- Sociedade Brasileira de Sociologia

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Álvaro Vieira Pinto.
A realidade como construção social e dialógica.1
GT Pensamento Social do Brasil – 5a Sessão: ―Pensamento sociológico brasileiro e modernidade‖
XI Congresso Brasileiro de Sociologia.
Campinas, 04 de setembro de 2003.
Norma Côrtes*
Muito antes de ter traduzido A construção social da realidade2, o conhecido livro de
inspiração schutziana dos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann, Álvaro Vieira Pinto
escreveu em sua principal obra filosófica, Consciência e Realidade Nacional3, que a realidade
consiste numa construção dialógica e social. Embora não negasse as propriedades tangíveis
do mundo, o isebiano sabia que isso não é o bastante para que os homens distingam o certo do
errado, o falso do verdadeiro, o sonho da vigília, a quimera da realidade. Construto dialógico,
as certezas sobre o mundo dependem da interação entre dois (logos) que mútua e
conflitivamente reconhecem a existência e as proposições um do outro4.
Essa compreensão de realidade possui as mesmas matrizes intelectuais que a
fenomenologia social de Alfred Schutz — trata-se de uma longa e consistente linhagem
filosófica que se inicia em Kant, atravessa a fenomenologia de Husserl e se encerra nos
herdeiros da Filosofia da Existência. E à luz desta tradição, Vieira Pinto trouxe para os
debates nacionalistas das décadas 1950-1960 um novo enfrentamento do problema do ser
nacional. Com efeito, em vez de se indagar pela brasilidade tentando encontrar um princípio
ontológico que definisse a natureza, a essência ou a alma nacional, adotou uma posição
distinta da comum entre os ensaístas brasileiros geralmente identificados com a inteligência
modernista e, jogando a derradeira pá de cal sobre o problema do caráter da nação, postulou
que
*
Historiadora, bolsista recém-doutor pelo CNPq junto ao Departamento de História e ao PPGH da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
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―O homem não existe sem a comunicação que constitui para a sua
consciência meio indispensável à compreensão da objetividade. [...] a presença
do outro, a inegável companhia das consciências alheias, a referência comum a
todas, a um ser exterior a elas, em uma palavra, a prática social do
conhecimento afiança a certeza da objetividade. A forma lúcida do pensar
sabe que é tal pelo reconhecimento que encontra no pensar de outrem e porque
compreende que seus próprios enunciados dependem, para sua verdade, da
comunicação estabelecida com as demais existências. O pensar crítico da
realidade nacional não afirma nenhuma proposição como verdade a priori,
descoberta pela reflexão pessoal, auto-suficiente, antes sustenta que a verdade
é um valor social, exige a participação do outro, que a deve aceitar
mediante condições que lhe sejam próprias, do contrário não passaria de
lucubração solipsista. [...]
Se, portanto, preciso do outro para ‘com-instituir’, quer dizer,
instituir conjuntamente com ele, a verdade do que conheço, por outro lado,
não posso dar por suposto que o processo de percepção da consciência alheia
seja idêntico ao meu [...]. Logo, a consciência crítica só é capaz de formular a
sua verdade na base da comunicação social. Quando esta não existe quebramse os suportes do pensar lógico, ficando o homem à mercê das impressões e
os grifos são meus
intuições emocionais.‖ (CRN,vol I, p 189-190)
Entender o diálogo como caminho (ou seja, como método) através do qual se chega à
verdade não é novidade na História da Filosofia. Como se sabe, já em Sócrates a inteligência
filosófica assumiu a forma de um confronto entre dois antagonistas cujos argumentos serviam
tanto para convencer, quanto para confundir um ao outro. Entretanto, e por isso mesmo, é
preciso distinguir a atitude dialógica de Vieira daquela que está implícita na ironia socrática.
