O primo Basílio e O Crime do padre Amaro

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Ano 01 – nº 02 – junho de 2006 – ISSN 18094589
P. 40 a 47
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O PÚBLICO E O PRIVADO NAS OBRAS:
O PRIMO BASÍLIO E O CRIME DO PADRE AMARO
Vera Fátima Gobbi Cassol*
[email protected]
O Primo Basílio, na visão de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1999), romance fechado (p. 727), segue
idêntica reflexão assumida em O Crime do Padre Amaro ao estabelecer uma crítica a sociedade de Lisboa,
focalizando o adultério de Luísa – personagem principal – e atacando o casamento e a família, mais
especialmente a “família lisboeta”, atingindo, sobremaneira, a intimidade das famílias “de bem”. Enquanto
isso, Padre Amaro – que representa a estrutura católica centralizadora, definidora do certo e do errado, acima
de qualquer sanção – embrenha-se na fornicação e cede ante os desejos carnais, afastando-se dos valores
que prega. Em O Primo Basílio a severidade, amplitude e coerência de sua crítica, atinge a decadência moral
e a falsa ética burguesa de toda a sociedade através de personagens da classe média preocupados em
manter as aparências. Personagens que, da mesma forma, primam pela manutenção do status quo como
privilégio e garantia de um padrão estável economicamente e intocável, cultural, religiosa e moralmente.
Status do qual se beneficiam e compreendem como vital e determinante para a manutenção e controle dos
valores – que na obra são vazios, sem sentido, desprovidos de vínculos verdadeiros e enternecimento
pessoais – tradicionais, firmando-se, a partir da sociedade retratada em “falsos valores”.
O Crime do Padre Amaro é um romance que critica não apenas os costumes clericais da época mas
também apresenta a vida mesquinha da cidade provinciana portuguesa. Eça de Queirós nessa obra,
denuncia a estreita vida de província, com sua intriga local , as personagens mesquinhas, os seus padres, as
suas beatas, os seus aspectos sujos, tortuosos, pretenciosos, miseráveis. É a vida mesmo, com toda sua
trivialidade real que perpassa aos nossos olhos. Não somente as personagens principais (Amaro e Amélia)
são criticados mas também os secundários são utilizados para revelar as mazelas da sociedade em que
estão inseridos.
A dicotomização de comportamentos, analisada por Eça de Queirós, sugere o refúgio de cada
personagem em seu mundo pessoal e em suas paixões e intenções, tornando-se dedutível que a “ruptura
entre o público e o privado foi o início de todas as outras: entre o sagrado e o profano, entre o homem e a
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mulher, entre os grupos humanos e, principalmente, entre o humano e a natureza” (MURARO e BOFF, 2002 :
176). Caminhos diversos pelos quais seguiu a humanidade em suas relações, não como sujeito de sua
própria definição valorativa, mas pelo
que revelam de um sistema social, político, cultural ou econômico
que definha ao longo dos anos promiscuindo-se em intenções e ações espúrias, nunca transparentes e
desprovidas do mais sincero sentimento, como escreve Eça de Queirós em O Primo Basílio. O privado, nesta
obra, demonstra a veracidade dos acontecimentos, porque, enquanto realista, O primo Basílio, representa um
fato social analisado sob o crivo da convicção científica de Eça que acaba por demonstrar a “tremenda
tendência mórbida de uma época” (RIBEIRO : 228) na qual a dimensão pública estampa a teatralização e a
elaboração de comportamentos desgastados pela alta moralidade (idem) dos costumes e tradições. Crença
que, para Émile Zola deriva da compreensão do “homem como máquina guiada pela ação de leis físicas e
químicas, pela hereditariedade e pelo meio físico e social” (21).
O jovem Amaro, que desesejou a vida do seminário, não por vocação mas como “um libertamento”.
Orfão aos seis anos fora criado pela Marquesa de Alegros. Fraco tanto física como psicologicamente . (...) a
sua figura amarela e magrita pedia aquele destino recolhido(...) (p.9). O ambiente da casa da marquesa onde
fora criado e o seminário moldaram o caráter de Amaro.
