Reflexões sobre tecnologia, ciência cognitiva e comunicação

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Ensaio
Reflexões sobre tecnologia, ciência cognitiva
e comunicação
Eduardo Neiva*
Resumo
O ensaio considera os três temas do Congresso para apresentar argumentos a favor de uma mudança radical nos princípios e suposições convencionalistas que guiaram os estudos da comunicação até agora. Para que um novo caminho seja
traçado é preciso que se examine filosófica e criticamente a constituição do cérebro humano, pois é nele que se encontram
a condição básica para que todas as sociedades humanas existam. Se as teses convencionalistas da sociologia, da antropologia e da linguística estrutural enfatizam o que distingue e separam as formas da vida social, a consideração do cérebro leva
a um entendimento universal e globalizante da comunicação que é fomentada e impulsionada pela tecnologia informacional contemporânea.
Palavras-chave
Tecnologia. Ciência Cognitiva. Comunicação.
* Professor Titular do Departamento de Estudos da Comunicação da University of Alabama at Birmingham. No Brasil, foi professor da UFF, da
UERJ e da PUC-Rio. Na década de 1980 dirigiu o departamento de comunicação da PUC do Rio de Janeiro. Seus trabalhos foram escritos em
português e inglês, tendo sido traduzidos para o francês, o italiano, o espanhol, o chinês e o japonês. Seus últimos livros são Mythologies of Vision,
Communication Games (traduzido para as línguas portuguesas e chinesa), The Language of Life: How Communication Drives Human Evolution e o
Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia.
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Um convite à reflexão a partir de um posicionamento
Não participo do I Encontro Internacional de Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva (EITCCC) com o propósito de indicar caminhos ou de apontar soluções próximas do
dogma, com a pretensão de conduzir o raciocínio de ninguém. Tudo o que aqui se apresentar
constitui-se de material que merece crítica e discussão.
Gostaria que este nosso encontro tivesse a intimidade de uma pequena praça, onde conversaríamos sobre as diretrizes deste Congresso: tecnologia, ciência cognitiva e comunicação.
Pessoalmente, espero que possamos refletir sobre as consequências práticas e explicativas que
surgem no momento imediato em que alinhamos teoricamente esses três temas.
Pessoalmente, o convite para abrir este evento representa meu reencontro ativo com a
vida acadêmica brasileira. O último trabalho que publiquei em português é um dos passos desse retorno: o Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia.
Há vinte anos, no meio do caminho de minha vida, aceitei o convite e me transferi para
o sistema universitário americano. Tinha recebido uma bolsa fulbright para pesquisar e ensinar em duas universidades americanas: a University of Alabama at Birmingham (UAB) e a
Indiana University em Bloomington. O Brasil no início da década de 1990 vivia um momento
de crise, que me parecia ser social, política e cognitiva. Fiquei muito impressionado como as
universidades americanas eram universos de alta informação. Pareciam-me os lugares ideais
para pensar, amadurecer e escrever uma série de trabalhos que tocariam em pontos dos meus
interesses intelectuais.
Acreditava na época que uma visão exclusivamente sociológica era um obstáculo importante a ser superado e desfeito se quiséssemos entender a comunicação em seus aspectos mais
amplos. Como acredito agora, após duas décadas e muitas páginas escritas.
De forma alguma, a comunicação pode ser vista como um objeto secundário, face à vetusta filosofia, às teorias sociais, ao entendimento psicológico do sujeito. Não quero que, com
isso, entendam que vejo a comunicação sem uma dimensão social e psíquica. É claro que tem,
mas não é apenas isso. O excessivo sociocentrismo e psicologismo das teorias atualmente dominantes traz, como bagagem, uma suposição metodológica que discrimina o mundo natural
e o universo das culturas humanas. E estudar comunicação é querer entender a conectividade
e a interação entre os muitos domínios da vida.
