou-se um desvio específico do olhar, que deixou de lado a vida do sujeito e seu adoecimento nas suas condições de existência (sociais, econômicas, emocionais, ambientais, espirituais), e apresentou as categorias fisiopatológicas, fatores etiológicos e de risco com que trabalha a biomedicina (TESSER, 2008, p. 353). Ademais, a submissão da terapêutica ao diagnóstico na biomedicina motiva uma perigosa negligência da singularidade de cada sujeito. Com efeito, ao considerar as doenças como entidades que possuem uma existência concreta e fixa, o modelo biomédico está implicitamente afirmando que a cólera que afeta Pedro é a mesma que afeta Paulo. Tratar-se-iam apenas de lócus de manifestação diferentes da doença, mas a patologia em ambos os casos seria a mesma. Nesse sentido, dada a subordinação do tratamento ao diagnóstico, o tratamento para cólera deveria 107 ser o mesmo para qualquer indivíduo que apresentasse a doença. A experiência, não obstante, revela os limites dessa lógica. Ainda que apresentem sintomas que, por serem semelhantes, levem o médico a fazer um mesmo diagnóstico, tanto Pedro quanto Paulo terão experiências únicas de adoecimento. Em decorrência, sujeitos particulares, imersos numa história e condições de vida específicas, serão tratados a partir de parâmetros universais, o que, obviamente, resultará em ineficiência das ações de saúde e insatisfação por parte dos pacientes. Temos, portanto, dois impasses enfrentados pelo modelo biomédico em relação à temática do diagnóstico. O primeiro diz respeito à prioridade concedida a esse processo e não ao tratamento, o que torna esse último dependente das etiquetas diagnósticas universais que, por sua vez, não se coadunam com a singularidade de cada experiência de adoecimento. O segundo se refere ao reducionismo organicista que subjaz ao diagnóstico feito na biomedicina, que enfatiza aspectos de ordem fisiopatológica e negligencia as demais condições de vida e a história do indivíduo. Na obra groddeckiana, encontramos algumas idéias fecundas para pensar a superação desses impasses. No tocante ao primeiro, veremos as reflexões que Groddeck elabora sobre a função e o significado do diagnóstico e, quanto ao segundo, conheceremos o tipo de diagnóstico que Groddeck concebe como sendo mais útil e fidedigno do que o realizado na biomedicina. O autor considera o diagnóstico da doença como um procedimento não apenas dispensável como também muitas vezes danoso para o doente e para o tratamento. Seu argumento repousa na tese de que, tendo em vista as pretensões daquele que elabora o diagnóstico de identificar a doença, trata-se, nesse processo, de uma espécie de “estupro” da realidade. Ao primar pela identificação da entidade patológica da qual o indivíduo padeceria, aquele que diagnostica é forçado a excluir do seu campo de visão toda a complexidade do real da qual a patologia é apenas um fragmento: Não é possível estabelecer um diagnóstico completo, que esgote todos os aspectos, e só o desejo de fazê-lo já implica o maior risco que o médico corre, o de superestimar sua capacidade. Insistimos em dizer que o diagnóstico sempre deve ser questionado pelo médico, que este nunca deve se esquecer de que muitas vezes o diagnóstico é insuficiente ou 108 errado, e que ao estabelecê-lo corre o risco de considerar a doença como uma situação, quando na verdade ela é um processo. (GRODDECK, 1992, p. 247) Groddeck, portanto, não está negando a relevância ou a utilidade do diagnóstico; só está dizendo que o diagnóstico cujo foco é exclusivamente o reconhecimento da doença consiste num procedimento assaz equivocado na medida em que não contempla aspectos de suma importância para o tratamento, como, por exemplo, o modo como doente e médico se relacionam, a forma como o paciente formula sua demanda de cura, etc. Em outras palavras, o diagnóstico tal como é concebido na tradição biomédica não funcionaria como um auxílio para o tratamento. Tratar-se-ia de um procedimento meramente formal e produtor de etiquetas clínicas. Groddeck afirma que Somente três fatos merecem ser observados, para o início do tratamento: o ser humano que vai ser tratado, sua busca de ajuda e a sua relação com a pessoa a quem pede ajuda. São esses os objetos da investigação diagnóstica; em contrapartida, todo o resto é secundário. (GRODDECK, 1994, p. 256) A crítica de Groddeck à violência reducionista que estaria subjacente ao diagnóstico da doença está fundada no modo como o autor concebe o ato de conhecer a realidade. Diferentemente da tradição moderna, Groddeck não pensa o conhecimento como espelho do real, mas como mutilação, erro e vaidade. Para ele, todo ato de conhecer pressupõe um recorte arbitrário feito na realidade, um isolamento de determinados fragmentos da natureza do todo no qual estavam concatenados: “Toda contemplação e especialmente toda reflexão científica representa uma violação da verdade. Para contemplar ou analisar algo, é preciso dissociá-lo da totalidade e eliminar o contexto.” (GRODDECK, 1992, p. 116). Em decorrência, trata-se sempre de um processo que está baseado no engano de que é possível conhecer sem que esse ato implique uma violência contra o real. Para Groddeck, o conhecimento verdadeiro seria aquele que pudesse contemplar todos os elementos e todas as relações existentes na natureza, tarefa impossível ao homem. Nesse sentido, todo conhecimento é manco, falho e o máximo que podemos fazer é reconhecer isso e não cairmos no equívoco de pensar que as mutilações que fazemos no real constituem-se como sua essência. 109 Foi com base nessa idéia que Groddeck interpretou a noção de recalque (Verdrangung, em alemão) proposta por Freud. Para o pai da psicanálise, esse termo significava a exclusão de uma determinada representação mental do consciente mediante a retirada do afeto vinculado a ela. Groddeck, todavia, não pensará o recalque em termos metapsicológicos. Para ele, Freud teria tido acesso a somente uma dimensão do recalque, não atentando para o fato de que esse processo de retirar impressões e representações de nosso campo de consciência pode ser visto quase como um sinônimo da própria vida, pois faríamos isso o tempo todo, não apenas para nos defendermos de representações intoleráveis. “No fundo, o essencial que o homem faz é recalcar: a sua vida é esta.” (GRODDECK, 1994, p. 179). Nossa própria experiência perceptiva do mundo está condicionada, para Groddeck, pela efetuação de ininterruptos recalques, de constantes retiradas de percepções de nossa consciência. Do contrário, teríamos acesso a uma vivência da realidade que excederia nossa capacidade de percepção e assimilação. A propósito, essa espécie de seleção entre aquilo que se tornará consciente e o que será recalcado só raramente é feita pelo ego, ou seja, não possui como critério a razão. É o Isso que, baseado em critérios absolutamente singulares (Groddeck diria caprichosos) organiza nossa experiência do mundo: Na verdade, enormes massas vindas do exterior afluem continuamente até nós: elas nos destruiriam se não fosse o isso que as ordena; o que é bom para nós ele utiliza para o nosso ego, e o que não é bom ele recalca, utiliza para outros fins, de vez em quando para o adoecer. (GRODDECK, 1994, p. 180) Se, portanto, no que poderíamos chamar de epistemologia groddeckiana, o conhecimento no sentido estrito do termo consiste numa empreitada impossível, pois pressupõe o saber acerca de todas as relações existentes no real, logo o diagnóstico, na medida em que pretende ser um processo de investigação e conhecimento, estará sempre fadado ao fracasso. Não obstante, para o autor, tal constatação não implica necessariamente o abandonar-se a uma atitude de resignação frente à impossibilidade de conhecer. Para Groddeck, devemos fazer o máximo a que nossa percepção limitada e violentadora do real permite: “Decerto, não lhe resta outra coisa, se quiser tratar, senão cometer este erro inevitável, mas você tem de saber que é um erro, do contrário o seu conhecimento é igual ao do índio mais primitivo.” (GRODDECK, 1994, p. 257). 110 Foi dessa forma que o autor trabalhou na construção do conceito de Isso, como vimos no capítulo precedente. Dada a impossibilidade de fundar uma noção indiscutível de indivíduo em função da inexistência de fronteiras absolutas no real, se quisermos operar com o conceito de uma totalidade individual, devemos inevitavelmente estabelecer de maneira consciente, deliberada e arbitrária seus limites. E essas fronteiras devem ser capazes de contemplar o máximo possível de elementos e relações – era, fundamental, para Groddeck, por exemplo, conceber um indivíduo cuja existência psíquica não ficasse restrita à consciência. Destarte, o conceito de Isso não é pensado como um reflexo da totalidade individual que existe efetivamente na natureza. Trata-se de um conceito operatório, uma mera ferramenta teórica em cuja elaboração já se reconhece sua falibilidade e inadequação. Da mesma forma Groddeck pensará o diagnóstico. Considerando que esse procedimento jamais atingirá aquilo que em última instância pretende, isto é, o conhecimento de todos os aspectos e relações existentes no adoecimento, o máximo a que poderíamos chegar seria à elaboração de um diagnóstico que contivesse o maior número possível de variáveis, diferentemente do diagnóstico feito a partir do modelo biomédico que se atém apenas às dimensões anatômica, fisiológica e biológica. A esse tipo mais amplo de diagnóstico Groddeck costumava chamar de “diagnóstico do ser humano” ou “diagnóstico do homem”. Para a realização desse diagnóstico mais amplo, é preciso assumir um pressuposto específico em relação ao significado da doença. Na biomedicina, concebe-se o adoecimento em termos estritamente mecanicistas: a enfermidade é um efeito resultante de uma ou mais causas. Para o diagnóstico do ser humano, a doença deve ser entendida como uma expressão do indivíduo. Nessa perspectiva, a enfermidade não é pensada como uma mera consequência de determinados eventos, mas como produto de uma vasta rede de relações. Nesse sentido, só se pode pensar um diagnóstico que vise o ser humano e não apenas o corpo se o adoecimento não for concebido numa perspectiva mecanicista. O diagnóstico do ser humano também está fundamentado na tese groddeckiana de que o médico deve tratar o ser humano e não o doente. Ao se concentrar no fato de que aquele que o procura está doente, o médico automaticamente reduz ainda mais sua percepção para se dirigir apenas àquilo que 111 no discurso do indivíduo tem relação imediata com a doença. Assim, o profissional exclui do seu campo de visão toda a imensidão de fatores que está por trás do estar doente e dos quais esse estado é a expressão. Groddeck propõe, então, que o médico deva fornecer ajuda ao ser humano que a ele recorre e não ao estado doentio em que ele se encontra. Se entendermos a doença na perspectiva groddeckiana, isto é, como uma expressão do Isso, ao se eliminar somente o estar doente e deixar intacto o ser humano, o indivíduo perderia justamente o único modo possível que havia encontrado até então para se manifestar. Na falta daquele, talvez procure outro até mais grave... Para diagnosticar o ser humano para-além do estar doente, em primeiro lugar o médico não deve limitar seu olhar ao corpo; deve realizar um estudo completo do indivíduo, atentando para o que ele tem de comum em relação a outros e o que lhe é singular. O profissional deve examinar “sua figura e a forma dos seus órgãos e partes, internos e externos, suas funções desde respirar, dormir, movimentar-se, digerir, pulsar o coração até falar, pensar, sentir.” (GRODDECK, 1994, p. 258). Em segundo lugar, o médico deve considerar tudo isso que o indivíduo sente e faz, voluntária ou involuntariamente, como sintomas que, do ponto de vista de Groddeck, não significam apenas indícios da existência de uma doença, mas sim linguagens que o Isso utiliza para se expressar: “... no conceito de sintoma não estão incluídos apenas a temperatura, a pulsação e os diversos sinais de doença, mas tudo o que o isso do doente mostra e o que o isso do médico é capaz de perceber, da forma do queixo às comoções profundamente secretas, das presentes situações ao passado mais longínquo” (GRODDECK, 1994, p. 228) Essa transformação que Groddeck opera na idéia de sintoma gera importantes conseqüências clínicas. Com efeito, ela faz com que a atenção do profissional de saúde não esteja voltada apenas para aquilo que, no indivíduo, indica as características do adoecimento. O médico é inevitavelmente levado a olhar para o paciente como um todo e dedicar atenção a todas as suas manifestações. Ao contrário do que se poderia pensar, ao propor esse novo conceito de sintoma, Groddeck não está adotando uma postura medicalizante, ou seja, que estende o alcance da esfera médica a aspectos individuais que originalmente não lhe são 112 pertinentes. Na verdade, o autor está fazendo precisamente o contrário. Vejamos por quê. Para Groddeck, saúde e doença não são estados individuais completamente distintos, pois ambos são formas de expressão do indivíduo, do Isso. A questão mais importante, portanto, para o profissional de saúde, não é a eliminação da doença, mas sim a compreensão acerca das razões pelas quais o indivíduo está se expressando de modo patológico. Para esse discernimento, não é suficiente um diagnóstico que tenha como foco os caracteres particulares da doença que se supõe habitar o corpo do doente. Será preciso considerar toda e qualquer manifestação do indivíduo como um índice para o entendimento de sua condição. Tudo aquilo que ele faz será visto como sintoma não da doença, mas do ser humano, do indivíduo que ele é e que, naquele momento específico, está se expressando pela via da doença. No texto “Da visão, do mundo dos olhos e da visão sem os olhos”, no qual Groddeck faz uma longa interpretação do significado simbólico dos órgãos visuais, o autor aborda a importância do diagnóstico amplo do ser humano como ferramenta essencial para o êxito do tratamento: Para o juízo médico e humano é muito significativo se a pessoa que sofre de algum mal da visão é um homem, uma mulher, uma criança ou um ancião, como também é importante saber quais são as condições de vida do paciente, quais são seus desejos e necessidades, como é o seu caráter, suas características pessoais, como é a sua constituição, e tudo que se possa descobrir sobre sua pessoa, seu consciente e seu inconsciente, para tratá-lo de forma adequada. Uma parte dos enfermos que oferece resistência a um tratamento baseado num diagnóstico anatômico irá melhorar ao se ampliar a maneira de diagnosticar. (GRODDECK, 1992, p. 249) Como se pode ver no início dessa citação, para a realização do diagnóstico do ser humano, Groddeck concebe como de suma importância o reconhecimento de dois aspectos do Isso aos quais nos referimos no final do capítulo anterior. Trata-se da bissexualidade e da ausência de temporalidade no indivíduo. Como dissemos naquele capítulo, para Groddeck, a doença amiúde pode expressar aspectos da masculinidade presentes na mulher e da feminilidade no homem ou mesmo a eterna criança que subjaz no adulto e o ancião que já vive no adolescente. Nesse sentido, o diagnóstico deveria necessariamente contemplar uma observação a respeito de como esses aspectos se manifestam no doente: “dos fundamentos do diagnóstico 113 faz parte a observação de quão ampla é a masculinidade da mulher que pede ajuda e a feminilidade do homem.” (GRODDECK, 1994, p. 261). No texto “O homem, não o doente, necessita de ajuda” (GRODDECK, 1994), Groddeck relata um caso de uma empregada doméstica que atendeu em seu sanatório. A moça sofria de dores no coração, acompanhadas de dores em outras partes do corpo e inchaço das pernas. Os exames físicos encontraram uma insuficiência no fechamento da válvula mitral e, a princípio, Groddeck se satisfez com esses achados, tratando a paciente apenas com repouso e digitalina via interna. No entanto, o tratamento só avançou de fato quando Groddeck passou a prestar atenção a determinados atributos físicos característicos do sexo masculino que a paciente apresentava. A observação desses aspectos levou Groddeck a atentar para os desejos masculinos que perpassavam os relatos da moça. Num dos relatos, ela lhe confidenciou que havia experimentado um amor por outra mulher, o qual “lhe atormentava o coração e a consciência” (GRODDECK, 1994, p. 261). Após essas conversas, Groddeck realizou um novo exame e verificou o desaparecimento do inchaço nas pernas, o retorno das menstruações (a paciente estava há um ano e meio sem tê-las) e a eliminação das dores. O relato completo do caso demonstra que os sintomas apresentados pela moça eram expressões de seu desejo de se tornar homem, o qual estava ligado à ligação homossexual vivida outrora. Ao poder se expressar pela via da fala nas entrevistas com Groddeck, ela pôde desincumbir o corpo da manifestação de suas aspirações masculinas. Diante disso, Groddeck se pergunta: “Não teria sido mais aconselhável que o médico, antes de ocupar-se como o nome da doença e com o tratamento com digitalina, tivesse observado esse sinal de masculinidade da moça?” (GRODDECK, 1994, p. 260). Esse exemplo citado por Groddeck demonstra a efetividade de um diagnóstico que não se restringe aos exames físicos e busca conhecer e discernir o ser humano para-além do doente. É óbvio que não estamos aqui convidando o leitor a subscrever integralmente os pontos de vista de Groddeck, como esse acerca da existência da bissexualidade no indivíduo. Nosso objetivo é mostrar que o autor propõe idéias interessantes para pensarmos uma saída para o impasse enfrentado pela biomedicina no que diz respeito à questão do diagnóstico. O exemplo da observação da bissexualidade na paciente citada serve-nos como a ilustração da necessidade de um diagnóstico que tenha como finalidade última a compreensão do 114 indivíduo em sua singularidade, que é outra maneira de lermos a proposta groddeckiana de um diagnóstico do ser humano. Preconiza-se, a partir das contribuições de Groddeck, um diagnóstico que, em meio a tudo o que o indivíduo expressa, não faça referência apenas a alguns aspectos corporais verificados através de exames, mas que perceba todas as suas manifestações como sintomas da totalidade individual, fornecedores de pistas para o entendimento do paciente em sua integralidade. 3.3 Compreensão e não combate à doença Como vimos no primeiro capítulo, a estrutura conceitual que orientou a formação da biomedicina foi a da racionalidade científica moderna. Vimos que essa última se instituiu numa relação de descontinuidade com o modelo de compreensão da realidade na Antiguidade e na Idade Média. Um dos traços mais patentes da racionalidade científica moderna que a distingue do modo de pensar anterior é a maneira como ela concebe as relações entre a razão e a natureza. Atribui-se um valor maior à razão, considerando o pensamento como capaz de organizar um suposto caos que existiria no mundo natural. A razão seria, assim, uma espécie de salvadora dos homens em relação à natureza, que deveria ser vigiada, controlada e dominada, pois, do contrário, manifestaria sua desarmonia. Em decorrência, a natureza adquiriu os contornos de uma inimiga do homem. Como herdeiro dessa racionalidade, o modelo biomédico concebeu as relações entre a medicina e a doença analogamente àquelas estabelecidas entre razão e natureza. As doenças se tornaram, então, as inimigas naturais do homem. As grandes pestes da Antiguidade e as representações sociais que se organizavam em torno delas já forneciam o pano de fundo necessário para pensar a enfermidade como o mal que vem desvirtuar a saúde humana. Com o advento da medicina das espécies e sua concepção da patologia como entidade que passa a existir no corpo do indivíduo, o imaginário construído sobre a doença se estabeleceu de vez sob o signo do medo e do ódio. Como vimos, as doenças passam então a serem pensadas como seres que existem na natureza e que devem ser combatidos e extirpados. “As doenças, legitimadas e objetivadas pela construção científica das entidades nosológicas (e dos riscos), converteram-se em inimigos naturais e, como 115 se tivessem vida própria, parecem estar, a cada paciente, sintoma e/ou exame, prestes a atacar.” (TESSER, 2009, p. 279) Para impedir o frágil ser humano de sucumbir ao adoecimento é que existiria o cuidado em saúde, que, tal como a razão, salvaria a humanidade das garras da selvageria natural. A tese que se pode depreender desse pensamento é a de que caso não houvesse a medicina científica, a espécie humana estaria inevitavelmente exposta ao risco de ser extinta. Trata-se de um raciocínio ambicioso e apressado, pois confere a um único tipo de racionalidade médica a capacidade legítima de curar os indivíduos. Conquanto em toda a história humana, as populações tenham elaborado modos particulares de cuidado em saúde, caso os indivíduos não aderissem às prerrogativas da biomedicina, ou seja, da medicina científica moderna, estariam perenemente sob risco. É essa a idéia pretensiosa e etnocêntrica que subjaz à biomedicina. É óbvio que não podemos negar a eficácia resultante da aplicação na saúde humana de muitas das tecnologias desse modelo. Não obstante, é também evidente que tais êxitos práticos jamais serão suficientes para considerálo como a única racionalidade suficientemente capaz de lidar com a saúde. A idéia de que a doença seria um mal proveniente da natureza, que, por colocar a frágil saúde humana em risco, precisaria ser eliminado, deu ensejo na biomedicina ao que Tesser chama de “obsessão pelo controle” (TESSER, 2009, p. 278). Trata-se da tendência de considerar o cuidado em saúde não apenas como salvador do homem já invadido pela patologia, mas também como o protetor dos indivíduos, que os impediria de ficarem doentes. Tesser (2009) mostra que o controle é também um traço que a biomedicina herdou da racionalidade científica moderna. Com efeito, a ciência moderna se concebe como destinada a controlar e prever fenômenos. Assim, a medicina teria a função não apenas de combater e eliminar as doenças já manifestas, mas de controlar determinados aspectos do indivíduo de modo a impedir o aparecimento da doença. A noção de “fator de risco” como condição que estatisticamente está associada a determinado tipo de doença contribui para que a obsessão pelo controle seja assumida como postura não só pela medicina como também pelos próprios usuários dos serviços de saúde. Assim, se o indivíduo assiste na televisão à notícia de que uma pesquisa médica comprovou a associação entre leite de vaca e algum tipo de câncer, ele é imediatamente levado a pensar em parar de tomar leite, ou seja, a fazer uma gestão 116 controladora do risco a que pode estar exposto, sem levar em conta a complexidade de fatores cuja interação está presente no aparecimento de um câncer. Os impasses a que essa atitude controladora e beligerante da biomedicina leva são vários. A tendência a lutar contra a doença a qualquer custo, sem atentar para a função que ela está desempenhando na vida do indivíduo costuma fazer da iatrogenia um fator quase sempre presente nas intervenções médicas, pois as tecnologias utilizadas na busca ansiosa pela extirpação da patologia frequentemente geram efeitos colaterais, os quais, não raro, acabam dando origem a novos problemas de saúde. Por outro lado, a obsessão pelo controle contribui para o processo de medicalização, que diz respeito à entrada gradativa de condições e aspectos individuais no âmbito do cuidado em saúde, sendo que originalmente tais situações não pertenciam à esfera médica. Outra consequência da postura beligerante e controladora é a perda de autonomia do paciente que passa a ceder paulatinamente parcelas cada vez maiores do cuidado de si para serem geridos pelo campo médico, considerando que são os profissionais de saúde quem detêm a solução para todos os males da existência. Cremos ter demonstrado que esses impasses vivenciados pela biomedicina, os quais têm levado essa racionalidade médica a perder espaço para as medicinas alternativas, são decorrentes de uma postura de combate e luta contra a doença. Groddeck, por seu turno, concebe esse posicionamento como inevitavelmente direcionado ao fracasso, pois obscurece o fato de que não se pode dissociar o doente do que ele expressa como doença. Ao atacar a enfermidade, a biomedicina toma como pressuposto que o indivíduo porta uma doença, ou seja, de que ele e a patologia são coisas separáveis e que, ao se intervir sobre ela, o indivíduo não sofrerá conseqüências. É claro que se perguntarmos à maioria dos profissionais se concorda com esse raciocínio, eles dirão que não. Todavia, é essa matriz de pensamento que organiza sua atividade cotidiana. Qual alternativa Groddeck propõe como contraponto à postura beligerante da biomedicina? Trata-se de sua concepção da doença como um fenômeno de expressão do indivíduo tal como o caminhar, o comer, o beber, o pensar etc. Isso significa que, para o autor, o adoecer é um ato de vontade, como os comportamentos a que nos referimos? Não. No capítulo anterior, vimos que 117 Groddeck não é partidário da noção de livre-arbítrio, ou seja, de uma concepção que postula que nossa consciência pode ser tomada como causa única e suficiente de nossos atos. Para ele, a crença no livre-arbítrio e o sentimento de sermos completamente livres em nossas escolhas são fenômenos presentes em todos nós, mas tratam-se de ilusões, engodos dos quais não podemos escapar, pois são produzidos pela nossa própria experiência de relação com o mundo. Entretanto, isso não significa que devamos levar nossa ilusão a sério. Em outras palavras, ainda que sintamos como se de fato possuíssemos um livre-arbítrio, devemos ter a consciência de que todos os nossos atos são causados: “... Sabemos, porque somos humanos, que não existe liberdade; acreditamos, porque somos humanos, que existe liberdade” (GRODDECK, 1994, p. 245). É essa idéia que impede que aloquemos Groddeck na categoria dos que defendem uma produção voluntária da doença: Não é a parte consciente, pretensamente voluntária do ser humano que decide sobre doença ou saúde, mas a ordem condicionada, necessária do isso que se torna doente ou sadio. Isto é um lugar-comum, pois ninguém supõe que o ser humano, com intenção consciente, escolhe voluntariamente o bacilo da tuberculose para ficar doente. (GRODDECK, 1994, p. 243) De fato, para o autor, a doença é da ordem da necessidade, assim como o andar, o falar, o ouvir, o comer etc. Nenhuma dessas ações é fruto de uma vontade livre e sem causas, como a tradição ocidental nos acostumou a pensar. Ora, o pensamento moderno nos familiarizou com a tese de que seríamos sujeitos autônomos, detentores de livre-arbítrio e que estaríamos imersos em um corpo que, diferentemente de nós, funcionaria de acordo com uma lógica pré-existente, manifesta na forma de automatismos cegos. Assim, teríamos controle voluntário sobre alguns comportamentos, principalmente aqueles que dependem da musculatura esquelética, como movimentar os braços e as pernas, comer, falar etc., mas outras ações seriam manifestas por nós à revelia de nossa vontade consciente, como por exemplo, a transpiração, a digestão e as demais funções orgânicas ligadas, sobretudo, à musculatura lisa. Groddeck, não obstante, considera essa divisão entre voluntário e involuntário como arbitrária e enganosa. É em função do desconhecimento das causas que nos 118 levaram a ter os comportamentos ditos voluntários que dizemos que eles são fruto unicamente de uma vontade livre e consciente. O mesmo não acontece com as ações involuntárias. Para essas, nós conseguimos encontrar os eventos que as produziram. Assim, por exemplo, como conseguimos atribuir as razões pelas quais o estômago digere os alimentos, não temos necessidade de incluir a digestão entre os atos voluntários. Tendo consciência, portanto, de que a separação que fazemos entre atos voluntários e involuntários está fundamentada no conhecimento ou desconhecimento das causas das ações, Groddeck dirá que, do seu ponto de vista, toda e qualquer manifestação humana é fruto da necessidade, isto é, um determinado comportamento expresso pelo indivíduo é a única manifestação possível de ser emitida por ele dentro das circunstâncias específicas em que o foi. Em outras palavras, o indivíduo não possui a escolha de expressar-se de maneira diferente: “O homem é em tudo condicionado pelo mundo exterior e pelo mundo interior; não existe em sua vida um único momento em que lhe tenha sido dada oportunidade de livre-escolha, de livre-arbítrio.” (GRODDECK, 1994, p. 237) Essa tese está na base da concepção de Groddeck acerca da doença, o que pode parecer contraditório, pois ao mesmo tempo em que o autor afirma que a enfermidade, ao contrário do que postula a biomedicina, não é uma entidade que se apossa do indivíduo ou uma mera anomalia fisiológica, mas uma expressão individual, Groddeck também diz que ela não é fruto da escolha ou da vontade. Trata-se de um paradoxo apenas aparente. Com efeito, ao pensar a doença como uma manifestação do indivíduo, Groddeck não está dizendo que o indivíduo enquanto sujeito causa a doença. O objetivo do autor é demonstrar a impossibilidade de se conceber o adoecimento sem vinculá-lo às condições e à história daquele conjunto de elementos e relações que objetivamos como sendo o indivíduo. Como vimos no capítulo precedente, o conceito de indivíduo em Groddeck é muito mais amplo do que o tradicional, pois contempla dimensões que estão paraalém do ego. É essa totalidade individual amplificada, o Isso, quem expressa a doença: “O ser humano, com tudo o que ele é, com o que lhe acontece e o que faz, é, no meu modo de ver, uma forma de manifestação do seu isso, o seu isso se 119 revela através dele.” (GRODDECK, 1994, p. 207). Ao contrário do que uma leitura apressada da teoria groddeckiana poderia levar a concluir, Groddeck não outorga ao Isso o livre-arbítrio que ele nega ao eu. Quando vemos o autor escrever frases do tipo “... seu Isso lhe deu um resfriado para impedir que você cheire alguma coisa” (GRODDECK, 2008, p. 94), não devemos crer que Groddeck esteja de fato pensando no Isso como um sujeito autônomo. Trata-se apenas de um estilo de escrita ao qual o autor se consagra, tendo em vista talvez permitir uma melhor compreensão por parte do leitor/ouvinte considerando esse já se encontra acostumado, pela tradição ocidental, a conceber as ações humanas como tendo um sujeito as produzindo. Outrossim, por acaso não há espaço no mundo ordenado, necessário, condicionado e condicionante do isso. O que parece casual, como, por exemplo, acidentes, infecções, ferimentos de guerra, pode-se provar, em cada caso isolado, através de um exame bastante paciente via psicanálise de Freud, que é desejado pelo isso; com esse propósito, quero novamente frisar que também o isso apenas aparentemente possui livre-arbítrio, onipotência, mas que, no final das contas, está sendo guiado pelas relações cósmicas. (GRODDECK, 1994, p. 243) Como viemos enfatizando desde o capítulo anterior, o Isso é um artifício criado por Groddeck para não prescindir da noção útil de indivíduo e, ao mesmo tempo, não restringir esse conceito à dimensão do ego. Em relação à doença, esse artifício é vantajoso, pois permite estabelecer um ponto de partida para pensá-la de um ponto de vista expressivo. Sem a noção de Isso como totalidade individual, o adoecimento estaria fadado a ser pensado como a expressão de relações entre múltiplos eventos no todo, o que faria da tentativa de compreendê-lo uma tarefa impossível, dada a infinidade de variáveis a que se teria que fazer menção. O conceito de Isso possui, assim, um valor pragmático interessante, pois Groddeck o concebe como sendo condicionado e aberto às relações do todo, ao mesmo tempo em que atribui a ele limites, os quais, para quem busca entender a enfermidade, funcionam como balizas que impedem que se perca na imensidão das relações presentes no todo. A doença é, pois, um modo de expressão do Isso assim como todas as demais manifestações humanas também o são. Não obstante, vimos no capítulo 120 anterior que, para Groddeck, a enfermidade é um tipo de expressão que o organismo só utiliza quando as vias saudáveis através das quais poderia se manifestar encontram-se indisponíveis. Em outras palavras, a doença é o último recurso empregado pelo Isso para se expressar. Ela é sempre um estado de exceção. Nesse sentido, se o profissional de saúde guia sua atuação clínica a partir da tese de que a doença é apenas