O Ca2+ no Músculo Liso Unitário A membrana da célula muscular lisa possui muito mais canais de Ca2+ dependentes da voltagem do que o músculo esquelético, e possui correspondentemente muitos menos canais de Na+ dependentes da voltagem. Portanto, o Na+ participa pouco na geração do potencial de acção no músculo liso. O fluxo de iões Ca2+ para o interior da fibra é responsável pela geração do potencial de acção. Isto ocorre da mesma forma auto-regenerativa como ocorre para os canais de Na+ nas fibras musculares esqueléticas. Assim, o Ca2+ é não só responsável pela despolarização como também é responsável pela activação do processo de contracção por interacção com a calmodulina. No entanto, os canais de Ca2+ abrem mais lentamente que os canais de Na+ e permanecem abertos mais tempo. Isto é dá origem aos prolongados potenciais de acção característicos do músculo liso. 15 Potenciais no Músculo Liso Unitário No estado de repouso, o potencial intracelular da célula muscular lisa é de cerca de –50 a –60 mV, ou seja, cerca de –30 mV menos negativo que o da célula muscular esquelética. Os potenciais de acção no músculo liso unitário ocorrem em duas formas: A e B. Potencial em ponta (Spike Potentials) Este tipo de potenciais, que são similares aos que se observam no músculo esquelético, ocorrem na maioria das células do músculo liso unitário. Duram de cerca de 10 a 50 ms. Podem ser estimuladas de várias maneiras, por exemplo, por estimulação eléctrica, por acção de hormonas no músculo liso, por acção de neurotransmissores libertados pelas fibras nervosas, por estiramento, e ainda, como resultado da despolarização da fibra muscular mediada pelas células intersticiais de Cajal (células pacemaker). 16 Potenciais no Músculo Liso Unitário B. Potencial de onda lenta (Slow Wave Potentials). O potencial de alguns tecidos musculares lisos oscila, formando uma onda lenta na zona adjacente à membrana plasmática, especialmente nos músculos lisos da parede dos intestinos. Esta onda lenta é produzida por uma rede especializada de células não musculares: as células intersticiais de Cajal que comunicam com o músculo liso através de junções de hiato. A onda lenta não é um potencial de acção. Ou seja, não é um processo auto-regenerativo que se propaga ao longo da fibra muscular. Mas quando a onda lenta é suficientemente positiva pode iniciar potenciais de acção no músculo liso, mediados pela abertura de canais iónicos de Ca2+ dependentes da voltagem. As ondas lentas são também conhecidas por ondas marca-passo (pacemaker waves). 17 Potenciais no Músculo Liso Unitário Figura do livro Integrative Action of the Autonomic Nervous System: Neurobiology of Homeostasis (2006) By Wilfrid Jänig, Cambridge University Press. Potenciais no Músculo Liso Unitário C. Potencial de acção com plateau (Action Potentials with Plateaus) O começo deste tipo de potencial é similar ao potencial em ponta. No entanto, em vez de ocorrer uma rápida repolarização da célula, a repolarização atrasa-se várias centenas de ms (atraso que pode chegar até 1000 ms). Este plateau pode explicar as contracções prolongadas que ocorrem em alguns tipos de músculo liso, tal como o ureter, o útero e alguns tipos de músculos lisos vasculares. 19 Potenciais no Músculo Liso Multiunitário As fibras musculares lisas multiunitárias contraem-se normalmente somente em resposta a estímulos nervosos (sistema nervoso autónomo). Não se desenvolvem tipicamente potenciais de acção. Isto deve-se ao facto das fibras serem constituídas por células muito pequenas que não estão conectadas umas às outras (o número de junções de hiato é muito reduzido ou nulo), pelo que cada célula contrái independentemente das restantes. O tempo requerido para activação da fibra é de cerca de 200 a 300 ms, e chama-se período latente, que decorre antes da contracção começar. Este período latente é cerca de 50× maior do que o período latente do músculo esquelético. 