Cosmovisão e Biomedicina na Guiné-Bissau: Leituras à Depressão Natália Pereira Resumo O presente artigo procura delinear as linhas gerais do trabalho de campo em Bissau, sobre as diferentes leituras de um conjunto de sintomas, que a biomedicina classificou como depressão. Fazer o enquadramento desta patologia numa perspectiva da Psicologia Intercultural, onde o mágico e a biomedicina têm espaço para interagir pode ser extremamente útil, tendo presente que o DSM-IV-TR (Guia de Diagnóstico Diferencial) não tem muita utilidade, uma que vez que este não passa de uma correlação entre sintomatologias consideradas mais frequentes, na cultura para o qual foi criado. A implicação do que se poderá encontrar pode ajudar no reconhecimento e formas de tratar as depressões, tanto pelas unidades locais de saúde primária, como pelos clínicos, quando se deparam com migrantes, que apresentam uma sintomatologia para eles deconhecida, abrindo portas para uma nova forma de trabalhar e garantir o sucesso dos tratamentos. Palavras Chave ... Saúde mental, depressão, tratamento, medicina tradicional, biomedicina, Guiné-Bissau 141 Introdução As pesquisas epidemiológicas em diversas culturas, têm confirmado que a depressão ocorre por todo o mundo, sendo o que difere de cultura para cultura a sintomatologia apresentada, as interpretações atribuídas e as respostas dadas a nível social. Os motivos que justificam as pesquisas sobre saúde mental nos denominados “países de baixos rendimentos” são diversos, sendo um deles a necessidade em se ultrapassar as bases teóricas sobre as quais a psicologia foi construída, acente em pressupostos reducionistas do sujeito e da relação estabelecida entre saúde e doença, tendo-se sobreposto o paradigma biomédico ao conhecimento popular, e esquecido que a doença é sempre biológica e sempre cultural (Quartilho, 2001: 17). Durante muito tempo, a doença mental foi vista e interpretada como uma possessão demoníaca e/ou um castigo dos deuses. Ainda hoje em muitas culturas, as doenças mentais são vistas como formas de possessão ou resultado de feitiçaria, sendo os tratamentos procurados dentro do grupo, junto daqueles que detêm o poder e reconhecimento para o fazer. Mesmo nas sociedades ditas evoluidas/desenvolvidas, continuamos a encontrar explicações com base no sobrenatural para muitas doenças mentais – possessões, espíritos, maus olhados, etc, explicações essas que não se enquadram na medicina formal, pois são expressão de uma cultura própria que o paradigma biomédico tem dificuldade em aceitar. A antropologia médica, ainda muito no início em Portugal, tem-se debruçado sobre como é que pessoas de diferentes culturas e/ou de diferentes grupos sociais explicam as causas das doenças, os tipos de tratamentos que utilizam e quais os sistemas terapêuticos a que recorrem no caso de doença. É neste desencontro de paradigmas que se situa este trabalho, procurando perceber esta realidade, assim como, que possa de alguma forma contribuir para melhorar os cuidados de saúde mental na Guiné-Bissau ajudando a que se estabeleça uma interação dinâmica e positiva entre a medicina tradicional e a biomedicina. Estado da Arte Apesar da primeira referência histórica, no domínio da psicopatologia, ser Freud com o livro “Totem e Tabu” em 1913, foi na realidade Rivers,psiquiatra e antropólogo, que em 1898 ao integrar uma expedição ao Estreito de Torres, desenvolve a primeira investigação na área da Psicologia Intercultural, medindo e comparando diversas ilusões óticas, entre as populações locais e ingleses. ... No entanto a autêntica psiquiatria transcultural, só se começa a definir entre 142 1930 e 1940, com os trabalhos de antropólogos como Margaret Mead, Ruth Benedict, Erikson, entre outros. A dimensão transcultural da psiquiatria adquiriu uma importância particular nos anos 60, quando se verificou que certas patologias tinham uma diferente evolução, dependendo do tipo de sociedade. Como por exemplo, a evolução da esquizofrenia é mais favorável nos países em vias de desenvolvimento, do que nas sociedades mais industrializadas, apesar de se considerar que esta é uma patologia com aspectos universais, verifica-se ter uma vertente cultural (Jenkins & Kano, cit. Quartilho: 146). Surge assim um novo paradigma, que sugere que os factores sociais e culturais podem ter um efeito determinante na evolução das doenças. Como tal, a psiquiatria teve de pesquisar e alargar os seus horizontes, os seus conceitos e instrumentos e passar de uma psiquiatria uniforme para uma psiquiatria cultural e apropriada a novas culturas. A psicologia cultural tem aos poucos, abandonado o seu estatuto de marginalidade e afirmado-se como disciplina autónoma, ao mesmo tempo que a sua designação também tem sido alterada. George Devereux, em 1940, denominou-a de Psiquiatria Primitiva, passando por Psiquiatria Précientífica e Etnopsiquiatria, até a Associação Americana de Psiquiatria escolher a expressão de Psiquiatria Transcultural e mais recentemente foi proposta a expressão de Psiquiatria Cultural que é menos exótica e mais abrangente (Quartilho, 2001: 148). Segundo Fonseca, 1985: 657, à psiquiatria transcultural