um mal que faz o indivíduo sofrer e que deve, portanto, ser extirpada para dar lugar à saúde, do ponto de vista groddeckiano ele estaria prejudicando ainda mais o paciente, pois estaria eliminando a única via que esse encontrara para se revelar. A retirada forçada de uma lesão que acompanha determinado doente há 40 anos não significará simplesmente a remoção de um sintoma que o sujeito portava. A intervenção incidirá no nível da própria identidade do sujeito que fora organizada ao longo daqueles 40 anos tendo a lesão como um elemento constante e fixo. A atitude beligerante não leva em conta, por conseguinte, a função que a enfermidade exerce na vida do doente: ... acredito que seria bem melhor abandonar de vez a idéia do combate e convencer-se de que é mais aconselhável para o doente, o médico e as pessoas da nossa cultura, conceber a doença como uma providência necessária do Isso, oportunamente introduzida com finalidades determinadas e que decerto pode ser nociva para o ser humano como um todo. (GRODDECK, 1992, p. 136) Groddeck propõe, então, que a doença, antes de combatida, seja compreendida. Se o Isso só recorrer à linguagem da doença quando a da saúde está inviabilizada, logo é preciso compreender porque essa situação está acontecendo. Em outras palavras, as principais questões que o médico deve se fazer perante o doente é: Por que esse indivíduo está precisando dessa doença? O que o impede de se expressar por vias não dolorosas, saudáveis? Groddeck acredita que espontaneamente o indivíduo tenda a se expressar por vias salutares, de modo que a doença pode ser vista como a consequência de um bloqueio dessa espontaneidade por alguma razão: “Portanto, pode-se admitir que o Isso não recorra de bom grado ao recurso excepcional da doença, procurando retornar o mais breve possível às suas formas habituais de expressão na vida saudável.” (GRODDECK, 1992, p. 103). O médico deve, portanto, buscar discernir as razões que levaram o indivíduo a recorrer à doença, um procedimento que Groddeck costuma chamar de “interrogar o Isso” (GRODDECK, 2008, p. 97) e que na prática diz respeito à 121 observação criteriosa e a uma escuta atenta e acolhedora que não fique restrita àquilo que o paciente relata acerca do que vem sentindo corporalmente, mas que o convoque a falar de si da maneira mais abrangente possível. Tendo compreendido e ajudado o paciente a discernir os obstáculos que o impediram de se manifestar por vias saudáveis, obrigando-o a recorrer às veredas dolorosas da doença, cabe ao médico não buscar a eliminação da doença a qualquer custo. Para Groddeck, uma extirpação pura e simples da enfermidade pode resultar, de fato, no seu desaparecimento. Não obstante, não se pode considerar que o doente tenha sido verdadeiramente tratado, pois não se tocou na função que a doença desempenhava, ou seja, a ação de saúde não interveio sobre a gênese do problema: É claro que, na maioria das vezes, o caminho mais curto e mais fácil para ajudar é atacar a sua doença, mas não deve ser dessa forma; pois a doença é apenas uma forma de expressão do isso sofredor, que acentua em voz alta a sua doença, a fim de ocultar melhor ainda o seu segredo mais profundo. (GRODDECK, 1994, p. 258) Depois de “interrogar o Isso” e descobrir as motivações que o levaram a se refugiar na doença, trata-se agora de estabelecer um processo de convencimento do Isso. É preciso convencê-lo de que os perigos aos quais se julgara exposto e que estavam impedindo-o de falar a linguagem da saúde, ao serem compreendidos perderam a sua força destrutiva, de modo que a doença pode ser abandonada: “Cabe primeiramente provar ao Isso doente e teimoso que ele pode sair-se bem novamente, recorrendo às suas formas salutares de expressão.” (GRODDECK, 1992, p. 104) No entanto, para o autor, esse trabalho de convencimento do Isso não é um procedimento rápido e automático, resultante da simples conscientização das razões que levaram o indivíduo a adoecer. Aliás, não é nem mesmo necessário esboçar uma tentativa de convencimento do Isso em todos os casos. Para Groddeck, que, nesse ponto, seguia integralmente as indicações de seu mestre Schweninger, a grande maioria das doenças desaparece de maneira espontânea em função da força da tendência de cura que é imanente ao organismo. O tratamento médico não é indicado, portanto, para todo e qualquer adoecimento, mas apenas para aquele em 122 que é possível notar uma resistência do organismo à cura, a qual sobrepuja a própria tendência à saúde: Disse Schweninger: A grande maioria das doenças sara por si mesma, indiferentemente de serem ou não tratadas; se não me engano ele falou em 75%, que acho baixo demais; [...] Uma outra parte das doenças em geral não melhora, independentemente do tipo de tratamento adotado; pode-se avaliá-la em 15%. Restam 10% que dependem realmente do tipo de tratamento. – Não tem qualquer importância saber se esses números são exatos ou não, mas permanece o fato de que o tratamento raramente decide sobre sarar ou continuar doente. (GRODDECK, 1994, p. 218) As doenças que se encaixam no percentual de 25% ao qual Schweninger se referia são concebidas por Groddeck como aquelas em que há a presença de uma resistência. A idéia de que muitos doentes apresentam uma resistência ao tratamento veio a lume para Groddeck mesmo antes de o autor travar seu primeiro contato com a psicanálise. No entanto, o uso do vocábulo alemão Widerstand para se referir a esse elemento que se instituía como obstáculo à terapêutica é uma herança que Groddeck traz de sua inserção no campo psicanalítico. Com efeito, Freud se dera conta da presença de uma resistência à conscientização do material recalcado logo no início de sua atividade de psicoterapeuta, quando ainda empregava a hipnose e a catarse como métodos de tratamento. Aliás, foi precisamente a consideração da resistência, um dos elementos principais que fizeram Freud abandonar aqueles métodos e inventar a psicanálise. A técnica psicanalítica faria da resistência um objeto a ser trabalhado, não sendo tomada como um simples obstáculo, como o era para a hipnose e o método catártico. A originalidade de Groddeck foi ter notado a resistência presente não apenas nos adoecimentos psíquicos, mas também nas enfermidades orgânicas. Todavia, conquanto Groddeck tenha tomado o conceito de resistência de empréstimo da psicanálise, há uma diferença no uso que o autor fazia do termo e o modo como Freud e seus discípulos o empregavam. Para o pai da psicanálise, a resistência se expressava primordialmente através da dificuldade do paciente de recordar ou associar em seu discurso conteúdos provenientes do inconsciente, ou seja, elementos que foram recalcados e que, portanto, provocariam angústia ao serem trazidos à dimensão da consciência. 123 Em outras palavras, do ponto de vista psicanalítico, resistência é “[...] tudo o que nos atos e palavras do analisado, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente.” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1992, p. 458). Já para Groddeck, a resistência é uma força que dificulta não a abordagem do material recalcado, mas sim a tendência presente em todo organismo de curar-se espontaneamente. Em outras palavras, a resistência se expressa como uma vontade de permanecer doente que busca incessantemente opor-se à vontade de sarar. Para Groddeck, essas duas tendências estão presentes no organismo, de modo que a resistência se manifesta quando a disposição à doença é tomada pelo Isso como mais favorável à consecução de seus objetivos. “Em todos os seres humanos há duas forças trabalhando ininterruptamente, a tendência à doença e à recuperação, sendo que ambas se interpõem e se condicionam reciprocamente de forma bastante intricada.” (GRODDECK, 1992, p. 177). Como dissemos no capítulo anterior, a doença não raro constitui-se no único recurso que o indivíduo é capaz de utilizar para conseguir se expressar dentro de determinado contexto. Desde a infância somos expostos aos efeitos que o surgimento de uma doença provoca no ambiente, como as condições paradoxalmente vantajosas que o doente adquire e principalmente um aspecto peculiar às doenças orgânicas que é a capacidade de expressar e, ao mesmo tempo, ocultar uma determinada mensagem. Com efeito, ao se apresentar fenomenologicamente apenas como uma anomalia corporal, a enfermidade somática não levanta suspeitas aparentes sobre os conteúdos aos quais pode estar servindo como veículo de expressão. Analogamente, é como se, ao adoecer, estivéssemos escrevendo uma carta numa linguagem que não conhecemos, mas que só nós mesmos somos capazes de decifrar. Assim, conseguiríamos nos expressar através da doença ao mesmo tempo em que impediríamos os próprios destinatários da mensagem de lê-la. Caso o indivíduo necessite continuar vivenciando a mesma situação que ensejou o surgimento da doença, sendo forçado a utilizar a patologia como modo de expressão, a vontade de adoecer sobressairá sobre a tendência à cura, sendo a resistência a expressão dessa dinâmica: 124 [...] o Isso, tendo descoberto que é bem mais fácil transmitir uma mensagem através da doença que da saúde, persiste nessa atitude, escolhendo entre a suscetibilidade, um estado enfermiço passageiro ou doenças crônicas: até mesmo um bebê, que dispõe relativamente de poucos meios de expressão, sente que ficar doente é um meio infalível de exercer o poder. (GRODDECK, 1992, p. 104) Nesse sentido, o verdadeiro alvo do tratamento médico não deve ser a doença, mas sim a resistência do doente à cura, resistência que, por sua vez, é apenas a manifestação da existência de condições específicas que motivaram a eclosão e manutenção da doença como forma de solução. A terapêutica deve, portanto, buscar descobrir as razões que têm determinado a permanência da doença ou, em outras palavras, por quais motivos o indivíduo ainda recorre à enfermidade para se expressar. Evidentemente, essa tarefa só será possível de ser concretizada se o profissional de saúde colocar em primeiro plano o discurso do doente. É o próprio paciente quem fornecerá as pistas para o entendimento de sua resistência. Por conta disso, Groddeck preconiza que, caso o médico adote o método psicanalítico como recurso terapêutico para a investigação da resistência, ele deve evitar interpretações de sua própria lavra, isto é, deve permitir que o próprio doente decodifique seus sintomas e assim consiga chegar por si mesmo às razões que o tem levado a se aferrar à doença. Com efeito, interpretações propostas pelo médico podem servir justamente para o objetivo contrário ao tratamento, ou seja, como mais um meio de resistência. No trecho abaixo, Groddeck expõe de maneira didática o que, do seu ponto de vista, deve ser feito pelo médico nos casos que efetivamente demandam intervenção médica, ou seja, nos quais há a presença de resistência: Em primeiro lugar, [o médico] deve saber que o doente resiste. Então, assim como faz a pessoa que está procurando a agulha de olhos vendados, deve procurar descobrir a razão da resistência, com base em cada palavra, cada movimento, cada sinal de vida da saúde ou da doença, deixar que se manifeste toda a resistência, tudo o que há na consciência do doente, tudo que é resistência inconsciente e passível de ser conscientizada, e levar o doente a interpretar aquilo que é vegetativo ou impossível de ser conscientizado. O médico não deve fazer a interpretação: geralmente a sua interpretação é utilizada como novo meio de resistência... (GRODDECK, 1992, p. 179) 125 Mais uma vez reiteramos que nossa proposta aqui não é a de que a medicina deva, para superar os impasses que vivencia, adotar integralmente as teses de Georg Groddeck acerca da doença e do tratamento. Nosso interesse é o de demonstrar que as indicações desse autor fornecem aportes teóricos férteis para se pensar em possíveis soluções para aqueles impasses. No que diz respeito à superação da postura beligerante e controladora da biomedicina que, como vimos, gera uma série de problemas tanto no âmbito da eficácia dos procedimentos terapêuticos quanto no que concerne à satisfação dos usuários dos serviços de saúde, Groddeck aponta alguns caminhos frutíferos. O primeiro deles seria o entendimento da doença como um fenômeno de expressão do indivíduo, ou seja, de algo que decorre dele e não que o acomete. Essa compreensão levaria o profissional a reconhecer a indissociabilidade entre a patologia e o indivíduo que a manifesta. Esse reconhecimento, por sua vez, impediria a adoção de práticas beligerantes cujo foco fosse apenas a extirpação da doença, pois se a doença não é vista como algo “alienígena” que se apossa do indivíduo, mas sim como uma expressão da pessoa, logo, ao se atacar a doença, se estará combatendo também o doente. Groddeck propõe, então, que a doença seja abordada do ponto de vista da compreensão, de modo que o foco do tratamento passa a ser não mais a doença em si, mas o indivíduo e suas relações, complexo do qual a enfermidade é apenas o produto final. No tocante a isso, o autor vai ainda mais longe ao assinalar que um dos fatores principais que levam ao surgimento da doença é o uso vantajoso que se pode fazer da patologia em determinados contextos, o qual pode levar o indivíduo a prescindir da cura e se aferrar à enfermidade, dinâmica que Groddeck chamou de resistência. 3.4 A transferência na relação médico-paciente Um dos principais alvos de crítica ao modelo biomédico nos últimos anos tem sido a pouca ou mesmo nenhuma valorização da relação médico-paciente como um elemento que interfere diretamente na evolução do tratamento. A intermediação entre o profissional de saúde e o doente pelas novas tecnologias de diagnóstico e tratamento tem levado à perda gradual dos aspectos subjetivos que caracterizam o encontro terapêutico em qualquer tipo de medicina. A presença do médico como 126 uma pessoa que fornece cuidados tem cada vez mais cedido espaço aos objetos tecnológicos, sobretudo os medicamentos. Esse é um aspecto peculiar à biomedicina. Nas demais racionalidades médicas, a intersubjetividade presente na relação entre o profissional de saúde e o doente foi sempre levada em conta. O sonho de fazer da medicina uma ciência natural é o elemento que está na base desse esquecimento dos fatores subjetivos que permeiam o encontro terapêutico. Com efeito, a estrutura conceitual que estabelece as condições para que um conhecimento seja reconhecido como científico na tradição moderna pressupõe que a subjetividade deve ser rechaçada devido à alegação de que ela perturba a objetividade que deve caracterizar a postura científica. Nesse sentido, se pensarmos no encontro terapêutico dentro de uma concepção em que a medicina seja considerada como uma ciência, não encontraremos uma relação de confiança e de suposição de saber como ocorre nas demais racionalidades médicas. Teremos de um lado alguém que se impõe a tarefa de atuar cientificamente e do outro o paciente que, nesse momento, se torna objeto do conhecimento. A tarefa do médicocientista é a de extrair objetivamente o conhecimento acerca daquele que ali se constitui como seu objeto e de tratá-lo com a mesma objetividade. Evidentemente, trata-se de uma quimera, de um engano ao qual a medicina sempre estará fadada a cair na medida em que considere possível essa transformação de um encontro relacional humano em um procedimento científico. A subjetividade não é um elemento descartável da relação médico-paciente em função do fato de que o médico jamais conseguirá subtrair-se a si mesmo de modo a constituir-se num olhar limpidamente objetivo e de que o paciente, por sua vez, não pode encarnar-se plenamente como um mero objeto do conhecimento. Temos, portanto, inevitavelmente, não uma relação de conhecimento entre um sujeito e um objeto, mas uma interação afetiva entre dois sujeitos. Em geral as críticas que o modelo biomédico recebe acerca do tema da relação médico-paciente dizem respeito à existência nessa racionalidade médica da falta de consideração dos aspectos emocionais que se fazem presentes de maneira explícita no encontro terapêutico, como medos e ansiedades vivenciados pelo paciente, os quais, pela transformação da consulta médica num procedimento meramente mecânico, não podem ser expressos. Argumenta-se que tais elementos, 127 não sendo levados em conta, acabam incidindo de forma deletéria no curso do tratamento, de modo que se perde bastante em eficácia médica devido a essa percepção limitada do profissional, olhar que não alcança elementos daquela ordem. O ponto de vista groddeckiano vai além daquilo que se manifesta explicitamente na relação médico-paciente. Aliás, para Groddeck, aquilo que se presentifica de maneira visível no encontro terapêutico é apenas o efeito de uma rede de relações implícitas que acabam encampando o médico. É o que veremos a seguir. Desde a época em que atuava como auxiliar de Schweninger, Groddeck já se dava conta da importância que a personalidade do médico exercia no desenrolar do tratamento. Foram justamente aspectos dessa natureza os fatores que decidiram a eficácia do processo terapêutico empreendido por Schweninger com o chanceler Bismarck. O médico se colocava numa posição de autoridade inquestionável, tratando seu paciente com uma rígida disciplina. Para Groddeck, foi precisamente o modo schweningeriano de se portar junto a Bismarck e não propriamente as técnicas utilizadas pelo médico o que, de fato, ensejou a cura. Naquele momento, Groddeck ainda não se dava conta das razões pelas quais aquele posicionamento de Schweninger fora favorável à cura (GRODDECK, 1994). Sua única conclusão fora a de que a personalidade do médico era um elemento essencial no tratamento. Outra ocasião que levou Groddeck a notar a força exercida no tratamento por elementos subjetivos presentes na relação médico-paciente foi o episódio que relatamos no capítulo anterior em que os sintomas de mania de perseguição e dificuldade em respirar apresentados por seu pai desapareciam no momento em que o médico que cuidava dele adentrava o local em que se encontrava. Essa experiência prévia à entrada de Groddeck na psicanálise lhe forneceu as primeiras amostras daquilo que após a leitura dos textos de Freud, ele reconheceria como a manifestação da transferência, um fenômeno curioso que está presente em todas as relações humanas, mas que no campo específico da saúde desempenha um papel muito importante. A rigor, dentro da teoria psicanalítica, a transferência diz respeito à atualização na relação com o profissional de saúde de modos de se relacionar com o outro que o sujeito experimentou na infância. Esses modos de se relacionar com o 128 outro ficaram marcados na história do sujeito como uma espécie de estrutura que condiciona suas relações interpessoais. Nesse sentido, todas as relações atuais que o indivíduo estabelece com outras pessoas são mais ou menos condicionadas por essa forma de se relacionar estabelecida na infância e que persiste ao longo da vida como uma marca. A fenomenologia da transferência na relação entre médico e paciente se expressa tal como descrita de forma paradigmática por Freud, ou seja, como a introjeção da figura do médico para o circuito de fantasias do sujeito. Nessa dimensão, o médico virá a ocupar imaginariamente o lugar de pessoas significativas na vida do indivíduo, de modo que gradativamente o mesmo padrão de interação com o mundo que o sujeito estabelecia na vida fora do âmbito médico acaba sendo levada para o consultório. Freud concebia esse processo como sendo incitado pela entrada no tratamento e também como sua própria condição, considerando que só se pode intervir sobre a fantasia que fundamenta os sintomas dos quais o sujeito se queixa se essa fantasia se manifestar de forma concreta no presente da relação terapêutica. Conquanto Groddeck subscreva essa concepção de transferência e a utilize nos relatos de alguns de seus tratamentos, o autor constrói uma nova visão acerca do enlace transferencial que está diretamente associada à sua tese de que em todo organismo existem duas tendências opostas: a disposição à saúde e a disposição à doença. Seu foco parece ter se voltado não para a forma como se apresenta a transferência no contexto clínico, mas sim para os objetivos que levam o Isso, o indivíduo, a utilizar a transferência. Nesse momento, o conceito de Isso lhe é bastante relevante, pois permite a ele pensar a transferência não apenas como a atualização do universo de fantasias do sujeito no tratamento que ocorre à revelia de suas intenções conscientes, mas como uma ferramenta que o Isso usa para atingir aquilo a que em última instância tem como finalidade. Tais objetivos são decorrentes das duas disposições com as quais o Isso tem que lidar: a tendência à doença e a tendência à saúde. Para Groddeck, os aspectos transferenciais mais relevantes a serem considerados no tratamento de doenças orgânicas dizem respeito ao modo como tais tendências se atualizam no cotidiano da relação terapêutica. Cada uma delas 129 transfere para o profissional de saúde seu modo de funcionamento característico na vida fora do ambiente médico. Assim, a disposição à saúde encara qualquer coisa que venha fortalecer a saúde do indivíduo com benevolência e receptividade. Nesse sentido, o médico, supondo ser aquele que ajudará o indivíduo a recuperar-se, será tomado por ela como um auxiliar, uma ferramenta útil para o restabelecimento da saúde, pois, para Groddeck, o protagonista do tratamento não é o médico, mas sim a disposição à saúde. Por outro lado, a disposição à doença encarará o profissional de saúde como um inimigo na medida em que ele estaria, com seus procedimentos, dificultando sua atualização. E, da mesma forma que no cotidiano a disposição à doença faz uso de elementos tais como microorganismos ou condições que favorecem o surgimento de uma doença para levar o organismo a adoecer, na relação entre médico e paciente o médico será inevitavelmente tomado por essa tendência como um objeto de uso. Em outras palavras, a disposição à doença procurará utilizar os elementos da relação terapêutica para buscar a manutenção da doença, ou seja, para resistir. Acerca dessa ambivalência que marca as relações do indivíduo doente com o médico, Groddeck afirma o seguinte: O Isso é ambivalente, brinca com a vontade e a relutância, com o desejo e o desejo contrário, fazendo seu misterioso e profundo jogo de ponderações, levando o doente a uma posição dupla e dúbia frente ao médico, ao ver em sua figura simultaneamente o melhor amigo que quer ajudá-lo e a quem ele ama, e a ameaça à sua criação artística, a doença. É a ambivalência que torna o paciente obediente, ao mesmo tempo em que cria a resistência, o verdadeiro e único objeto de tratamento, o campo de atuação do médico. (GRODDECK, 1992, p. 110) Freud desde o início notara o fato de que a transferência é frequentemente utilizada como uma forma de resistência, principalmente a transferência de cunho mais erótico. Por exemplo, o paciente se apaixona por sua analista e isso o leva a dirigir suas atenções mais para a pessoa da terapeuta do que para os objetivos do tratamento. A transferência é, portanto, a reedição na interação terapêutica da relação doentia que o sujeito estabelecia com o mundo. Nesse sentido, os aspectos transferenciais precisam ser apontados e trabalhados. Do contrário, ou seja, ao não serem levados em conta, podem continuar exercendo uma função de resistência ao tratamento. Para Groddeck, o mais interessante em relação à transferência é o objetivo ao qual ela está servindo, o qual frequentemente está ligado à disposição à 130 doença, que utiliza a fenomenologia transferencial para impedir o indivíduo de lidar de maneira adequada com as questões que estão na raiz de sua doença. Uma das manifestações mais freqüentes de transferência empregadas pela disposição à doença como resistência é o repúdio a toda intervenção feita pelo profissional de saúde. No cotidiano do cuidado em saúde, essa rejeição assume a forma da tão falada “falta de adesão ao tratamento”. São os casos de pacientes que não seguem as recomendações médicas, apresentando ou não motivos para tal. Na época em que realizávamos na graduação em Psicologia um estágio em Psicologia da Saúde em um ambulatório que atendia pacientes com lesões dermatológicas crônicas, víamos com frequência casos dessa natureza. Havia pacientes que possuíam todas as condições físicas e materiais para a realização adequada de curativos no ambiente doméstico e simplesmente não os faziam, retornando ao serviço com a lesão terapeuticamente estagnada ou, em alguns casos, até num estado ainda mais grave. Outros pacientes, embora fizessem os curativos em casa de maneira adequada, não seguiam as orientações da equipe de nutrição, ingerindo alimentos que dificultavam o processo de cicatrização da lesão ou bebidas alcoólicas as quais também exercem um papel danoso no tratamento. Infelizmente, em função da filiação do modelo biomédico aos constructos filosófico-conceituais da modernidade, entre os quais a tese de que há um sujeito separado do resto do mundo e que esse sujeito é plenamente autoconsciente, casos como os relatados acima são entendidos como sendo fruto da ausência no doente da chamada “força de vontade” ou do seu não-comprometimento com sua saúde. Trata-se de uma postura culpabilizante e que simplesmente não explica nada. Permanece sem resposta a pergunta: por que, afinal de contas, aquele indivíduo não está se comprometendo com o tratamento. A falta de adesão ao tratamento é tomada, nessa racionalidade, como causa quando, na verdade, se trata de um efeito. O paciente que não se engaja em seu próprio processo de cura tem suas razões para fazê-lo e é tarefa do profissional descobrir essas motivações. Aliás, para Groddeck, tal descoberta, ou seja, a investigação das resistências é a verdadeira função do médico. Groddeck traz, portanto, uma contribuição essencial para que a complexidade da relação médico-paciente não seja reduzida àquilo que se manifesta de forma 131 explícita na interação entre o doente e o profissional de saúde. Trata-se de uma relação que coloca em jogo uma série de fatores como a formação prática do profissional, isto é, o que ele aprendeu acerca de como lidar cotidianamente com os pacientes; conflitos de ordem socioeconômica, nos casos em que o médico situa-se numa classe mais favorecida do que a do paciente; choques entre interpretações distintas da doença, afinal não raro o paciente se apresenta ao médico com uma interpretação da doença calcada na cultura da qual é proveniente, interpretação que grande parte das vezes é simplesmente rechaçada pelo profissional. Para-além de todos esses importantes aspectos, Groddeck está chamando a atenção para a dimensão do imponderável, daquilo que não se pode controlar, mas se pode discernir e analisar. Trata-se dessa capacidade especificamente humana de tirar proveito do sofrimento, da dor, da doença. Como dissemos em outro momento, Groddeck concebe a enfermidade como uma criação do Isso, uma obra de arte dotada de uma engenhosidade própria. O tratamento, em decorrência, significa a destruição dessa criação que de algum modo permitia ao indivíduo deixar intactas determinadas questões com as quais não aprendera a lidar frontalmente. É natural que a tendência que forjou a doença se apegue a ela e passe a considerar o médico como um opositor, um adversário. E cabe ao profissional reconhecer com quem está de fato lutando no processo de tratamento. Para a biomedicina o combate é à doença e as conseqüências desse engano já foram mencionadas. O que Groddeck está propondo efetivamente é que o médico passe a reconhecer que aquilo que se opõe ao tratamento não é a enfermidade em si, mas o próprio indivíduo e sua disposição à doença que não querem abandonar aquilo que lhe permitia viver sofrendo, porém sem ter que se haver com os nós subjetivos de sua existência. Isso não significa absolutamente que o médico deva tomar o próprio paciente como inimigo. Sua tarefa é a de compreendê-lo e perceber os momentos críticos em que a disposição à doença se manifestará de forma mais patente, fazendo o médico ocupar imaginariamente o lugar do pai ou da mãe do doente a fim de manter o adoecimento em vigência. 132 3.5 Dualismo biomédico e monismo groddeckiano No primeiro capítulo vimos que um dos traços mais marcantes da racionalidade científica moderna é a separação entre corpo e mente, dissociação que de alguma forma reitera aquela feita entre corpo e alma alguns séculos antes pelos filósofos gregos posteriores a Sócrates. Não se trata propriamente de uma separação realizada de modo intuitivo, afinal nossa experiência de relação com o mundo é única e indivisível. Não interagimos com o real ora com o corpo, ora com a mente ou com ambos de modo dissociado. O que a racionalidade científica moderna fez, principalmente a partir da filosofia de René Descartes – apenas para citarmos um ponto de partida – foi conceber os referidos aspectos ou modalidades de nossa experiência existencial como duas substâncias ou, em outros termos, como duas coisas absolutamente distintas e que representavam a manifestação de dois mundos separados: o mundo das coisas extensas, materiais e o mundo do pensamento ou das coisas imateriais. Também vimos naquele capítulo que se pode analisar genealogicamente tal separação, compreendendo-a como uma tentativa de simplificação do real com vistas a dirimir a angústia ensejada por sua complexidade. Com efeito, é uma experiência muito mais tranqüila e apaziguadora pensar no real como sendo constituído de duas substâncias que não possuem relação alguma uma com a outra do que concebê-lo como multifacetado, possuidor de diferentes aspectos. Podemos, pois, considerar o dualismo como parte da tendência geral da racionalidade científica moderna de simplificar a complexidade inerente ao real através da criação de categorias artificiais de separação, tais como as oposições entre indivíduo e sociedade e natureza e cultura. O modelo biomédico, na medida em que é erigido nas bases dessa racionalidade, tomará a separação entre corpo e mente como um dado, uma premissa, um postulado. Também no capítulo 1 acompanhamos as conseqüências dessa tese no campo médico até chegar ao que atualmente se concebe como verdade dentro da biomedicina, a saber, a existência de dois grandes grupos de patologias: as doenças físicas ou orgânicas e as doenças mentais ou psíquicas. É verdade que na contemporaneidade mesmo o segundo grupo tem sido subsumido ao primeiro em função da tendência organicista que se inicia, como vimos, em 133 meados do século XIX, e que atualmente atinge o seu apogeu. De fato, doenças para as quais anteriormente se concebia uma causalidade puramente psíquica como esquizofrenia, transtorno bipolar (outrora psicose maníaco-depressiva), depressão, transtorno obsessivo-compulsivo etc. são atualmente vistas, em muitas ocasiões, como problemas referentes à fisiologia cerebral. Assim, um deprimido deixa de ser descrito como um ser que se apresenta apático e melancólico em função de marcas psíquicas derivadas de experiências relacionais específicas para ser referido como um indivíduo em cujo cérebro os níveis de serotonina estão diminuídos, sem que, por sua vez, essa diminuição de serotonina no cérebro seja vista como resultado de condições ambientais, mas como defeitos inexplicáveis da estrutura cerebral. Estamos passando hoje, portanto, de um dualismo que motiva a separação entre doenças mentais e doenças orgânicas para um monismo organicista para o qual a atividade psíquica é um mero subproduto do funcionamento cerebral e que motiva o tratamento de doenças mentais somente através de intervenções medicamentosas ou cirúrgicas. Não obstante, cremos que ainda não se pode afirmar que o monismo organicista tenha atingido o estatuto de consenso no interior da biomedicina, conquanto avance para tal. Em decorrência, a separação entre doenças mentais e doenças orgânicas continua vigente para grande parte dos profissionais gerando diversos impasses que, diga-se de passagem, não serão resolvidos pela adoção de uma ideologia organicista. Por outro lado, entre esses dois grandes grupos de patologias, há um terreno nebuloso, prenhe de incoerências e contradições ao qual se dá o nome de psicossomática. Tradicionalmente, as doenças que se localizam nesse grupo compreendem enfermidades cuja forma de manifestação é orgânica, mas cuja etiologia estaria relacionada predominantemente a elementos psicológicos. É bastante comum se ouvir a alegação de que a criação do campo psicossomático teria constituído um golpe contra a hegemonia da separação entre corpo e mente na biomedicina, pois, em tese, evidenciaria a interação entre os dois aspectos, de modo que o argumento de que seriam substâncias separadas estaria sendo posto em xeque. Trata-se de um argumento falacioso. Com efeito, só se pode falar que duas coisas são capazes de relacionarem-se entre si na medida em que se admite como premissa que antes da relação acontecer ambas estavam separadas. 