Nomeado pároco em Leiria, interior de Portugal, Amaro conhece a inocente Amélia, filha da senhora
Joaneira ( dona da casa em que Amaro se hospeda e ao que tudo indica, mantinha um romance escuso com
o Cônego Dias) e, pouco a pouco, o sacerdote recém chegado vai se apaixonando pela jovem e
amaldiçoando sua sorte que o condena ao celibato.
Amélia é bonita, branca, dos olhos muito claros e cabelos abundantes, possui um temperamento
sentimental romântica e fortemente sensual. Órfão de pai, sua mãe é amante do Cônego Dias, é uma devota
simplória e passiva, atraída pelo ritual católico. Namora João Eduardo, escrevente de cartório. Conhece o Pe.
Amaro, apaixona-se e entrega-se a ele com total submissão. O destino lhes oferece o pretexto perfeito para
cair em tentação: a filha do sacristão Martin, uma moça com retardamento mental, a quem eles decidem
ensinar juntos a Palavra de Deus... Amélia fica grávida e esconde-se numa Quinta próxima à cidade,
acompanhada de uma fanática beata, irmã do Cônego Dias. Recebe a visita do Abade Ferrão, único
sacerdote decente do romance. Ele tenta recuperá-la para uma vida normal e digna e quer tirá-la da influência
nefasta de Amaro. No entanto, Amélia morre no parto.
Já, em O Primo Basílio, Luísa teve uma desleixada educação familiar e colegial, exclusiva para o
casamento, visto como a única opção de vida para a mulher da época. Após a frustração do namoro com o
primo Basílio, casa-se com o engenheiro Jorge – sem amá-lo, o que alivia sua mãe do peso iminente de ver
cair sobre si o peso do tabu patriarcal, para o qual as moças têm que se casar. Situação refletida no próprio
texto, através do pensamento ...estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a mama! (QUEIRÓS,
*
Vera Fátima Gobbi Cassol, é professora de Literatura e Língua Portugesa no CE Dr. Dorvalino Luciano de Souza – Cerro GrandeRS. Graduada em Língua Portuguesa e respectiva Literatura pela FAPES – Erexim-RS e Especialista em Literatura pela URI-FW.
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1995 : 24). Passado algum tempo, sua vida tranqüila de leitora de folhetins é alterada pela viagem do marido
e retorno do primo a Portugal. Nesta passagem, Eça estabelece uma crítica a educação da mulher nos
moldes românticos transportando-a para a esfera ornamental, pois nem filhos lhe são atribuídos, para que
cuide da sua aparência. Saraija e Lopes (1983), definem a circulação de Luísa, na obra, como crítica de Eça
a “alienação espiritual da mulher burguesa” (p. 904), vinculando este estado ao sentido público, enquanto
padrão da classe. Aparência que reflete e se reflete, simultaneamente, na compreensão cultural do período,
na medida em que o autor expressa o que Luísa faz como convenção social e apresenta a sociedade
romântica como figurada na protagonista uma vez que ela não tem envolvimento, posição, personalidade
definida. Significância relativa, pode-se dizer, pois o sentido público – aquilo que tem valor – é mantido pelo
poder econômico, pela simples posição, enquanto que o privado – o que realmente ocorre – é mascarado.
Apreende-se, então, que a burguesia revela grande degradação moral em O primo Basílio.
Basílio reencontra Luísa, se faz íntimo da prima, seduzindo-a com promessas de amor eterno. Desse
modo, Luísa, romântica, sonhadora e de temperamento fraco, crê viver um grande amor enquanto, na
realidade, vive apenas um vulgar caso de adultério. Situação que defronta a máxima dos valores públicos do
bom e estável casamento, pretendido pelas mulheres e por todas as famílias, com realidade enfrentada no
dia-a-dia, no próprio lar, na relação concreta da consistência e solidez da valoração privada. Tem origem,
então, um “divisor de águas” entre o que os personagens dizem e o que eles fazem; o que demonstram e o
que vivenciam.
Como valores públicos evidencia-se um casamento aparentemente bem constituído, estável, sólido.