Além da discriminação entre natureza e cultura, quando saí do Brasil acreditava-se na
força das representações coletivas, capazes de preencher e determinar a tabula rasa, a página
em branco, que seria a mente humana. Uma das mais importantes contribuições epistêmicas
da neurociência foi a derrocada crítica desta dualidade, receptora de estímulos externos que
disparariam comportamentos de vários organismos vivos. O cérebro não poderia mesmo ser
uma página em branco: nele, reside bilhões de anos herdados evolutivamente. Mais do que
isso, a pobreza dos estímulos não dá conta da dimensão criativa dos comportamentos que são,
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também, modos de comunicação.
Apesar de não saber ainda quais respostas seriam alternativas ao princípio de separação de natureza e cultura, tinha a firme intuição que nada disso fazia sentido. Não era apenas
Claude Lévi-Strauss que insistia no papel formativo do estritamente cultural para os grupos
humanos. Nem, retrospectivamente, apenas Rousseau e tantos outros autores de grande distinção e importância nas ciências sociais e humanas. Nem mesmo, mais recentemente, os pesquisadores behavioristas norte-americanos que não conseguem (ou não querem perceber) que
os estímulos não garantem uma interpretação digna da complexidade social, linguística e comunicacional que caracteriza a vida como um todo.
As raízes de tamanha unanimidade são bem mais profundas: ao preparar um capítulo de
livro que investigava um grande conflito na antiguidade clássica, observei que a noção de cultura, que muitos de nossos contemporâneos tendem a abraçar, já fora formulada pelo registro
de Tucídides, da oração fúnebre de Péricles, durante a Guerra do Peloponeso. Os argumentos
em torno dessa questão encontram-se no primeiro capítulo de Jogos de Comunicação (NEIVA, 2009).
O que o alinhamento dos temas do Congresso revela
Até a irrupção da imensa e poderosa revolução dos meios de comunicação que se disseminou no final do Século XX e início do Século XXI, o que pensávamos sobre comunicação era
decisivamente local, regional e específico de um determinado grupo ou cultura humanas.
Qualquer universalidade tinha o tom de especulação idealizada; qualquer pensamento sobre a natureza humana, por exemplo, era considerado fonte de etnocentrismo, uma vez
que o modelo universal seria inspirado em sociedades europeias, brancas, industrializadas e
ocidentais. Ao mesmo tempo, os tipos de sociedade que serviam de modelo ao sociologismo
culturalista eram predominantemente centrados em modos de sociabilidade articulados por
relações de parentesco, num regime econômico caracteristicamente pré-industrial. Apesar das
distinções óbvias, o pensamento selvagem é tão sofisticado quanto o pensamento científico
(LÉVI-STRAUSS, 1962).
Por outro lado, para o sociologismo culturalista, o horizonte dominante era sempre o da
imanência do grupo. Por isso, em 1922, Bronislaw Malinowski afirmava serem predominantemente fáticas as trocas comunicacionais entre os trobriandeses, que conhecera de perto. A
comunicação é contextual e sua função social é reafirmar os valores e ideias do grupo. Não haveria aqui lugar para a natureza humana e também para nenhuma dimensão universal.
Na herança que a antiguidade clássica lega para o estudo da comunicação, retórica aristotélica é algo semelhante, ainda que a polis ateniense seja diferente das aldeias do Pacífico
Ocidental. Os discursos cívicos atenienses, para serem persuasivos e influentes, deveriam ser
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construídos a partir de valores e opiniões do grupo específico ao qual eram dirigidos. Como no
caso da comunicação fática, o grupo social e seus valores estariam sendo, simultaneamente,
reafirmados.
Os helênicos e os trobriandeses só podiam conhecer um modo de comunicação limitado pela capacidade transmissiva e receptiva da voz e da audição humanas. Entre os helenos,
e durante muitos séculos depois, não haveria tecnologia que transcendesse ou alterasse essa
realidade. Diante de tais pressupostos, as referências a traços universais comuns às sociedade
humanas eram vistas com desconfiança e reserva. No final do século passado, o antropólogo
norte-americano Clifford Geertz (1989) resumia a questão de modo peremptório: a única universalidade que se pode reconhecer na interpretação das culturas humanas é a de que nelas
não há universalidade possível.