134 Em outras palavras, só podemos falar de incidência da psique sobre o soma se aceitarmos previamente que essas duas dimensões não se encontram originalmente imbricadas. Portanto, a condição de existência do campo psicossomático é o dualismo: corpo e psiquismo só podem interagir porque se encontram previamente separados. Groddeck se deu conta dessa incoerência precocemente e, por conta disso, nunca disse que trabalhava com doenças psicossomáticas. Aliás, um erro que frequentemente se comete ao se fazer a história da chamada medicina psicossomática é o de dizer que Groddeck teria sido um dos pais do campo psicossomático na medida em que foi o pioneiro na investigação de patologias orgânicas causadas por fatores de ordem psicológica. Com efeito, em 1926, Groddeck escreve um texto chamado “Sobre o absurdo da psicogênese” (GRODDECK, 1992) no qual deixa explícito seu posicionamento acerca da tese dualista. Ele a nega veementemente recorrendo a um argumento simples: se algo como uma psique fosse de fato uma substância separada do corpo, isso significaria que ela poderia existir independentemente, ou seja, sem o aparato corporal, bem como o corpo igualmente poderia se manter vivo sem a presença do psiquismo. Ora, um corpo no qual não se constata a presença de manifestações de aspectos psíquicos não é mais um corpo e sim um cadáver. Nesse sentido, a tese dualista teria que recorrer, para se justificar, à hipótese de um mundo transcendente e teórico onde haveria corpos sem psique e psiques sem corpo, pois no mundo das experiências concretas dos indivíduos, corpo e psique coexistem o tempo todo, de modo que se torna incoerente querer pensá-los como duas coisas separadas: O corpo é algo morto, portanto não pode adoecer; nós já nos esquecemos que nossos antepassados, em vez da palavra corpo (Körper), usavam a expressão cadáver (Lichnam), como os holandeses ainda utilizam, assim como os ingleses só usam a palavra corps no sentido de cadáver. Não sei se existe uma alma, uma psique independente e imaterial, ainda não travei conhecimento com um ser dessa natureza. Mas nem todos os que estão convencidos da existência de um mundo dos espíritos são loucos. Talvez haja algo semelhante. Mas com toda a certeza esses espíritos, se existirem, não podem ficar doentes no nosso sentido humano, pois para tanto é preciso o corpo. (GRODDECK, 1992, pp. 125-126, grifos do autor) 135 Eis a crítica de Groddeck ao pensamento dualista, crítica que evidencia que o autor jamais concebeu as enfermidades com as quais trabalhava como afecções psicossomáticas. Partindo do argumento exposto pelo autor nessa citação, a divisão entre doenças somáticas e doenças mentais é absolutamente equivocada. Só se poderia falar de doenças exclusivamente somáticas caso fosse possível conceber um corpo sem psique que fosse capaz de adoecer. Nesse caso hipotético, sim, poder-se-ia dizer que ocorreu um adoecimento sem a participação de qualquer elemento psicológico. Não obstante, sabe-se que só um corpo vivo, ou seja, em que há a presença de uma realidade psíquica, pode de fato adoecer. Nesse sentido, em toda doença haveria a participação de fatores referentes à dimensão orgânica e à dimensão psíquica do indivíduo, “[...] logo se deduz que não há ‘organismo’ e ‘psiquismo’, nem doenças físicas ou psíquicas e sim que são sempre os dois a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias.” (GRODDECK, 1992, p. 125) Ao se adotar esse ponto de vista, que se baseia não em especulações metafísicas, mas na observação da experiência concreta de adoecimento dos indivíduos, sem reflexões de cunho transcendente que perdem de vista o fenômeno, falar sobre a existência de doenças psicossomáticas perde todo o sentido, pois todas as doenças seriam, de fato, psicossomáticas. É precisamente essa tese que fundamenta a atuação clínica de Groddeck. Ainda que o autor tenha ficado conhecido por propor a abordagem da chamada doença orgânica a partir da psicanálise, isso não significa que ele tenha se debruçado apenas sobre os elementos subjetivos presentes no adoecimento. Groddeck fazia sempre questão de afirmar que o método psicanalítico era, para ele, apenas uma das armas de seu arsenal terapêutico. O autor, portanto, nunca fez apologia à utilização exclusiva da psicanálise no tratamento das doenças. O objetivo principal tanto dos seus escritos dirigidos aos psicanalistas quanto daqueles encaminhados à comunidade médica era o de defender a possibilidade do uso do método psicanalítico, o que se coadunava com seu posicionamento teórico que concebia a interação entre as dimensões orgânica e psíquica em toda enfermidade. Trata-se efetivamente, no pensamento de Groddeck, de conceber corpo e psiquismo como dimensões de uma realidade única e indivisível, o Isso. Como vimos no capítulo precedente, para o autor, o psíquico e o somático são apenas duas 136 formas de abordar o Isso ou dois modos diferentes de se referir à totalidade individual. “São apenas denominações cômodas para melhor entender certas singularidades da vida; no fundo, ambas são uma mesma coisa” (GRODDECK, 2008, p. 111). Logo na primeira carta que envia a Freud, Groddeck já deixa claro seu posicionamento acerca dessa questão: “... formara-se em mim a convicção de que a distinção entre corpo e alma é apenas uma diferença de nome e não de essência; que o corpo e a alma são alguma coisa de comum, que neles habita um Isso, uma força pela qual somos vividos, enquanto nós acreditamos viver.” (GRODDECK, 1994, p. 05). Ao pensar em corpo e psique como dois modos de manifestação do Isso, Groddeck poderá prescindir da separação consagrada na biomedicina entre doenças orgânicas e doenças mentais. Com efeito, essa separação por si só já produz um efeito deletério no cuidado em saúde, pois, ao adotá-la como parâmetro de atuação, o profissional de saúde é levado a se dirigir ao doente com idéias préconcebidas a respeito do que se passa com ele, o que obstaculiza a apreensão de sua singularidade. Por exemplo, ao se deparar com um doente oncológico, o médico que se baseia nessa divisão entre doenças do corpo e doenças da psique irá inevitavelmente reduzir sua percepção apenas aos aspectos orgânicos apresentados pelo paciente, negligenciando a dimensão psicológica associada, de modo que a totalidade individual será reduzida apenas a um corpo, um organismo. Nesse sentido, a primeira grande contribuição de Groddeck ao propor que corpo e psiquismo sejam vistos como duas modalidades de apresentação do Isso e não como duas essências separadas é a eliminação da separação estéril entre doenças orgânicas e doenças mentais: “Em outras palavras, recusei de antemão separar doenças do corpo e doenças da alma; tentei tratar o ser individual em si, o isso que existe nele; procurei um caminho que levasse ao impenetrado, ao impenetrável.” (GRODDECK, 1994, p. 05) É óbvio que para fins meramente didáticos ou classificatórios, a distinção permanece útil. De fato, as doenças se diferenciam pela proeminência de manifestações somáticas ou psicológicas. Todavia, essa separação ao ser levada para o âmbito clínico e, sobretudo, ao servir de guia para a abordagem médica, possui pouca utilidade, a não ser que o elemento central do atendimento ao paciente 137 seja o diagnóstico e não o tratamento. Como vimos anteriormente, a biomedicina tende a enfatizar em demasia o processo de diagnóstico, o que Groddeck critica veementemente. Não obstante, considerando que se trata efetivamente de um equívoco e que a real finalidade do encontro entre o profissional de saúde e o doente é a terapêutica, alocar o paciente dentro das categorias “doente orgânico” e “doente psíquico” é evidentemente um procedimento infrutífero. Com efeito, o que o médico possui diante de si é um doente e não uma doença orgânica ou uma doença psíquica. Trata-se de um indivíduo único e que se apresenta com a doença em toda a sua especificidade, que não é nem somente orgânica nem apenas psíquica, mas que porta ambos os aspectos ao mesmo tempo. Concebendo, portanto, o somático e o psíquico como linguagens que o Isso pode utilizar segundo seus próprios critérios, o médico é levado a se mostrar aberto e valorizar toda e qualquer expressão do indivíduo, seja ela orgânica ou psíquica. É essa postura, inclusive, a necessária para a construção de um diagnóstico do ser humano e não da doença, conforme discutimos anteriormente. Quando as categorias “doença orgânica” e “doença mental” são eliminadas, descarta-se conjuntamente a noção de “doença psicossomática”. Esta é, a meu ver, a principal contribuição que Groddeck traz ao campo da saúde pela rejeição do pensamento dualista. Com efeito, a existência do chamado campo psicossomático paradoxalmente reforça o organicismo vigente no modelo biomédico, pois os profissionais que trabalham na clínica de “doentes orgânicos” se eximem de adotar uma leitura subjetiva dos sintomas justamente por poderem encaminhar os pacientes em que verificam a presença de alguma comorbidade psicológica para a vala comum da psicossomática. ‘Os psicólogos e psiquiatras que se virem! Nós só trabalhamos com o corpo’ é o discurso que se pode depreender de seu gesto. A substituição do dualismo pelo monismo levaria à extinção do campo psicossomático na medida em que ele seria extenso a ponto de englobar toda e qualquer patologia. Em decorrência, todo profissional da saúde seria levado a tomar um ponto de vista integral sobre o doente, uma perspectiva que contemplasse a dimensão orgânica e ao mesmo tempo fosse capaz de uma leitura psicológica do adoecimento. É precisamente isso o que Groddeck preconiza: que todo profissional de saúde seja capaz de utilizar um método de leitura subjetiva dos sintomas do 138 doente, o que não consiste em um procedimento demorado, tampouco caro. Basta que o profissional se disponha a ouvir e a acolher o doente em sua totalidade, estando atento para perceber as vinculações entre suas queixas e sua história subjetiva. Como já assinalamos em diversas passagens anteriores, Groddeck não sugere em nenhum momento que todo profissional de saúde esteja capacitado e efetivamente realize algo como um processo completo de psicanálise do doente. Diferentemente de Freud e de boa parte de seus discípulos, Groddeck jamais concebeu o método psicanalítico como um processo que só é efetivo dentro de uma análise propriamente dita, ou seja, um tratamento psíquico que se desenvolve ao longo de vários anos. Para o médico de Baden-Baden, a psicanálise era essencialmente uma técnica eficaz de investigação e tratamento de sintomas, passível de ser utilizada por qualquer profissional de saúde, sem que esse necessariamente tivesse que passar por um processo de formação em psicanálise: Repito mais uma vez o que já disse em várias ocasiões que, para finalidades de tratamento, geralmente não é necessária uma análise “profissional” ou o que se chama de “análise completa” com algum exagero, ou o que, com um exagero maior ainda, se considera como o único recurso válido. Se realizar uma análise completa fosse uma conditio sine qua non, o método analítico não teria nenhuma serventia para o médico. Mas isso não é verdade. Todo médico, por mais restrito que seja o seu tempo, tem condições de fazer um tratamento analítico e logo irá convencer-se de que tal método representa um enriquecimento do seu instrumental. (GRODDECK, 1992, p. 171, grifo do autor) A agregação do método psicanalítico ao conjunto dos procedimentos médicos é pensada por Groddeck numa perspectiva pragmática. Em outras palavras, o autor a defende tendo em vista seu potencial de utilidade prática, especialmente nos casos em que o indivíduo não se recupera com um tratamento baseado unicamente em técnicas como curativos e cirurgias. Nesses casos, o profissional não precisaria encaminhar o paciente a um profissional da área psi – encaminhamento que só reforça a separação entre corpo e psique – mas ele próprio poderia investigar o sentido do adoecimento através do uso da técnica psicanalítica. Ambos sairiam ganhando: tanto o médico que teria à sua disposição um recurso a mais para tentar ajudar o doente, quanto esse último, que não precisaria ser levado a outro 139 profissional, provavelmente carregando a fama de ser um doente que não adere ao tratamento ou que está simulando seu adoecimento. Numa carta dirigida a um paciente que nos é desconhecido, Groddeck deixa claro que não está propondo de modo algum que os profissionais de saúde passem a utilizar somente a psicanálise como método de tratamento, mas que seu desejo é de que a técnica seja incorporada ao arsenal terapêutico no campo da saúde com vistas à sua utilização em ocasiões propícias: Tome um caso de uma doença declaradamente orgânica, digamos uma fratura de osso. Seria tolice querer tratar psiquicamente uma fratura dessas, faz-se uma ligadura. O que acontece, porém, se a fratura não sara sob a atadura? Pode-se operar etc. Mas, às vezes, nem assim a fratura fica curada. Não seria então aconselhável pensar no milagre da formação do órgão? No fato de que, no ser humano, antes de existir o osso, já existia a força para a criação do osso; que essa força era um excelente químico, físico, pensador, matemático, muito antes que ela criasse o órgão do pensamento do cérebro? [...] Mas o meio psíquico vale tanto quanto o bisturi, ou o choque elétrico ou a massagem, um não exclui o outro. O importante é encontrar o que convém ao doente. (GRODDECK, 1994, p. 113) Nota-se, portanto, que a recusa do dualismo permite a Groddeck uma grande liberdade na escolha do método terapêutico mais apropriado a cada caso. Como o próprio autor afirma na citação acima, o critério para tal escolha é o próprio doente, de modo que o que serve de parâmetro para determinar qual tipo de técnica será utilizado são as próprias manifestações individuais do paciente, às quais o profissional de saúde deve estar atento e aberto a compreender: “O médico nada pode fazer senão observar atentamente a linguagem do Isso, sua maneira de expressar-se física e psiquicamente, e adivinhar o que ele quer, oferecendo-lhe o que adivinhou.” (GRODDECK, 1992, p. 120). Como dissemos anteriormente, corpo e psique são vistos por Groddeck não só como dois modos de expressão do Isso, mas como linguagens das quais a totalidade individual se serve para manifestar suas intenções. Analogamente, os profissionais do cuidado em saúde, ao rejeitarem o dualismo, estariam se capacitando a entender ambos os dialetos do Isso: o psíquico e o orgânico. De fato, essa capacitação permitiria um atendimento integral ao ser humano doente e não 140 apenas a seu corpo ou ao seu psiquismo isoladamente, como tem sido a marca do modelo biomédico. Para finalizar esta seção é conveniente salientar que o monismo proposto por Groddeck como alternativa para o dualismo corpo/mente e seus respectivos impasses não é o mesmo monismo que hoje parece ser advogado principalmente pelas neurociências, a saber: o monismo organicista ou materialista, ao qual já fizemos referência acima. Os teóricos que defendem o monismo organicista postulam que todos os fenômenos de ordem psicológica e subjetiva podem ser reduzidos a alterações anátomo-fisiológicas do sistema nervoso central, ou seja, o psiquismo seria apenas um produto ilusório cuja base real estaria nas modificações da estrutura cerebral. Trata-se, portanto, no que concerne a esse tipo de monismo, de uma hipótese reducionista que busca restringir toda a complexidade da subjetividade aos limites de um organismo sem intencionalidades. O monismo proposto por Groddeck, por seu turno, busca promover uma operação oposta à descrita acima, isto é, em vez de reduzir o psiquismo à dimensão orgânica, incluir ambos dentro de uma mesma totalidade. Nem o psíquico pode ser reduzido ao orgânico nem o orgânico ao psíquico já que se trata de duas modalidades de expressão de um todo único que é, ao mesmo tempo, psíquico e orgânico. O Isso, essa totalidade única, é simultaneamente um corpo carregado de símbolos e de história subjetiva e um psiquismo arraigado em um corpo. 3.6 Inserção da doença na história subjetiva do doente O que vamos abordar nesta seção já foi ressaltado em linhas gerais ao longo deste capítulo. No entanto, consideramos que se faz necessário um tratamento mais aprofundado do tópico com vistas a frisar o posicionamento de Groddeck acerca das relações entre doença e história subjetiva e as contribuições que podem ser extraídas a partir de suas postulações. Como temos visto desde o primeiro capítulo, uma das principais condições teórico-conceituais que viabilizaram a elevação da medicina ao estatuto de ciência foi a construção de um objeto de estudo específico, o qual veio a ser a doença. Esse expediente, porém, como é de praxe no campo científico, não se constituiu apenas 141 no ato de localizar o objeto doença dentro do conjunto de eventos e relações que se processam no real. A elaboração de um objeto científico pressupõe, para-além de sua localização na natureza, uma atividade de circunscrição, de recorte, que seja capaz de fazer emergir o objeto do emaranhado de relações presentes no todo. Como vimos no primeiro capítulo, esse segundo passo pode ocorrer de dois modos: no primeiro, o recorte do objeto é feito sem que se perca de vista sua vinculação necessária com o todo, ou seja, reconhece-se que o ato de circunscrição consiste apenas em uma forma relativa de aproximação com um objeto que só existe isoladamente na medida em que é tomado como um ente de razão na mente do cientista. No segundo modo, o recorte do objeto é considerado como equivalente de sua representação perfeita, ideal. Em decorrência, a separação do objeto do todo original é concebida como uma tarefa que visa retirá-lo das amarras da imperfeição natural e elevá-lo a uma suposta limpidez essencial. Foi dessa segunda forma que a medicina procedeu ao estabelecer a enfermidade como objeto de estudo. A transformação dos processos de adoecimento em espécies patológicas foi justamente uma tentativa primeira de fazer das doenças objetos isolados, de existência fixa e eterna. Assim, o fato de que a doença consiste em um fenômeno especificamente humano, isto é, que se articula intimamente aos aspectos singulares da condição humana, se tornou obscurecido. Isso ocorreu porque ao se isolar a doença como um objeto independente e destacável e se considerar que tal isolamento constituía a própria essência da patologia, as vinculações indissociáveis do adoecimento com a vida humana ficaram perdidas. A enfermidade passou a ser vista, então, como alguma coisa que originalmente não se encontra atrelada ao homem, mas que passa a estabelecer um relacionamento com ele a partir do momento em que invade seu corpo e perverte seu funcionamento orgânico. Destarte, o ser humano é posto numa posição de passividade e a doença adquire contornos de um invasor inimigo. Com a entrada em cena da anatomia patológica, passou-se a admitir a vinculação da doença com um único aspecto da existência humana, a saber: o corpo. Todos os sintomas possuem uma lesão correspondente no organismo, é o estandarte da clínica anátomo-patológica. Todavia, esse aparente resgate da vinculação do adoecimento ao humano acaba servindo apenas para radicalizar a separação ainda mais deletéria entre doença e vida, considerando que as lesões 142 correspondentes aos sintomas são buscadas na superfície e reentrâncias de um corpo que não é dotado de vida, seja ele o cadáver ou a imagem produzida pelos aparelhos modernos. A conexão com a vida, isto é, com as relações humanas, com o corpo vivo e em movimento, com a linguagem, com a cultura etc. permanece perdida. Se no nascimento da medicina científica, a doença era uma entidade isolada da vida humana, fixa e imutável, com o advento da anatomia patológica ela passa a ser uma entidade fixa e imutável cujas manifestações se dão em uma máquina morta. Os impasses e limitações aos quais a biomedicina é levada ao adotar esse entendimento da doença como guia de atuação clínica são vários. O mais óbvio deles é o fato de que, ao conceberem a patologia como um objeto originalmente isolado da existência humana, os profissionais de saúde que trabalham a partir do modelo biomédico estarão lidando inadvertidamente com uma ficção. Com efeito, o problema, a nosso ver, não está no fato de se trabalhar com ficções. Aliás, não há nenhum campo científico que não faça uso de ficções na medida em que, como temos dito, apoiados em Groddeck, não há objeto científico que não tenha a consistência de ficção, considerando que todos eles são recortes de um todo único e indivisível. O problema está em se trabalhar com ficções conceituais desconhecendo o fato de que se trata de ficções e considerando-as como a própria representação do real que, supostamente, seria em si já recortado. É nesse erro ideológico que o cuidado em saúde na biomedicina tende a incorrer o tempo todo. Conseqüentemente, o olhar do profissional de saúde será inevitavelmente reduzido, pois ao receber um doente que lhe demanda cuidado, seu foco repousará naquilo que no discurso do paciente diga respeito exclusivamente aos traços e características de uma determinada entidade patológica e perderá de vista as inúmeras conexões que as queixas apresentadas pelo doente estabelecem com aspectos de sua experiência subjetiva. Além disso, em função do predomínio e do valor conferido às imagens e aos números como elementos supostamente reveladores da verdade do corpo, frequentemente deixa-se o paciente falar por poucos minutos e logo se o encaminha para a realização de exames, os quais se supõe que fornecerão ao profissional as informações essenciais acerca do que se passa com o paciente. 143 Reiteremos que ao agir assim o profissional de saúde não está exercendo o que comumente se denomina de “má prática médica”. Pelo contrário, trabalhando dessa forma tal profissional é considerado por seus pares e pela própria sociedade como exemplo de clínico competente e responsável na medida em que não se atém à fala do doente, mas busca informações supostamente mais seguras e fidedignas em exames laboratoriais e de imagem. É evidente que tais exames são de grande valia no âmbito do cuidado em saúde e não devem ser descartados. Não obstante, o que questionamos é seu lugar de preeminência em relação à fala daquele que sofre. Trata-se de um questionamento que tem em vista a própria eficiência do atendimento. Ao compreender a doença como algo do qual o indivíduo sofre, ou seja, como uma espécie de ente estranho que invadiu seu corpo e que, portanto, pode ser expulso dele tal como num ato de exorcismo, o profissional de saúde se torna cego para a dimensão expressiva da doença, à qual fizemos uma considerável menção nas seções anteriores. Quando a patologia é vista sob o signo da expressão e não como uma entidade localizada no corpo, ela passa a ser pensada não como causa, mas como efeito. De fato, no modelo biomédico, a doença é tomada como o elemento causal que desencadeia a série de reações das quais o paciente se queixa. A lógica dos processos de adoecimento e cura subjacente a essa racionalidade parece ser a seguinte: num primeiro momento o indivíduo se encontra são; em seguida, a doença se apossa de seu corpo ocasionando um desvirtuamento de suas funções corporais implicando em um conjunto de dores, incômodos e sofrimentos; o doente se encaminha a um profissional de saúde na esperança de se ver livre de tais mal-estares; o profissional, a partir de suas queixas e, principalmente, a partir das tecnologias de imagem e exame, “descobre” qual o ente patológico que se apossou do paciente e, num último momento, prescreve uma terapêutica (geralmente medicamentosa) que tem como finalidade atacar a doença, de modo a expeli-la do corpo do doente. Note-se que ao longo de todo esse processo em nenhum momento as articulações entre a enfermidade e a vida do doente foram postas em jogo. Isso se deve precisamente ao fato de que a doença, nesse modelo, é concebida como algo distinto do doente, radicalmente separado dele. Se nosso ponto de vista, no entanto, for o de que a patologia constitui-se em um modo de expressão do sujeito, jamais se poderá perder de vista as relações de mútua determinação que ela mantém com a 144 vida do paciente como um todo. Mais: em hipótese alguma o tratamento será pensado como uma estratégia de ataque e eliminação da doença. Seria como querer destruir a obra de um artista sem investigar as razões que o levaram a produzi-la. É precisamente nesses termos, como já assinalamos, que Groddeck pensa a doença: como uma produção, uma criação que, obviamente, leva o criador ao sofrimento, mas que, todavia, consiste em uma expressão individual, assim como uma obra de arte. Foi uma paciente que Groddeck chama apenas de “Srta. G” em “O livro dIsso” (GRODDECK, 2008), que o médico tratou antes de conhecer a psicanálise, quem o fez atentar de modo mais intenso para as relações que as doenças mantinham com variados aspectos da experiência individual. Tal paciente exerceu para Groddeck um papel análogo ao que Anna O. e as primeiras histéricas de que tratou tiveram para Freud. Assim como esse último teve acesso ao campo do pensamento inconsciente e, em decorrência, às vinculações entre os sintomas neuróticos e o mundo de fantasias inconscientes, Groddeck foi levado pelo tratamento da Srta. G a perceber as articulações entre o adoecimento orgânico e elementos de ordem subjetiva, como símbolos, pensamentos e fantasias, chegando a dizer que foi essa paciente quem o obrigou a tornar-se psicanalista (GROODECK, 2008). Groddeck tratou da Srta. G durante aproximadamente quatorze anos, após ela lhe ter sido encaminhada por um colega que não depositava mais esperanças em sua recuperação. Groddeck não aborda diretamente o quadro clínico da paciente, dizendo apenas que ela sofria de sintomas orgânicos e psíquicos. A atenção do médico foi atraída principalmente para certas particularidades encontradas na fala e no comportamento da doente que, aparentemente, contradiziam uma inteligência que até então se mostrara acima da média: Para a maioria dos objetos ela usava perífrases, de modo que por exemplo dizia, no lugar de armário, ‘aquela coisa de roupa’ ou, no lugar do cano do aquecedor, ‘aparelho para fumaça’. E dizia não suportar certos gestos, por exemplo, morder os lábios ou brincar com essas bolotas que decoram as cadeiras. Vários objetos, que nos parecem indispensáveis à vida cotidiana, estavam banidos do quarto da paciente (GRODDECK, 2008, p. 211) 145 Num primeiro momento, Groddeck sequer suspeitava do que poderia estar em jogo no desencadeamento das idiossincrasias da Srta. G, mas logo atentou para um aspecto transferencial relevante que se manifestava no fato de que a paciente havia aceitado vê-lo sozinha, sem a companhia da irmã, o que nunca havia acontecido nos tratamentos anteriores com outros médicos. Groddeck supõe que isso se deveu ao fato da Srta. G ter visto nele a figura de sua própria mãe. Através do manejo transferencial, o médico consegue levar a paciente a se engajar no tratamento, de modo que paulatinamente as chaves para a decifração de suas perífrases e, conseqüentemente, de seus sintomas começam a aparecer. Trata-se do momento em que Groddeck se dá conta do simbolismo. Percebe, assim, que as relações que as palavras, imagens e objetos guardam com o todo fazem com que tais elementos sejam capazes de assumir diversas significações: Travei conhecimento com os símbolos. Isso deve ter acontecido de modo insensível, pois não me lembro de quando percebi que uma cadeira não era apenas uma cadeira mas podia ser um mundo, que o polegar é o pai, que ele pode calçar botas de sete léguas e tornar-se depois, na forma de um índice esticado, símbolo da ereção; que um forno aquecido é uma mulher ardente e que o tubo da caldeira é o homem; que a cor negra desse tubo causa um medo inefável porque é o negro da morte, porque esse inocente aquecedor representa as relações sexuais de um homem morto com uma mulher viva (GRODDECK, 2008, p. 215) Nesse sentido, a quase impossibilidade da Srta. G de pronunciar certas palavras e encarar certos gestos e objetos era resultante do fato de que ela se defendia de uma significação intolerável que lhe era evocada diante de determinados elementos. Essa evocação, por sua vez, era possível em função da tendência do pensamento humano em associar representações mentais, tendência que Groddeck caracteriza como sendo propriamente uma compulsão associativa. A experiência clínica de tratamento da Srta. G modificará radicalmente o ponto de vista de Groddeck a respeito do adoecimento. Conquanto o médico desde o início de sua carreira tenha se situado numa posição de crítica à biomedicina, à época em fase de gestação, é o encontro com o simbolismo que marcará o advento de uma compreensão inédita da doença até então por parte de Groddeck. Durante a primeira guerra mundial, atuando em um hospital militar, o médico testará as hipóteses clínicas cunhadas no tratamento da Sra. G, quais sejam, a de que a 146 realidade simbólica exerce um papel fundamental no desencadeamento de patologias orgânicas e a de que, por conta disso, uma estratégia terapêutica que vise trazer à luz a significação simbólica dos sintomas pode ser bastante profícua. Os resultados alcançados por Groddeck comprovam a validade de tais hipóteses: Durante os meses que passei no hospital militar, experimentei meu método de análise, embora bárbaro e marcado pelo diletantismo – que eu aliás conservo – nos feridos e constatei que uma ferida ou fratura reagia à análise do Isso tanto quanto uma infecção renal, um coração doente ou uma neurose (GRODDECK, 2008, p. 216) Para-além das noções de simbolismo, compulsão associativa, transferência, resistência etc. o que Groddeck averiguou efetivamente foi o fato de que a doença é um acontecimento que se encontra desde sua raiz inserida na realidade humana, uma realidade que é marcada pela cultura, pelo imaginário, pela fantasia. Em outras palavras, “... a doença é uma manifestação de vida do organismo humano” (GRODDECK, 2008, p. 217) Essa asserção aparentemente banal ao ser compreendida em toda a sua extensão e profundidade altera de maneira essencial o modo como a doença é encarada e o que se deve fazer com ela. Se a doença é uma manifestação da vida, isso significa que ela não pode ser pensada como uma anomalia ou como um evento contrário a uma suposta ordem natural das coisas. Considerar a doença como fenômeno vital implica em incluí-la no conjunto das demais manifestações da vida, como a escrita, a fala, o andar etc. Por conseguinte, assim como não se supõe que um modo de falar equivocado deva ser tratado mediante a eliminação abrupta da fala em si mesma, do mesmo modo o tratamento da doença não pode ser pensado como um ataque à enfermidade e a busca de sua extirpação a qualquer custo: Em outras palavras, não posso utilizar, em relação a um paciente, procedimentos diversos dos que utilizo em relação a quem escreve, fala ou constrói mal; em síntese, porque ele recorre à doença e o que pretende exprimir com isso. Tratarei de me informar a respeito junto a ele, junto ao Isso, sobre os motivos que o levaram a usar esse procedimento, tão desagradável para ele quanto para mim; conversarei com ele e depois verei o que fazer (GRODDECK, 2008, p. 218) 147 Essa espécie de conversa com o Isso do doente, que Groddeck advoga aqui como sendo um procedimento frutífero de tratamento, se contrapõe de maneira explícita à abordagem biomédica da doença que, por não conceber a patologia como estando inserida numa história individual e articulada a elementos de ordem subjetiva, não cogita jamais a hipótese de que o indivíduo porta um saber que, ao ser posto à baila, pode ser útil ao tratamento. Com efeito, o único saber efetivo na biomedicina é o saber universal sobre o corpo e suas funções. É desse saber que o profissional de saúde se faz representante. Saber hegemônico que não deixa espaço para o saber que não sabe de si, como dizia Jacques Lacan ao definir o inconsciente, nem para qualquer outro tipo de saber experiencial ao qual o doente pôde ter acesso, como a sabedoria tradicional transmitida por seus antepassados. Justamente por escamotear esse saber que vem do sujeito, imprevisível e singular, o modelo biomédico não consegue lidar com fenômenos que, por não obedecerem à lógica prescrita no saber universal concernente ao corpo, se impõem como furos nesse saber. Trata-se das patologias que mencionamos no primeiro capítulo, caracterizadas por sintomas vagos e difusos, que não apresentam correspondência com nenhuma lesão corporal, inviabilizando uma abordagem terapêutica que faz referência apenas à dimensão orgânica do adoecimento. Queixas dessa ordem não se encaixam no modelo de compreensão das doenças da biomedicina bem como não respondem a seus métodos organicistas de tratamento precisamente porque se apresentam como a expressão mais bem acabada da indissociável articulação entre corpo e história subjetiva. Se nas demais enfermidades cujas queixas se situam predominantemente na esfera corporal essa articulação necessita de um trabalho de observação e escuta um pouco mais ativo para que possa vir à luz, no caso das doenças de sintomas vagos e difusos, sua função de resposta a questões de ordem subjetiva se mostra patente. Trata-se de pacientes que, em seu discurso, mesclam queixas de cunho emocional e orgânico, denunciando as duas faces de um indivíduo que sofre por inteiro e que, portanto, não pode mesmo responder a uma abordagem terapêutica que se faz cega para essa totalidade complexa e que o reduz apenas ao corpo. Ao propor que a doença deva ser considerada uma expressão criadora do indivíduo, uma resposta autêntica do sujeito, ainda que dolorosa e incômoda, a sua história de vida, Groddeck torna inviáveis esses impasses enfrentados pela 148 biomedicina. Seja o sintoma vago ou definido, emocional ou físico, ele sempre será uma manifestação da vida, do indivíduo da subjetividade. Em outros termos, ele sempre será índice de um saber marcado no corpo, um saber particular sobre a vida, que Groddeck personifica na figura do Isso, ora brincalhão, ora teimoso. 