Afinal, longe de querer exasperar quem se lhe opusesse — dando cumprimento a uma
estratégia de argumentação que conduz o outro a admitir a ingenuidade de sua própria
ignorância (ele nem sabe que desconhece) e, minando as tolas certezas do antagonista, o faz
duvidar de si mesmo para que renuncie as suas irrefletidas opiniões —, o filósofo isebiano
pretendia justamente instituir a verdade com o outro (e não apesar dele). Isso significa, por
um lado, que os juízos verdadeiros não eram exclusivos da consciência filosófica e, por outro
lado, que o diálogo não era uma peça de persuasão; não se reduzia a um expediente de
convencimento; e nem era considerado como uma trajetória discursiva para a conversão da
mentalidade ingênua em sabedoria crítica.
Vieira Pinto não pretendia conduzir a consciência ingênua ao esgotamento das suas
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competências cognitivas para a partir daí, só após ter atingido tal ponto-zero — só sei que
nada sei —, erguer a possibilidade de emitir enunciados verdadeiros, indubitáveis e
ortodoxos. Uma vez que, para ele, a verdade é um saber comum, sua filosofia não se exibia
como o desfile das idéias claras e distintas, típicas de uma inteligência esotérica, ―extraordinária‖, e adequadas exclusivamente aos acostumados com exercícios intelectuais
extenuantes.
Em Consciência e Realidade Nacional, o diálogo era o modo pelo qual duas unidades
de consciência se experimentam, se confrontam e se constituem. Se nessa fórmula há uma
evidente alusão à figura hegeliana do senhor e do escravo (cujo duelo pelo reconhecimento do
outro é fator constitutivo de ambas identidades5), é preciso também perceber um outro alcance
conferido ao comércio comunicativo mantido entre a consciência ingênua e a crítica. Porque
mais que descrever o processo subjetivo de composição de dois núcleos identitários, a
questão era demonstrar o diálogo intersubjetivo através do qual a realidade ganha o estatuto
da objetividade. O mundo para Vieira Pinto não se reduzia à concretude dos seus entes, sendo
mais que o amontoado caótico onde se reúne a pletora de elementos, haveres, relações e
propriedades — além de também conter todas a virtualidades possíveis e imagináveis. Isso
não quer dizer que desprezasse a evidência da tangibilidade, mas significava que, para ele, ―a
realidade só existe quando interpretada. Não há dados puros, não há fatos em si. Todo o dado
e todo o fato só é tal no contexto de um discurso interpretativo [...]‖ (IDN, p 26)
A afirmação nada tem a ver com uma declaração de fé idealista. E embora a crítica
especializada à época não tenha ficado muito convencida disso6, as obras do isebiano,
particularmente Consciência e Realidade Nacional e Ciência e Existência7, não deixaram
dúvidas quanto ao caráter empírico, histórico e realista que ele conferiu a tal ―contexto
interpretativo‖. Pois, ao invés de compreender a consciência como um pólo hermético que,
fechado em sua subjetividade (tal como o cogito cartesiano ―penso, logo existo‖) postula a
certeza exclusiva e excludente da sua própria existência e a partir daí deduz a idealidade de
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um mundo perfeito, Vieira Pinto afirmava que
―Nenhuma consciência existe isolada, em face apenas do mundo dos
objetos. Tanto quanto é evidente a presença destes, também é a de outras
consciências, que simultaneamente os apreendem. Logo, toda consciência
sabe que o mundo, de que possui a imagem subjetiva e do qual produz
uma interpretação, está igualmente presente na representação de um ser
semelhante. Em princípio, pois, a existência de outra representação, que não a
minha, é um dado da minha percepção, incluído necessariamente na
interpretação geral que faço da realidade. Mas não é só um dado, ao lado de
outros também presentes, igual aos demais, e sim um dado que ao mesmo
tempo se oferece à minha percepção influi sobre ela, modificando a maneira
como apreendo os restantes aspectos da realidade. Uma coisa é perceber o
mundo, outra é percebê-lo com a certeza de partilhar com outro ser