20 Acção do Sistema Nervoso Autónomo no Músculo Liso As fibras nervosas do sistema nervoso autónomo que inervam o músculo liso geralmente ramificam-se duma forma difusa no topo da camada de fibras musculares lisas. Na maioria dos casos, as fibras nervosas não fazem contacto directo com as fibras musculares lisas, formando junções difusas que secretam o seu neurotransmissor na matriz que rodeia o músculo liso, a alguns nm a µm das fibras. O neurotransmissor difunde-se até às células musculares. Quando existem muitas camadas de células musculares lisas, só a camada externa é que é inervada. A excitação muscular propaga-se entre as camadas por propagação interna do potencial de acção de uma célula muscular para outra e ainda por difusão externa do neurotransmissor. Os botões terminais das fibras nervosas têm múltiplas varicosidades distribuídas ao longo dos seus eixos. Nestes pontos, não existem células de Schwann, permitindo a secreção de NT através das paredes das varicosidades. 21 Acção do Sistema Nervoso Autónomo no Músculo Liso Em algumas situações, especialmente no músculo liso multiunitário, as varicosidades encontram-se directamente sobre a membrana da fibra muscular, separados desta membrana por cerca de 20 a 30 nm, a mesma espessura da fenda sináptica da junção neuromuscular. Estas zonas designam-se junções de contacto e funcionam da mesma forma que no músculo esquelético. Como consequência estas fibras contraem-se mais rapidamente do que as fibras estimuladas pelas junções difusas. Os neurotransmissores mais importantes secretados pelas fibras nervosas do sistema nervoso autónomo são a acetilcolina e a norepinefrina. Nunca são secretadas pelas mesmas fibras nervosas. A acetilcolina e a norepinefrina são substâncias excitatórias em alguns órgãos e inibitórias noutros órgãos. 22 Acção do Sistema Nervoso Autónomo no Músculo Liso Quando a acetilcolina excita uma fibra muscular, a norepinefrina tipicamente inibi-a, e vice-versa. Isto acontece porque a acetilcoolina e a norepinefrina actuam sobre as fibras musculares lisas por interacção com receptores proteicos membranares. Alguns destes receptores são excitatórios, enquanto que outros são inibitórios. Todos eles conduzem à activação de segundos mensageiros metabotrópicos. Exemplos da actuação de receptores muscarínicos (acetilcolina) (Eglen, 2006, Autonomic & Autacoid Pharmacology, 26: 219–233): M3 medeia a contracção de inúmeros músculos lisos nos tractos respiratório, gastrointestinal e genito-urinário; M1 e M3 medeiam a relaxação do músculo liso vascular. Exemplos da actuação de receptores adrenérgicos (norepinefrina). Receptores α1, excitatórios, envolvidos na contracção do músculo liso vascular, tracto genito-urinário e esfíncteres e os receptores β2, com efeitos relaxantes no músculo liso dos tractos respiratório, gastrointestinal, e genito-urinário (Kandel et al, 2001, Principles of Neuroscience, NY: MacGrawHill). 23 Estimulação mediada por hormonas Cerca de metade das contracções do músculo liso são iniciadas por factores estimulatórios que actuam directamente sobre a maquinaria de contracção do músculo liso, sem recurso a potenciais de acção. Os factores mais frequentemente envolvidos neste processo são: (1) hormonas e (2) agentes químicos locais. Muitas das hormonas em circulação no organismo afectam a contracção do músculo liso, em maior ou menor grau. São elas a norepinefrina, epinefrina, acetilcolina, angiotensina, endotelina, vasopressina, oxitocina, serotonina e histamina. Estas hormonas irão provocar excitação ou inibição da fibra muscular lisa dependendo da acção do receptor a que se ligam na célula. Os receptores hormonais apresentam dois tipos de resposta: (1) Alteram o potencial da célula, aumentam ou diminuem o potencial, por abertura e/ou fecho selectivo de canais iónicos; (2) Não alteram o potencial da célula, promovendo, por exemplo, a libertação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático (excitatório) ou a activação das Ca2+ Mg-ATPase que bombeiam iões cálcio para o retículo 24 sarcoplasmático e espaço extracelular (inibitório). Estimulação do músculo liso por neurotransmissores e hormonas Hilgers et al, 2005, Exp Biol Med, 230: 829-835. 25 Relaxamento do músculo liso por neurotransmissores e hormonas Yuan et al, 2007, BMC Pregnancy and Childbirth, 7(Suppl 1):S10. 26 Estimulação mediada por agentes químicos locais A contracção das arteríolas, metarteríolas e esfíncteres précapilares, é mediada pelo músculo liso. Estes pequenos vasos tem pouco ou nenhum controlo nervoso. No entanto, respondem rapidamente a alterações nas condições químicas locais do fluído intersticial. Alguns dos agentes químicos locais de controlo são: (1) O2 - diminuição da concentração do O2 nos tecidos locais faz com que o músculo liso relaxe, e portanto provoca vasodilatação. (2) CO2 - excesso de CO2 também provoca vasodilatação. (3) H+ - aumento da concentração de H+ também provoca vasodilatação. O aumento da concentração em adenosina, ácido láctico, iões K+, a diminuição da concentração em iões Ca2+ e o aumento da temperatura corporal também provocam vasodilatação. 