149 4. POR UM NOVO MODELO DE CUIDADO EM SAÚDE: ARTICULANDO AS CONTRIBUIÇÕES DE GRODDECK A ASPECTOS FILOSÓFICO-CONCEITUAIS Neste último segmento de nosso trabalho, cujo tom será eminentemente propositivo, nossa intenção é a de promover um diálogo entre os resultados alcançados pela pesquisa no capítulo anterior, a saber: as contribuições de Georg Groddeck para a superação de impasses vivenciados pelo modelo biomédico e aportes teórico-conceituais provenientes de autores, sobretudo da área da filosofia, que vêm pensando paradigmas alternativos para o cuidado em saúde. Consideramos este capítulo necessário para que as contribuições de Groddeck não sejam tomadas pelo leitor como subsídios teóricos pontuais e isolados das discussões atuais que se apresentam no campo da saúde. Com efeito, ao promovermos essa articulação entre as propostas groddeckianas e as contribuições de autores clássicos e contemporâneos, acreditamos ser possível demonstrar que as idéias do autor nunca foram tão atuais e tão úteis à reflexão hodierna sobre saúde. Para tanto, nosso dever aqui será o de deixar claro que boa parte das contribuições extraídas do pensamento de Groddeck para o campo da saúde se insere no interior de uma metadiscursividade composta da produção de diversos autores que igualmente fazem críticas aos fundamentos conceituais e à lógica de funcionamento da biomedicina e que, ao mesmo tempo, apontam alternativas para a constituição de um novo modelo de cuidado em saúde. Cremos ter demonstrado, tanto no segundo quanto no terceiro capítulos, ainda que de maneira implícita, que se encontram presentes no pensamento de Groddeck uma série de pressupostos, postulados, princípios e tomadas de posição filosófica específicos, os quais, certamente, orientaram o rumo de suas reflexões e fizeram com que elas fossem alçadas da dimensão da mera opinião para o âmbito do saber. É precisamente esse conjunto de fundamentos teórico-conceituais que será nosso foco de análise neste capítulo. Veremos, portanto, de que modo tais pressupostos se relacionam com as propostas conceituais de autores clássicos e contemporâneos a fim não só de demonstrar a atualidade do pensamento groddeckiano como também o de fortalecer e corroborar suas contribuições expostas no capítulo precedente. 150 4.1 Retomando o problema central: a concepção de natureza No primeiro capítulo, a fim de circunscrever os impasses que a racionalidade biomédica enfrenta, um de nossos principais focos de análise foi a concepção de natureza que se encontra implícita na biomedicina. Vimos que a crise do modo medieval de organização social fundado a partir de premissas religiosas na Europa foi sucedida por uma transformação radical na maneira como os homens compreendiam o estatuto do humano e suas relações com o outro e com o mundo. De uma sociedade em que a noção de indivíduo não possuía qualquer interesse prático posto que a vontade divina se instituísse como o controle soberano da existência, passou-se a um mundo que, para fazer frente às injunções do real, fora levado a colocar a ação autônoma humana no lugar outrora ocupado pela idéia de Deus. Nesse contexto, a separação radical entre o que se denominou de racionalidade humana e mundo natural – que já se manifestava de modo menos explícito na Idade Média a partir das categorias cristãs de espírito, virtude e pecado – se impõe de modo mais bem acabado conceitualmente. Se tomamos a filosofia de Descartes como ilustração privilegiada dessa separação, levando em conta sua distinção teórica pioneira entre res cogitans e res extensa é por negligenciarmos deliberadamente a herança filosófica aristotélicoplatônica cujas influências na cultura européia se fizeram presentes desde séculos antes de Descartes – Agostinho e Tomás de Aquino o comprovam. Conforme explicamos, seguindo os argumentos de Martins (1999), se em Aristóteles, discípulo de Platão, não encontramos a cisão explícita feita por seu mestre entre um mundo transcendente composto de idéias verdadeiras e um mundo experiencial marcado pela imperfeição e pelo falso, observamos no filósofo macedônio a mesma busca platônica de um conhecimento universal capaz de ultrapassar e explicar o caráter aparentemente contingente dos fenômenos. Portanto, se em Platão encontramos as raízes de uma modernidade cartesiana que estabelece a racionalidade numa condição de supremacia em relação à natureza, em Aristóteles antevemos a tendência cientificista moderna – que produzirá seus efeitos no cuidado em saúde – de ter como alvo não a compreensão do real, mas a instituição de leis universais capazes de regulá-lo. 151 Com efeito, temos nesses dois pensadores da antiguidade as matrizes de pensamento acerca da natureza que serão expressas na modernidade. Trata-se da visão do mundo natural (1) como algo que, sem a intervenção humana, se manifesta de modo caótico e, portanto, ameaçador e (2) como um objeto de estudo absolutamente distinto da subjetividade humana, entendida num primeiro momento como a capacidade intelectual humana de atingir a verdade. Concordamos com Martins (1999) quando sustenta que, de um ponto de vista genealógico, pode-se compreender essa dupla visão da natureza como tributária de uma estratégia defensiva dos pensadores modernos, bem como de seus antecedentes socráticos, frente à angústia eliciada pela percepção da complexidade da natureza. A angústia emerge em função da impossibilidade de fazê-la funcionar de acordo com nossos desejos de onipotência. Como a modernidade preferira insurgir-se contra a resistência da natureza em se adaptar a tais desejos em vez de colocar essas próprias intencionalidades em xeque, a saída foi construir ficções acerca do funcionamento do mundo natural, de modo que nossos desejos de onipotência pudessem continuar existindo. Assim, inventou-se uma natureza que, de modo paradoxal, foi vista como sendo a princípio puro caos e que só a partir da intervenção racional humana se torna ordenada, mas cuja condição de possibilidade de ser regularizada se deve precisamente ao fato de portar de modo inerente as leis descobertas pela razão. Essa visão paradoxal e confusa da natureza, isto é, como um ser caótico e ao mesmo tempo mecânico, incidirá no âmbito da medicina moderna que, como vimos, passa a se instituir a partir do século XIX como ciência das doenças. De um lado se tem o corpo como res extensa, parcela da natureza, cujas leis universais de funcionamento podem ser descobertas na medida em que elas se encontram, desde o princípio, inscritas na superfície do vivente. Basta que se as saiba ler. De outro, as doenças que, embora a princípio tenham sido categorizadas em espécies, famílias e classes, o que expressa a idéia de uma ordenação patológica natural, foram desde o início da medicina moderna tomadas como manifestações de uma natureza perigosa, isto é, como inimigos naturais cuja existência se prestaria unicamente a colocar a dos humanos em risco. 152 Essa maneira de pensar a doença, a qual permanece vigente, como demonstramos, até os dias atuais é bastante ilustrativa da relação entre a concepção moderna de natureza e nossas aspirações demasiado humanas. Com efeito, só se pode admitir a enfermidade como um inimigo natural adotando-se o pressuposto de que o critério a partir do qual se deve julgar o funcionamento do mundo seja o bem-estar humano. Trata-se de um imaginário concernente à natureza que a concebe como sendo dotada de vontade e capaz de erros e acertos. A doença, assim como os desastres naturais, os acidentes climáticos e uma série de outros eventos atribuídos ao “ente” natureza seriam, a partir dessa lógica, comprovações de que o mundo natural se encontra numa relação de oposição em relação ao homem, ou seja, de que o ser humano para sobreviver e desenvolver-se precisa estabelecer-se em permanente confronto com a natureza, buscando domá-la e fazê-la funcionar de acordo com seu desejo. Em outras palavras, conquanto se reconheça que a natureza é a fonte de todos esses eventos que causam dor e sofrimento ao homem, paradoxalmente, por não se ajustarem ao bem-estar humano, tais acontecimentos são imaginariamente percebidos como “antinaturais”, ou seja, como falhas de uma natureza supostamente providencial. O próprio Groddeck, na oitava carta de seu Livro dIsso, assinalou a vinculação entre esse uso narcísico das categorias de “natural” e “antinatural” e o projeto moderno de dominação da natureza: Já falamos a respeito da expressão “contra a natureza”. Para mim, essa é uma das expressões da megalomania do homem, que pretende ser senhor e mestre da natureza. O mundo é dividido em duas partes: aquilo que convém momentaneamente ao ser humano é natural; aquilo que o desagrada, ele considera antinatural. (GRODDECK, 2008, p. 61) A criação de uma ficção de natureza, uma natureza imaginária, cujo modo de funcionamento seria integralmente mecânico, análogo ao dos artifícios humanos, foi a forma que a modernidade encontrou de fazer existir a batalha pelo controle da natureza. Guerra quixotescamente perdida, como o demonstraram as duas grandes guerras ocorridas no século XX bem como os problemas ambientais que se adensam no XXI. A racionalidade humana é convocada a depor suas armas e reconhecer que a natureza só se manifesta como da ordem do imponderável e do incontrolável quando justamente se pretende estabelecer sobre ela um domínio. 153 Desde o segundo capítulo, verificamos como Groddeck é radicalmente avesso a esse ideário moderno. Adotando um tom acidamente censurador e não raro mordaz em suas diversas críticas à ciência moderna, o médico de Baden-Baden deixa claro que suas formulações acerca do adoecimento estão assentadas em outro paradigma, o qual, a nosso ver, vai ao encontro justamente das reflexões contemporâneas que vem sendo feitas em função dos impasses a que chegou a racionalidade moderna. Tentemos circunscrever esse paradigma a partir da análise de alguns aspectos do pensamento do autor. 4.2 Ego, Isso, cultura, natureza Tomemos inicialmente o conceito de ego na obra groddeckiana. Ao contrário de Freud e de toda a tradição moderna para a qual a noção de um sujeito era imprescindível, para Groddeck, o ego, seja ele tomado em seus aspectos conscientes ou inconscientes, é apenas um fantoche nas mãos do Isso. Alguém poderá retorquir que o próprio Freud já teria operado essa subversão no conceito de ego quando propôs a hipótese do inconsciente. A nosso ver, todavia, conquanto reconheçamos o caráter copernicano da revolução provocada pela introdução do conceito de inconsciente, uma análise fiel da obra freudiana não nos permite supor que o pai da psicanálise seja tão radical quanto Groddeck com relação ao estatuto do ego. De fato, Freud, mesmo na segunda tópica, quando faz derivar o ego do id, persiste pensando o primeiro numa relação de oposição com o último, antinomia que apenas reproduz o confronto moderno entre razão e natureza ou entre cultura e natureza. No trecho abaixo, retirado do texto “O ego e o id”, vemos de forma bastante explícita como Freud segue levemente a inspiração groddeckiana, fazendo do ego uma parcela do id, ao mesmo tempo em que nega essa mesma inspiração, persistindo na manutenção da dicotomia moderna natureza/cultura: É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-Cs. [Sistema percepção-consciência]; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que 154 no id, cabe ao instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as paixões. Tudo isso se coaduna às distinções populares com que estamos familiarizados; ao mesmo tempo, contudo, só deve ser encarado como confirmado na média ou ‘idealmente’. (FREUD, 1996b, pp. 38-39, grifo do autor) Vemos, portanto, que o ego para Freud continua sendo o representante da racionalidade e o id a expressão da natureza. Mais adiante no texto, como se sabe, Freud introduzirá a figura do superego como representante da moralidade. As três instâncias relacionar-se-ão predominantemente de maneira conflituosa, assim como a relação entre natureza e cultura na modernidade é pensada sob o signo do conflito. Groddeck, por seu turno, levará às últimas conseqüências a sentença nietzscheana segundo a qual “Isso pensa.”. Não há, do ponto de vista groddeckiano, conflito entre o ego e o Isso simplesmente porque o primeiro não é nada mais do que um emissário do segundo, um desdobramento da totalidade individual voltada para o mundo externo e que obedece unicamente aos ditames do Isso e não aos interesses de fora. Mesmo quando o ego se manifesta demonstrando uma ignorância acerca das intencionalidades do Isso trata-se de uma estratégia do próprio Isso que, paradoxalmente, revela-se ao mesmo tempo em que se oculta. Em outras palavras, o caráter aparentemente alienado e opaco do ego em relação ao Isso não é atribuído, como em Freud, ao fato de a primeira instância ser formada substancialmente de identificações e de estar a serviço do princípio de realidade. Para Groddeck, essa função egóica de desconhecimento é proposital e serve à finalidade de fornecer ao homem uma ilusão sem a qual ele não pode viver, a saber: a ilusão do livre-arbítrio. Por mais que, mediante um raciocínio ainda que superficial, se chegue à conclusão de que o livre-arbítrio não existe, que todo comportamento humano, como qualquer fenômeno, é determinado por causas que lhe antecedem, vivemos a maior parte do tempo sem pensarmos nisso, crendo na ilusão de que somos a causa suficiente de nossos atos. Essa crença imaginária – sem a qual talvez o homem se visse preso a uma inércia absoluta e a idéia de responsabilidade seria, no mínimo, estranha – só é possível em função da existência de um ego que a priori desconhece as causas de seus comportamentos. 155 Não dá para resolver o problema da liberdade. Não sou capaz de dizer a esse respeito outra coisa senão que: Sabemos, porque somos humanos, que não existe liberdade; acreditamos, porque somos humanos, que existe liberdade. Somos obrigados pelo nosso isso a saber e a acreditar. (GRODDECK, 1994, p. 245) Vemos, portanto, que, para Groddeck, as ilusões a que está sujeito o ego não fazem com que entre ele e o Isso se estabeleça uma relação de conflito, pois tais ilusões são propriamente efeitos do Isso, ou seja, não são produzidas fora, mas a partir dele e são necessárias como forma de sustentar a experiência humana. Nesse sentido, se tomarmos o ego, tal como Freud, como o representante da racionalidade e da civilização e, da mesma forma, o Isso como a natureza em nós, concluiremos que, para Groddeck, razão e cultura não são distintas e opostas à natureza. Pelo contrário, ambas são formas de expressão, modos de manifestação de uma natureza que passa a ser entendida não mais como objeto, mas como fonte ou substância. 4.3 Spinoza, a natureza como substância única e o conatus É justamente a concepção da natureza como o todo, como a única substância existente e não como o reino do imponderável e do caos que necessita da dominação da razão humana que encontraremos em um filósofo que, curiosamente, produziu seu pensamento em um momento histórico em que a modernidade encontrava-se em plena alvorada, a saber: o século XVII. Trata-se do já citado pensador holandês Benedictus de Spinoza (1632-1677). Embora tenha sido um competente aluno das lições da filosofia de René Descartes, chegando mesmo a escrever uma obra chamada Princípios de filosofia cartesiana, Spinoza formula um pensamento, cuja mais límpida elaboração encontra-se em sua Ética, que se estabelecerá numa relação de descontinuidade radical com a filosofia de Descartes. Isso porque, diferentemente deste último, Spinoza propõe – e demonstra – que não podem existir duas substâncias, mas uma única, sendo toda a variedade de expressão12 das coisas no mundo, modos específicos e singulares da substância 12 Embora utilizemos determinadas vezes o termo “expressão” para nos referirmos aos modos e atributos da substância, convém assinalar que, de fato, na Ética, Spinoza faz uso da palavra “afecção” em sua definição de modo. Lançamos mão do primeiro termo por entendermos que, didaticamente, ele permite ao leitor leigo uma 156 única. Nesse sentido, res extensa e res cogitans que na filosofia cartesiana eram concebidas como as duas substâncias existentes passam a ser vistas como dois dos infinitos atributos da substância única, a qual Spinoza também chamará de Deus e de Natureza. A diferença entre “modos” e “atributos” pode ser descrita da seguinte forma: um atributo, de acordo com a definição que Spinoza propõe na Ética é aquilo que o intelecto humano consegue perceber como constituindo a essência da substância (SPINOZA, 2009). O filósofo menciona que nosso intelecto é capaz de perceber dois dos infinitos atributos da substância: a extensão (res extensa) e o pensamento (res cogitans). Já a categoria de modo refere-se a tudo aquilo cuja existência está em outra coisa e foi por ela concebido. Ou seja, o modo não é causa de si mesmo, propriedade essa que é exclusiva e definidora da substância. Logo, como só pode existir uma única substância, todas as coisas existentes em sua multiplicidade de formas são apenas modos, afecções, mudanças de estado da substância. Uma analogia pode nos auxiliar a compreender melhor essa relação entre modos e substância: sabe-se que a molécula de água é composta por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Tomemos essa molécula como personificando a substância. Seus modos seriam, portanto, os estados físicos em que essa molécula pode se apresentar: líquido, sólido e gasoso. De fato, conquanto uma pedra de gelo, um vapor de água e a água líquida propriamente dita sejam fenômenos distintos, trata-se apenas de três modos de H2O. Todos os três acontecimentos são, em essência, H2O. O que gostaríamos de sublinhar é precisamente a idéia de que, para Spinoza, todos os fenômenos e entes existentes compartilham uma mesma essência, na qual existem e da qual provêm. Martins (1998) sintetiza esses aspectos da doutrina spinozana da seguinte forma: apreensão mais facilitada das relações entre atributos, modos e substância. Precisamente a esse leitor nos dirigimos agora com a seguinte ressalva: a palavra “expressão” pode evocar a idéia de uma ação que traz algo da obscuridade para a luz. Todavia, não é disso que se trata em Spinoza. Com efeito, durante principalmente os escólios e o apêndice da primeira parte da Ética, o filósofo toma precauções contra o fato de sua doutrina ser lida desse modo, considerando que a tese de que aquilo que existe em ato poderia ter existido outrora em potência, tendo sido apenas manifestado, contradiz por inteiro o núcleo da filosofia spinozana, pois, para admiti-la, tornarse-ia necessário supor compulsoriamente uma cisão no real entre um mundo manifesto e um mundo a advir, o que é absurdo. 157 [...] se há apenas uma única [substância], não é possível que suas criações existam fora dela - pois se somente há uma substância, não é possível que haja um “fora” a ela. As coisas, assim, são pela substância e na substância. E no entanto não são acidentais. São, portanto, dentro da substância, e dela constituídas essencialmente. Em outras palavras, são modificações da substância, modos individuados desta ser. E mais, se se trata de uma única substância, esta não pode constituir-se de partes, distintas e separáveis mecanicamente pois neste caso teríamos, tal qual em Descartes, por exemplo, duas substâncias: a res cogitans e a res extensa. Pensamento e extensão constituem assim apenas dois atributos essenciais da substância, ou seja, dois aspectos ou características intrínsecas à substância, atribuídas a ela pelo homem aspectos reais, percebidos pelo homem. (MARTINS, 1998, pp. 2-3) A adoção dessas teses implica numa transformação radical no modo de encarar as relações entre o cuidado em saúde e as enfermidades. Se a natureza já não é uma substância que se opõe a outra, a razão humana, as doenças já não podem mais ser alocadas na categoria de inimigos aos quais se deve exterminar. No paradigma spinozano, tanto a racionalidade humana, da qual decorre a medicina seja ela científica, homeopática, oriental etc., como também a patologia são ambos facetas de uma mesma natureza. Logo, a relação que deve ser estabelecida entre os dois fenômenos não deve passar pelo conflito, mas pelo discernimento e pela compreensão, considerando que estão referidos a um manancial constitutivo comum. Nessa perspectiva, a doença não pode ser pensada como um evento que contraria um suposto fluxo natural da realidade. Trata-se, com efeito, como o afirma o próprio Groddeck, de uma manifestação mesma da vida, uma linguagem do Isso, um modo13 da natureza afetar-se. Esse ponto de vista nos parece mais interessante principalmente porque, diferentemente do anterior, ele não nega a complexidade do real. Quando se pensa a enfermidade como a manifestação de uma natureza caótica, um vilão que se deve destruir com a força do heroísmo médico, tende-se a 13 Ao promovermos esse cotejamento entre as teses de Groddeck e a filosofia de Spinoza estamos passando deliberadamente ao largo da distinção entre modos e atributos por considerarmos que a tentativa de explorar essa diferenciação no interior do pensamento de Groddeck extrapolaria os limites do presente trabalho. Fazemos uso, portanto, apenas da tese spinozana de que todos os fenômenos existentes constituem-se em modos da substância única, argumento que nos permite pensar a existência de uma relação análoga entre a doença e o Isso. 158 reificar a patologia, como o fez de modo explícito a medicina das espécies14. A doença passa a ser uma coisa, uma essência, cuja causalidade é mecânica e linear, fator que faria da medicina, no limite, uma ciência exata. Já quando a enfermidade é vista como decorrente da necessidade e não da contingência 15 ou da possibilidade, o amplo espectro de multideterminações do fenômeno patológico se abre e o observador passa a ter diante de si não mais um princípio linear de causalidade, mas uma imensa variedade de eventos que, conjuntamente, levaram ao advento da doença. Obviamente, a elucidação de toda essa rede de fatores determinantes não poderá jamais ser completamente trazida à luz. Não obstante, a mera percepção da patologia como sendo um evento que não poderia não ter ocorrido ou ocorrido de modo diferente, mas que emergiu de modo necessário, já faz com que o observador amplie sua visão do fenômeno a ponto de englobar fatores de diversas ordens como ambientais, sociais, psicológicos, emocionais, culturais etc. Portanto, ao propor a tese de que a natureza não é a antípoda da cultura, mas que essa última constitui-se em um dos modos de ser da primeira, a qual pode ser tomada como o todo, como substância única, fonte e essência de tudo o que existe, Spinoza fornece um aporte filosófico útil para sustentar a proposição groddeckiana da doença como uma manifestação necessária da vida e não como uma contingência a ser amputada da existência. Para quem, como eu, vê na doença uma manifestação de vida do organismo, a doença não é mais uma inimiga. Essa pessoa não pensará mais em combater a doença, não tentará curá-la; vou mais longe, nem mesmo a tratará. Para mim, seria tão absurdo tratar uma doença quanto tentar responder a suas provocações apontando as traquinagens em suas cartas de modo gentil e delicado, sem respondê-las. (GRODDECK, 2008, p. 217) Esse trecho um tanto enigmático de O Livro dIsso nos serve de ocasião para colocarmos em pauta outro aspecto da concepção groddeckiana da doença e que nos levará ao ponto de vista do autor acerca da natureza. Como o mostra a citação, Groddeck defende claramente a tese de que não se deve de modo algum tentar curar uma doença e, talvez, nem sequer tratá-la. Não obstante, na analogia que se 14 Cf. Capítulo 1. Aliás, no escólio 1 da proposição 33 da Ética, Spinoza esclarece que, do seu ponto de vista, encarar algo como contingente ou possível significa desconhecer parcial ou totalmente as causas de sua existência. 15 159 segue, o autor esclarece que não se trata da adoção de uma postura de passividade do profissional de saúde frente ao adoecimento, mas da escolha pela melhor forma de responder à enfermidade. Depreende-se da analogia feita pelo autor que as tentativas de cura ou tratamento seriam respostas ingênuas à doença, semelhante a uma vítima que tentasse convencer pacientemente e de modo amável seu algoz a não matá-la. Trata-se, portanto, de respostas que não levariam em conta a função que a doença está desempenhando com sua existência, o que traz à baila novamente aquilo que ressaltamos no encerramento do capítulo anterior, isto é, que, para Groddeck, a patologia é índice de um saber inscrito no corpo. Nesse sentido, a busca pela cura e o tratamento, no contexto do trecho citado, seriam estratégias que teriam em vista, em última instância, meramente o desaparecimento da doença e não a resposta à pergunta: “O que Isso quer dizer?” que encaminha o profissional de saúde da doença em si para aquilo que só pôde se manifestar através da doença. Em outros contextos, no entanto, especialmente em seus primeiros escritos pré-psicanalíticos, Groddeck não utiliza os termos “cura” e “tratamento” como elementos de um mesmo pacote de respostas à doença. Seguindo o pensamento de seu mestre em medicina Ernst Schweninger, Groddeck conceberá o tratamento como a única possibilidade de abordagem da doença ao alcance do profissional de saúde. Com efeito, a capacidade de curar seria uma propriedade exclusiva da natureza. O tratamento englobaria, portanto, todos os tipos de intervenção em saúde cujo papel seria unicamente o de auxiliar, facilitar, contribuir para a cura, sendo essa um decreto ao qual apenas a própria natureza poderia ratificar. Para sustentar esse ponto de vista, Groddeck é obrigado a lançar mão de uma concepção antropomórfica da natureza, a qual, a um leitor incauto, pode levar à suposição de que a natureza escolheria de modo inteiramente arbitrário o momento em que levaria a doença a desaparecer. No entanto, se analisarmos as idéias groddeckianas à luz das teses spinozanas veremos que elas não precisam de um antropomorfismo para serem validadas. Tomemos a tese da cura como um processo que só é passível de ser realizado pela natureza tomada como o todo e não pelos profissionais de saúde. Anteriormente, vimos que a doença, pensada a partir de Spinoza, pode ser concebida, como todos os demais fenômenos, como um modo da natureza, ou seja, 160 como algo cuja existência depende de outras coisas. Assim, a enfermidade seria um efeito de uma configuração múltipla de fatores colocados em jogo pela interação do homem consigo mesmo e com o ambiente. Nesse sentido, para que o efeito doença pudesse desaparecer, necessariamente os fatores que o levaram a advir, ou seja, suas causas, teriam que, no mínimo, serem desarranjados de sua configuração original. Na medida em que ao homem é impossível ter acesso a todos esses fatores causais, logo não está ao seu alcance eliminar ou desarranjar totalmente a configuração causal. O máximo que o profissional de saúde pode fazer, portanto, é contribuir para esse processo – precisamente o que Groddeck sustenta. Assim, de fato, a cura, se a entendermos como o desaparecimento da doença, só pode sobrevir a partir de um movimento da própria natureza tomada como todo, o que engloba evidentemente a atividade terapêutica dos profissionais de saúde, os quais tomados em si mesmos, possuem um alcance limitado. Logo, o célebre aforismo de Schweninger, ao qual Groddeck constantemente faz referência, a saber: “A natureza cura, o médico trata” permanece válido mesmo sem uma visão antropomórfica da natureza. O que talvez colocasse em xeque nosso argumento seria o fato de que, seguindo Schweninger, Groddeck concebe a natureza como fonte decisiva do processo de cura em função da existência de uma espécie de princípio de autocura, o qual seria o critério a partir do qual a natureza agiria. Trata-se da idéia de que a natureza do organismo humano não seria indiferente aos eventos que lhe afetam, de modo que frente ao adoecimento, por exemplo, a natureza reagiria com a finalidade de promover a recuperação do indivíduo. Essa seria uma especificidade dos seres viventes: a capacidade de reagir ao que lhes acontece. Diferentemente de uma pedra, que não exibe resposta alguma a um corte feito em sua superfície, o organismo vivente portaria a capacidade de produzir algum tipo de resposta a fim de restabelecer a ordem prévia em que se encontrava antes, por exemplo, de um ferimento. Estamos, portanto, diante de uma doutrina que, por sustentar uma especificidade do vivente, poderia ser categorizada filosoficamente como vitalista. Um pensamento pode ser designado como vitalista quando advoga que entre os seres vivos e os demais objetos da natureza existe uma relação de descontinuidade, resultante do fato de que nos seres vivos existiria um atributo 161 original que definiria sua particularidade. Com efeito, a maior parte das correntes vitalistas defende a tese de que esse atributo original seria um princípio ou impulso vital que estando presente na estrutura dos seres vivos condicionaria seu desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma concepção que, tal como a descrição do mito bíblico do Gênesis, postula que a vida é resultante de uma espécie de injeção a partir do exterior de uma força vital, a qual, no texto da Bíblia, é figurada pelo sopro de Deus. Podemos dizer que essa é a tendência mais tradicional da doutrina vitalista, que entende que o princípio vital ou a característica definidora do vivente é transcendente em relação a sua estrutura orgânica, de modo que a morte significaria justamente a perda desse impulso vital. Este vitalismo constitui o que se chamou ‘animismo’: a alma, sopro vital, animaria a matéria inerte. Outra característica relevante da maior parte das correntes mais tradicionais do vitalismo refere-se ao fato de trabalharem com a idéia de “causas finais”. Trata-se de uma categoria aristotélica necessária para a sustentação do ponto de vista que defende a tese de que determinados fenômenos não são determinados apenas por eventos que lhe antecedem no tempo, mas também por aquilo “[...] em vista do que as ações, as mudanças e os movimentos se efetuam [...]” (ARISTÓTELES, 1984, p. 26). Seguindo esse raciocínio, a manifestação de determinados fenômenos seria condicionada também pelos objetivos que eles deveriam realizar no futuro. Assim, as correntes mais tradicionais do vitalismo sustentam que haveria um plano de desenvolvimento ou de evolução prévio à existência de todo ser vivente e que condicionaria essa existência absoluta ou relativamente. O impulso vital seria o responsável por dinamizar o ser levando-o à concretização plena de seu desenvolvimento, como um cocheiro que força seu cavalo a caminhar nas trilhas que deseja. O leitor atento já deve ter discernido que tal pensamento caminha numa via oposta àquela proposta por Spinoza. Primeiramente, se esse filósofo postula que qualquer fenômeno constitui-se não em uma parte, mas em um modo, ou seja, uma faceta da substância única, isso significa que de modo algum tal pensamento poderia se coadunar com uma concepção que advoga a determinação do ser por algo que lhe seja transcendente pelo simples fato de que, se a substância é única, não pode haver transcendência, isto é, nada externo ao ser: “Não há nada fora da substância, ela não tem fronteira nem borda, é infinita, tudo há nela e dela é 162 constituído: objetos, coisas, pensamentos, idéias, a natureza no sentido usual, assim como o homem, o intelecto, a razão.” (MARTINS, 1998, p. 3). Igualmente, a tese de que haveria um plano prévio de desenvolvimento para o vivente perde qualquer possibilidade de sustentação a partir do pensamento spinozano, na medida em que a condição para se admitir esse plano prévio seria a admissão prévia de um descompasso entre o que ocorre de fato e o que deveria ter ocorrido, ou seja, uma versão da idéia que Spinoza combate com veemência na primeira parte da Ética, segundo a qual a natureza poderia ser diferente do que é, o que significaria cindi-la em duas: uma real e outra ideal. Temos, portanto, uma incompatibilidade entre a doutrina spinozana e as correntes tradicionais do vitalismo. Essa contraposição, todavia, poderia ser extensiva a Groddeck? Dissemos há pouco que o médico de Baden-Baden ao defender a tese schweningeriana de que a natureza cura argumenta que ela assim o faz por ser direcionada originalmente para a saúde, exercendo resistência a todo fenômeno patológico com vistas a dissipá-lo. Concluímos, então, que Groddeck expõe aí sua filiação ao vitalismo. Teríamos aqui, por conseguinte, uma ruptura na relação de semelhança entre as concepções de natureza de Groddeck e Spinoza? Na sexta proposição da terceira parte da Ética, Spinoza postula o seguinte enunciado: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (SPINOZA, 2009, p. 105). Na demonstração dessa tese, o filósofo nos remete para a proposição 4 dessa mesma parte do livro, na qual afirma: “Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior” (SPINOZA, 2009, p. 104). Embora Spinoza assevere na demonstração dessa última proposição que ela é evidente por si mesma, se levarmos em conta a elaboração freudiana do conceito de pulsão de morte como uma tendência mortífera presente no humano, podemos concluir que, pelo menos depois das grandes guerras do século XX, ela não pode mais ser tomada como uma obviedade. Na sequência do texto, contudo, Spinoza explica porque a tese é logicamente evidente: ora, a definição de uma determinada coisa afirma necessariamente a essência dela. Uma definição que negasse a essência do que define seria logicamente um absurdo. Portanto, quando consideramos apenas a própria coisa sem referência a nada mais, não se pode encontrar nada que a destrua. 