A invenção tecnológica recente mudou radicalmente tudo isso; sem que houvesse, paradoxalmente, uma transformação igualmente radical dos conceitos teóricos que analisassem o
fenômeno. Atualmente, acredito que seja impossível analisar, com propriedade, a comunicação mais recente sem seja dada atenção à questão de sua universalidade. Refiro-me aqui não
apenas à internet e à extensão global das redes sociais. Antes mesmo da expansão da rede de
computadores, a universalidade do fenômeno da comunicação se insinuava na disseminação
da imagem e a tecnologia fotográfica perceptível desde as invenções e soluções técnicas de Fox
Talbot e Louis Daguerre.
Tecnologia e universalidade
O desenvolvimento histórico da fotografia como veículo de comunicação demonstrou,
na prática, que as imagens visuais criadas pela tecnologia das lentes e da química de fixação
destas imagens indicavam a existência de um novo fenômeno comunicacional, que demandava
(e ainda demanda) uma maneira diferente de pensar o que é comunicado. Graças aos novos
modelos de câmeras digitais, que podem se disseminar imediata e globalmente sem necessitar
fixação e reprodução no papel a partir de um negativo, a fotografia se tornou o veículo mais
presente na comunicação interpessoal e na mídia tradicional.
Walter Benjamin foi um dos primeiros a perceber um traço central da nova tecnologia
envolvendo o tema: a fotografia não tem apenas elos de continuidade com o fenômeno ótico
da camera obscura que encantara Leonardo e que se tornara uma técnica de criação pictorial
para muitos artistas posteriores (como Vermeer, Caravaggio etc.). A fotografia desfaz as expectativas da arte tradicional, criando um modo de comunicação radicalmente novo, que exige
uma nova maneira de teorização. Em vários textos em que discutia a fotografia, Benjamin reinterpretava as teses marxistas como um pensamento tanto politico quanto tecnológico. Afinal,
foi Marx quem proclamara, no Manifesto do Partido Comunista de 1848, que, na era industrial, tudo que é sólido dissolve-se no ar.
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A fotografia é essencialmente revolucionária, uma produção impessoal, mecânica e industrial. A fotografia é uma tecnologia que gera mensagens universais. Aqui se anuncia uma
importante perspectiva para aqueles que querem pensar não apenas a tecnologia, mas refletir
com ela, a partir do que o tecnológico permite. É preciso não apenas descrever pragmaticamente o que a tecnologia cria e promove: sempre se deve considerar a necessidade de criação
de um novo arsenal de conceitos, capazes de lidar com o novo que a destrutividade tecnológica
gera.
A separação entre teoria e prática é tão ilusória quanto a discriminação entre natureza e
cultura. Afinal, o que é a comunicação? A comunicação é um objeto conceitual que se compõe
da interação não hierárquica entre transmissor, emissor e mensagem. Mas também (e fundamentalmente) um objeto que participa equitativamente de uma dupla natureza: é uma atividade tecno-pragmática isomórfica a uma capacidade humana fundamental.
Essa é a força de nosso objeto de estudo, infelizmente, assaltado por outras disciplinas
adjuntas à comunicação. Não basta enfatizar o transmissor (é o campo da psicologia) ou os
grupos de receptores (e assim se faz sociologia). O que se quer é pensar a relação triádica entre transmissor, receptor e mensagem. As questões que, em comunicação, merecem respostas
imediatas são as seguintes:
a. Qual a armadura conceitual apropriada para que se interprete a nova mídia que se prolifera na paisagem da comunicação contemporânea?
b. Devemos manter os antigos conceitos? É necessária outra formulação teórica? Quais
lições novas seriam extraídas dos novos conceitos?
c. Como evitar a armadilha de reduzir as explicações a meras descrições de mecanismos
comunicacionais novos? Como evitar que o entendimento da comunicação se limite a uma descrição tecno-pragmática sem originalidade teórica?