27 Estimulação mediada por estiramento das membranas Quando o músculo liso é suficientemente estirado, gera potenciais de acção espontaneamente. Eles resultam duma combinação de: (1) potenciais de onda lenta e (2) despolarização membranar devida ao estiramento. Este tipo de resposta permite que os músculos lisos do intestino, quando suficientemente esticados por alimentos, se contraiam automática e ritmicamente. Nota: Esta imagem é ilustrativa da acção do SNA e do estiramento nos movimentos peristálticos do intestino. http://www.mfi.ku.dk/ppaulev/chapter22/kap%2022.htm 28 Comparação dos mecanismos de contracção dos músculos esquelético e liso Para além dos aspectos, já referidos, sobre a acção do complexo Ca2+- calmodulina, da miosina cinase e da miosina fosfafatase no processo de contracção muscular, existem outras diferenças nos dois mecanismos de contracção muscular. A velocidade do ciclo das cabeças cruzadas é muito menor no músculo liso, cerca de 1/10 a 1/300 da frequência com que ocorre no músculo esquelético. Uma das razões para esta lentidão é a lenta actividade ATPásica das cabeças de miosina, que afecta a velocidade de degradação do ATP e consequentemente a velocidade de colocação das cabeças de miosina num estado conformacional de alta-energia. Por outro lado, a fracção de tempo em que as cabeças de miosina permanecem ligadas à actina é maior no músculo liso. A energia requerida para suster a contracção do músculo liso é cerca de 1/10 a 1/300 da energia necessária para suster a mesma tensão de contracção no músculo esquelético. Pensa-se que isto resulta da lenta velocidade do ciclo das cabeças cruzadas e do facto de só se despender 1 molécula de ATP por ciclo, independentemente da sua duração. Este baixo dispêndio de energia é importante porque órgãos como os intestinos, a bexiga, a vesícula biliar, e outras vísceras mantém um estado de contracção tónica quase indefinidamente. 29 Comparação dos mecanismos de contracção dos músculos esqueléticos e liso O começo da contracção e a duração total da contracção demoram em média mais tempo no músculo liso. O músculo liso começa a contrair cerca de 50 a 100 ms após ter sido excitado, atinge a força máxima cerca de 500 ms depois, declinando de seguida até ao repouso em 1 a 2 s. O tempo total de contracção é de 1 a 3 segs. Isto é em média 30× mais lento do que uma contracção dum músculo esquelético. Devido à grande variedade de músculos lisos, a contracção pode durar tão pouco como 0.2 segs ou tanto como 30 segs. São duas as razões para esta lentidão: (1) a baixa velocidade do ciclo das cabeças cruzadas; (2) a baixa velocidade do processo de iniciação da contracção. A força de contracção muscular é em média maior do que a do músculo esquelético – 4 a 6 Kg/cm2 em comparação com o 3 a 4 Kg/cm2 do músculo esquelético. Esta grande força de contracção resulta do período prolongado de ligação das cabeças cruzadas de miosina aos filamentos de actina. 30 Comparação dos mecanismos de contracção dos músculos esqueléticos e liso O mecanismo latch permite que o músculo liso permaneça em contracção tónica durante horas, com pouco consumo de energia ou necessidade de sinais excitatórios. Quando a estimulação é persistente e os níveis citosólicos de Ca2+ permanecem relativamente elevados, a velocidade de hidrólise do ATP no ciclo das pontes cruzadas diminui. Nestas circunstâncias, a desfosforilação, mediada pela miosina fosfatase, das unidades regulatórias da miosina dá-se, mesmo com a miosina ligada à actina. As miosinas assim desfosforiladas permanecem muito mais tempo agarradas à actina, atrasando o ciclo da cabeças cruzadas enquanto mantém a tensão muscular. Como consequência, o número de cabeças ligadas aos filamentos de actina num dado momento permanece elevado, mantendo a contracção. Pouca energia está a ser utilizada nestas circunstâncias (cerca de 1/300 da energia que é utilizada para manter a contracção no músculo esquelético) porque o ATP não é degradado a ADP (Widmaier et al, 2006, Vander´s Human Physiology, McGraw-Hill 31). 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