163 Embora hoje, como assinalamos, numa época e numa cultura já marcadas pelo conceito de pulsão de morte essa idéia possa parecer nova, como a própria demonstração do filósofo faz ver, se trata apenas de uma conclusão óbvia do ponto de vista lógico. O que nos parece ser a real novidade introduzida por Spinoza é justamente o que se encontra na proposição 6, a saber: a tese de que toda coisa (e não apenas as que consideramos viventes) exerce uma atividade no sentido de perseverar em seu próprio ser, opondo-se “a tudo que possa retirar sua existência” (p. 105). Do nosso ponto de vista, essa proposição não é meramente uma decorrência da proposição 4. Com efeito, o fato de que nenhuma coisa possa ser destruída a não ser por causas exteriores não implica necessariamente o fato de que ela exercerá uma resistência, uma oposição, uma reação ao que a ela tente destruir. A essa atitude constitutiva de todo ser que o posiciona originalmente de forma ativa a favor da vida e em oposição à morte, Spinoza dará o nome de potência de agir. Ora, ao propor essa idéia não estaria Spinoza se aproximando das tendências tradicionais do vitalismo, afinal, tal como os partidários dessas últimas, o filósofo não estaria advogando a existência nos seres de um impulso vital? De modo algum. E esse é mais um aspecto original do pensamento spinozano. Diferentemente do vitalismo tradicional, Spinoza não concebe a propriedade existente nos seres de perseverarem em sua própria existência como sendo uma “força” ou um “impulso” que neles está contido. Em outras palavras, do ponto de vista spinozano o ser não é o continente de uma tendência transcendental de manutenção e desenvolvimento da vida. Na proposição 7 da 3ª parte, o filósofo postula que “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual.” (SPINOZA, 2009, p. 105). Isso significa que, para Spinoza, a potência (conatus) pela qual o ser persevera em sua existência é sua própria essência, ou seja, não é algo que lhe é infundido de modo transcendente, mas o que propriamente o constitui, de modo que não se pode dizer que os seres são dotados de uma potência interna a perseverarem em sua existência, mas sim que eles, de fato, são o próprio esforço de perseveração. Podemos concluir ainda que não temos em Spinoza uma posição vitalista na medida em que o filósofo não advoga uma especificidade dos seres vivos em relação aos demais seres no que concerne ao esforço de perseveração na existência. Todos os seres, para Spinoza, são conatus, isto é, são potências em 164 perseverarem em seu próprio ser. Se aplicarmos essa idéia ao campo da saúde, os corolários a que seremos levados nos farão aproximarmos novamente as posições de Groddeck e de Spinoza no tocante ao papel do organismo no processo de cura. Com efeito, se o ser, para Spinoza, se constitui como uma potência a perseverar em sua própria existência e se opõe a tudo o que possa retirá-la, isso significa que os seres aos quais tradicionalmente denominamos “vivos”, isto é, seres que estão sujeitos às enfermidades, são constitutivamente resistentes – no sentido de que impõem resistência – a qualquer tipo de dano patológico que coloque em risco sua existência, seja ele um ferimento ou uma infecção viral. Em outras palavras, ao postular o ser como conatus, Spinoza está propondo que o organismo do vivente não é passivo em relação às doenças, mas sim propriamente uma atitude, um posicionamento de aversão em relação a elas. Conquanto Groddeck, na maioria das vezes, utilize um vocabulário que tende a levar-nos a categorizá-lo como um vitalista tradicional, defendemos aqui que o contexto mais amplo de sua obra, isto é, o sentido de seu texto contradiz frequentemente sua letra. De fato, seu conceito de Isso como totalidade individual imanente não admite a existência de nenhum princípio transcendente que o condicione, ou seja, nenhum impulso vital que o tome como continente. A despeito de frases como “Dentro do organismo atuam os processos de cura.” (GRODDECK, 1994, p. 140, grifo nosso), o que se depreende ao logo de seus escritos é a idéia de que o próprio Isso é, em si mesmo, constitutivamente direcionado para a saúde. Em outras palavras, ele não contém os processos de cura; ele os é. Curiosamente, Groddeck expressa essa tese de modo explícito no trecho imediatamente posterior ao citado anteriormente: “A cura não pode vir de fora, o organismo cura autocraticamente de acordo com as suas próprias leis, características dele, as quais, na verdade, são determinadas, até certo ponto, pelas possibilidades do ser humano em geral.” (GRODDECK, 1994, pp. 140-141, grifo nosso) Nos trechos que destacamos dessa última citação é possível notar claramente que Groddeck não concebe os processos de cura como tendências que podem ser encontradas no interior do organismo, como o afirma na penúltima citação. De fato, a tese do autor é a de que a cura é uma consequência da atividade normal do organismo, ou seja, do modo como o organismo está constituído. Em outras palavras, é como se Groddeck estivesse dizendo: assim como o organismo 165 fala, come, dorme, anda, ele também se cura, ou seja, o curar-se faz parte de sua natureza, é constitutivo de sua essência. Ora, não seria isso precisamente o que Spinoza propõe ao demonstrar que o conatus é o próprio ser e não algo que está contido no ser? Se nossa argumentação até aqui não foi injusta com nenhum dos autores, pode-se concluir que em Spinoza encontramos suportes filosófico-conceituais que vêm ao encontro de duas teses groddeckianas que são capitais para as contribuições que extraímos do pensamento do autor no capítulo precedente, a saber: (1) a idéia de que a doença não é um inimigo, mas uma manifestação da vida, assim como a saúde e que, portanto, não deve ser combatida, mas compreendida e (2) a tese de que o organismo exerce uma atividade direcionada para a cura e que, portanto, o tratamento médico tem a função de auxiliar esse processo espontâneo da natureza e não atuar no lugar dela. No que diz respeito a essa última idéia, vimos que, embora Groddeck fale de causas finais e de processos que atuam dentro do organismo, tais expressões parecem não condizer com o sentido maior de seu pensamento que se mostra mais próximo ao de Spinoza, o qual possui como um de seus atributos marcantes precisamente a condenação da noção de causa final. Dizer que a saúde é a causa final da atividade do organismo que passa a se regenerar a partir de um ferimento significa, do ponto de vista spinozano, confundir o efeito com a causa. Na realidade o organismo se regenera e obtém como efeito a saúde, ou seja, o estado saudável é uma consequência da atividade natural do organismo de regeneração, que nada mais é do que uma das expressões do esforço de perseveração. Dito de outro modo, ele age assim porque essa é sua essência, porque a essência de todo ser consiste justamente em perseverar-se em si mesmo e opor-se a tudo o que pode lhe retirar a existência. Quando Groddeck faz afirmações do tipo: “... a doença e a saúde são formas de expressão de uma só vida.” (GRODDECK, 1992, p. 97), o que está implícito em sua argumentação é justamente a inexistência de causas finais que orientam a atividade do Isso. O Isso funciona e se expressa de acordo com suas próprias leis, normas imanentes, tanto através da saúde quanto da enfermidade. 166 Essa última afirmação coloca em jogo um aparente paradoxo do pensamento groddeckiano, ao qual já fizemos referência nos capítulos anteriores, mas que julgamos relevante o abordarmos novamente a fim de esclarecê-lo a partir do cotejamento com a doutrina spinozana. Trata-se da seguinte questão: se argumentamos anteriormente que, para Groddeck, a atividade de cura faz parte do conjunto de atividades próprias ao organismo (Isso), ou seja, que é constituinte de sua essência, a afirmação groddeckiana de que o Isso pode se expressar através da doença não seria contraditória na medida em que a doença poderia ser vista como uma daquelas coisas que colocam em risco a existência do ser, isto é, algo contra o qual o Isso tenderia a se opor? O argumento de Groddeck para a resolução desse problema teórico é o de que o Isso só se manifestaria por meio da doença quando as vias salutares de expressão estão bloqueadas ou quando a enfermidade é um modo de expressão mais útil do que a saúde. Dito de outra forma, a doença seria sempre uma manifestação reativa perante a vida, ou seja, uma atividade a que o organismo recorreria sempre que precisa se defender de um determinado evento ou situação. Já a saúde, por seu turno, ou, se quisermos, a atividade de cura, seria espontânea, positiva, isto é, não condicionada a acontecimentos externos, decorrendo puramente da essência do ser. O argumento de Groddeck se assemelha bastante ao modo como Spinoza explica, na Ética, comportamentos que hoje poderíamos chamar de autodestrutivos. Diferentemente de Freud, que supôs que em última instância tais condutas seriam determinadas pela existência nos seres da pulsão de morte, Spinoza prefere recorrer à experiência e verificar em que contextos tais comportamentos se manifestam como forma de explicar o que está em sua raiz. A conclusão a que o filósofo chega é a mesma que Groddeck sustenta em relação à doença: trata-se sempre, nos comportamentos autodestrutivos, incluindo o maior deles, o suicídio, de defesas contra aquilo que o indivíduo julga ser-lhe um mal maior. Nesse sentido, o suicídio, por exemplo, pode parecer a um indivíduo cujo pai faleceu um mal menor do que uma existência sem o genitor. Evidentemente, o comportamento de alguém que assim age não pode ser atribuído a sua própria natureza, mas sim à ação de causas exteriores que condicionam seu anelo pela morte (ou pela extinção do sofrimento) e não pela vida. Em outras palavras, o desejo de suicidar-se não é 167 espontâneo, mas uma reação à morte do pai, ou seja, um efeito de uma causa exterior ao próprio indivíduo. Nas palavras de Spinoza: Ninguém, portanto, a não ser que seja dominado por causas exteriores e contrárias à sua natureza, descuida-se de desejar o que lhe é útil, ou seja, de conservar o seu ser. Quero, com isso, dizer que não é pela necessidade de sua natureza, mas coagido por causas exteriores, que alguém se recusa a se alimentar ou se suicida, o que pode ocorrer de muitas maneiras. [...] Que o homem, entretanto, se esforce, pela necessidade de sua natureza, a não existir ou a adquirir outra forma, é algo tão impossível quanto fazer que alguma coisa se faça do nada, como qualquer um, com um mínimo de reflexão, pode ver. (SPINOZA, 2009, pp. 170-171) Agora confrontemos esse trecho do escólio da proposição 20 da 4ª parte da Ética com as palavras de Groddeck ao final de sua terceira conferência (“A Doença”) pronunciada na Universidade Lessing em 1926: Uma pessoa que vê um cego pode, sem perigo, presumir alguma coisa de errado, supor que ele ficou cego porque o seu isso achou melhor perder a visão, talvez por causa da frase bíblica: Se o teu olho direito te irrita, arranca-o. Talvez seja melhor não ver do que prejudicar a sua alma. É melhor, às vezes, perder a sua mão do que assassinar um ser humano ou roubar. É melhor, às vezes, fugir da vida através de alguma doença grave, ou mesmo da morte do que viver livremente atormentado pela massa de culpa recalcada. (GRODDECK, 1994, p. 216, grifos nossos) Observe-se que fizemos questão de grifar na citação a palavra “melhor” que Groddeck utiliza bastante nesse trecho. Nosso propósito é o de demonstrar que a explicação que Groddeck fornece para a “opção” do Isso pela linguagem da doença é bastante próxima do argumento spinozano para a gênese dos fenômenos autodestrutivos. Para ambos os autores, trata-se de desvios da espontaneidade do ser motivados por causas exteriores. Groddeck cita notadamente a culpa como uma das principais causas exteriores que levariam o Isso a abdicar daquilo que lhe é útil – no caso, a saúde. Culpa que recebe em Spinoza a designação de “paixão”, isto é, um afeto passivo. Em outras palavras, trata-se de um afeto reativo, ensejado por causas exteriores e que diminui ou refreia o conatus. Destarte, não há contradição entre as teses groddeckianas da doença como criação individual e da natureza como fonte última da cura bem como a existência do 168 suicídio e de comportamentos autodestrutivos não servem como evidências de que o ser não persevera em sua existência. O que acontece é que a suscetibilidade do vivente às causas exteriores e, assim, especialmente, aos afetos passivos, o leva a se colocar perante a “escolha” entre um mal maior e um mal menor – e mesmo em tais situações, refreado e diminuído, o conatus ainda se mostra ativo, “orientando” as decisões. Com efeito, a constante presença do termo “melhor” na última citação de Groddeck evidencia que mesmo nos cenários de maior conflito, o critério da utilidade (ao qual Spinoza faz referência) permanece vigente. Como o próprio Groddeck deixa claro, o Isso não recorre à doença porque está sob a batuta de uma tendência doentia, mortífera, autodestrutiva, mas sim porque uma vida com uma enfermidade lhe parece melhor, mais útil, mais tolerável, do que uma existência carregada de culpa. O Isso ata as pessoas quando é necessário, salva-as, através da doença, dos mais graves perigos, como se a própria vida estivesse em risco, obriga-as a certas atividades através de determinadas doenças, e a repousarem por causa de problemas cardíacos ou da tuberculose. (GRODDECK, 1992, p. 15) 4.4 Canguilhem e a normatividade biológica Além de Spinoza, chamaremos em apoio às idéias de Groddeck outro filósofo, que também já mencionamos anteriormente e cuja obra mais conhecida é justamente sua tese de doutoramento em medicina, intitulada: “O Normal e o Patológico”. Trata-se de Georges Canguilhem, cujas reflexões feitas, sobretudo em torno da idéia de “normatividade biológica”, nos serão de grande utilidade aqui. 16 Em “O Normal e o Patológico” Canguilhem dedica-se a problematizar as relações entre normalidade e patologia, as quais vinham sendo consideradas por alguns autores, notadamente Augusto Comte e Broussais, de um ponto de vista puramente quantitativo. Tratava-se, grosso modo, do seguinte raciocínio: no ponto zero de uma escala teríamos a saúde. Essa, por sua vez, corresponderia a um 16 Coincidentemente ou não, Canguilhem faz referências explícitas a Groddeck em dois de seus breves textos sobre medicina agrupados na coletânea “Escritos sobre a Medicina” (CANGUILHEM, 2005). Trata-se dos textos “A idéia de natureza no pensamento e na prática médicas” e “É possível uma pedagogia da cura?”. 169 suposto estado de normalidade do organismo humano. Como tal estado de normalidade poderia ser determinado? A partir de uma média do funcionamento orgânico dos indivíduos, considerados empiricamente saudáveis, ou seja, considerava-se normal – o ponto zero da escala – o funcionamento orgânico mais encontrado estatisticamente na população supostamente saudável. Assim, concebiam-se todas as variações tanto positivas quanto negativas nessa escala como sendo equivalentes à doença. Logo, não haveria na patologia nenhum traço singular capaz de diferenciá-la da saúde. Um estado só seria considerado patológico por referência a uma escala padrão em que o ponto zero corresponderia à normalidade. Em outras palavras, a doença seria apenas uma variação quantitativa do estado normal. Ao longo de sua tese, Canguilhem vai desconstruindo tal argumentação demonstrando que ao se pensar a relação entre saúde e doença a partir das categorias de normalidade e anormalidade não se está fazendo referência alguma ao que de fato os indivíduos experimentam quando se sentem saudáveis ou doentes. Além disso, para Canguilhem o critério da normalidade não pode ser utilizado para pensar as relações entre saúde e doença porque é um equívoco dizer que a doença é uma anormalidade. A enfermidade, na medida em que é um evento que modifica as relações do indivíduo com seu meio, instaura uma nova norma de vida, diferente da anterior (saúde) e inferior a ela. Descrever essa nova norma de vida como inferior não significa que se a esteja comparando com uma escala padrão e ideal de normas de vida. Com efeito, o parâmetro de comparação não é a média do funcionamento orgânico de uma população, mas o próprio indivíduo. O processo de adoecimento se caracteriza justamente por essa passagem de um primeiro estado em que o indivíduo se encontrava com uma maior capacidade de instaurar novas normas de vida para si – ou seja, de poder usufruir da vida não apenas no ambiente em que atualmente se encontra, mas também em outros contextos – para um segundo estado em que essa capacidade normativa foi parcialmente extinta. Nas palavras do próprio Canguilhem: Portanto, devemos dizer que o estado patológico ou anormal não é consequência da ausência de qualquer norma. A doença 170 é ainda uma norma de vida, mas uma norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes. (CANGUILHEM, 2009, p. 136) É preciso sublinhar que ao eliminar a diferença entre normal e anormal no que diz respeito às relações entre saúde e doença, Canguilhem não está dizendo que não haja distinção entre o indivíduo saudável e o indivíduo doente, ou seja, que não existam critérios para diferenciar a saúde da doença. O que o filósofo defende é a tese de que essa diferenciação não pode ser feita através da comparação entre um indivíduo e uma média do funcionamento orgânico de uma população, mas sim que é preciso distinguir a saúde da patologia tendo o próprio indivíduo como ponto de referência. Isso porque do ponto de vista canguilhemiano a saúde só pode ser pensada considerando-se as relações do indivíduo com o meio específico em que vive e não o indivíduo isoladamente. Com efeito, dependendo das exigências que um determinado ambiente faça a um indivíduo, ele poderá apresentar traços orgânicos (como frequência cardíaca, por exemplo) tão discrepantes em relação à média da população que, se considerássemos o indivíduo isoladamente, não hesitaríamos em considerá-lo doente. Não obstante, tal indivíduo pode estar gozando de ótima saúde – suas normas biológicas adaptaram-se à relação específica que mantém com seu ambiente. Portanto, para Canguilhem a saúde não equivale à concordância entre o padrão de funcionamento orgânico de um indivíduo e a média do funcionamento de sua população, mas sim a uma capacidade, um potencial, uma disposição a tolerar as transformações de seu meio circundante sem desfalecer. A particularidade da norma vital instaurada pela doença é justamente o fato de só permitir que o indivíduo sobreviva naquelas condições em que se encontra enfermo. Trata-se de uma norma inferior de vida porque, conforme sustenta Canguilhem, o organismo saudável não busca conservar-se em um determinado estado, mas antes expandir-se, desenvolver-se, realizar sua natureza, ainda que isso implique o enfrentamento de riscos e a superação de limites. 171 Para Canguilhem – e aqui nos encontramos novamente com Groddeck e Spinoza – o vivente, diferentemente dos seres inanimados, não é indiferente ao que acontece em seu meio. Os seres vivos estão sempre estabelecendo mais ou menos conscientemente juízos valorativos sobre aquilo que lhes afeta, afirmando ou negando aspectos do ambiente. Nesse sentido, mais do que apenas existirem em determinado meio, os organismos, ao valorarem a existência, estabelecem o seu próprio meio circundante. É justamente essa capacidade de desenvolver-se estabelecendo normas de vida para si que Canguilhem denomina de “normatividade biológica”. E a possibilidade de exercê-la é o que corresponderá, para o filósofo, à saúde. Nesse sentido, a medicina, uma prática eminentemente valorativa na medida em que julga como superiores determinadas normas de vida em detrimento de outras e aplica intervenções baseadas em tal juízo, nada mais é do que uma extensão da capacidade normativa que todo organismo humano exerce de modo natural. É essa capacidade normativa, essa normatividade biológica que se manifesta nos fenômenos espontâneos de regeneração corporal e em todos os eventos orgânicos relativos ao sistema imunológico. É por ser normativo que o organismo humano diante de uma bactéria que o invade inicia um processo de defesa contra ela (inflamação) a fim de expulsá-la. Trata-se da capacidade do vivente de julgar um determinado elemento ambiental como prejudicial e buscar a instauração de uma norma de vida tal que seja capaz de resistir a ele. Nesse sentido, os próprios sintomas de uma doença podem ser vistos como resultado da reação normativa do organismo: A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar. (CANGUILHEM, 2009, p. 10) Embora Canguilhem, nessa citação, esteja, sobretudo, fazendo referência ao que ele denomina de “teoria dinamista ou funcional” da doença, presente especialmente na medicina hipocrática, tal concepção se coaduna perfeitamente com suas próprias idéias acerca da enfermidade. Com efeito, se o organismo é uma “polaridade dinâmica”, que valora os eventos que lhe afetam, logo não se pode 172 conceber a doença como um acontecimento dissociado dessa atitude. Portanto, tal como Groddeck, podemos dizer que Canguilhem sustenta aqui a tese de que adoecer é uma das atividades próprias ao organismo tal como o comer, o dormir, o andar, o falar etc. Aliás, o próprio filósofo afirma isso de modo explícito: “Estar com boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um luxo biológico.” (CANGUILHEM, 2009, p. 150). E ainda: Ao contrário de certos médicos sempre dispostos a considerar as doenças como crimes, porque os interessados sempre são de certa forma responsáveis, por excesso ou omissão, achamos que o poder e a tentação de se tornar doente são uma característica essencial da fisiologia humana. (CANGUILHEM, 2009, p. 151). Talvez conseguíssemos retirar um pouco do peso condenatório que paira sobre a tese groddeckiana da doença como criação individual se a cotejássemos com o conceito de normatividade biológica. Com efeito, se a patologia é uma possibilidade sempre presente na fisiologia do vivente e se a doença se manifesta por ocasião de um embate entre o organismo e determinadas condições de seu meio, não seria inadequado pensar a doença como expressão da normatividade biológica individual. A instauração de uma norma de vida inferior teria, assim, como efeito justamente um impedimento momentâneo de o indivíduo arriscar sua saúde na medida em que se encontra debilitado em função da batalha travada contra condições adversas. Groddeck expressa essa mesma idéia com seu vocabulário próprio: Com a suscetibilidade à doença, o sensível Isso cria posições seguras onde refugiar-se. A doença, seja ela aguda ou crônica, infecciosa ou não, traz sossego, protege contra o agressivo mundo exterior, ou pelo menos contra fenômenos bem determinados, que são insuportáveis. (GRODDECK, 1992, p. 16) Ao trabalhar com a noção de normatividade biológica, Canguilhem é levado inevitavelmente a conceber a doença não como algo dissociado dos padrões de interação do indivíduo com o meio (como o faz a biomedicina), mas sim como um evento que possui uma função. Groddeck, por seu turno, em vez de “função” preferirá o termo “sentido”: toda enfermidade, para o médico de Baden-Baden, porta um sentido, o qual nada mais é do que a função que a doença exerce na existência 173 presente e na história do indivíduo consideradas não apenas do ponto de vista orgânico, mas também subjetivo. Acerca da atitude valorativa do vivente face ao meio postulada por Canguilhem e expressa através do conceito de normatividade biológica, é possível encontrar na obra groddeckiana indicações de que tal posicionamento é justamente o que caracteriza o comportamento do Isso. De acordo com Groddeck, “O Isso tudo examina, decide e conserva o melhor. Seu procedimento é equiparável ao da célula, que, cercada de substâncias alimentícias, decide autonomamente o que quer aproveitar.” (GRODDECK, 1992, p. 120, grifo nosso). Mais uma vez consideramos relevante destacar a palavra “melhor” nessa citação, pois ela nos parece o sinal da entrada em um terreno comum em que os pontos de vista de Groddeck, Spinoza e Canguilhem parecem estar bastante próximos. Com efeito, os três autores parecem postular o critério da utilidade como parâmetro valorativo a partir do qual o indivíduo julga os eventos que lhe afetam. Essa última citação de Groddeck deixa explícito que no tocante ao comportamento do Isso se trata efetivamente de opções pelo “melhor”, isto é, pelo mais útil. Spinoza, como vimos também concebe o funcionamento do humano orientado por esse critério: Será suficiente aqui que eu tome como fundamento aquilo que deve ser reconhecido por todos, a saber, que todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e que todos tendem a buscar o que lhes é útil, estando conscientes disso. (SPINOZA, 2009, p. 42) Na medida em que é essencialmente um esforço em perseverar na própria existência, uma potência de agir, o indivíduo necessariamente tenderá a valorar as coisas em função do critério da utilidade. A noção de normatividade biológica expressa, com um vocabulário diferente, precisamente a mesma idéia. Para Canguilhem, todo vivente estabelece uma interação normativa com seu ambiente, isto é, diante dos inúmeros tipos de elementos e aspectos presentes no meio, afirma apenas aqueles que estão de acordo com suas normas e nega todos os demais que as contrariam. É justamente por isso que o funcionamento do organismo não pode ser julgado em termos de saúde e doença a partir de uma análise físico-química: 174 Quando os dejetos de assimilação deixam de ser excretados por um organismo e obstruem ou envenenam o meio interno, tudo isso, com efeito, está de acordo com a lei (física, química etc.), mas nada disso está de acordo com a norma, que é a atividade do próprio organismo. Esse é o fato simples que queremos designar quando falamos em normatividade biológica. (CANGUILHEM, 2009, p. 88) O conceito de normatividade biológica traduz uma especificidade dos organismos vivos, o fato de que “... a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa.” (CANGUILHEM, 2009, p. 86) 4.5 Isso, normatividade biológica e conatus Temos, tanto em Groddeck quanto em Canguilhem e Spinoza a postulação de um indivíduo ativo, potente, que exerce um esforço espontâneo no sentido de sua expansão e, quando necessário, conservação. Isso, conatus e normatividade biológica: três termos diferentes que traduzem uma mesma realidade fundamental: a de que o indivíduo não é passivo em relação ao meio. Trata-se de um ponto de vista radicalmente distinto dos postulados que fundamentam o modelo biomédico. Se na biomedicina encontramos uma ênfase no diagnóstico, no combate à doença e nas tecnologias médicas é justamente por se encontrar em seus fundamentos teóricoconceituais uma visão mecanicista do organismo humano. Trata-se, como já afirmamos anteriormente de uma concepção do indivíduo como máquina, isto é, submetido unicamente às leis da física e da química e não dotado de uma normatividade biológica. No modelo biomédico, as intervenções de assistência à saúde são tomadas como procedimentos indispensáveis ao restabelecimento do paciente, da mesma forma que na modernidade a razão deveria dominar a natureza. Nesse sentido, na biomedicina é o médico o componente principal da relação terapêutica, o elemento racional que deverá dominar a doença, expressão da perigosa natureza. Diferentemente, quando se enxerga o indivíduo como sendo uma posição inconsciente de valor, um esforço em perseverar na própria existência, um Isso que 175 examina, decide e conserva o melhor, a dinâmica por inteiro do cuidado em saúde é alterada, mas principalmente a relação entre o médico e o doente. O paciente já não é pensado como um ser passivo e frágil diante da doença, mas sim como um indivíduo que expressa justamente com a doença o confronto que trava contra elementos prejudiciais de seu ambiente. Logo, a própria enfermidade já é signo de sua potência e normatividade. O papel do médico, então, se torna relativizado, pois ele já não é visto como sendo o único dos elementos da relação terapêutica que tem a saúde e a recuperação em vista. O próprio organismo doente já exerce um esforço no sentido de seu restabelecimento, o que não significa que o indivíduo sozinho tenha condições de se recuperar de todas as enfermidades que lhe acometem. De fato, para um grande número de doenças a intervenção médica é desnecessária, pois o próprio organismo de forma mais ou menos lenta é capaz de curar-se. Não obstante, para algumas patologias de fato a intervenção médica é necessária, mas não porque ela seja o representante da racionalidade que deve subjugar a doença, mas sim porque se constitui em extensão, como já dissemos, da normatividade biológica de cada indivíduo. Podemos expressar esse argumento de forma ilustrativa comparando o indivíduo doente a um grande rio que apresente em determinado ponto de seu leito um obstáculo que o impede de seguir seu curso natural. Em decorrência, para permitir ao rio mover-se normalmente não seria preciso alterar seu curso, mas sim eliminar aquilo que lhe obstaculiza. O curso natural do rio serve-nos como metáfora na normatividade biológica, fluxo ininterrupto de expansão que pode ser parcialmente interrompido em função de determinado evento. Assim, a tarefa do médico e dos demais profissionais de saúde não é a de fazer com que o rio siga seu curso. Ele o faz naturalmente. O papel do cuidado em saúde é o de descobrir em que ponto do leito o obstáculo se encontra e retirá-lo. Em outras palavras, trata-se de uma função facilitadora, auxiliadora. Nos termos de Spinoza, o profissional de saúde não é o elemento capaz de fornecer ao ser o esforço em perseverar em sua existência, mas sim um ambiente que pode aumentar esse esforço, levando-o à passagem para uma perfeição maior. Groddeck, em diversas passagens de seus escritos, defende de modo bastante explícito que se deve recorrer ao profissional de saúde apenas nas ocasiões estritamente necessárias e ainda que, mesmo em tais situações, a tarefa 176 do profissional deve ser somente a de reforçar a tendência do próprio organismo a se recuperar: Temos a obrigação de incentivar diretamente a tendência do enfermo à convalescença – e isso é a primeira coisa que devemos fazer – mas cabe perguntar se isso é o mais importante. Na maioria dos casos, segundo a minha experiência em mais de ¾ de toda a nossa atuação médica, basta perfeitamente o incentivo direto à disposição à recuperação. [...] Paulatinamente, reconhecerá que o fundamental para a recuperação não foi ele quem fez e sim o enfermo, a sua disposição à cura. (GRODDECK, 1992, p. 178) *** Cremos ter conseguido ao longo deste capítulo demonstrar que conquanto as proposições teóricas de Georg Groddeck tenham sido forjadas entre o final do século XIX e início do século XX e tanto a medicina quanto a psicanálise as tenham negligenciado totalmente, elas se mostram mais atuais do que nunca. Aliás, ocorre o mesmo com Spinoza, filósofo cujo pensamento encontra hoje, no século XXI, um terreno muito mais fértil do que no século XVII quando se encontrava na contramão da ideologia moderna. Como viemos defendendo ao longo deste texto, as transformações que hoje se fazem necessárias e que são frequentemente reivindicadas pela literatura no campo do cuidado em saúde só se manifestarão na prática quando os fundamentos filosófico-conceituais sobre as quais a assistência à saúde está assentada forem primeiramente modificados. Não se trata da postulação de uma soberania da teoria sobre a prática. Pelo contrário, sustentamos que ambas caminham juntas e são indissociáveis. É justamente por isso que não concordamos com o argumento de que os impasses e limitações que são apontados no modelo biomédico são devidos ao que se convencionou chamar de “má prática médica”, pois precisamente nas ocasiões em que essa prática é considerada boa é que os impasses se apresentam de modo mais explícito. Em outras palavras, é quando na prática a biomedicina se mostra em sua versão mais concordante com suas concepções sobre doença, saúde e cura que ela deixa claras suas limitações. 