humano o conhecimento dele. Neste caso tenho de admitir que a minha
compreensão é uma entre muitas concomitantes, o que me conduz ao problema
do privilégio na posse da verdade.‖ (CRN, vol I, p 418)
Desde sempre (pois não prevê um status naturalis) a sua noção de consciência está
vazada pela reciprocidade do reconhecimento entre mim e outro-eu. É preciso ressaltar, nesse
sentido, que seu conceito de intersubjetividade não define uma reunião de egos agregados por
força de um princípio societário, mas refere-se ao fato de o mundo se dar aos homens não
como coisa bruta e inerte, mas sim e principalmente através da percepção de outro enquanto
um agente intencional. Portanto, o fórum da intersubjetividade, se é que se pode chamar isso
assim, está inscrito em cada um, isto é, em todos os atos reflexivos de mútua e reciprocamente
reconhecer a si, entender o outro e descobrir o mundo. Juntos e simultaneamente, eles
compartilham um contrato cognitivo que estabelece a ontologia de todos os existentes, define
a qüididade dos haveres do mundo e, finalmente, chegam a uma espécie de cogito comum
(dito no e pelo diálogo inter e intra-subjetivo) cujo enunciado formal poderia ser mais ou
menos assim: reconheço e reconhecemos nossa mútua existência e, logo, por lógica indutiva,
constituímos a objetividade do mundo.
Por isso a filosofia de Vieira não assumia o formato discursivo da introspecção
dedutiva. Dialógica, ela descrevia a multiplicidade de juízos emitidos durante o acordo que
estabelece e fixa o inventário de tudo aquilo que o mundo real é e/ou nós-somos. Quer dizer,
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ao identificar os atos cognitivos e os gestos de condutas através dos quais as duas
modalidades de consciência definiam o ser da realidade brasileira, a sua filosofia também
assumia um formato dialógico. Afinal, se quisesse ser congruente, não poderia declarar:
―O diálogo é a condição existencial da realidade humana que dele precisa para
se fazer a si mesma, e tem forçosamente de exercê-lo no âmbito comunitário,
com interlocutores reais e sobre temas objetivos. O diálogo não pode ser
exercício imaginário, a que o espírito se dedique para adestrar-se ou
simplesmente para provar a sua verdade em presença de um adversário fictício;
tem de ser um drama concreto, travado entre existências que ocupam posições
distintas no espaço social, antagônicas em virtude de razões que afetam
existencialmente uma e outra.‖ (CRN, vol I, p 189)
E ao mesmo tempo erguer um edifício filosófico estranho a tais postulados
conceituais.
Diálogo entre duas mentalidades opostas, Consciência e Realidade Nacional visava
explicitar o processo pelo qual os homens constituíam e compreendiam o ser da nação. A
fenomenologia das formas de consciência, na medida em que descrevia o modo de os homens
através do convívio social estabelecerem, compreendem e determinarem o que é a verdade, o
bem, o belo, a justiça, o poder etc., também permitia que o filósofo, ao invés de adotar uma
atitude hierática para pontificar o que a realidade brasileira é, investigasse o processo de
constituição social da realidade nacional.
NOTAS
1
Esta rápida comunicação condensa alguns aspectos explorados em minha tese de doutorado defendida em 2001
no IUPERJ: Esperança e Democracia. As idéias de Álvaro Vieira Pinto. Rio de Janeiro, Editora UFMG/ UCAM
(prelo).
2
LUCKMAN e BERGER. A construção social da realidade, Petrópolis, Vozes, 1973. Tradução de Álvaro
Vieira Pinto sob pseudônimo.
3
PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.
4
Cf. intersubjetividade em HURSSEL, Edmund. Meditações cartesianas. § 49.
5
Cf. KOJEVE, Hegel Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
6
PINTO, Álvaro Vieira. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1956. Fato que levou
Vieira Pinto a alterar e escrever na segunda edição de IDN publicada em 1959: ―[...] a realidade é sempre
interpretada. Não há dados puros, não há fatos em si‖. (p 32)
7
PINTO, Álvaro Vieira Ciência e Existência.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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