Pensar a comunicação na era tecnológica recente
No que se refere a tecnologia, o mais produtivo seria não pensá-la nem como um objeto
de crítica ou elogio, mas pensar com ela, a partir do que a invenção tecnológica nos traz. Para
isso, o ponto de partida é a consideração do cérebro na vida natural e, mais concretamente, o
humano.
John Von Neumman indicou, no ultimo livro que escreveu em vida, que a arquitetura do
computador deve espelhar aquela que é própria do cérebro humano. A intuição de Von Neumman é válida tanto para a computação mecânica como para a comunição linguística em si. Sem
um cérebro complexo e comum a todos os transmissores e receptores das mensagens, não seria
possível a adoção social e coletiva de um sistema comunicativo de natureza combinatória, que
se vale de sutilezas assombrosas no seu material expressivo. Isto é, os sons que os linguistas
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chamam de fonemas, mas vão além: também são elementos semânticos.
Não quero sugerir que se produzam apenas trabalhos de teoria social como The Empathic Civilization, de Jeremy Rifkin. Apesar de outras obras do autor terem sido traduzidas para
o português, minha pesquisa indicou que esse trabalho de 2010 não foi publicado no mercado
brasileiro. Uma vez que o livro pode ser desconhecido para parte do público, vou apresentar
sua linha de raciocínio.
Ainda que tangencie os temas de nossa conferência, The Empathic Civilization é, na verdade, um argumento desenvolvido para justificar uma reforma social, cuja fundação emerge de
uma descoberta neurocientífica. Vejamos o progresso das ideias do autor: na década de 1990,
um laboratório de Parma, na Itália, pesquisava a atividade cerebral de primatas ao tentarem
abrir e comer uma espécie de castanha. Em determinado momento desse processo, um ser humano consegue abrir uma delas. O primata procurou repetir o que observara e, comparativamente, os pesquisadores descobriram que as áreas do cérebro em ambos iluminam-se na tela
do MRI (um gerador de imagens a partir de resonância magnética). A pesquisa ampliava-se na
direção do que em comum no funcionamento cerebral entre chimpanzés e seres humanos.
No final das contas, a pesquisa levou ao reconhecimento de neurônios-espelho (mirrorneurons). Rifkin sugere que este trabalho revela outra definição daquilo que nos faz humanos
e que não se reduziria ao egoísmo, à violência, ao narcisismo, mas sim à empatia que nos permite agir em solidariedade, compaixão e altruísmo. Ele pede a criação de novas instituições,
que representem esta revelação. Como outros animais também os possuem, as instituições que
Rifkin gostaria de ver criadas espalhariam-se por toda a biosfera, por todo o universo. A consideração do cérebro é sempre caminho para algo de natureza universal.
Mas o que gostaria de discutir aqui não é nenhuma forma de engenharia social e política,
como a que Rifkin propõe. Penso que é possível e frutífero que se estabeleça um novo método
de tratar das formas de comunicação que se articule a partir do conhecimento e prioridade teórica dada às propriedades do cérebro humano. Nossa questão diretriz é, portanto, uma questão
de método. Vamos partir da consideração de algumas coisas básicas que o cérebro é capaz de
fazer.
Examinando o cérebro como condição metodológica
O que faz o cérebro? Por que temos esse órgão que é, ao mesmo tempo vital e tão custoso? Sua importância é claramente demarcada pelo que é necessário ao seu funcionamento: a
energia consumida pelo cérebro é maior do que qualquer de nossos outros órgãos. Atualmente,
após pesquisas neurocientíficas, sabemos do nosso parentesco cerebral com animais que nos
pareciam completamente distintos (as abelhas, os répteis, os primatas). Também sabemos que
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o que o cérebro pode ser subdivido em áreas especializadas em identificar não apenas rostos e
pessoas, mas também movimento, formas e cores.