177 As contribuições extraídas especificamente do texto de Georg Groddeck para o enfrentamento desses impasses nos levaram inevitavelmente à constatação de que elas só poderiam de fato ser postas em prática no interior de um novo modelo de cuidado em saúde. Tal modelo, por sua vez, deveria estar sustentado em postulados filosóficos distintos dos que fundamentam a racionalidade biomédica. Acreditamos ter encontrado em Spinoza e Canguilhem tais postulados; teses frutíferas para a proposição desse novo modelo. Spinoza, por conceber a natureza como substância única – e, por conseguinte, corpo e psiquismo, matéria e razão como aspectos desse real uno e indivisível – e o organismo como conatus, esforço de perseveração na existência e não uma máquina passiva. Canguilhem, por seu turno, nos fornece uma definição de saúde positiva: a capacidade de instituir novas normas de vida para si, ou seja, de expandir-se, desenvolver-se, podendo correr o risco de adoecer. Definição de saúde radicalmente distinta daquela presente na biomedicina, a qual concebe o ser saudável como um ente mítico em que há ausência de imperfeições ou, na definição ainda mais mítica e ideológica da OMS, um organismo que se encontra em um estado de completo bemestar físico, psíquico e social. A definição positiva de saúde de Canguilhem está diretamente associada a seu conceito de normatividade biológica que nos foi de especial utilidade, pois além de se harmonizar perfeitamente com o conatus spinozano, fornece uma descrição empírica do esforço em perseverar na existência. Demonstramos que as contribuições que extraímos do pensamento de Groddeck no capítulo anterior convergem adequadamente para as proposições desses dois autores. A doença como criação e como manifestação da vida deixa de ser uma idéia “mística” ou “selvagem” – designações que algumas vezes foram atribuídas ao pensamento de Groddeck – quando modificamos nossa concepção de natureza e de organismo. Se a natureza já não é pensada como o reino do imperfeito e do imponderável a ser normatizado pela racionalidade humana, mas sim como o real, a única substância, da qual procedemos e na qual vivemos, a doença já não precisa ser pensada como inimigo, mas como expressão da existência. Da mesma forma, a tese de que a natureza é quem de fato cura, sendo a função do médico restrita à relatividade de tratar só não faz sentido no interior de um 178 paradigma que concebe o corpo humano como um aparato mecânico, incapaz de resistir, de se defender e de valorar a existência, instaurando suas próprias normas vitais. Por outro lado, se o organismo é visto como posição inconsciente de valor e polaridade dinâmica, torna-se perfeitamente compreensível a asserção de que o verdadeiro agente da cura é a natureza, isto é, o próprio esforço da vida em perseverar em sua existência ou, em outras palavras, a normatividade biológica tanto individual quanto desdobrada em forma de medicina. 179 CONCLUSÃO Neste momento em que se nos exigem algumas palavras finais a fim de concluir este estudo, nos parece conveniente retomar a hipótese central que ensejou a produção desta pesquisa e que norteou todo o processo de investigação. Consideramos também oportuno fazermos algumas considerações a respeito de como se deu o processo de “gestação” deste trabalho, isto é, o percurso que se iniciou com nossas primeiras intuições e questionamentos e que desembocou na confecção definitiva dos objetivos da pesquisa. Ainda que estejamos cientes de que tais apontamentos seriam igualmente pertinentes à parte introdutória de nossa dissertação, julgamos que eles seriam mais bem aproveitados aqui na medida em que possibilitariam ao leitor analisar as conclusões extraídas ao final do estudo à luz das questões iniciais. Iniciamos o trabalho crendo ser possível demonstrar que na obra de Georg Groddeck, um autor pouco conhecido no campo da saúde, poderiam ser encontradas proposições férteis para a discussão atual acerca dos impasses e limitações experimentados no cuidado em saúde oriundos do predomínio da racionalidade biomédica. Por que escolhemos a obra de Groddeck e não a de outro autor como objeto de estudo é uma questão cujas respostas certamente não se reduzem àquelas que podemos extrair da consciência, afinal quem se propõe a investigar o pensamento de um autor como Groddeck jamais poderá negligenciar a realidade das motivações inconscientes, a realidade do Isso, como o próprio autor diria. Não obstante, como não se trata aqui de nada semelhante a uma auto-análise, permaneçamos apenas na dimensão do que nossa consciência é capaz de acessar e respondamos: “Por que Groddeck?”. Antes de iniciarmos este estudo, nossa intenção era a de trabalhar em torno de outro tema: as diversas concepções de doença psicossomática presentes na teoria psicanalítica. Nossa hipótese era de que havia dois grupos principais de vertentes de pensamento sobre psicossomática em psicanálise: o grupo dos que sustentavam suas concepções na separação entre corpo e psiquismo e o grupo 180 daqueles que poderíamos caracterizar como monistas, para os quais a referida separação seria meramente didática. Groddeck nos pareceu o mais radical dentre os monistas. O conceito de Isso se mostrava suficiente para que o autor passasse ao largo das eternas discussões sobre a existência do que no século XIX se denominava de “psicogênese das doenças orgânicas”. A própria noção de doença psicossomática perdia todo o sentido ao ser confrontada com o pensamento groddeckiano. Com efeito, para Groddeck não existem doenças “puramente orgânicas”, ou seja, o outro grupo de patologias que se diferenciariam das psicossomáticas. Através da leitura de alguns dos textos mais importantes do autor, fomos gradativamente nos dando conta que os pontos de vista de Groddeck eram tão radicais e singulares a ponto de não haver na teoria psicanalítica nenhum autor que pudesse ocupar junto com ele uma mesma categoria. Não havia (e ainda não há), por exemplo, outro autor psicanalítico que admitisse explicitamente que toda doença possui um sentido e pode, portanto, ser interpretada como um símbolo. Mesmo autores que se negam a postular uma separação entre corpo e psiquismo, como Winnicott, se abstinham de adotar posicionamento tão extremo. Esse cenário nos fez pensar na hipótese de que a obra de Groddeck mereceria, talvez, um estudo exclusivo, na medida em que somente não fazendo justiça a seu pensamento se poderia alocá-lo em um mesmo grupo com outros autores. Tal hipótese foi reforçada pelo fato de que Groddeck fora um autor bastante negligenciado pelos campos médico e psicanalítico, de sorte que pouquíssimos estudos e artigos sobre sua obra podem ser encontrados. Por outro lado, textos recentes como “Definition, foundation and meaning of illness: locating Georg Groddeck in the history of medicine”, de Aleksandar Dimitrijevic e “Embodiment”, de Robert Langan, ambos publicados no The American Journal of Psychoanalysis em 2008 e 2007, respectivamente, sinalizavam a revivescência do interesse da comunidade psicanalítica pelo pensamento groddeckiano 17. Interesse que nunca foi forte o suficiente para que Groddeck adquirisse um lugar de proeminência entre os 17 Neste ano (2011), Lazslo Antônio Ávila, psicólogo e professor-adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP), que escreveu diversos livros e artigos sobre as idéias de Groddeck (alguns dos quais foram por nós utilizados ao longo de nossa pesquisa), publicou o texto Groddeckian Interventions In Medical Settings”, também no The American Journal of Psychoanalisis. 181 discípulos de Freud, embora, como vimos no capítulo 1, o próprio Groddeck não anelasse tal posição. Uma pesquisa que tivesse como objeto de estudo exclusivamente a obra groddeckiana nos parecia, portanto, uma empreitada frutífera tanto porque proporcionaria uma contribuição relevante para a psicanálise e também para a medicina, inserindo-se numa tendência de retomada do pensamento do autor. Por outro lado, nosso contato inicial com a produção bibliográfica da área de Saúde Coletiva, na qual ainda éramos neófitos naquele momento, nos levou a uma série de textos que davam conta de certa insatisfação crescente com os modelos, paradigmas e racionalidades vigentes na medicina e no cuidado em saúde contemporâneo de forma geral. Tal insatisfação geralmente se assentava em críticas aos diversos reducionismos presentes no modo como a biomedicina (o referido modelo vigente) pensava a doença, a saúde e o cuidado, modo esse que fomentaria práticas de saúde ineficazes em muitos aspectos na medida em que não atentavam para a dimensão subjetiva e social dos processos de adoecimento. Argumentava-se que o modelo biomédico considerava o doente como um mero corpo disfuncional, a ele não sendo direcionada uma escuta qualificada, mas apenas um olhar escrutinador cujo principal objetivo era a certificação do diagnóstico mais que o tratamento. Constatamos que uma série de aspectos do pensamento de Groddeck se coadunava bastante com as expectativas nutridas por tais críticas. Embora o autor tivesse elaborado suas idéias entre o final do século XIX e início do século XX, período em que essa discussão ainda não estava em voga, impressionava-nos o quanto as proposições do autor vinham ao encontro das mudanças reivindicadas pelos críticos do modelo biomédico. Foi nesse momento que chegamos à conclusão de que seria mais produtivo realizar uma pesquisa específica sobre Groddeck, mas que tivesse como objetivo não apenas analisar sua vida e obra, mas apontar quais as contribuições de seu pensamento para a superação dos impasses da biomedicina descritos na literatura. Estaríamos, assim, não apenas resgatando o autor e sua obra, mas também demonstrando a fertilidade de suas idéias para as discussões atuais no campo da saúde. 182 Agora, observando retrospectivamente, cremos que nossa escolha foi acertada, pois acreditamos ter conseguido atingir o objetivo geral do estudo, evidenciando a aplicabilidade do pensamento groddeckiano na atualidade. Não obstante, estamos certos de que nosso trabalho não foi capaz de colher todos os frutos que a fecundíssima árvore da obra de Groddeck é capaz de produzir. Muitos textos do autor são de uma riqueza tão extraordinária que sentimo-nos em dívida por não termos tido tempo suficiente para explorar todas as suas possibilidades. Nesse sentido, as contribuições do autor que descrevemos e comentamos no capítulo 3 são só aquelas que o estudo realizado no curto espaço de tempo de um curso de mestrado nos permitiram extrair. Várias outras ainda se encontram lá, nos textos de Groddeck, à espera de um novo olhar investigativo. Feitas tais ressalvas com o intuito de deixarmos explícitas as limitações desta pesquisa, faremos agora uma síntese de nossa trajetória desde o primeiro capítulo até aqui, apontando as conclusões a que chegamos a partir do alcance dos objetivos de cada capítulo. Dedicamos o capítulo 1 à exposição dos impasses vivenciados no campo do cuidado em saúde em função da vigência do modelo biomédico. Concluímos que (1) a biomedicina, enquanto racionalidade médica predominante na medicina ocidental, está historicamente ligada aos princípios teórico-metodológicos da racionalidade científica moderna e à ideologia cientificista que dela decorre; (2) a medicina das espécies (medicina classificatória) como primeiro modelo de teoria e prática médicas modernas bem como a anatomia patológica podem ser considerados como os principais antecedentes históricos do modelo biomédico, sendo muitos dos impasses vivenciados por esse modelo heranças de concepções daqueles movimentos; (3) Alguns dos principais impasses advindos da biomedicina são: ênfase na doença e no diagnóstico; diagnóstico reducionista baseado unicamente em sinais e sintomas orgânicos; separação entre corpo e psiquismo; criação de um imaginário em que a doença ocupa o lugar de inimigo; necessidade de correspondência entre sintomas e lesões como forma de legitimar o sofrimento do paciente, dentre outros. Tendo apresentado esse panorama de problemas para os quais a obra de Groddeck traria contribuições, no capítulo 2 fizemos um extenso ainda que sintético apanhado de fatos importantes da vida de Groddeck e de suas principais idéias. 183 Mencionamos o pouco reconhecimento que sua obra obteve ao longo dos anos atribuindo-o ao fato de grande parte das proposições do autor estar na contramão da racionalidade biomédica que, até algum tempo não recebia muitas críticas e, portanto, gozava de hegemônica legitimidade e ao caráter assistemático do pensamento groddeckiano bem como à própria personalidade excêntrica do médico, fatores que acabaram inviabilizando o surgimento de uma “Escola Groddeckiana de Psicanálise”. Acompanhamos também, através das próprias narrativas do autor, as relações entre fatos de sua infância, sua escolha profissional e seus pontos de vista acerca da ciência, da doença e da medicina. Demonstramos a forte influência que pensadores românticos, principalmente Goethe, tiveram sobre suas idéias, além das influências de duas outras figuras essenciais: Ernst Schweninger e Sigmund Freud. O primeiro com suas lições acerca da função ativa da natureza no processo de cura e o papel relativo do médico e o segundo compartilhando com Groddeck a descoberta das espantosas relações entre os símbolos e o corpo. Vimos também como Groddeck acabou tendo acesso de modo autônomo a experiências semelhantes às de Freud, o que gerou, inclusive, certa rivalidade implícita na relação entre ambos. Foram justamente tais experiências – com pacientes de doenças orgânicas e não histéricos – a fonte de onde Groddeck extraiu os três eixos principais de seu pensamento, a saber: o simbolismo como produção espontânea e não a conjugação arbitrária entre palavras e coisas; o conceito de Isso como totalidade individual; e a concepção da doença como sendo portadora de sentido. Esses três pilares de sua doutrina foram examinados com bastante rigor, fazendo justiça ao sentido dos textos groddeckianos e, ao mesmo tempo, esclarecendo determinados aspectos obscurecidos por seu estilo de escrita. Ao final do capítulo 2, acreditávamos que o leitor já estaria suficientemente capacitado a compreender o que apresentaríamos no capítulo seguinte, na medida em que estaria ciente dos principais conceitos de Groddeck, podendo apreciar adequadamente suas contribuições. Assim, no capítulo 3, núcleo de nosso estudo, expusemos algumas das contribuições que pudemos extrair da obra de Groddeck para a superação dos impasses da biomedicina examinados no capítulo 1. 184 No modelo biomédico, a medicina possui o estatuto de ciência, no sentido estrito do termo, e não o de uma prática ou uma arte. Como toda ciência deve necessariamente ter um objeto de estudo, o da medicina seria a doença. Daí o enfoque maior dado no contexto do tratamento às características da doença em si mesmas e não ao indivíduo que se apresenta doente. Se a doença é o verdadeiro objeto de estudo, aquilo sobre o qual se deve produzir um saber o mais rigoroso possível a fim, paradoxalmente, de eliminá-lo, o doente acaba tornando-se um elemento estorvador dessa tarefa. Afinal, com suas queixas “mal” formuladas, sua descrição “insuficiente” dos sintomas, o doente acaba dificultando o processo desempenhado pelo cientista/médico de localização e determinação da doença. Groddeck, por sua vez, seguindo os passos de seu mestre em medicina Ernst Schweninger, defende que o doente seja colocado em primeiro plano, argumentando que o diagnóstico da doença é, em última instância, apenas uma ficção teórica, um nome dado a um conjunto de processos que ocorrem com um indivíduo. Em outras palavras, para Groddeck o paciente e não a patologia é a única realidade vivencial a que o profissional de saúde tem acesso, de sorte que o doente deve ser o verdadeiro objeto do tratamento e não a doença. Reconhecendo a impossibilidade de sustentar um cuidado em saúde sem algum tipo de diagnóstico, Groddeck propõe que em vez do diagnóstico tradicional feito em medicina, baseado apenas em sinais e sintomas corporais, se faça um “diagnóstico do ser humano”, muito mais amplo. Defendendo sua tese axial de que toda doença possui um sentido, ou seja, que está inserida dentro de uma história subjetiva e simbólica, Groddeck não admite a tendência beligerante em relação à enfermidade encontrada na biomedicina. Se a doença, para o médico alemão, é um modo de expressão do indivíduo, não se deve combatê-la, mas compreendê-la, a fim de superá-la, retirando-lhe sua necessidade. Mesmo antes de conhecer o conceito freudiano de transferência, Groddeck já era ciente das fantasias, afetos e toda a gama de conteúdos emocionais que se fazem presentes na relação médico-paciente. Por conta disso, defende que muitos obstáculos enfrentados no decorrer do tratamento podem estar relacionados ao que Freud denominaria posteriormente de “dinâmica transferencial”. Em decorrência, a 185 transferência deve ser sempre levada em conta pelo profissional de saúde em todas as fases do tratamento. Vimos também que Groddeck não admite a separação entre corpo e psiquismo, considerando ambos como linguagens do Isso. Tal separação, com efeito, se faz presente no modelo biomédico e gera diversos impasses especialmente nos casos de queixas somáticas para as quais não se encontra uma lesão correspondente. A adoção do ponto de vista monista proposto por Groddeck elimina tal limitação na medida em que não se faz necessária a localização de uma lesão para legitimar uma queixa. Para o autor, toda e qualquer manifestação individual, seja ela física ou psíquica é uma forma que o Isso encontra para se expressar. Finalizamos o terceiro capítulo apontando a contribuição que, a nosso ver, é a mais notável que pôde ser extraída da obra de Groddeck, a saber: a tese de que a doença está inserida na história de vida do doente e não é apenas uma disfunção corporal sem significado subjetivo. Argumentando que a doença é uma manifestação da vida, como todas as demais expressões humanas, o médico alemão elimina a barreira entre doença e subjetividade que na biomedicina se impõe de maneira bastante rígida. No capítulo 4, que consideramos como sendo de natureza complementar, quisemos valorizar ainda mais as contribuições de Groddeck relacionando-as a idéias de outros autores cujos focos de reflexão são realidades de uma dimensão mais ampla do que a do cuidado em saúde. Em outras palavras, como dissemos no início daquele capítulo, nosso intuito era o de inserir as proposições de Groddeck no interior de uma metadiscursividade. A fim de cumprir tais objetivos, fizemos uso principalmente dos pensamentos de Baruch de Spinoza, filósofo do século XVII e de Georges Canguilhem, filósofo do século XX que também se formou em medicina. De Spinoza utilizamos principalmente suas teses da Natureza como substância única; da matéria e pensamento como modalidades dessa Natureza; e do ser como conatus, esforço de perseveração na existência. De Canguilhem colhemos sua definição positiva de saúde, como capacidade normativa bem como seu conceito de normatividade biológica, o qual se harmoniza bastante com o modo como Groddeck define a atividade do Isso. 186 Encerramos este estudo com a esperança de que o trabalho de investigação que fizemos na obra de Groddeck a fim de colaborar para a elaboração de um novo modelo de cuidado em saúde possa ultrapassar os limites destas páginas. Desejamos que o que escrevemos aqui seja capaz de inspirar o interesse dos leitores pelos escritos de Groddeck, levando cada um a fazer a experiência pessoal de verificar a riqueza presente naqueles textos. Além disso, esperamos que as contribuições que extraímos do pensamento groddeckiano possam ser de fato levadas em conta na discussão que hoje se faz sobre as limitações da biomedicina. Nossa intenção não foi apenas a de realizar um exercício de pesquisa teóricoconceitual sem maiores conseqüências. A aposta é de que as idéias de Groddeck que aqui apresentamos possam se desdobrar em propostas efetivas de transformações na teoria e na prática do cuidado em saúde. Todavia, se, no mínimo a pergunta que dá título a esse trabalho – Para que servem as doenças? – passar a ser feita pelos profissionais de saúde que lerem essa dissertação já será o sinal de que nosso esforço não foi em vão. 187 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica: Ética a Nicômaco: Poética. Livro I e Livro II. São Paulo: Abril; Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores) ÁVILA, L. A. Groddeckian Interventions In Medical Settings. The American Journal of Psychoanalysis, v. 71, p. 278-289, 2011. AYRES, J. R. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação (Botucatu, SP), v. 8, n. 14, 2004. ______. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 2005. ______. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, 2007. 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Em seguida, são tecidas algumas considerações sobre a vida e a obra de Groddeck, culminando na apresentação de quatro importantes contribuições do autor avaliadas à luz dos limites biomédicos. Palavras-chave: Georg Groddeck; doença; saúde; biomedicina Introdução Recentemente tem sido possível encontrar um número expressivo de trabalhos na literatura do campo da saúde que se dedicam a apontar as limitações do que tem sido chamado de biomedicina ou modelo biomédico. Uma amostra ilustrativa dessa produção bibliográfica é constituída por Queiroz (1986); Camargo Jr. (1997); Bonet (1999); Caprara & Franco (1999); Martins (1999; 2004); Ayres (2001); Barros (2002); Caprara & Rodrigues (2004); Wade & Halligan (2004); Guedes; Nogueira & Camargo Jr. (2006; 2008; 2009); Tesser (2006a; 2006b; 2007; 2009). É possível notar nesses trabalhos certo consenso de que o modelo biomédico precisa ser modificado, na medida em que as ações de assistência à saúde que dele decorrem têm provocado 193 muito mais efeitos deletérios do que vantajosos tanto para os usuários dos serviços de saúde quanto para os próprios profissionais. Antes, contudo, de analisarmos diretamente quais seriam tais efeitos e de onde eles provêm, é necessário fazermos um esclarecimento de cunho conceitual. Dependendo da orientação epistemológica adotada por cada autor, a biomedicina pode ser vista como um paradigma (segundo a terminologia proposta por Thomas Khun), como um estilo de pensamento (na acepção de Ludwik Fleck), como racionalidade médica (conceito elaborado por Madel Luz). A discussão referente a qual conceito seria o mais adequado para caracterizar a biomedicina foge aos nossos propósitos neste trabalho. Por conta disso, estabeleceremos aqui uma definição operacional do que entendemos pelo termo biomedicina com vistas apenas a situar o campo em que se localizam os impasses a que faremos referência adiante. Assim, podemos caracterizar como biomedicina o conjunto de diretrizes teóricas e práticas que orientam a formação médica moderna no ocidente e que, por conseguinte, guiam a prática não só dos médicos, mas também da maior parte dos profissionais de saúde. Como não nos afiliaremos a nenhuma corrente epistemológica específica, nos permitiremos a liberdade de utilizar termos como “paradigma”, “racionalidade” e “modelo” para nos referirmos à biomedicina embora esvaziados da carga conceitual específica que possuem no pensamento dos autores que os propuseram. No que concerne às origens históricas e conceituais da biomedicina, pode-se dizer que ela foi gestada a partir dos princípios teórico-metodológicos que fundamentaram a chamada racionalidade científica moderna (Luz, 1988; Camargo Jr., 1997; Martins, 1999). Com a queda da visão de mundo teocêntrica na Europa a partir dos séculos XIV e XV e o advento do movimento renascentista veio a lume a idéia de que a ordem do mundo não decorre dos arbitrários decretos divinos, mas é fruto da ação humana e pode, em decorrência, ser transformada (Luz, 1988). O homem passa, então, a ser considerado o “gestor” de sua própria realidade e não mais apenas um servo a cumprir as determinações de Deus. Logo, cabe-lhe fazer com que essa realidade funcione de acordo com seus próprios desejos e ditames. 194 Para isso, contudo, é preciso que o ser humano passe a ser visto como um ente separado do restante da natureza, que se eleva acima dela por possuir um atributo que supostamente lhe seria exclusivo, a saber: a razão (Martins, 1999). Temos, portanto, como conseqüências do movimento renascentista e da fragilização da visão religiosa de mundo a instituição de uma dicotomia entre homem e natureza e o surgimento da idéia de que a natureza é um objeto a ser dominado a partir da racionalidade humana (Luz, 1988). É precisamente a tese de que há uma separação radical entre homem e natureza, e seus postulados correlatos, que estão no fundamento da racionalidade científica moderna e, por conseguinte, também da biomedicina. Essa separação é feita no plano conceitual a fim de sustentar ideologicamente a legitimidade de um objetivo de ordem prática: o controle absoluto da natureza. Em outras palavras, só é possível pensar como viável e lícito o desejo de estabelecer domínio sobre a natureza negando-se deliberadamente o fato de que o homem está essencialmente inserido nela (Martins 1999; 2009). Todo o imaginário criado sobre a natureza ao longo, especialmente, dos séculos XVII e XVIII, primeiro como força traiçoeira, obscura, imprevisível e, posteriormente, como máquina, se prestava a justificar a elaboração de um tipo de conhecimento que fosse capaz de dominar o chamado mundo natural (Luz, 1988). Afinal, se a natureza é um continente desconhecido e perigoso é preciso lançar-lhe luz a fim de que dela possamos nos defender; e, por outro lado, se ela é uma máquina, a tarefa de dominá-la torna-se ainda mais alcançável: basta que se conheçam as leis que regulam seu funcionamento. A racionalidade científica moderna está calcada, portanto, no pressuposto de que não apenas é desejável como também possível controlar absolutamente a natureza. Possível na medida em que a razão humana, pela via da ciência, seria capaz de refletir a verdade da natureza. Os métodos e conceitos utilizados pela ciência não seriam apenas suportes capazes de auxiliar-nos a alcançar o conhecimento da realidade, mas verdadeiros espelhos da natureza. Trata-se, como hoje nos parece evidente, de uma concepção reducionista que advoga que toda a complexidade existente na natureza é passível de ser reduzida aos modelos de compreensão elaborados pela ciência (Martins, 1999; 2009). 