compete: “identificar os factores culturais susceptíveis de influênciar as características das doenças psíquicas”, já que, “a existência e a definição desses factores demonstram-nos que há determinados costumes, normas culturais, crenças religiosas e mitos que são mais traumáticos do que outros”, podendo assim predispor, precipitar ou mesmo manter certas formas de doença mental. Pode-se então dizer que, a psiquiatria transcultural consiste, “no estudo e na comparação da doença mental nas diversas culturas”, isto é, estuda o doente mental nas suas relações com o ambiente cultural em que se insere. Esta nova psiquiatria desenvolveu-se para o chamado “cross-cultural psychology”, (Sam, Berry & outros, 2006: 3), analisando questões como: “ Como é que a cultura influencia o comportamento?” ou, “Como é que pessoas nascidas e criadas noutras sociedades, conseguem viver noutra sociedade que é culturalmente diferente daquela a que estão habituados?”. Ou ainda em perceber como é que as pessoas desenvolvem comportamentos de forma a se adaptarem a viver com sucesso no contexto sociocultural. De volta a Quartilho, 2001: 149, este cita Weiss e Yilmaz, afirmando que a psiquiatria cultural passou por duas fases, sendo a primeira a que decorre até à cerca de duas décadas, sendo os seus contributos resumidos à tentativa de validação dos princípios da psicanálise de Freud e à elaboração dos conceitos ... 143 psicanalíticos sobre cultura e personalidade, assim como a catalogação descritiva de perturbações “estranhas” à prática clínica e as suas atribuições. Uma curiosidade é o facto das suas possíveis origens estarem na viagem que Kraeplin fez a Java, com o objectivo de explicar a universalidade da dementia praecox e da psicose maníaca-depressiva, (Littlewood e Dein, citados por Quartilho, 2001: 149). Para a segunda fase Quartilho, 2001: 150, cita Casteles e Miller que defendem que esta fase contempla os problemas de saúde mental das populações migrantes e de populações heterogéneas. Qualquer que seja o ramo da psiquiatria, ela baseia-se sempre na elaboração do diagnóstico e nas histórias de vida ou narrativas, no entanto a cultura, a influência pessoal e a linguística vão condicionar uma experiência e uma interpretação dos fenómenos. A narrativa é um processo seletivo e transmissor destas experiências, que constitui uma ponte entre a experiência individual e o sistema cultural criando a necessidade ao psiquiatra e à psiquiatria em considerar a cultura como factor constrangedor da mente humana, (Ware e Kleinnam,1992, citados por Quartilho, 2001: 52). O mesmo autor refere que o conceito de cultura, tem sido raramente incorporado na medicina e sempre que tal acontece corresponde à etnicidade do indíviduo ou relaciona-se com as crenças sobre saúde e doença nos grupos minoritários. Assim sendo, quando o médico avalia alguém de outra cultura que não a sua, a qual não lhe é familiar, será especialmente importante considerar que, as crenças que lhe parecem delirantes, podem somente reflectir uma crença cultural ou religiosa. Em tal caso deverá recorrer à ajuda de profissionais da antropologia e/ou outras áreas consideradas apropriadas. Em relação a Portugal, com excepção de Pussetti, que desenvolveu trabalho de campo no Arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau, analisando os processos culturais de construção do corpo, das emoções e do sofrimento, e de um trabalho de Paulo Granjo em Moçambique, não foram encontrados outros estudos, na área da saúde mental, sobre os países de expressão portuguesa. Os moçambicanos Victor Igreja, doutorado em antropologia médica, tem estudado os processos de cura, reconciliação e justiça após a guerra civil em Moçambique, enquanto que o psicólogo Efraime Junior Boia, tem-se debruçado nas dimensões culturais associadas ao trauma. Em relação às disfunções do foro psíquico, estas têm sido um tema tratado, principalmente, pela psicologia intercultural e transcultural em contexto migratórios (Elsa Lecher, Cristina Santinho). ... 144 É a área da antropologia médica, que se tem debruçado, sobre como é que pessoas de diferentes culturas e/ou de diferentes grupos sociais explicam as causas das doenças, os tipos de tratamentos que utilizam e a que sistemas de cura recorrem no caso de doença. Este ramo da antropologia apesar de ainda estar a dar os primeiros passos em Portugal, já tem diversos trabalhos desenvolvidos, como Berta Nunes,1987 e Cristiana Bastos, 1987, que têm estudado a relação entre o poder médico e o saber popular, defendendo a necessidade da aceitação pela biomedicina dos saberes tradicionais e deixando de lado a visão redutora que tem tido da doença. O paradigma biomédico constitui-se a partir de uma visão reducionista do ser humano, esquecendo que este é fruto de um todo e por isso não pode ser dissociado do meio envolvente, sendo a saúde, a doença e a cura construções sociais, estas não podem ser isoladas da cultura, daí a importância em perceber junto dos doentes e seus familiares o sentido por eles atribuído a todo este processo. E, tal com se pode ler em Silva Pereira, 1993: 159, “As noções de corpo, doença, saúde são