E mais. Ainda que só falemos do córtex visual, o sentido de visão proporcionado pelo
cérebro é um instrumento fundamental para o conhecimento do mundo exterior. Afinal, só
conhecemos aquilo que nos chega através dos sentidos e processado cerebralmente. A visão
funciona por meio de um mecanismo intrigante: vemos através de fotorreceptores chamados
de hastes ou rods, troncos entre a retina e o cérebro sensíveis à luz que banha o meio ambiente.
Nada disso seria motivo de espanto se a visão não criasse representações estáveis, num ambiente onde a luz está sob constante mutação. Tudo flui, mas mesmo assim as pessoas adquirem informações precisas, estáveis e vitais sobre o universo que as circunda.
O cérebro reconhece o que nos permite aplicar o termo “verde”, mesmo que os dados
que o levaram a isso sejam de uma folha ou planta vistas ao meio-dia ou à meia-noite, sob o
sol intenso ou num dia nublado (ZEKI, 1990, p. 37). De alguma forma, a visão cerebral resulta
da desconsideração do iluminante em mutação, como reconheceu Hermann Von Helmholtz
(1821-1894) no fim do Século XIX. A variação do iluminante é descartada e o que é resta é um
padrão que identificamos como sendo “verdicidade” (greenness) e que precede e estrutura a
variação diversa da luz.
O que segue a partir disso é mais do que a recepção passiva de dados ambientais: o cérebro recebe informação do meio-ambiente, mas a transforma através de um julgamento. Enxergar não é uma recepção passiva, mas é uma visão ativa que se constrói sensorialmente. Ainda
que não seja exatamente o mesmo, algo semelhante acontece quando nos movemos pela meioambiente, percebendo os objetos de vários pontos de vista e identificando as mudanças como
constitutivas das coisas do mundo. O diverso é integrado e justaposto no reconhecimento de
que as variações são lados e faces de um só objeto.
O cérebro é o fator central para a construção ativa que nos permite agir no mundo e
conhecê-lo. O mundo nos chega por meio da constituição fisiológica e de nossa herança evolutiva. A visão não se restring a copiar a realidade exterior, mas sim construir sua representação
que é originariamente uma hipótese. Se por um lado a informação recebida se transforma pelo
juízo, a construção visual é, por vezes, uma configuração ambígua; como, por exemplo, no caso
do cubo Necker, nas gravuras de Escher, em desenhos de objetos impossíveis.
A integração de informações parciais numa representação e imagem totais resulta de um
processo complexo que reúne os dois sistemas básicos presentes no córtex cerebral: um dominado pela função de reconhecer onde estão as coisas e outro que identifica o que são. Cada um
dos sistemas é regido por uma espécie de especialização funcional.
Eis os traços dominantes no sistema do onde: processamento do movimento, da profundidade, da percepção espacial, da distinção entre figura e fundo. O processamento é veloz,
independe do reconhecimento da cor e opera com acuidade baixa, mas alta sensibilidade ao
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contraste. Agora, identifiquemos os traços do sistema do quê: reconhecimento de objeto, face
e cor: tem a capacidade inversa do sistema do onde: sensibilidade à cor, alta acuidade e baixa
sensibilidade ao contraste (LIVINGSTON, 2001, p. 51).
A divisão de trabalho é clara, não apenas em termos de função, mas também, anatomicamente. O que significa que o ainda misterioso processo de integração da informação não
é perceptual, mas interpretativo. Não é toa que o lógico e filosofo norte-americano Charles
Peirce fale da necessidade de um terceiro tipo de signo, desempenhando um papel mediador
entre o veículo da representação e o objeto representado, que recebe o nome de interpretante.
O interpretante é condição para que a representação sígnica se refira a um objeto, para que a
comunicação se efetue.