195 O reducionismo que, é bom que se diga, não é um atributo da ciência, mas do cientificismo, isto é, de uma ideologia científica destinada a justificar a pretensão de controle absoluto da natureza (Martins 2009), é um traço que se encontra presente com bastante força na biomedicina. Afinal, uma característica marcante dessa racionalidade médica é o repúdio a outros tipos de abordagem dos processos saúde-doença, por considerá-los falsos na medida em que não estão fundamentados em pesquisas com o uso dos métodos tradicionais da ciência positivista. Dito de outro modo, para o modelo biomédico, assim como para a racionalidade científica moderna, só se pode considerar um conhecimento como verdadeiro se, e somente se, o método através do qual ele veio à luz for cientificamente reconhecido, sobretudo se for um método experimental. Outra característica da biomedicina que demonstra o quanto a ideologia cientificista se faz presente nessa racionalidade é a sustentação da tese de que a medicina, para ser considerada uma prática legítima, deve necessariamente ser concebida como uma ciência e não como uma arte ou uma práxis. Essa seria a condição para que o conhecimento médico pudesse ser tomado como digno de crédito. Perde-se assim de vista a singularidade de cada encontro entre o profissional de saúde e o paciente como potencialmente capazes de gerar conhecimento. Afinal, para a racionalidade científica moderna, o único conhecimento válido é o saber do universal e não do particular; as únicas conclusões verdadeiras seriam as que pudessem ser generalizadas para todos os elementos de um mesmo universo (Martins, 1999). Quando essa idéia é levada para o campo da saúde ela coloca em jogo sérios impasses, pois conquanto seja possível estabelecer no plano da teoria uma ciência das doenças, concebendo as enfermidades como entidades patológicas organizadas em famílias e gêneros, na dimensão prática essa sistematização se revela absolutamente estéril. Afinal, embora guardem inúmeras semelhanças e equivalências, o câncer de Pedro não é e jamais será igual ao câncer de Paulo ainda que o órgão afetado em ambos os casos seja o mesmo e que os sintomas sejam idênticos. Em decorrência, será um equívoco propor um mesmo protocolo terapêutico para Pedro e para Paulo sem considerar as configurações singulares de cada caso. Não obstante, ainda que nem sempre isso ocorra na prática, a pretensão da biomedicina é justamente essa: estabelecer protocolos padrões para o tratamento de cada tipo de enfermidade. O que dá sustentação para que se 196 considere que isso é possível são precisamente os postulados da racionalidade científica moderna segundo os quais se poderia controlar a realidade de modo absoluto, pois a natureza seria uma imensa máquina, com um funcionamento regular e previsível. Como mencionamos anteriormente, na biomedicina as doenças não são consideradas como processos ou experiências, mas sim como entidades patológicas (Camargo Jr., 1997). Ainda que não se trate mais de pensá-las efetivamente como coisas ou seres que invadiriam o organismo humano deixando-o debilitado – concepção presente na chamada “medicina das espécies” do século XIX – no imaginário biomédico a enfermidade ainda adquire tal forma. De fato, a própria tentativa de construir um conhecimento universal acerca das doenças já faz com que essas assumam contornos de objetos passíveis de serem isolados. Ao conceber a patologia dessa forma, a biomedicina acaba promovendo uma separação entre a doença e a história de vida do paciente. A única história que interessa é a chamada história natural da doença a qual é justamente uma tentativa de estabelecer um conhecimento universal sobre a enfermidade. A história natural da doença consiste em um modelo teórico proposto por Leavell e Clark (citados por Camargo Jr., 1997) que pretende dar conta de todos os processos que se manifestam ao longo da trajetória de uma doença, indo desde as condições ambientais responsáveis pelo surgimento da patologia, passando pelos períodos de agravamento e convalescença e desembocando nos destinos finais do processo de adoecimento que, de acordo com o modelo, podem ser a recuperação, a cronificação da doença, a invalidez ou a morte. O nome “história natural da doença” é, de fato, o mais apropriado, pois o que se pretende efetivamente é circunscrever o curso da doença no organismo do paciente e não a história do paciente que se vê às voltas com uma doença. Essa concepção, que vê a doença como entidade dissociada da biografia individual está intimamente associada com outro aspecto da biomedicina que é a exclusão da subjetividade na análise dos processos saúde-doença (Guedes; Nogueira & Camargo Jr., 2006). Com o termo “subjetividade” não estamos fazendo referência apenas aos chamados fenômenos psicológicos ou variáveis emocionais. Aqui, entendemos subjetividade como o conjunto de processos afetivos, psicológicos, sociais, históricos, políticos 197 que interagem entre si tendo um ponto comum: uma pessoa, um sujeito que, embora seja propriamente constituído por tais processos, é capaz de reagir a eles, dar-lhes sentido e organizá-los na forma de uma história de vida. É toda essa complexidade que é sistematicamente escamoteada pelo modelo biomédico, na medida em que o adoecimento é pensado como um evento apenas orgânico ou, no máximo, como uma disfunção corporal influenciada por fatores “emocionais” os quais, em última instância, podem ser reduzidos a variáveis orgânicas. Essa ênfase nos índices e sinais orgânicos da doença caracteriza o que nos autorizamos a assinalar como o reducionismo por excelência da biomedicina: o reducionismo organicista. Trata-se de um ponto de vista sobre a doença profundamente influenciado pela criação, em meados do século XIX, da disciplina anatomia patológica, que se distinguia por estudos comparativos entre a evolução e os sintomas das enfermidades e lesões encontradas no corpo do doente. Na época, tal investigação era feita fundamentalmente em cadáveres na medida em que ainda não se dispunha de instrumentos e técnicas capazes de verificar as lesões no organismo vivo. O advento da anatomia patológica operou uma transformação radical na compreensão da doença. Se anteriormente a medicina das espécies destacava os sintomas como os signos suficientes para determinar qual entidade patológica estava em jogo e a qual família e gênero ela estaria vinculada, com a entrada em cena dos dados anatômicos, o corpo passa a ser tomado como a sede onde se encontra a verdade da doença (Foucault, 2008). Não apenas observar, mas efetivamente ver, passaria a ser o lema da medicina ocidental moderna. Posteriormente, com a invenção dos diversos métodos de exame por imagem, o sentido da visão ganharia ainda mais prestígio no campo da saúde. Por conta disso, o discurso do doente passaria a ter um valor bastante reduzido no modelo biomédico. O que de fato é levado em conta é aquilo que os exames são capazes de dizer. Desse modo, ainda que o paciente se queixe de dores, caso os exames não apontem nenhuma lesão subjacente a tal sintoma, a fala do doente é colocada em segundo plano e os dados anatômicos adquirem o estatuto de veredicto final, levando o médico a proferir a famosa frase: “Você não tem nada.”. 198 Diante desse panorama de problemas, impasses e limitações do paradigma biomédico, consideramos que não é suficiente apenas indicar e defender a necessidade de transformação. É preciso efetivamente apontar possíveis soluções ou, no mínimo, propostas que sejam capazes de contribuir para a elaboração de um novo paradigma para o cuidado em saúde. Nossa hipótese aqui é a de que na obra do médico e psicanalista Georg Groddeck (1866-1934) é possível encontrar contribuições dessa natureza. Contudo, antes de analisarmos quais seriam tais proposições, falemos um pouco acerca do autor. Quem foi Georg Groddeck? Georg Walther Groddeck nasceu em 13 de outubro de 1866 na cidade alemã de Bad Kösen. Por influência do pai, que também era médico, e por contingências de sua vida infantil, Groddeck seguiria a carreira médica especializando-se no tratamento de doenças crônicas. Em 1900, funda um sanatório na cidade de Baden-Baden onde trabalharia até o fim da vida. Para além da medicina, Groddeck também se aventurou na carreira de escritor, tendo produzido livros de ficção, memórias e artigos de análise de obras de outros autores, além dos inúmeros textos médicos e psicanalíticos. O avô materno de Groddeck, August Koberstein, fora um renomado historiador da literatura alemã e professor durante 50 anos na escola de Pforte, tendo entre seus alunos o filósofo Friedrich Nietzsche, de quem Groddeck, décadas depois, tomaria o conceito de “Isso” (das Es). Groddeck fica relativamente conhecido no meio médico e psicanalítico a partir do final da década de 1910 quando inicia sua correspondência com Sigmund Freud e adere ao movimento psicanalítico. Quatro anos antes de escrever sua primeira carta a Freud, Groddeck havia publicado o livro “NASAMECU”, título formado a partir das sílabas iniciais do ditado latino “Natura sanat medicus curat” (“A natureza cura, o médico trata”), adágio defendido como princípio de prática médica por seu mestre em medicina, Ernst Schweninger. Nesse livro, que é uma espécie de tratado geral sobre medicina para uso leigo, Groddeck tece agudas críticas à psicanálise sem verdadeiramente, no entanto, ter lido os textos de Freud. 199 Reconhecendo tal injustiça, na primeira carta ao pai da psicanálise Groddeck relata as descobertas a que teve acesso no tratamento de pacientes com doenças orgânicas, achados que são bastante semelhantes aos que o próprio Freud obtivera a partir do tratamento da neurose. Com efeito, Groddeck notara que os sintomas de seus pacientes podiam ser lidos e interpretados como símbolos de uma dinâmica subjetiva. Ora, Freud tivera contato com experiência análoga. A diferença estava no fato de que os pacientes que Groddeck atendia sofriam de patologias somáticas e não psíquicas como a histeria, a fobia e a neurose obsessiva – quadros clínicos mais freqüentes na clínica freudiana (Groddeck, 1994). A novidade trazida por Groddeck a Freud era, portanto, a extensão da psicanálise para outros territórios além da neurose. De fato, como atestam os inúmeros exemplos relatados por Groddeck em suas cartas a Freud e em seus artigos, o médico de Baden-Baden obtinha êxito no tratamento de seus pacientes utilizando o método psicanalítico. Freud manifestara-se explicitamente entusiasmado com as pesquisas de Groddeck e lhe autorizara a considerar-se psicanalista, criticando apenas o ponto de vista filosófico de Groddeck a respeito das relações entre corpo e mente. Com efeito, Groddeck afirmara, na primeira carta, que não considerava que haveria uma separação entre corpo e psiquismo, mas que ambos seriam facetas de um mesmo todo. Freud considerara tal concepção um tanto quanto carregada de misticismo (Groddeck, 1994). Ao propor a aplicação da psicanálise no tratamento de doenças orgânicas e o entendimento simbólico dos sintomas somáticos, Groddeck passou a ser considerado como um dos fundadores da chamada “medicina psicossomática”, embora o próprio autor tenha se esquivado de tal epíteto argumentando que, do seu ponto de vista, não haveria “psicogênese”, ou seja, não se trataria de pensar a doença orgânica como sendo causada por elementos de ordem psicológica. Para Groddeck, não haveria a ação de uma instância sobre a outra. Ambos, psiquismo e corpo se enfermariam ao mesmo tempo e é essa condição que permitiria que o adoecimento pudesse ser lido simbolicamente: o fato de que qualquer doença estaria inevitavelmente conectada à vida como um todo. Outro ponto que levou Groddeck a adquirir algum destaque no campo psicanalítico foi o fato de ter sido o criador do conceito de Isso (em alemão: das Es) que Freud 200 passaria a utilizar a partir do início da década de 1920 em sua segunda tópica. Embora o próprio Freud tivesse indicado brevemente em “O Eu e o Isso”, obra em que introduz os elementos da segunda tópica, que passara a utilizar o conceito por influência de Groddeck, ainda há muitos analistas que ignoram a precedência do médico de Baden-Baden quanto ao uso do termo. A introdução do conceito de Isso e o pioneirismo na aplicação da psicanálise a problemas orgânicos foram as contribuições de Groddeck que mais ficaram conhecidas no campo psicanalítico. Não obstante, como Freud elaborara a noção de Isso à sua própria maneira e outros autores também começaram a tomar como objeto de estudo a relação da psicanálise com os adoecimentos somáticos adotando posições mais moderadas do que as de Groddeck, gradativamente o autor foi caindo no esquecimento. Atualmente, são escassos os trabalhos que se dedicam a explorar o pensamento groddeckiano. Tal negligência à obra do autor por parte dos meios médico e psicanalítico pode estar associada também ao fato de Groddeck não ter feito parte de fato da comunidade psicanalítica. A originalidade e o desejo do autor de se diferenciar fizeram com que ele não se preocupasse em seguir a ortodoxia psicanalítica. Para Groddeck, a psicanálise era apenas mais uma arma a ser agregada a seu arsenal terapêutico. Renunciando, portanto, ao destaque no interior do território psicanalítico, o médico se contentava em publicar a maior parte de seus artigos no periódico “Die Arche” (A Arca) que circulava apenas entre seus pacientes no sanatório. Por esses e outros motivos, a obra de Groddeck tornou-se com o tempo uma espécie de tesouro enterrado, prenhe de riquezas, mas oculto pelas contingências da história. Ousamos aqui abrir esse baú e trazer à luz algumas de suas preciosidades. O doente e não a doença é o verdadeiro objeto do tratamento médico Fizemos referência anteriormente ao fato de que no paradigma biomédico, a medicina é vista como ciência e, por conta disso, a doença adquire preeminência em relação ao doente ao olhar do profissional de saúde. Afinal, se se trata de uma atividade científica, tal como a concebe a racionalidade científica moderna, é preciso 201 reduzir a complexidade da experiência do doente à forma límpida da classificação nosológica: ... a pessoa doente, traduzida no modo de pensar científico, metamorfoseiase na doença. Há aí um sutil e importante processo, ao mesmo tempo epistemológico e de crucial importância ética: a tradução científica da pessoa doente a transforma em alguém portador de uma doença, para, em seguida, começar a desfocar da primeira (a pessoa) para focalizar na segunda (a doença), que cresce em importância e ameaça monopolizar a atenção, como objeto do trabalho médico. (Tesser, 2007, p.468) Mesmo antes de conhecer a psicanálise, quando ainda escrevia apenas sobre medicina, Groddeck já se posicionava veementemente contra a tendência que já era possível ser encontrada entre seus colegas de profissão de ênfase na doença e não no doente. O autor aprendera de seu mestre em medicina, o já citado Ernst Schweninger, que não é a doença o verdadeiro objeto do tratamento médico, mas sim os doentes. Groddeck argumenta, seguindo as conseqüências dessa asserção, que a tendência a valorizar, para usar uma linguagem popular, o que o paciente tem e não como o paciente está faz do profissional de saúde um especialista na descrição de sintomatologias e quadros clínicos, mas não alguém que de fato é capaz de ajudar – a verdadeira função da atividade médica para o autor. Numa carta a escrita a um professor de medicina de Berlim por volta de 1895, Groddeck localiza esse problema como tendo origem na formação médica: A ciência que lá [na Universidade] se ensina não conhece doentes, somente grupos de doenças. Não conhece o indivíduo, conhece apenas casos. Não sabe nada de diagnóstico pessoal, ensina o diagnóstico em palavras, nomes de doenças. Nada suspeita de tratamento individualizador do ser humano, mas ensina o remédio contra as doenças. Ela ensina erudição, mas nenhum saber-fazer. (Groddeck, 1994, p.98) Note-se que Groddeck está fazendo referência nessa citação à formação médica de sua época (final do século XIX), quando a medicina ainda não contava com todo o aparato tecnológico que hoje está disponível. Por conseguinte, se já naquela época o conhecimento da doença era mais valorizado do que o cuidado com o doente, hoje essa situação se intensificou na medida em que atualmente se pode contar com métodos mais eficazes de investigação de agentes patológicos e da própria expressão da doença no corpo. Para Groddeck, a única forma de dirimir os problemas oriundos da supervalorização da doença em detrimento do doente é a inversão dos pólos. Em outras palavras, é preciso que o conhecimento da doença e o diagnóstico se tornem procedimentos 202 meramente complementares à tarefa primordial do profissional de saúde que é a de ajudar. Trata-se, em última instância, de repensar a legitimidade de se considerar a medicina como uma ciência das doenças e não como uma arte de curar. Por um diagnóstico do ser humano A ênfase do paradigma biomédico na doença e não doente produz como consequência a supervalorização do diagnóstico. Frequentemente, na prática, a elaboração correta do diagnóstico constitui-se na atividade central do médico, de tal modo que frente a quadros clínicos de difícil ou impossível classificação, o profissional de saúde simplesmente não sabe o que fazer. Isso ocorre porque os protocolos terapêuticos estão diretamente associados às classificações nosológicas, fazendo com que o médico só saiba o que fazer caso consiga encaixar as manifestações do doente numa categoria patológica específica. Groddeck, por seu turno, considera o diagnóstico um procedimento não apenas dispensável em alguns casos como também amiúde danoso para o doente e para o tratamento. Seu argumento repousa na tese de que, tendo em vista as pretensões daquele que elabora o diagnóstico de identificar a doença, trata-se, nesse processo, de uma espécie de violação da realidade. Ao primar pela identificação da entidade patológica da qual o indivíduo padeceria, aquele que diagnostica é forçado a excluir do seu campo de visão toda a complexidade do real da qual a patologia é apenas um fragmento: Não é possível estabelecer um diagnóstico completo, que esgote todos os aspectos, e só o desejo de fazê-lo já implica o maior risco que o médico corre, o de superestimar sua capacidade. Insistimos em dizer que o diagnóstico sempre deve ser questionado pelo médico, que este nunca deve se esquecer de que muitas vezes o diagnóstico é insuficiente ou errado, e que ao estabelecê-lo corre o risco de considerar a doença como uma situação, quando na verdade ela é um processo. (Groddeck, 1992, p.247) Groddeck, portanto, não nega a relevância ou a utilidade do diagnóstico; só diz que o diagnóstico cujo foco é exclusivamente o reconhecimento da doença consiste num procedimento assaz equivocado na medida em que não contempla aspectos de suma importância para o tratamento, como, por exemplo, o modo como doente e médico se relacionam, a forma como o paciente formula sua demanda de cura, 203 entender a função da doença para aquele paciente, etc. Nesse sentido, considerando que é impossível tratar um paciente sem algum tipo de diagnóstico, Groddeck irá propor que, em vez do diagnóstico tradicional da medicina, isto é, o diagnóstico que visa à classificação do sofrimento do paciente em alguma categoria nosológica, se faça um diagnóstico do ser humano. Trata-se de um diagnóstico que não contém dados relativos apenas a sinais e sintomas, mas ao máximo possível de variáveis sobre o paciente, como aspectos psicológicos, sociais e relativos a sua história de vida. O diagnóstico do ser humano também está fundamentado na tese groddeckiana de que o médico deve tratar o ser humano e não o doente. Ao se concentrar no fato de que aquele que o procura está doente, os médicos automaticamente reduzem ainda mais sua percepção para se dirigirem apenas àquilo que no discurso do indivíduo tem relação imediata com a doença. Assim, o profissional exclui do seu campo de observação toda a imensidão de fatores que está por trás do estar doente e dos quais esse estado é a expressão. Groddeck propõe, então, que o médico deva fornecer ajuda ao ser humano que a ele recorre e não ao estado doentio em que ele se encontra. Se entendermos a doença na perspectiva groddeckiana, isto é, como uma expressão do Isso, quando se elimina somente o estar doente e deixa-se intacto o ser humano, o indivíduo perde justamente o único modo possível que havia encontrado até então para se expressar. Em decorrência, na falta daquele, talvez passe a se expressar através de outro até mais grave... Para diagnosticar o ser humano, segundo Groddeck, para além do estar doente, em primeiro lugar o médico não deve limitar seu olhar ao corpo; deve realizar um estudo completo do indivíduo, atentando para o que ele tem de comum em relação a outros e o que lhe é singular. O profissional deve examinar “sua figura e a forma dos seus órgãos e partes, internos e externos, suas funções desde respirar, dormir, movimentar-se, digerir, pulsar o coração até falar, pensar, sentir.” (Groddeck, 1994, p.258). Em segundo lugar, o médico deve considerar tudo o que o indivíduo sente e faz, voluntária ou involuntariamente, como sintomas. Do ponto de vista de Groddeck, sintomas não significam apenas indícios da existência de uma doença, mas sim linguagens que o Isso utiliza para se expressar: 204 “... no conceito de sintoma não estão incluídos apenas a temperatura, a pulsação e os diversos sinais de doença, mas tudo o que o isso do doente mostra e o que o isso do médico é capaz de perceber, da forma do queixo às comoções profundamente secretas, das presentes situações ao passado mais longínquo” (Groddeck, 1994, p.228) Para Groddeck, saúde e doença não são estados individuais completamente distintos, pois ambos são formas de expressão do indivíduo, do Isso. A questão mais importante, portanto, para o profissional de saúde, não é a eliminação da doença, mas sim a compreensão acerca das razões pelas quais o indivíduo está se expressando de modo patológico. Para esse discernimento, não é suficiente um diagnóstico que tenha como foco os caracteres particulares da doença que se supõe habitar o corpo do doente. Será preciso considerar toda e qualquer manifestação do indivíduo como um índice para o entendimento de sua condição. Tudo aquilo que ele faz será visto como sintoma não da doença, mas do ser humano, do indivíduo que ele é e que, naquele momento específico, está se expressando pela via da doença. No texto “Da visão, do mundo dos olhos e da visão sem os olhos”, no qual Groddeck faz uma longa interpretação do significado simbólico dos órgãos visuais, o autor aborda a importância do diagnóstico amplo do ser humano como ferramenta essencial para o êxito do tratamento: Para o juízo médico e humano é muito significativo se a pessoa que sofre de algum mal da visão é um homem, uma mulher, uma criança ou um ancião, como também é importante saber quais são as condições de vida do paciente, quais são seus desejos e necessidades, como é o seu caráter, suas características pessoais, como é a sua constituição, e tudo que se possa descobrir sobre sua pessoa, seu consciente e seu inconsciente, para tratá-lo de forma adequada. Uma parte dos enfermos que oferece resistência a um tratamento baseado num diagnóstico anatômico irá melhorar ao se ampliar a maneira de diagnosticar. (Groddeck, 1992, p.249) Compreensão e não combate à doença Herdeiro da racionalidade científica moderna, o modelo biomédico concebeu as relações entre a medicina e a doença analogamente àquelas estabelecidas entre razão e natureza. As doenças se tornaram, então, as inimigas naturais do homem. As grandes pestes da Antiguidade e as representações sociais que se organizavam em torno delas já forneciam o pano de fundo necessário para pensar a enfermidade como o mal que vem desvirtuar a saúde humana. Com o advento da medicina das espécies e sua concepção da patologia como entidade, o imaginário construído 205 sobre a doença se estabeleceu de vez sob o signo do medo e do ódio. As doenças passaram então a serem pensadas como seres provenientes da perigosa natureza e que deveriam, portanto, ser combatidos e extirpados. “As doenças, legitimadas e objetivadas pela construção científica das entidades nosológicas (e dos riscos), converteram-se em inimigos naturais e, como se tivessem vida própria, parecem estar, a cada paciente, sintoma e/ou exame, prestes a atacar.” (Tesser, 2009, p.279) A idéia de que a doença seria um mal proveniente da natureza, que, por colocar a frágil saúde humana em risco, precisaria ser eliminado, deu ensejo na biomedicina ao que Tesser chama de “obsessão pelo controle” (Tesser, 2009, p.278). Trata-se da tendência de considerar o cuidado em saúde não apenas como salvador do homem já invadido pela patologia, mas também como o protetor dos indivíduos, que os impediria de ficarem doentes. Tesser (2009) mostra que o controle é também um traço que a biomedicina herdou da racionalidade científica moderna. Com efeito, a ciência moderna se concebe como destinada a controlar e prever fenômenos. Assim, a medicina teria a função não apenas de combater e eliminar as doenças já manifestas, mas de controlar determinados aspectos do indivíduo de modo a impedir o aparecimento da doença. A noção de “fator de risco” como condição que estatisticamente está associada a determinado tipo de doença contribui para que a obsessão pelo controle seja assumida como postura não só pela medicina como também pelos próprios usuários dos serviços de saúde. Assim, em nome de se evitar riscos supostos, a medicina preconizará intervenções cirúrgicas ou medicamentosas, mesmo que estas provoquem reações adversas e efeitos colaterais por vezes incapacitantes, tornando-se nestes casos iatrogênica, causando uma enfermidade no paciente em prol do combate a supostas complicações futuras. Qual alternativa Groddeck propõe como contraponto à postura beligerante da biomedicina? Trata-se de sua concepção da doença como um fenômeno de expressão do indivíduo tal como o caminhar, o comer, o beber, o pensar etc. Não obstante, a enfermidade é um tipo de expressão que o organismo só utiliza quando as vias saudáveis através das quais poderia se manifestar encontram-se indisponíveis. Em outras palavras, a doença é o último recurso empregado pelo Isso para se expressar. Ela é sempre um estado de exceção. Nesse sentido, se o profissional de saúde guia sua atuação clínica a partir da tese de que a doença é apenas um mal que faz o indivíduo sofrer e que deve, portanto, ser extirpada para 206 dar lugar à saúde, do ponto de vista groddeckiano ele estaria prejudicando ainda mais o paciente, pois estaria eliminando a única via que esse encontrara até então para se revelar. A retirada forçada de uma lesão que acompanha determinado doente há 40 anos não significará simplesmente a remoção de um sintoma que debilitava o sujeito. A intervenção incidirá no nível da própria identidade do sujeito que fora organizada ao longo daqueles 40 anos tendo a lesão como um elemento constante e fixo. A atitude beligerante não leva em conta, por conseguinte, a função que a enfermidade exerce na vida do doente: ... acredito que seria bem melhor abandonar de vez a idéia do combate e convencer-se de que é mais aconselhável para o doente, o médico e as pessoas da nossa cultura, conceber a doença como uma providência necessária do Isso, oportunamente introduzida com finalidades determinadas e que decerto pode ser nociva para o ser humano como um todo. (Groddeck, 1992, p.136) Groddeck propõe, então, que a doença não seja propriamente combatida, mas compreendida. Se o Isso só recorre à linguagem da doença quando a da saúde está inviabilizada, logo é preciso compreender porque essa situação está acontecendo. Em outras palavras, as principais questões que o médico deve se fazer perante o doente são: por que esse indivíduo está precisando dessa doença? O que o impede de se expressar por vias não dolorosas, saudáveis? Groddeck acredita que espontaneamente o indivíduo tenda a se expressar por vias salutares, de modo que a doença pode ser vista como a consequência de um bloqueio dessa espontaneidade em função de alguma contingência: “Portanto, podese admitir que o Isso não recorra de bom grado ao recurso excepcional da doença, procurando retornar o mais breve possível às suas formas habituais de expressão na vida saudável.” (Groddeck, 1992, p.103). O médico deve, portanto, buscar discernir as razões que levaram o indivíduo a recorrer à doença, um procedimento que Groddeck costumava chamar de “interrogar o Isso” (Groddeck, 2008, p.97) e que na prática diz respeito à observação criteriosa e a uma escuta atenta e acolhedora que não fique restrita àquilo que o paciente relata acerca do que vem sentindo corporalmente, mas que o convoque a falar de si da maneira mais abrangente possível. 207 Compreender e ajudar o paciente a discernir os obstáculos que o impediam de se manifestar por vias saudáveis obrigando-o a recorrer às veredas dolorosas da doença, é o que cabe ao médico, não buscar a eliminação da doença a qualquer custo. Para Groddeck, uma extirpação pura e simples da enfermidade pode resultar, de fato, no seu desaparecimento. Não obstante, não se pode considerar que o doente tenha sido verdadeiramente tratado, pois não se tocou na função que a doença desempenhava, ou seja, a ação de saúde não interveio sobre a gênese do problema, mas apenas sobre sua superfície: É claro que, na maioria das vezes, o caminho mais curto e mais fácil para ajudar é atacar a sua doença, mas não deve ser dessa forma; pois a doença é apenas uma forma de expressão do isso sofredor, que acentua em voz alta a sua doença, a fim de ocultar melhor ainda o seu segredo mais profundo. (Groddeck, 1994, p.258) Depois de “interrogar o Isso” e descobrir as motivações que o levaram a se refugiar na doença, trata-se agora de estabelecer um processo de convencimento do Isso. É preciso convencê-lo de que os perigos aos quais se julgara exposto e que estavam impedindo-o de falar a linguagem da saúde, ao serem compreendidos perderam a sua força destrutiva, de modo que a doença pode ser abandonada: “Cabe primeiramente provar ao Isso doente e teimoso que ele pode sair-se bem novamente, recorrendo às suas formas salutares de expressão.” (Groddeck, 1992, p.104) Corpo e psiquismo como dialetos do Isso Um dos traços mais marcantes da racionalidade científica moderna é a enunciação de uma série de dicotomias, como natureza/cultura, indivíduo/sociedade e a que mais nos interessa nesse momento: corpo/mente, dissociação que de alguma forma reitera aquela feita entre corpo e alma séculos antes pelos filósofos gregos posteriores a Sócrates. A versão mais elaborada e, talvez, mais representativa dessa separação encontra-se na filosofia de René Descartes. O pensador francês concebeu corpo e mente como duas substâncias ou, em outros termos, como duas coisas absolutamente distintas e que representavam a manifestação de dois mundos separados: o mundo das coisas extensas, materiais e o mundo do pensamento ou das coisas imateriais. 208 O modelo biomédico, na medida em que é erigido nas bases dessa racionalidade, tomará a separação entre corpo e mente quase como um dado, uma premissa, um postulado. Dessa dicotomia nascerá um processo de especialização e diferenciação entre dois campos: as doenças orgânicas e as doenças mentais. Entre esses dois grandes grupos de patologias existiria um terreno nebuloso, prenhe de incoerências e contradições ao qual se dá o nome de psicossomática. Tradicionalmente, as doenças que se localizam nesse grupo compreendem enfermidades cuja forma de manifestação é orgânica, mas cuja etiologia estaria relacionada predominantemente a elementos psicológicos. Como vimos anteriormente, Groddeck negara-se a ser reconhecido como um dos pioneiros do campo psicossomático. São justamente as razões que o levaram a negar-se a carregar essa alcunha, as contribuições que o autor traz para as discussões sobre os impasses produzidos pela dicotomia corpo/mente no paradigma biomédico. Para Groddeck, O corpo é algo morto, portanto não pode adoecer; nós já nos esquecemos que nossos antepassados, em vez da palavra corpo (Körper), usavam a expressão cadáver (Lichnam), como os holandeses ainda utilizam, assim como os ingleses só usam a palavra corps no sentido de cadáver. Não sei se existe uma alma, uma psique independente e imaterial, ainda não travei conhecimento com um ser dessa natureza. Mas nem todos os que estão convencidos da existência de um mundo dos espíritos são loucos. Talvez haja algo semelhante. Mas com toda a certeza esses espíritos, se existirem, não podem ficar doentes no nosso sentido humano, pois para tanto é preciso o corpo. (Groddeck, 1992, p.125-126, grifos do autor) Eis a crítica de Groddeck ao pensamento dualista, crítica que evidencia que o autor jamais concebeu as enfermidades com as quais trabalhava como afecções psicossomáticas. Partindo do argumento exposto pelo autor nessa citação, a divisão entre doenças somáticas e doenças mentais é absolutamente equivocada. Só se poderia falar de doenças exclusivamente somáticas caso fosse possível conceber um corpo sem psique que fosse capaz de adoecer. Nesse caso hipotético, sim, poder-se-ia dizer que ocorreu um adoecimento sem a participação de qualquer elemento psicológico. Não obstante, sabe-se que só um corpo vivo, ou seja, em que há a presença de uma realidade psíquica, pode de fato adoecer. Nesse sentido, em toda doença haveria a participação de fatores referentes à dimensão orgânica e à dimensão psíquica do indivíduo, “[...] logo se deduz que não há ‘organismo’ e ‘psiquismo’, nem doenças físicas ou psíquicas e sim que são sempre os dois a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias.” (Groddeck, 1992, p.125) 209 Trata-se efetivamente, no pensamento de Groddeck, de conceber corpo e psiquismo como dimensões de uma realidade única e indivisível, duas formas de abordar o Isso ou dois modos diferentes de se referir à totalidade individual. “São apenas denominações cômodas para melhor entender certas singularidades da vida; no fundo, ambas são uma mesma coisa” (Groddeck, 2008, p.111). Logo na primeira carta que envia a Freud, Groddeck já deixa claro seu posicionamento acerca dessa questão: “... formara-se em mim a convicção de que a distinção entre corpo e alma é apenas uma diferença de nome e não de essência; que o corpo e a alma são alguma coisa de comum, que neles habita um Isso, uma força pela qual somos vividos, enquanto nós acreditamos viver.” (Groddeck, 1994, p.05). A grande contribuição de Groddeck ao propor que corpo e psiquismo sejam vistos como duas modalidades de apresentação do Isso e não como duas essências separadas é a eliminação da separação estéril entre doenças orgânicas e doenças mentais: “Em outras palavras, recusei de antemão separar doenças do corpo e doenças da alma; tentei tratar o ser individual em si, o isso que existe nele; procurei um caminho que levasse ao impenetrado, ao impenetrável.” (Groddeck, 1994, p.05) Além disso, a substituição do dualismo pelo monismo levaria à extinção do campo psicossomático na medida em que ele seria extenso a ponto de englobar toda e qualquer patologia. Em decorrência, todo profissional da saúde seria levado a tomar um ponto de vista integral sobre o doente, uma perspectiva que contemplasse a dimensão orgânica e ao mesmo tempo fosse capaz de uma leitura psicológica do adoecimento. De fato, é precisamente isso o que Groddeck preconiza: que todo profissional de saúde seja capaz de utilizar um método de leitura simbólica dos sintomas do doente, o que não consiste em um procedimento demorado, tampouco caro. Basta que o profissional se disponha a ouvir e a acolher o doente em sua totalidade, estando atento para perceber as vinculações entre suas queixas e sua história subjetiva. Considerações finais Queremos frisar que nossa proposta aqui não é a de que a medicina deva, para superar os impasses que vivencia em função do paradigma biomédico, adotar 210 integralmente as teses de Georg Groddeck acerca da doença e do tratamento. Nosso interesse é o de demonstrar que as indicações desse autor fornecem aportes teóricos férteis para se pensar em possíveis soluções para aqueles problemas. Neste trabalho apresentamos pelo menos quatro importantes contribuições extraídas da obra groddeckiana para um novo paradigma de cuidado em saúde: (1) Estabelecimento do doente e não da doença como verdadeiro objeto das intervenções em saúde; (2) Concepção do diagnóstico como um processo amplo de conhecimento do doente, abordando inúmeros aspectos que estão para além dos sinais e sintomas; (3) Em vez do combate e controle da doença, a compreensão da enfermidade como linguagem, modo de manifestação que exerce uma função na história de vida do paciente. (4) Eliminação da dicotomia entre corpo e mente e as categorias que decorrem dessa separação, a saber: doenças orgânicas, doenças mentais e doenças psicossomáticas; concepção das dimensões orgânica e psíquica como formas de expressão individual e não como duas substâncias. Referências AYRES, J. R. D. C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v.6, n.1, p.63-72, 2001. BARROS, J. A. C. 