Jorge, marido de Luísa, era homem alegre, dedicado, de gênio manso, com boas relações sociais, o qual ela
aprendera a gostar, cumprindo, desse modo, a dimensão pública das relações “normais” para um homem e
uma mulher de sociedade. Como diz Muraro e Boff, “a família é muito forte na classe burguesa, porque é o
lugar da concentração do capital: assim, é preferível uma moral dupla que o rompimento do casamento”
(MURARO e BOFF, 2002 : 226). Em oposição, na vida privada, esses valores são desmascarados pelo
adultério de Luísa. Evidencia-se neste contexto, a fragilidade da mulher como ser, constantemente,
dependente, incapaz de raciocínio, leviana. Condição sexual que povoa as relações familiares da crítica
realista-naturalista por estar radicada na concepção ideológico-cultural do Romantismo onde o homem é pura
razão e a mulher desdobra-se em amor, paixão. Este pensamento é refletido em O Primo Basílio, pois quando
sabe do adultério Jorge, seu marido, mostra-se compreensivo com Luísa. Apesar de ser um comportamento
publicamente sancionado, conflitua com a concepção das funções e deveres femininos que os próprios
homens assimilam e é senso comum na sociedade do século XIX. Ocorre, sempre – e nesta obra de Eça,
igualmente – um castigo inexplicável, superior, que foge da dimensão humana, punindo, sempre a mulher
porque ela é dada ao amor, a paixão, ao carinho, ao cuidado, com a morte que apresenta-se como força
divina.
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Na obra O Crime do Padre Amaro, podem ser estudados, como valores públicos, as ações do
protagonista e dos personagens envolvidos na trama, momentos que, como diz Duby (1989) tem a função de
sacralizar, legalizar um ato privado (...) determinando o limite entre a norma e a marginalidade, o lícito e o
ilícito, o puro e o impuro expressos nas seguintes ocasiões:
-
as visitas noturnas a casa da S. Joaneira para jogar cartas com as Gansosos e D. Josefa Dias. Ocasiões
que a igreja católica admite e até recomendava no período, visto tratar-se de uma forma de amparo,
proteção, acompanhamento às viúvas e suas filhas, costume difundido na Idade Média pelos teólogos
católicos (DUBY, 1989). Partindo dessa situação legítima, portanto públicam, ocorre o privado,
caracterizado nas trocas de olhares entre Amaro e Amélia e nas conversas ao pé do ouvido;
-
os frequentes jantares do Cônego Dias em casa da S. Joaneira, também representam a caridade que
compunha o rol de boas ações despendidas pelos padres. Porém, essa visita torna-se pretexto para que
o Cônego pudesse dormir com D. Joaneira;
-
as idas constantes de Amália ao confessionário (...)Enfim houve no confessionário um rangido de
madeira, um frufru de vestidos nas lajes(...) (p.44);
-
as visitas semanais de Amaro e Amélia à casa do sineiro para ensinar a filha paralítica a ler, rezar, levar
a palavra de Deus.
Situações públicas que além de admitidas pela igreja católica, se consituem em caritas (DUBY, 1989)
a ser observada pelos padres, como dilectio, amicitia e affectus (idem) de parte da religião para com as
mulheres desamparadas.
Em outra dimensão, pode-se afirmar que em O Crime do Padre Amaro ocorre uma desmistificação,
revelação das verdadeiras atitudes e intenções dos atos exteriores, públicos, formais (DUBY, 1989) no que
diz respeito ao relacionamento afetivo, sexual e conjugal, revelando uma intensa crítica ao catolicismo
português praticado no período. Temáticas aboradas como tabus pela igreja católica, mas que servem para
denotar o verdadeiro sentido do privado e da vivência “dupla face”, dúbia, dos clérigos do século XIX.
Deste modo, o privado, em O Primo Basílio - e, potencialmente, no Realismo-Naturalismo - resgata
também esse sentido de distância entre o masculino e o feminino que dualizam sentimentos, ações e
entendimentos distintos. O homem precisando ausentar-se para trabalhos nobres, inadiáveis e mostrando-se
necessário, prolonga-se em viagens e tarefas que sedimentam a estrutura econômica e social de seu próprio
lar; a mulher, a exemplo de Luísa, revestida da amabilidade e docilidade com que a sociedade a entende e da
forma como se torna útil – sentido público -, sofre as conseqüências, em seu próprio lar, dessa mesma
imposição cultural que construíram para ela. Sentido privado, que floresce ao entender-se solitária,
desamparada, incapaz diante do mundo, de tudo e de todos, e enfrentar a reaproximação de Basílio que a
marcou profundamente. Entendimento que a classe burguesa da época construiu, ao longo de suas relações
de dominação, e que interferem no seu próprio cotidiano, entendendo-os como absolutos, mas eximindo-se,
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ela mesma, do ônus comprobatório, ao experiênciar a falsidade, a traição, o descomprometimento, como
prática diária.