O cérebro opera por meio de inferências rápidas e sutis. A visão cerebral dá-se por meio
de saltos interpretativos. Como se descobriu no estudo da afaquia (condição congênita de nascer sem a lente do globo ocular). Com óculos fortes, a visão dos que sofrem dessa deficiência
conseguem aprimorar a recepção de informação vinda do mundo exterior. Podem reconhecer
as manchas no couro de uma vaca, mas após perceber que elas se movem, o paciente passa a
conhecer interpretativamente que se trata de um animal, de uma vaca enfim. O indivíduo com
afaquia percebe o movimento das manchas como sendo o movimento de um animal, inferido
como sendo uma vaca, porque a sua estrutura cerebral não é cega ao movimento. Não sofre,
portanto, de acinetopsia. O movimento não é um fenômeno estritamente do mundo exterior,
mas uma representação construída pelo cérebro, a partir de estímulos vindos do meio ambiente.
A visão não pode ser apenas na retina, mas resultado também de inferências e preenchimento cognitivo de dados que nos chegam do mundo natural. Ver é interpretar uma possibilidade. Sendo o cérebro condição já reconhecida para os atos de comunicação, é preciso ver a
comunicação pelo prisma da possibilidade, regida por potencialidade, um exercício cognitivo
que segue uma lógica modal.
Mesmo que o senso comum insista em afirmar que a certeza necessária é o traço principal da visão (ver para crer), o movimento de formação de representações visuais se forma a
partir de hipóteses que se mostram necessárias no curso de sua repetição e dos nossos hábitos
(crê-se porque é possível que tenha sido visto).
Conclusão
Diante do exposto, outras questões devem ser respondidas. O que os estudos da comunicação devem fazer, uma vez admitido o que foi aqui apontado? Primeiro, é claro, observar as
pesquisas neurocientíficas das ciências cognitivas. Ficar a par dos avanços e transformações tecnológicas.
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Digo primeiro observar a pesquisa em campos médicos e comportamentais adjacentes
devido aos custos altíssimos de pesquisas com ressonância magnética. Nos Estados Unidos, as
pesquisas tratam de temas médicos ou paramédicos, em geral financiados pela National Health
Foundation, reservados para estudos clínicos. O que tem sido investigado sobre comunicação é
frequentemente secundário, mas isso não impede que hipóteses teóricas sejam formuladas. A inteligência cognitiva não é privilégio de uma disciplina, nem mesmo efeito direto da investigação
com máquinas altamente sofisticadas utilizadas. Principalmente, as máquinas encarnam possibilidades teóricas.
Se o cérebro age e conhece por meio de áreas com funções especializadas, isso quer dizer
que o órgão impõe categorias cognitivas ao mundo que se encontra em estado de fluxo. O cérebro constrói um mundo possível. Segundo as conclusões recentes da lógica modal, tudo o que
se apresenta necessário e determinado é, de fato, resultado de uma totalidade (maior ou menor)
de possibilidades. Verdade metafísica é o que acontece em todos os mundos possíveis. No caso
de uma verdade possível, ela é resultado de um juízo parcial diretamente depende do custo envolvido na sinalização por parte de organismos individuais concretos. Quanto mais custoso for
o sinal, mais verdadeiro ela será considerado: é o que os ornitólogos israelitas Amotz e Avishiga
Zahavi chamam de princípio da desvantagem (handicap principle) que muitos tendem a chamar
de costly-signaling theory (teoria do custo da sinalização), obviamente em referência ao sinal
comunicado.
Assim, segundo esse caminho que vai do possível ao verdadeiro, não há como admitir que
o sociológico ou o psicológico determinem os efeitos da comunicação. O caminho se dá pelo estudo e pela consideração de como o cérebro opera inferencialmente, tanto no caso da verdade
metafísica como no caso da consideração do custo envolvido na sinalização. Nada disso deveria
ser surpreendente: os mecanismos neurais e sua capacidade avaliativa são conditio sine qua non
para a comunicação.
