v Cultura Teatro No lugar do outro Na prisão de Vale de Judeus, a encenadora e atriz Mónica Calle trabalha com reclusos, acreditando que o teatro é transformador. A VISÃO acompanhou os ensaios e a apresentação da peça Alguns de Nós, com textos de Tennessee Williams – e viu como dentro de muros é possível criar espaços de liberdade POR GABRIELA LOURENÇO TEXTO E BRUNO SIMÃO FOTOS 120 v 21 DE ABRIL DE 2011 21 DE ABRIL DE 2011 v 121 CULTURA TEATRO O sorriso de René é tão branco, tão rasgado sobre a pele negra, que, às vezes, não reparamos no seu olhar. Aos 36 anos, ainda nem parece trintão e os olhos de menino que hoje brilham a pensar na Páscoa que aí vem escondem tristezas e saudades inconfessáveis. É amanhã, dia 22 de abril, numa sexta-feira que o calendário deste ano diz ser santa, que René vai sair do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, em Alcoentre. Entrou ali há quatro anos e já leva quase nove dentro de muros, condenado por organização criminosa e falsificação de documentos. Agora, a pouco mais de uma semana dessa saída e do regresso a casa, na zona J de Chelas, em Lisboa, ri-se, genuinamente divertido, sentado no cimo de um escadote. Uns degraus abaixo, a atriz Ana Ribeiro tenta manter a compostura. «Há algumas mulheres que transformam uma coisa potencialmente bela em algo não muito diferente do acasalamento entre dois animais! Mas é o amor que faz a diferença», diz, dando-lhe a deixa. O texto é de Tennessee Williams, um excerto do livro Verão e Fumo, com que a encenadora Mónica Calle construiu este espetáculo, também com cenas tiradas de Um Elétrico Chamado Desejo, do mesmo autor. Diálogos a dois, sempre um homem e uma mulher, carregados de tensão, tristeza, amargura, sonhos perdidos, desamor, violência e emoções extremadas – é assim Alguns de Nós, a peça encenada por Calle, com seis dos reclusos de Vale de Judeus, e a ajuda de três das atrizes que habitualmente colaboram com a Casa Conveniente: Ana Ribeiro, Mónica Garnel e Rute Cardoso. «Não é uma utopia ou uma quimera – a arte, o teatro mais especificamente, é realmente transformadora», acredita Mónica Calle, que, desde final de 2009, desenvolve este projeto, numa visita semanal a esta prisão, e que já aqui encenou À Espera de Godot, de Samuel Beckett. «Há, entre eles, grandes atores», garante. Nervoso miudinho O som é quase cliché. As chaves rodam no portão de ferro, para o trancarem, atrás de nós, depois de entrarmos. Já atravessámos grossas portas cinzentas que deslizaram à nossa frente para nos deixarem entrar e, de novo, deslizaram, 122 v 21 DE ABRIL DE 2011 Ensaios Cenas de emoções extremadas, tensão e violência, em textos de Tennessee Williams, representadas por seis reclusos de Vale de Judeus para se fecharem. Já entregámos um documento de identificação à porta, já guardámos os nossos pertences num cacifo, já vencemos um detetor de metais. Já passámos ao lado dos muros altos, retorcidos no topo, que delimitam a prisão, já nos cruzámos com sorrisos de estranheza, caras fechadas, outras mais bem-dispostas, algumas ainda curiosas, ao verem este grupo – ali tão improvável – composto por quatro atrizes, uma jornalista e um repórter fotográfico. Já ‘Não é uma utopia, a arte é realmente transformadora’, diz Mónica Calle fomos escoltados por um guarda prisional, neste percurso de três minutos a pé, sobre alcatrão, até aqui chegar. Os reclusos vão aparecendo um a um, à medida que conseguem, também eles, transpor os portões que os separam deste pavilhão onde ensaiam, há vários meses, sempre às quartas-feiras depois do almoço. Os traços a branco marcam, no chão de madeira, o campo de um jogo que não se joga. É o palco que dá nas vistas, numa das pontas deste espaço escuro, onde a luz teima em entrar pelos rasgões dos plásticos pretos e pelos intervalos das cortinas vermelhas que cobrem as janelas, no cimo das paredes laterais. Nesta quarta-feira, 13 de abril, há cadeiras alinhadas, em fila, a encher o CULTURA TEATRO salão e mais guardas prisionais do que o habitual. No ar, algum nervoso miudinho – pela parte dos atores, é o dia de mostrar aos companheiros de prisão o que andaram a ensaiar; pela parte dos guardas, é o dia de terem reunidos, na mesma sala, cerca de uma centena dos 504 reclusos que ocupam as celas de Vale de Judeus. Luís Graça, um alentejano de 32 anos, cortou bem curtinho o cabelo que lhe chegava aos ombros. Vai contracenar com Mónica Calle. Ele