No amor clandestino de Luísa transparece a falsa moral da sociedade burguesa. A protagonista é
“levada” ao adultério por ser fruto de uma falsa educação, o que, também, caracteriza a dimensão privada da
ação na obra. Com uma cultura sentimental romântica e com a ociosidade da burguesinha da “baixa” que
convive de maneira monótona com um círculo de amigos medíocres como o conselheiro Acácio, um
intelectual vazio; uma amiga libertina como a Leopoldina; a beatice de D. Felicidade, uma solteirona
apaixonada pelo Conselheiro; o medíocre dramaturgo Ernesto Ledesma, como o próprio nome diz Le(de)sma,
entre outros.
A preocupação em manter a aparência de mulher honesta e despistar as suspeitas das criadas,
especialmente Juliana, a governanta frustrada e rancorosa e dos vizinhos que comentavam das constantes
visitas do primo à casa de Luísa, faz com que os amantes se encontrem em um quarto pobre alugado por
Basílio para os encontros amorosos. Local que Luísa imaginava ser luxuoso como nos romances que lera. No
entanto, encontra um ambiente de sujeira e pobreza, indicando a decadência moral de Luísa, a sua falta de
escrúpulos e a culpa pela traição. A preocupação do amigo Sebastião sobre as saída diárias de Luísa que as
justifica como visitas a D. Felicidade, hospitalizada, e que o amigo espalha na vizinhança como forma de
manter irretocável a vida social e de boa esposa da personagem destaca o aspecto religioso e comprometido
com os mais pobres e fracos, praticando caridade.
O cínico Basílio pretende apenas saciar sua vaidade fútil ao envolver-se com Luísa. Ele usa a prima
apenas como objeto sexual não alimentando, sequer, amizade por ela, numa clara demonstração de que as
pessoas da sociedade, os ricos, com posses, pertencentes a burguesia, estão se comportando naturalmente
ao ter amantes e desfrutar de outras mulheres. Pode-se fazer uma leitura, abstraindo, como direito dos
machos ter amantes. Os homens precisam ser amados por várias mulheres, pois eles trabalham, elaboram a
porção pesada da vida, enquanto as mulheres sem saber fazer outra coisa que não o amor, dedicam-se a
encontrar e satisfazer seus amantes. Esta falta de envolvimento que Basílio tem para com Luísa caminha na
elucidação crítica da falta de afetividade dos homens, no seu natural distanciamento em relação a um
compromisso maior, mais sério, demonstrando que o verdadeiro interesse da classe burguesa é a aparência,
o status, a manutenção do patrimônio. Igualmente, um aprofundamento do sentido público, no fato de não
haver envolvimento sentimental de Basílio com Luísa, há a manutenção das estruturas sociais, culturais e
institucionais que são, na obra, representada pelo casamento, mesmo que falso, de aparências, mas deve ser
mantido a todo custo. Há a preferência irrefutável de castigar a mulher, com a morte, do que romper com os
laços matrimoniais que são sagrados, permanentes.
Preocupado apenas consigo mesmo, com sua aparência ostensiva e censurando os outros também
pela aparência, tas como: algumas roupas e penteados de Luísa bem como a vestimenta e calçados usados,
gastos, danificados mal cuidados de Julião (QUEIRÓS, 1995 : 75) revela a futilidade de Basílio que contrasta
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com a seriedade, não reconhecida, dos estudos do esforçado e honesto Julião. Trata-se, assim, de outro
enfoque do conflito entre aparência e realidade, atitude que denota o distanciamento entre o público, onde
Basílio se mostra seguro economicamente sendo que, na verdade, não dispunha de tantos recursos pois
alugava um quarto desqualificado, na visão de Luísa, para seus encontros.