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Palavras-chave: Georg Groddeck; psicanálise; doença; medicina Introdução Pretendemos com este trabalho fornecer uma pequena contribuição tanto à história da psicanálise quanto da medicina através da análise de alguns aspectos da biografia e do pensamento de Georg Groddeck (1866-1934), médico e psicanalista considerado por alguns como o pai da medicina psicossomática. Trata-se de um autor cuja obra vem sendo negligenciada tanto pelo campo médico quanto pelo meio psicanalítico, mas que, no entanto, apresenta uma riqueza notável, ainda não suficientemente explorada. Procuramos mostrar isso 214 na dissertação de mestrado que escrevemos entre os anos de 2010 e 201118. O estudo teve como objetivo investigar, na obra de Georg Groddeck, contribuições para a superação dos impasses advindos do predomínio da racionalidade biomédica no campo do cuidado em saúde. Buscamos demonstrar que na obra pouco valorizada de Groddeck poderiam ser encontradas proposições bastante frutíferas para a elaboração de um novo modelo de cuidado em saúde fundamentado em um paradigma não-reducionista, não-mecanicista, nãocientificista, em suma, diferente do biomédico. Aqui, nosso intuito não é ainda o de apresentar tais contribuições. Deixaremos tal incumbência para um próximo artigo, pois, em função da escassa literatura existente sobre Groddeck e sua obra, consideramos relevante, num primeiro momento, fornecer ao público uma apresentação do autor a partir de elementos de sua biografia e de seu percurso teórico. Nesse sentido, este artigo pretende ser apenas o primeiro de uma série de textos que esperamos publicar sobre a obra de Groddeck e de suas contribuições para o campo da saúde. O esquecimento da obra groddeckiana As razões que levaram a medicina e a psicanálise a negligenciarem a obra de Groddeck são diversas. Como veremos adiante, o fundador do método psicanalítico, Sigmund Freud, mostrou-se simpático e, por que não dizer, até bastante entusiasmado com a novidade trazida por Groddeck à psicanálise, a saber: o uso da terapia analítica no tratamento de pacientes com doenças orgânicas. No entanto, a forma como Groddeck organizava seu pensamento e alguns dos conceitos que utilizava para explicar a efetividade da psicanálise em sintomas somáticos eram um tanto 18 O presente texto é a versão modificada de parte do segundo capítulo de nossa dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva. 215 discrepantes em relação à ortodoxia freudiana. Em decorrência disso, a maior parte dos discípulos de Freud recebeu as teses de Groddeck com certa resistência e o próprio Freud manifestou nas cartas trocadas entre os dois autores seu repúdio ao que ele considerava como misticismo nos enunciados teóricos groddeckianos. No tocante ao esquecimento de Groddeck pela medicina, trata-se, a nosso ver, de uma reação do modelo teórico da medicina moderna àquilo que nele se constituiria como anomalia. De fato, desde o início de sua formação como médico, Groddeck adotou um posicionamento teórico-clínico distinto e, não raro, oposto ao da medicina tradicional. As principais teses do autor acerca da compreensão de como se constitui o adoecimento e a terapêutica não se coadunam à biomedicina, a racionalidade vigente na medicina moderna. Uma das proposições mais fundamentais de Groddeck, como a tese de que toda doença carrega uma significação e uma finalidade, não faz sentido algum no modelo biomédico, para o qual as doenças constituem apenas lesões orgânicas, fenômenos corporais sem qualquer relação com o que poderíamos chamar de subjetividade. Nesse sentido, a negligência da medicina em relação à obra groddeckiana não se assenta no escândalo face à radicalidade das teses do autor, como no caso da psicanálise, mas constitui um repúdio a um pensamento calcado numa racionalidade distinta. Raízes biográficas do pensamento de Georg Groddeck Nascido na cidade alemã de Bad Kösen, em 13 de outubro de 1866, cerca de dez anos após o nascimento de Freud, Georg Walther Groddeck levaria às últimas conseqüências a descoberta psicanalítica de que é impossível dissociar o pensamento de um autor de aspectos de sua biografia. Por conta disso, irá apontar em diversos momentos de sua obra as vinculações entre 216 suas teses e métodos de trabalho e sua história de vida, reconhecendo ser impossível separar a história do homem Groddeck da trajetória do médico e psicanalista Groddeck. Um dos aspectos mais proeminentes do pensamento de Groddeck é um afastamento dos cânones tradicionais da ciência. Groddeck não confere ao saber científico o estatuto de um conhecimento que se eleva acima dos demais por supostamente estar em condições mais favoráveis de acesso à verdade. Para ele, “a ciência nada mais é que uma variedade da fantasia” (GRODDECK, 2008, p. 5). Essa “aversão pela ciência” (Ibid.) é explicada por ele não como um capricho, mas como estando relacionada diretamente a certos eventos de sua vida infantil. Sua mãe, após dar à luz o primeiro filho (Groddeck era o caçula de uma família de cinco) teve uma infecção nos seios e, em decorrência, suas glândulas mamárias secaram. Por esse motivo, Groddeck foi obrigado a ser amamentado por uma ama-de-leite. É nessa contingência que o autor localiza a raiz de sua aversão pela ciência. Com efeito, a incerteza quanto a quem deveria se afeiçoar, se à mãe que o gerou ou à ama-de-leite que o amamentara dificultaria sua adesão a um tipo de conhecimento em que justamente a certeza se constitui como um dos traços fundamentais. Quanto ao despertar de seu desejo de se tornar médico o autor o associa a um episódio ocorrido aos três anos de idade. Trata-se de uma ocasião em que o garoto estava brincando com uma boneca de sua irmã. O pai conta que, enquanto Lina insistia em colocar uma roupa extra na boneca, o irmão lhe repreendia dizendo que a boneca ia se sufocar. Segundo Groddeck, fora a partir desse episódio que seu pai concluíra que ele tinha vocação para a medicina (GRODDECK, 2008). Mas o papel de Lina no desenvolvimento profissional de Groddeck vai ainda mais longe. Segundo o autor, ele e a irmã costumavam brincar de mãe e filho. Na brincadeira, se o filho se comportasse mal, deveria levar algumas palmadas como castigo. Todavia, quando era Lina a 217 ocupar o papel de filho, a punição deveria ser aplicada de forma mais suave, pois a garota possuía uma doença no coração. É nesse episódio que Groddeck localiza o fator determinante de suas preferências em relação a métodos de trabalho na medicina: a impossibilidade de aplicar as palmadas com a força devida fez com que desenvolvesse um horror a técnicas que de alguma forma implicam em levar o paciente a sentir dor, como a cirurgia, e desse maior valor a procedimentos não invasivos como a massagem e a psicoterapia. Ainda das brincadeiras com uma irmã cardíaca, Groddeck levará como traço uma preferência pelo tratamento de doentes crônicos (GRODDECK, 2008). De fato, o médico manterá por mais de 30 anos um sanatório na cidade alemã de BadenBaden, atendendo pacientes, em sua maioria com doenças crônicas, que o procuravam vindo de diversos países (VALVERDE & RIVERAS, 2004). Outro evento que Groddeck considera como tendo influência direta sobre sua escolha profissional foi a ocasião em que seu pai, Carl Groddeck, que também era médico, lhe perguntou se gostaria de ser médico. A essa indagação, aparentemente banal, Groddeck atribuirá um significado singular: naquele momento, o questionamento do pai parecera lhe tornar diferente dos irmãos. “Foi assim que meu destino foi decidido, tanto em relação à escolha de minha carreira quanto ao modo pelo qual eu deveria exercê-la.” (GRODDECK, 2008, p. 1-2). A partir daquele momento Groddeck passaria a imitar de maneira consciente o pai, o que demonstra a grande transformação subjetiva que a pergunta ocasionou. Carl Groddeck é descrito pelo filho como sendo um “herege, reconhecendo sua própria autoridade, seguindo seu próprio caminho e às vezes perdendo-se nele, a seu bel-prazer” (GRODDECK, 2008, p. 3). A respeito disso, Groddeck afirma que o pai fazia chacota com a medicina tradicional, que à época iniciava as pesquisas sobre a ação de bacilos na etiologia do cólera e da tuberculose. A menção a esse posicionamento contrário do pai em relação à 218 medicina de seu tempo parece deixar implícito que a tendência do próprio Groddeck em seguir um caminho original, distinto da medicina tradicional, talvez tivesse origem numa identificação com o pai. Do lado materno Groddeck também recebeu importantes influências principalmente no que diz respeito a suas concepções teóricas mais fundamentais. Caroline Groddeck, sua mãe, era filha de um dos maiores historiadores da literatura alemã, o professor August Koberstein, que deu aulas durante 50 anos em Pforte, instituição de ensino próxima da cidade alemã de Bad Kösen19 (VALVERDE & RIVERAS, 2004). Do pai, Caroline Groddeck herdará o gosto pela literatura alemã, em especial pela obra de Goethe (GRODDECK, 1994a). Desse fascínio da mãe pelo maior nome da literatura alemã, Groddeck não sairá ileso. Do contrário, como poderíamos apreciar o ensaio “Rumo a DeusNatureza” (“Hin zu Gottnatur”) que Groddeck publica em 1909, sem uma referência ao próprio conceito de “Deus-Natureza”, encontrado em Goethe? Esse autor, cujos interesses não se restringiam à literatura, mas se direcionavam também às ciências naturais e à filosofia, propusera uma concepção filosófico-teológica inspirada na filosofia de Baruch de Spinoza (1632-1677) cujo postulado primordial era a identidade entre Deus e Natureza (SPINOZA, 2009). Seguindo a perspectiva spinozana, Goethe afirmava que a divindade não seria transcendente, mas imanente à Natureza ou, em outras palavras, que ambos seriam uma única e mesma coisa. Contudo, diferentemente de Spinoza, Goethe advogava intencionalidades para seu Deus-Natureza. Essa descrição da concepção goetheana do Deus-Natureza se coaduna perfeitamente ao conceito de Isso em Groddeck. Conquanto esse último conceito seja enunciado na obra groddeckiana com contornos próprios e uma singularidade irredutível a qualquer outra noção, 19 Coincidentemente, o filósofo Friedrich Nietzsche, ao qual Groddeck se referencia como seu predecessor no uso do conceito de Isso, foi aluno de Koberstein em Pforte. 219 é impossível negar que o conceito de Deus-Natureza em Goethe seja, por assim dizer, um embrião do Isso. A influência de Ernst Schweninger Outra personagem que exercerá forte influência sobre o pensamento de Groddeck é o médico Ernst Schweninger (1850-1924), que fora seu professor durante a formação médica e de quem Groddeck foi assistente. Schweninger tornara-se famoso na Europa do final do século XIX por ter conseguido fazer o inflexível chanceler alemão Bismarck obedecer-lhe. Ernst Schweninger começara a tratar do chanceler Otto Von Bismarck em 1881 de uma grave e perigosa doença. Segundo Groddeck, Schweninger havia levado a cabo o tratamento através de uma observação minuciosa dos hábitos e condições de vida do chanceler e conseguira isso depois de cerca de cem médicos o terem tentado e fracassado. Bismarck era conhecido por seu temperamento forte e, por essa razão, não se submetia facilmente às orientações que os médicos lhe recomendavam. Schweninger parece ter sido o único que conseguiu tornar Bismarck mais “dócil” às prescrições médicas. Groddeck assinala que, ao final do tratamento, Bismarck teria dito a Schweninger: “‘Até agora eu tratei de todos os médicos. O Sr. é o primeiro que trata de mim.’” (GRODDECK, 1994a, p. 333) De fato, Schweninger não era como os médicos de sua geração. O final do século XIX testemunhava a transformação da medicina em ciência médica, isto é, em uma disciplina que abdicava do estatuto de “arte de curar”, passando a ter como preocupação central o conhecimento das patologias e sua caracterização. Nesse contexto, o diagnóstico assumira uma importância fundamental; passara a ser visto como um objetivo em si mesmo e não mais como uma etapa preliminar à escolha do melhor método terapêutico, como acontecia outrora. 220 O desejo que motivava a intervenção médica era mais o de conhecer a entidade mórbida que o paciente portava em vez do de efetivamente tratar. Schweninger pensava e atuava na contramão dessa tendência. No texto “A natureza cura” (GRODDECK, 1994b), escrito originalmente como um necrológio dedicado a Schweninger, um ano após o seu falecimento, Groddeck tenta demonstrar que seu mestre estava muitos passos à frente de seus contemporâneos, antecipando-se, por exemplo, às pesquisas imunológicas que evidenciariam experimentalmente o papel do organismo no processo de cura. Groddeck conta no texto que Schweninger costumava sempre repetir-lhe duas frases que tomaria como verdadeiros dogmas em sua atuação como médico: “A natureza cura, o médico trata.” (“Natura sanat medicus curat”, um ditado latino) e “Não são as doenças, mas os doentes o objeto do tratamento médico.”. Schweninger dizia que essas duas frases eram representativas do verdadeiro espírito médico (GRODDECK, 1994b). Em relação à primeira frase, “A natureza cura, o médico trata”, o interesse de Schweninger era o de sublinhar o fato de que o verdadeiro agente da cura não é o médico ou outro profissional de saúde, mas sim o próprio organismo que padece. O corpo não seria passivo em face de seu ambiente, mas naturalmente tencionado para a saúde, de modo que a cura poderia ser vista como algo que decorre da própria essência do organismo e não uma condição que se lhe advém do mundo externo. A doença, portanto, era vista por Schweninger como aquilo que obstaculiza as tendências de reparação e cura inerentes ao organismo, como uma pedra que impede o curso normal de um rio. O cuidado médico deveria ser, em decorrência, aquilo que retira essa pedra e permite ao rio correr naturalmente. Pode-se concluir desse raciocínio que o tipo de tratamento escolhido não é o aspecto mais relevante da terapêutica, mas sim o decurso 221 da ação que o método adotado exercerá no organismo, isto é, se ele efetivamente auxiliará o doente a atualizar sua potência imanente de cura ou não. Groddeck salienta que as pesquisas já de sua época acerca do chamado sistema imunológico conferem, de certo modo, validação empírica ao enunciado schweningeriano na medida em que demonstram o papel terapêutico que o organismo tem em relação a si próprio (GRODDECK, 1994b). Além de enfatizar o caráter de agente do organismo no processo terapêutico, o ditado “A natureza cura, o médico trata” aponta correlativamente para uma relativização do papel exercido pelo profissional de saúde no tratamento. Ao longo da história, o campo do cuidado em saúde foi adquirindo um estatuto social elevado precisamente por se imaginar que era o médico quem devolvia a saúde ao doente, concepção que se fundava na imagem da natureza como obscura, traiçoeira ou caótica, surgida a partir do Renascimento. É essa matriz que está como pano de fundo de uma tendência autoritária e intervencionista no cuidado em saúde, que vê na racionalidade do saber médico o elemento principal do processo terapêutico. Por outro lado, ao postular a idéia de uma natureza que se exprime como direcionada para a saúde, Schweninger coloca em xeque o caráter “salvífico” do cuidado em saúde e sua soberania sobre o organismo doente. A outra frase constantemente repetida por Schweninger explicita de forma ainda mais clara o quão distinto era seu pensamento em relação ao de seus contemporâneos. “Não são as doenças, mas os doentes, o objeto do tratamento médico” é a expressão radicalmente oposta do que pensava o que poderíamos denominar de o mainstream médico da época – e ainda hoje. Com efeito, vigorava no final do século XIX o que ficou conhecido como “medicina das espécies” que sustentava a tese de que a doença seria uma entidade que existiria de modo independente e se apossaria do indivíduo fazendo-o doente (FOUCAULT, 2008). Portanto, se 222 pudéssemos elaborar uma frase que definisse o pensamento médico naquele momento, ela deveria ser exatamente oposta à asserção de Schweninger. O mestre de Groddeck, no entanto, queria, com seu adágio, apenas asseverar uma constatação óbvia: a de que o médico só tem acesso à doença na medida em que essa aparece de modo manifesto no corpo do doente. Por conseguinte, extrair a doença, enquanto entidade, do padecimento experimentado pelo indivíduo e estudá-la separadamente como o quiseram os médicos da medicina das espécies é um procedimento inútil a não ser que o objetivo não seja o tratamento do paciente, mas apenas a produção de conhecimento... Groddeck levará consigo esses dois aforismos schweningerianos como princípios fundamentais de sua prática clínica. O primeiro, em especial, será utilizado por Groddeck como título de um de seus principais livros, escrito antes de o autor ter conhecido a psicanálise. Trata-se de “Nasamecu”, nome formado a partir das sílabas iniciais de “Natura sanat medicus curat”. Semelhante a inúmeros livros médicos da época, “Nasamecu” consiste numa espécie de tratado de medicina para leigos. Nele, Groddeck aborda aspectos da constituição física do organismo e como tais aspectos são apresentados pelo indivíduo sadio e pelo indivíduo doente. Ainda que a intenção primordial de Groddeck não tenha sido a de criar propriamente um livro de auto-ajuda médico, a obra acabou servindo a essa finalidade. O tradutor de “O Livro dIsso”, José Teixeira Coelho Netto, conta que, após alguns anos da publicação de “Nasamecu”, Groddeck teria recebido uma carta de um australiano dizendo que o livro havia salvado-lhe a vida: Aquele estranho lhe dizia que viajava pelo interior da Austrália quando ficou seriamente doente. Não havia por ali, no interior, assistência médica. Como sempre. Mas o missivista ouvira falar de um certo homem que vivia perto e que, dizia-se, fazia milagres. Era sua única e provavelmente última alternativa: foi procurá-lo. E curou-se. Mais tarde, aquele santo milagroso confessou-lhe que na verdade não era médico, mas tinha um livro que o ajudava em suas curas, um livro maravilhoso. O livro, claro, era Nasamecu (COELHO NETTO, 2008, p. IX, grifo do autor). 223 O encontro com a psicanálise Em “Nasamecu”, tem-se a primeira menção de Groddeck à psicanálise, mas não como defesa às idéias de Freud e sim como crítica à eficácia do tratamento psicanalítico. Cinco anos depois da publicação do livro, Groddeck reconhecerá em sua primeira carta a Freud, de 27 de maio de 1917 (GRODDECK, 1994), que seu desprezo pela psicanálise em “Nasamecu” não estava baseado numa apreciação criteriosa da obra freudiana, até porque Groddeck não havia lido sequer uma linha escrita por Freud. O que ele sabia acerca da psicanálise, sabia-o por terceiros, de modo que o juízo que se encontrava no livro era preconceituoso. Entretanto, todo preconceito, como evidencia a própria psicanálise, tem suas razões. E Groddeck não teve pudores em reconhecê-las logo no início de sua carta a Freud, fazendo uma espécie de mea culpa. O julgamento precipitado sobre a psicanálise teria se originado de sentimentos de inveja e indignação que Groddeck sentira em relação a Freud quando ouvira falar a respeito do método psicanalítico. De fato, parecia que Freud havia chegado por seus próprios caminhos às mesmas conclusões que Groddeck havia extraído de sua experiência médica! A diferença é que Freud publicara tais conclusões primeiro, adquirindo, assim, precedência em relação a Groddeck. Este é um capítulo interessante da história da psicanálise que talvez não tenha sido devidamente apreciado. No senso comum da comunidade psicanalítica, considera-se Groddeck apenas como um dos vários discípulos de Freud, quando na verdade o primeiro descobriu, num certo sentido, a psicanálise por vias próprias. A sexualidade infantil, o impacto das palavras e dos símbolos na vida subjetiva, os fenômenos da transferência e da resistência, a tudo isso Groddeck não teve acesso lendo os textos de Freud, como acontecera com os demais discípulos, mas sim a partir da sua própria experiência clínica com os pacientes de seu sanatório em Baden-Baden. Em especial, foi uma paciente que Groddeck 224 tratou em 1909 que lhe forneceu as primeiras amostras dessas descobertas que o médico posteriormente verificaria em outros doentes. Tal paciente – Groddeck garante – não possuía conhecimentos acerca da psicanálise, o que asseguraria que a descoberta groddeckiana fora realizada de modo completamente independente das investigações de Freud. No encontro com o trabalho freudiano, é possível notar o quão forte era em Groddeck o desejo de ser diferente e criar algo novo. Vendo nas obras do médico vienense a evidência de que não era pioneiro, só restara a Groddeck, tomado de inveja e decepção, defender-se através de um ataque à doutrina freudiana: “Como em minha vida toda, apesar das experiências contrárias, mantive o desejo de criar alguma coisa, recusei-me a reconhecer que, também desta vez, apenas havia acolhido e assimilado, por algum meio misterioso, idéias alheias.” (GRODDECK, 1994, p. 4). Apesar de Groddeck ter chegado a conclusões muito semelhantes às de Freud, é preciso assinalar uma contingência inusitada. Enquanto Freud elaborou o método psicanalítico e a estrutura teórica da psicanálise a partir da sua experiência com pacientes que apresentavam transtornos manifestos pela via psíquica, isto é, as chamadas neuroses, Groddeck, por sua vez, atendia pessoas que padeciam de doenças orgânicas, ou seja, que apresentavam lesões físicas: Às minhas – ou devo dizer às suas – concepções não cheguei através do estudo das neuroses, [mas] mediante a observação de doenças chamadas comumente de corporais. Minha reputação médica, devo-a originariamente à minha atividade de fisioterapeuta, mais particularmente de massagista. Em consequência, a minha clientela é sem dúvida muito diferente da dos psicanalistas (Carta de Groddeck a Freud, de 27 de maio de 1917 in GRODDECK, 1994, p. 5). Ainda que essa própria experiência com doentes orgânicos lhe evidenciasse a indissociabilidade entre corpo e psique na medida em que era possível notar a influência de símbolos (fenômenos tradicionalmente agrupados na categoria de acontecimentos mentais) na produção e desenvolvimento de enfermidades corporais, Groddeck diz a Freud que, mesmo antes de haver tido acesso a essa experiência, já estava convicto de que corpo e psique eram 225 apenas duas formas de abordar uma mesma realidade ou duas palavras distintas para se referir a uma substância única, o Isso. Deixaremos a abordagem mais detalhada deste que é o conceito central das proposições teóricas de Groddeck para outro momento. Por ora, concentremo-nos no processo de inserção de Groddeck no campo psicanalítico. Nessa primeira carta enviada a Freud, a intenção de Groddeck é saber do médico vienense se poderia de fato ser considerado um psicanalista. Com efeito, Groddeck desejava publicar em breve um livro relatando o que descobrira no tratamento de seus pacientes. Apesar da dúvida sobre se poderia ou não ser considerado um psicanalista, é possível notar claramente em Groddeck um desejo de que Freud o reconhecesse como tal, intenção que pode ser depreendida da narrativa de vários casos que o médico de Baden-Baden relata na carta para demonstrar a efetividade do tratamento psíquico de doenças orgânicas. São casos que vão desde uma simples herpes labial a hemorragias na retina, passando por sintomas de sífilis e artrites. Em todas essas afecções, Groddeck havia operado junto com seus pacientes um trabalho conjunto de interpretação do significado simbólico dos sintomas. Na medida em que tal interpretação era levada a cabo, ou seja, quando se verificava a que questões de ordem subjetiva os sintomas respondiam, as afecções desapareciam, o que comprovava que elas funcionavam como substitutas de um sentido que precisava ser trazido à luz. A título de ilustração, citemos um dos exemplos relatados por Groddeck: Uma paciente acorda de manhã com o lábio superior bastante inchado; a inchação é provocada por vesículas de herpes. Inquirida sobre uma data, ela menciona o dia anterior, e como hora, precisamente a da minha visita. Durante essa visita, eu havia dito em tom de brincadeira à paciente, de quem trato há muitos anos de uma grave poliartrite, que seus lábios eram finos demais, que isso indicava uma paixão incontida pelo beijo. Uma hora após essa constatação, o inchaço do lábio desapareceu. (Carta de Groddeck a Freud, de 27 de maio de 1917 in GRODDECK, 1994, p. 6). Ora, a dinâmica constatada por Groddeck como estando subjacente ao adoecimento somático era precisamente a mesma que Freud verificava com seus pacientes neuróticos: quando o sentido do sintoma vinha à luz, esse tende a desaparecer, pois perde sua função. A distinção 226 entre as duas experiências era a de que Freud verificava tal dinâmica com sintomas psíquicos, próprios da neurose, ao passo que Groddeck a observava em sintomas orgânicos. Ao questionar a Freud, portanto, se poderia se considerar psicanalista, Groddeck estava de fato querendo mostrar a seu interlocutor que a psicanálise não precisaria ficar restrita aos neuróticos, mas poderia servir como um método útil de tratamento para todos os campos da medicina. A carta de resposta de Freud, escrita em 5 de junho de 1917, é ao mesmo tempo elogiosa e admoestadora. O médico vienense a inicia dizendo que gostou do que Groddeck lhe escrevera e, além disso, lhe assegura que Groddeck pode se considerar, sim, um excelente analista, pois havia compreendido a essência da psicanálise ao discernir os fenômenos da transferência e da resistência. A respeito da noção de Isso, Freud não se acanha em dizer que, a princípio, entre ela e o conceito de inconsciente a distinção é apenas de palavras e que não é preciso estender o conceito de inconsciente para abarcar afecções somáticas, pois isso já se encontra implícito no modo como elaborara o conceito. Cerca de seis anos depois, Freud adotaria uma posição diferente, reconhecendo a especificidade do conceito de Isso e adotando-o precisamente no lugar do termo inconsciente ainda que de maneira bastante diferente em relação ao modo como Groddeck o concebia. Na continuação da carta, Freud critica explicitamente o que ele supõe ser uma ambição banal de originalidade e pioneirismo em Groddeck e considera-a vã. Levanta inclusive a possibilidade de que Groddeck tenha se apropriado das idéias psicanalíticas por via criptomnésica, ou seja, de que Groddeck poderia ter lido ou ouvido falar sobre psicanálise em determinada época e, posteriormente, tendo se esquecido disso, julgara ter criado um método original sem notar a influência que aquele aprendizado prévio teria exercido sobre sua própria elaboração. Isso jogaria por terra a crença de Groddeck na autonomia de suas descobertas. 227 Não obstante, tal argumento freudiano, evidentemente, pode ser lido como a própria defesa de Freud com relação a sua originalidade. Após elogiar os exemplos clínicos de Groddeck e expressar certa surpresa para com eles, Freud tece sua segunda crítica ao médico de Baden-Baden: acerca de seu pressuposto monista, isto é, de não-separação entre corpo e psiquismo, que Freud afirma serem próprias de correntes filosóficas sem propósito. Para o médico vienense, seria preciso conservar essa separação: A mim me parece tão audacioso dar uma alma à natureza quanto desespiritualizá-la radicalmente. Deixemos-lhe, portanto, a sua grandiosa multiplicidade que se eleva do inanimado ao animado orgânico, do vivo corporal ao espiritual. O ics constitui certamente o intermediário correto entre o corporal e o espiritual, talvez o missing link buscado há tanto tempo. Mas, porque afinal percebemos isso, não devemos perceber nenhuma outra coisa mais? [...] Receio que o Sr. seja também um filósofo e que tenha a tendência monística a desdenhar todas as belas diferenças na natureza em troca do engodo da unidade. Estaremos assim nos livrando das diferenças? (Carta de Freud a Groddeck, de 5 de junho de 1917, p. 11, grifo do autor) Esse trecho da carta de Freud expõe de modo bastante explícito as diferenças entre os dois autores no que diz respeito ao significado e às relações entre corpo e psique. Apesar de Groddeck fazer uso da expressão “condicionamento psíquico” no próprio título do artigo que marca sua entrada na psicanálise: “Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise” (GRODDECK, 1992), ao longo do texto o autor deixa claro que a expressão é equivocada: “Desse jeito eu estaria a ponto de admitir que não existe um condicionamento psíquico das enfermidades corporais. O inconsciente não é psíquico nem corporal” (GRODDECK, 1992, p. 26). Como havia dito em sua primeira carta a Freud, do seu ponto de vista, corpo e psique são duas dimensões do Isso, duas linguagens diferentes que o Isso utiliza para se expressar: “[...] não existe separação entre corpo e alma para o 228 inconsciente20; conforme suas conveniências ele se utiliza alternadamente do corpo e da alma” (GRODDECK, 1992, p. 19). Nesse sentido, as experiências clínicas de Groddeck não demonstram uma influência de fatores psíquicos sobre o corpo, como pensou Freud. Para Groddeck toda e qualquer enfermidade poderia ser lida simbolicamente, ou seja, toda doença seria potencialmente interpretável. Tal possibilidade não seria assegurada pelo fato de que em todas as doenças seria presumível um elemento causal de ordem psíquica, mas sim porque a doença é um fenômeno humano e, como todo fenômeno humano, não pode ser concebido como dissociado das redes simbólicas que constituem sua realidade. Referências Coelho Netto, José Teixeira. O Fuçador das Almas. In: GRODDECK, Georg. O livro dIsso. Trad.: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. IX-XIII (Coleção Estudos, 83). Foucault, Michel. O Nascimento da Clínica. 6. ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2008. Groddeck, Georg. Condicionamento psíquico e tratamento de moléstias orgânicas pela psicanálise. In:______. Estudos psicanalíticos sobre psicossomática. Trad.: Neusa Messias Soliz. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 09-28 Groddeck, Georg. Memórias. In: ______. Trad.: Natan Norbert Zins. O Homem e seu Isso. São Paulo: Perspectiva, 1994a. p. 267-378 20 Groddeck costumava utilizar o termo “inconsciente” como sinônimo de “Isso” quando escrevia em revistas psicanalíticas ou se dirigia a uma platéia composta essencialmente de analistas. Nos demais escritos, o autor diferencia os dois termos, considerando o inconsciente como uma parte do Isso. 229 Groddeck, Georg. A Natureza Cura. In: ______. Trad.: Natan Norbert Zins. O Homem e seu Isso. São Paulo: Perspectiva, 1994b. p. 139-142 Groddeck, Georg. O livro dIsso. Trad.: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2008. Groddeck, Georg; Freud, Sigmund. Correspondência entre Georg Groddeck e Sigmund Freud. In: ______. Trad.: Natan Norbert Zins. O Homem e seu Isso. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 03-81. Spinoza, Baruch. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Valverde, Ricardo R.; Riveras, Heidi. R. Nóbrega. Para conhecer Georg Groddeck. São Paulo: Berggasse 19, 2004.