será Mitch, ela será Blanche, de Um Elétrico Chamado Desejo. Lê o texto, para confirmar que o decorou bem. É dos poucos que já experimentara fazer teatro, antes de vir aqui parar, culpado assumido (e consciente) do homicídio, que o condenou a 22 anos de prisão. Está detido há 13 e, muitas vezes, encara esta realidade com os olhos no chão – não tanto por vergonha, mas mais por um certo individualismo, que esta experiência no grupo de teatro vai contrariando. «O teatro ajuda-me a comunicar com as pessoas», já nos dissera, durante o intervalo de um dos ensaios. Tatuagens nos braços e piercings nas sobrancelhas, sabe que ainda está distante o dia da libertação – que é também o dia em que passará a enfrentar outra dura realidade, a de ex-presidiário – mas isso não impede que se imagine lá fora como ator ou ligado às artes de outra forma qualquer. Ou então a correr mundo, sem paredes que o prendam no mesmo lugar. Nascer selvagem No corredor que dá acesso à sala do pavilhão, toca, estridente, um telefone. «Manda aí vir os bandidos para virem ver o teatro», ordena o guarda prisional que o atende. Vão chegando, em pequenos grupos, dizem o seu número de prisioneiro, passam por um detetor de metais, instalam-se nas cadeiras vazias. Quando começa a música, o burburinho na sala é mais sonoro ainda. Há aplausos quando os atores sobem ao palco, assobios quando René põe o braço sobre o ombro de Rute, risos de gozo, réplicas às deixas da peça, conversas para o lado. «Hoje, você já não dorme», ouve-se, com sotaque brasileiro, quando Rute se cola a ‘Elas não nos veem só como reclusos e marginais’, elogia Luís Afonso 124 v 21 DE ABRIL DE 2011 Olhares Os seis atores de Alguns de Nós: Luís Afonso, Simão, Rocha, René, Nélson e Luís Graça Mário Rocha, outro dos atores-reclusos. No espetáculo, Rocha há de levar seis estalos na cara, para delírio da plateia. Um entusiasmo que cresce mais ainda quando, já no final, um dos atores entra numa luta violenta com Mónica Garnel. «Então, o chefe não faz nada?», pergunta um espetador, a rir, a um dos guardas que assiste, em pé, de braços cruzados. «É a melhor peça que já vi, ó chefe», diz um outro, depois de todos se terem levantado para aplaudirem, entusiasmados, no final de Alguns de Nós – um desfecho apoteótico, com uma centena de reclusos a cantarem, em coro, a música dos Delfins Nasce Selvagem. Foi Nélson que escolheu este tema – é ele que, em cima do palco, dá o mote, com uma voz sumida que contrasta com o enorme corpo que ostenta. Aos 41 anos, insiste em convencer-nos de que não nasceu para ser ator. «Não tenho jeito para nada», garantiranos, com boa disposição e naquele tom pausado de quem não dá muitas explicações, mas tem sempre um comentário certeiro (e desarmante) para fazer. «Queria saber como era estar em palco e está a ser uma experiência única», dissera. «Sem dúvida que o teatro nos ajuda. Passo a semana toda nos meus entreténs, mas a quarta-feira é um dia especial, mais positivo, dá-me tranquilidade e uma certa estabilidade emocional, que muito nos falta aqui, dentro da prisão», garantira, CULTURA TEATRO antes de fazer o caminho de volta à sua cela, pouco depois das cinco da tarde, de Bíblia na mão. «Para me redimir de todos os crimes que cometi...», rematara, em tom de despedida. Ser outra pessoa Quando Mónica Calle aqui chegou, trazida pelo ator e encenador Amândio Pinheiro, que, entretanto, foi viver para Paris, havia apertos de mão distantes e olhares desconfiados. Hoje, há abraços e cumprimentos com dois beijinhos, desabafos e troca de confidências. Estas três horas, nas tardes de quarta-feira, são um espaço de liberdade – esse bem tão valioso de que estão privados – mas também de afetos e de partilha entre as atrizes e os reclusos. «Somos todos amigos», diz, sem hesitar, Mónica Calle. «Quando trabalhamos, esquecemos o sítio onde estamos. Não é diferente se estivermos numa prisão ou noutro sítio qualquer; as relações que se criam são do mesmo género. O lugar é o do texto, cria-se outro espaço e outro tempo», afirma a encenadora. Para estes homens, as atrizes são pessoas que vêm de fora, sabendo que eles são reclusos, e que os tratam sem medos nem constrangimentos, sem os culpabilizarem. Tal como já fizera Amândio quando ali chegou, Mónica não quis saber dos seus crimes. «É reconfortante. A Mónica conheceu-me aqui e está a dar-me uma oportunidade. Elas não nos veem só como reclusos e marginais», elogia