A personagem Juliana, criada que faz desmoronar o mundo de Luísa ao chantagiá-la com cartas
roubadas, é conduzida pela revolta – não suporta sua condição de serviçal – pela frustração – fracassou na
tentativa de mudar de vida – e pelo ódio rancoroso contra todas as patroas. Graças a cartas
comprometedoras de Luísa para Basílio é que Juliana obtém da patroa, melhorias de sua vida e no trabalho.
Com a exigência de uma quantia a que Luísa não pode oferecer, Sebastião, seu amigo apaixonado,
consegue reaver as cartas Mais uma vez percebe-se o confronto dos valores públicos e privados nas atitudes
de Luísa no trato para com Juliana, impedindo que o marido Jorge viesse a saber do adultério através da
criada. Ela dissimula para o marido quando este a questiona para saber do fino tratamento dedicado a criada.
O conjunto desses acontecimentos, na obra, revela a condição precária e frágil que mascara a existência da
classe burguesa, opressora, e que não se preocupa com os empregados, impondo-lhes condições
desumanas e explora os vícios sociais que transcorrem, sigilosamente, entre as necessidades e desejos do
romantismo. A utilização de amigos para legitimar ou pintar uma realidade diferente, o uso do puro sentimento
de amor paixão, por parte de Luísa, para conseguir o dinheiro suficiente e “calar” a governanta, identificam a
corruptibilidade dos lisboetas e a mudança de atitudes para manter os interesses a qualquer custo. Até
mesmo a morte – Luísa morreu em conseqüência da febre alta que sentia por trabalhar em excesso enquanto
mantinha calada a Juliana, não estava habituada a tal estilo de vida – é menor do que a queda das
instituições sacralizadas no patriarcalismo.
Luísa, quando chantagiada por Juliana, começa a definhar, emagrecendo, com febres passageiras e
desmaios. Mesmo depois da morte de Juliana, Luísa continua perturbada e adoece gravemente com febres
inexplicáveis, vindo a falecer. Retratação clara do castigo que Eça de Queirós dá a protagonista pelo
adultério.
Eça, com esta obra, apresenta uma crítica a sociedade com falsas bases como ele mesmo diz ao
escrever para o amigo Teófilo Braga: “uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade; atacalas é um dever”.
A leitura da obra O Primo Basílio, estabelece um clima de conflito aberto entre as atitudes públicas e
privadas dos personagens, preocupando-se com temáticas concernentes a patologia humana e social –
adultério, miséria, criminalidade, loucura, incapacidade de controlar os instintos – e por camadas mais baixas
da sociedade. Demonstra um ponto de vista sobre fato do cotidiano social e privado já ocorrido, chocando-se
na fronteira da literatura com os ideais românticos. Contudo, não deixa de radicalizar na crítica aos falsos
valores construídos pela classe abastada da Revolução Industrial européia. Mistificação que produziu a
distinção entre o apregoado, o demonstrado – público – e o vivenciado nas intimidades, desejos e
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sentimentos, como valor privado. Cultura que se metamorfoseia com as ciências e, utilizando-se delas, as
influencia nos próprios rumos da ação literária, fazendo com que “o adultério e a sua descoberta por Juliana,
a criada, representam a acúmen da acção romanesca e, após este momento fulcural, o enredo aproxima-se
gradativamente de uma conclusão inevitável. A morte de Luísa é o testemunho irrefreável de que “a viagem
terminou” (AGUIAR E SILVA, 1999 : 727).
O privado no romance O Crime do Padre Amaro, a primeira obra naturalista da Língua Portuguesa,
compõe um registro implacável da realidade, incluindo seus aspéctos repugnantes e grotescos. Eça de
Queirós aponta a corrupção existente no meio eclesiástico da época.
O padre Amaro em nada se adequava aos cânones da Igreja Católica. O desejo pela mulher sempre
foi um grande desafio. Mesmo as imagens de santas da Igreja ele conseguia ver, em lugar de um sagrado
símbolo de pureza e castidade, a sensualidade de uma mulher atraente e provocante. (...) esquecia a
santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhavaa de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidadeousava erguer as pregas castas da túnica azul da
imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca.(...) (p.11).