Algumas lições básicas podem ser extraídas, hoje mesmo, daquilo que sabemos sobre o
cérebro. O cérebro é um órgão essencialmente plástico que opera segundo inferências dedutivas
e condicionais. Regido por processos de especialização funcional, ele parte do geral para o particular; do reconhecimento categorial do vermelho para a percepção específica daquele tom de
vermelho; na linguagem, do termo verbal nominativo sempre geral (“cão”, “João”, “tigre” etc.)
para a descrição específica do objeto nomeado. Porém, como o cérebro opera por meio de generalizações, sua imposição de categorias ao mundo forja a ilusão de que as coisas do mundo partilham de uma essência comum. É importante observar que o cérebro cria as condições tanto para
o entendimento como para o desentendimento do mundo.
Se o cérebro é formalmente um órgão originariamente dedutivo; por isso mesmo, não há
motivo para se conceder privilégio especial para as pesquisas e investigações de cunho indutivo.
Mesmo que tenha sido atacada ferozmente por Hume e Popper, a indução persiste porque não
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parece haver como favorecer dedução ou indução como métodos cognitivos.
Porém, o estudo da formação anatômica do cérebro desfaz a equivalência entre dedução e
a indução, priorizando a dedução. Tudo isso sem cair no determinismo clássico (a indução capturaria, por meio de regularidade estatística, as leis eternas do mundo natural e humano), pois o
que o cérebro faz é construir uma hipótese sobre o mundo, criando um mundo possível.
Referências
ARISTOTLE. On Rhetoric: a Theory of Civic Discourse. New York: Oxford University
Press, 1991.
GEERTZ, G. A Interpretação das Culturas. São Paulo, LTC, 1989.
MALINOWSKI, B. Argonauts of the Western Pacific. Prospect Heights: Waveland Press,
1984.
LÉVI-STRAUSS, C. La Pensée Sauvage. Paris: Plon, 1962.
NEIVA, E. Jogos de Comunicação. São Paulo: Ática, 2009.
NEIVA, E. Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia. Rio de Janeiro, São
Paulo: Instituto Houaiss de Lexicografia, Publifolha, 2013.
ZAHAVI, A; ZAHAVI, A. The Handicap Principle; a Missing Piece of Darwin’s Puzzle. New York: Oxford University Press, 1999..
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Expediente
TECCCOG
Brazilian Journal of Technology, Communication, and Cognitive Science é produzida pelo Grupo de Pesquisa Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva credenciado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista
São Paulo, v.1, n.1, ago.2013
A revista do TECCCOG é uma publicação científica semestral em formato eletrônico do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva credenciado pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista.
Lançada em setembrode 2013] tem como principal produzir métodos e conhementos sob uma perspectiva inter e
transdisciplinar, a complexidade das relações entre Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva, e os seus impactos cognitivos na sociedade.
Editor
Walter Teixeira Lima Junior
Comissão Editorial
Walter Teixeira Lima Junior (Universidade Metodista de São Paulo) * Lúcia Santaella (Pontíficia Universidade Católica de São Paulo) * Luis Martino (UNB) * João Eduardo Kogler (Universidade de São Paulo) * Ronaldo Prati (Universidade Federal do ABC) * Ricardo Gudwin ( Universidade Estadual de Campinas) * João Ranhel (Universidade
Federal de Pernambuco) * Eugenio de Menezes (Faculdade Cásper Líbero) * Reinaldo Silva (Universidade de São
Paulo) * Marcio Lobo (Universidade de São Paulo) * Vinicius Romanini (Universidade de São Paulo)
Conselho Editorial
Walter Teixeira Lima Junior (Universidade Metodista de São Paulo) * Lúcia Santaella (Pontíficia Universidade Católica de São Paulo) * Luis Martino (UNB) * João Eduardo Kogler (Universidade de São Paulo) * Ronaldo Prati (Universidade Federal do ABC) * Ricardo Gudwin ( Universidade Estadual de Campinas) * João Ranhel (Universidade
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Assistente Editorial
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Projeto Gráfico e Logotipo
Danilo Braga * Walter Teixeira Lima Junior * Leandro Tavares
Revisão de textos
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Editoração eletrônica
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Correspondência
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