Luís Afonso, 29 anos, alto e musculado, cabelo rapado. Foi para fugir ao ambiente da prisão que se juntou ao grupo de teatro de Vale de Judeus, onde está há quase oito anos (a pena é de 14). «Aqui posso ser outra pessoa, posso ser o que quiser», resume. Se tivesse feito teatro mais cedo na vida, o seu destino teria sido diferente? «São muitos ‘ses’», diz, com um encolher de ombros, mas acrescenta: «Venho de um bairro social, a zona J de Chelas. Sou um jovem como tantos outros que estão lá fora. Talvez se me tivesse dedicado ao teatro, isso me fizesse abstrair do ambiente do bairro... Porque estar ali é meio caminho andado para vir parar aqui», desabafa, antes de contar que foi condenado por estar envolvido numa rixa de gangs, em que houve um homicídio. «Fui o único a ir a tribunal. Não prestei declarações e fui condenado. Não disparei, mas estava envolvido... Não ia denunciar ninguém.» 126 v 21 DE ABRIL DE 2011 Fuga Mónica Calle em ensaios com Luís Afonso. Estas três horas nas tardes de quarta-feira são um espaço de liberdade, esse bem tão valioso de que os reclusos estão privados Vida reciclada O ensaio corre, indiferente à silhueta, em contraluz, de um guarda, na entrada do salão. Lá dentro, vestidos de fato de treino, calções, T-shirts ou calças de ganga, correm para fazer o aquecimento. Saltam, gritam, riem-se, divertidos, dão gargalhadas. Está-se bem aqui, longe das celas que hão-de fechar-se às sete da tarde em ponto, para só se voltarem a abrir, no dia seguinte, às oito da manhã; longe dessas quatro paredes onde todos veem televisão para conseguir viajar dali para fora e muitos enchem folhas de papel com histórias, poemas ou simplesmente com o que fizeram nesse dia. Fora desta sala de ensaios fica o passado que para aqui os trouxe e o presente diário dessas horas do resto dos dias de quarta-feira, das 24 horas de todos os outros dias. Ficam, até, as saudades dos filhos (que quase todos têm), da família, dos amigos. Uma realidade que lhes vem agarrada ao corpo, à voz, aos movimentos, mas que se esforçam por disfarçar – e que, pouco a pouco, vão revelando a estas atrizes. Amândio Pinheiro lembra-se bem do início deste projeto, impulsionado por uma carta recebida no Teatro D. Maria II, era ele assistente do diretor Carlos Fragateiro. Um grupo de reclusos pedia ajuda para encontrar um texto de teatro ‘Aqui posso ser outra pessoa, posso ser o que quiser’, diz um dos atores-reclusos só com personagens masculinos, que pudesse ser representado dentro dos muros de Vale de Judeus. «Para um dia se reintegrarem na sociedade, há que desenvolver projetos destes, que os ajudam a aproveitar o tempo em que estão presos para se transformarem em pessoas melhores do que eram quando lá entraram.» Foi com esta crença que o encenador contactou com a direção do estabelecimento prisional. «O teatro põe-nos diante de nós próprios mais do que qualquer outra atividade. Esse espelhar cria indivíduos mais conscientes.» Amândio defende que fazer teatro dentro de uma prisão é fundamental para a sobrevivência de qualquer pessoa que se veja atrás de grades. «É um projeto que tenta dar humanidade a homens desprovidos dela, que quer permitir àquelas pessoas terem uma experimentação e uma reflexão sobre o que são, desenvolverem uma individualidade, ganharem um sentido crítico, criarem um gosto, mesmo inseridas num sistema prisional que tende a aniquilar isso tudo. O teatro é um espaço onde a vida é reciclada, ainda que sob a forma de simulação, que é uma maneira de sublimar o que possa estar por detrás do que os levou ali.» Para Mónica Calle este é um trabalho que não se encerra apenas nestes muros. Prova disso é o caso de um antigo recluso que fazia parte do grupo de teatro (desfalcado, entretanto, por desistências, saídas da prisão ou transferências para outros estabelecimentos) e que hoje colabora com a equipa da Casa Conve- CULTURA TEATRO niente. «É importante dar-lhes outros contextos, que nunca teriam oportunidade de ter, e criar pontes para zonas de possibilidades, que não existiriam de outra forma», diz a encenadora. Lufada de ar «Vai-se andando... devagar...», responde Rocha a um cortês «Tudo bem?» Vamos andando, vamos indo, vamos vivendo – são as expressões mais ouvidas por aqui, num lugar onde se vai sempre sobrevivendo. Neste ensaio, o palco ainda está despido. A tempo da apresentação contacto com pessoas de fora que o move e, ainda que agora, ali