É na qualidade de padre que Amaro após se apaixonar por Amélia e conquistar sua amada a envolve
em seus carinhos vivendo perigosamente um romance nada ortoxodo, fato que vai contra as regras
estabelecidas pela Igreja. Como se isso já não bastasse, Amélia fica grávida, sendo em seguida abandonada
por Amaro, que, atolando-se ainda mais em ações desonrosas entrega seu filho a uma “tecedeira de anjos” e
a criança morre.
A atitude do padre Amaro não possuía nenhum resquício de virtuosidade, pois tendo engravidado
Amélia, logo a abandonou como forma de conservar perante a sociedade, sua falsa máscara de “ discípulo de
Deus.” Essa atitude foi necessária como forma eficaz de encobrir mais uma das façanhas ocorridas dentro da
Igreje Católica. Amaro transgrediu as Leis da Igreja e se isso chegasse ao conhecimento daquela gente
simples e devota da redondeza certamente seria motivo de escândalo, nada suportável para a pequena
cidade onde viviam.
Depois da morte de Amélia, ainda existia o filho do padre, outro problema que poderia significar o fim
da reputação de Amaro. Para livrar-se do pecado do homicídio, doou a criança à uma senhora que tinha
costume de matar crianças.
No amor clandestino de Amélia transparece o resultado trágico de uma formação num meio
provinciano e atrasado, centrado no poder eclesiástico. A casa de Amélia é um beatário, centro de
convivência dos poderosos e amorais sacerdotes da cidade(padre Natário e padre Brito), em que impera a
superficialidade dos rituais e uma deformação dos conceitos religiosos cristãos.
As vulgaridades burguesas de Leiria não se restringem apenas aos vícios e grosserias de religiosos
mas estendem-se a outros personagens: O jornalista Agostinho Pinheiro, Gouveia Ledesma e João Eduardo,
noivo de Amélia, que neste ambiente, enciumado com as atenções da moça com o Pe. Amaro escreveu um
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anônimo “Comunicado” na Voz do Distrito, criticando a convivência de padres com amantes. Motivo para
romper o noivado com Amélia.
O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio situam suas análises no campo da sexualidade masculina
e feminina, enfocando uma leitura que tenciona o relacionamento conjugal com os apelos carnais e desejos
inerentes aos seres humanos, confrontando-os com a rígida moral da sociedade burguesa do século XIX.
Uma “moral aceita, aquela que todos fingem respeitar” (DUBY, 1989, p. 17), revivendo o período literário
português do século XII, com indícios de concubinato, dos amores ancilares, da protistuição assim como a
exaltação do sistema de valores, das proezas e da virilidade (idem), caracterizando uma antagização entre a
“vivência” e a “aparência”, entre a exigência e prática, entre o pretendido, o defendido, o aceito e o concreto,
a realidade. Entre o público e o privado.
Referências Bibliográficas
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QUEIRÓS, Eça. O Crime do Padre Amaro. São Paulo : Rideel, 2000.
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__________. O primo Basílio. São Paulo : Moderna, 1995.
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MURARO, Rose Marie, BOFF, Leonardo. Feminino e Masculino: uma nova consciência para o
encontro das diferenças. Rio de Janeiro : Sextante, 2002.
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SARAIJA, Antonio José, LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 16 ed. Porto : Porto
Editora, 1983.
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SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. 8 ed. Coimbra : Almedina, 1999.
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RIBEIRO, Maria Aparecida. História da Literatura Portuguesa. Lisboa : Verbo, [20?]
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SILVEIRA, José Procópio. Dimensões sócio-filosóficas em Eça. Jornal do Comércio. Recife,
06.11.2000.
Capturado
da
internet
em
01.09.02,
disponível
no
endereço
www.uol.com.br/JC/2000/2911/cu0611_/.htm
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BARBOSA, Frederico. O Primo Basílio. Capturado da internet e 01.09.02, disponível no endereço
www.klickeducacao.com.br
-
DUBY, Georges. Idade dos Homens : do amor e outros ensaios. São Paulo : Companhia das Letras,
1989.
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