no palco, a voz lhe falhe, não abdica desta oportunidade. «Fala mais alto», grita-lhe Calle. «Tenho a voz fraca», desculpa-se, enquanto lá de fora chegam os gritos, bem mais sonoros, de uma partida de futebol. Está frio no pavilhão, mas – dizem-nos – nada que se compare com o frio que está «lá». Lá são as celas, mas também pode ser «o manco», a forma como se referem à solitária, que fica mesmo por baixo desta sala onde estamos, à qual os reclusos vão parar por maus com- Tarde de teatro «É a melhor peça que já vi, ó chefe», diz um dos reclusos, no final da apresentação de Alguns de Nós, na prisão de Vale de Judeus da peça hão de chegar bancos e uma mesa, candeeiros, um rádio e um cinzeiro, velas e candelabros, copos de plástico, um anel, um projetor – tudo devidamente identificado à entrada e à saída. Rocha já lá está, a ensaiar o papel do tal John que vai fazer as delícias da plateia, ao ser esbofeteado. Aos 45 anos, é o mais velho do grupo e aquele que há mais tempo aqui está fechado («treze anos e meio», diz-nos, com as letras todas). Ainda lhe faltam «alguns» para cumprir a pena de 22 a que foi condenado por assalto e tentativa de homicídio. «Isto foi uma lufada de ar que entrou aqui, no Estabelecimento Prisional», afirma, satisfeito, este homem franzino de Vila Franca de Xira, que também integra o grupo musical de Vale de Judeus como guitarrista. É o 128 v 21 DE ABRIL DE 2011 portamentos, que podem ir desde lutas entre detidos à posse de droga ou de um telemóvel. O sol quase não entra cá dentro, mas lá fora, nos pátios, ainda se aproveita: joga-se futebol, ténis, seca-se roupa numa corda, anda-se calmamente às voltas, para enganar a sensação de se estar fechado dentro de muros. Privados de vida «Este projeto faz todo o sentido no contexto do trabalho da Casa Conveniente. Aqui, ser atriz tem uma utilidade real. E não é nada de mais: é o ser [verbo] humano, o tratar um ser humano como um ser humano», nota a atriz Ana Ribeiro. René reconhece-lhes o gesto: «É importante o contacto com pessoas que não vivem esta realidade, sobretudo pessoas como elas – sem preconceitos e predispostas a ajudarem-nos no que for necessário.» Para este angolano que chegou a Portugal com 14 anos e que, nesta Páscoa, já estará com a família, fazer teatro ajuda a suportar as saudades de casa e a conseguir, na medida do possível, uma certa «paz de espírito». Já o sentira na prisão de Coimbra, onde esteve durante um ano, e onde conheceu o método Teatro do Oprimido, que o ensinou a exprimir-se através do corpo. E até já o pressentira lá fora, quando tentou fazer um curso de teatro, no Chapitô, de que desistiu por falta de tempo. Talvez por isso diga, sem hesitação, que quer continuar a representar, quando sair de Vale de Judeus. Mas também não desistirá de escrever poesia (está a acabar o sétimo livro) e só lhe falta decidir se troca mesmo o curso de Direito, que, entretanto, começou a fazer, por um de Psicologia. Para trás, ficará a história do esquema que engendrou para arranjar autorizações de residência em branco, junto de um funcionário do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Agora, em cima do palco, já não é ele o John, de Verão e Fumo. «Olá, filha do pregador. Tenho estado à tua procura», diz Simão, num português polvilhado de sotaque crioulo. Tem 44 anos, mas dávamos-lhe, no máximo, menos dez. Cabelo rapado, macacão azul e casaco de fato de treino manchado de lixívia (do trabalho nas limpezas), exibe um sorriso aberto que, no entanto, não esconde como é difícil suportar esta pena de oito anos que ainda vai a meio, ditada pelo tráfico de droga. «Aqui, sinto-me bem, estou divertido, brinco, mas não esqueço que estou preso. É complicado, é muito pesado. Estamos privados de qualquer tipo de vida. Não temos escolha», desabafa, sem nunca deixar de sorrir. Simão agarra-se a estas horas de quarta-feira, porque sabe bem que, «por vezes, a vida nos empurra para certas coisas e nem sempre as coisas correm como queremos». A atriz Ana Ribeiro diz que já deu por si a pensar nisso: «As pessoas são histórias, muitas delas resultam do sítio onde nasceram. Eu, noutro contexto, podia estar aqui...» Um pôr-se no lugar do outro, que ainda esta semana o jornalista Fernando Alves enaltecia, na TSF, como sendo «ainda o objetivo central, seguramente o mais nobre, do jornalismo». Um pôr-se no lugar do outro que o teatro também partilha, seja em que palco for.