construídas social e culturalmente, devendo o antropólogo buscar o seu sentido junto das pessoas que as utilizam, como único meio de poder entender quais as estratégias sociais no processos de manutenção e recuperação da saúde”. Um olhar sobre a Saúde Mental A saúde mental prende-se com a forma como cada um gere os seus problemas e sentimentos (coping), estando o background diretamente ligado com a saúde mental do indivíduo, no entanto em muitas culturas as causas das doenças e particularmente as doenças mentais, ainda são vistas como um castigo ou possessão por espíritos. Diferenças a nível social, sexual, económico são fatores que influenciam e podem causar problemas tanto psicológicos como psiquiátricos, tendo cada cultura diferentes formas de lidar com as perdas e sentimentos de insegurança pessoal, com base nos seus próprios códigos de conduta e de aceitação. A holandesa Jolijn Santegoeds1 ao estudar a situação da saúde mental e tratamentos psiquiátricos em países como o Uganda e a Tanzânia, chegou à conclusão de que existe uma relação entre os problemas mentais e pobreza. Também Patel, no seu artigo “Cultural factors and international epidemiology”, de 2001: 39, refere que diversos estudos2 desenvolvidos em países industrialiazados, têm demonstrado a existência de uma relação entre pobreza e depressão, particularmente entre os desempregados e os que auferem rendimentos mais baixos. Patel refere igualmente, que tal relação foi igualmente en- ... 1 “The high needs of active social inclusion and support of users and survivors af psychiatry”, Report of Psychiatry – WSF 2007, Nairobi, Kenya. 2 Weich, S. & Lewis, G., 1998; Lewis, G., Bebbington, P., Brugha, TS. Et al, 1998, ver bibliografia. 145 contrada em estudos desenvolvidos pelo próprio3 no Brasil, Zimbabwe, India e Chile. Parece pois estar comprovada, a importância dos fatores económicos para a estabilidade emocional dos indivíduos e da sua saúde mental. Kirmayer, recorre aos “explanatory models”, como sendo modelos com base cultural que explicam como o doente experiencia as doenças. As crenças culturais têm o efeito de direcionar a atenção para certas sensações e sintomas e afastar outras. Para Kirmayer esta é uma questão que tende a ser negligenciada pelos clínicos e investigadores que, regra geral se cingem à “checklist” do dignóstico, o DSM – IV – TR, (The Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4ª ed.), classificação standardizada das doenças mentais usada pelos profissionais de saúde mental nos Estados Unidos e adoptada em todo o mundo. Os diversos modelos de tratamento e saúde, devem ser considerados como um importante ponto de referência tanto no processo da cura, como nas investigações desenvolvidas na área da saúde mental. Também se admite, que o sistema de saúde não se deve cingir aos cuidados prestados pela biomedicina e que, coexistem na Guiné-Bissau, os três sistemas básicos delineados por Kleinman (1988) , que implicam uma multiplicidade de representações sobre doença e formas de tratamento, são eles: • biomedicina – que corresponde ao sistema médico instituído e aceite como formal nas sociedades ocidentais. • popular – composto por conhecimento leigo, gerado pelas percepções individuais e colectivas. • tradicional – que inclui a medicina tradicional, centros de tratamento religiosos e as medicinas alternativas. A antropologia médica tem demonstrado que os clínicos influenciados pelo seu background cultural ou pela sua formação académica e profissional, facilmente se esquecem no momento do dignóstico, da importância do fator cultural. Pode-se então pensar que a doença mental e as suas formas de expressão irão ter uma significância diferente dependendo da cultura onde se manifesta, tendo Kirmayer, 2001 : 23, confirmado que em muitas culturas os distúrbios do humor e ansiedade não são vistos como um problema mental, mas como um problema social ou mesmo moral. Os conceitos de saúde e doença que adoptamos estão intimamente ligados ao tipo de sociedade a que pertencemos. Os contextos culturais, políticos, sociais, económicos, históricos, filosóficos e científicos alteram, influenciam e modificam esses conceitos. A saúde, em qualquer sociedade, é um bem estimado e desejado, que a Organização Mundial de Saúde (OMS), definiu com um « estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade. » 3 Ver bibliografia. ... 146 De modo geral, na Guiné-Bissau o estado de saúde das populações é caracterizado por acentuadas assimetrias regionais, rurais e urbanas, tanto a nível dos indicadores do estado de saúde da população, quer das infra-estruturas de prestação de cuidados existentes, quer em termos dos recursos disponíveis. O raio de acessibilidade geográfica assumida até este momento é de 5 km. Com base neste critério, mais de 40% da população não terá ainda acesso geográfico aos serviços, isto é, vive para além dos 5 km da estrutura de prestação de cuidados primários de saúde mais próxima (aqui não se englobam as estruturas privadas). Essa visão global da disponibilidade das infra-estruturas dos cuidados de saúde é muito diferenciada entre as regiões sanitárias e dentro das mesmas regiões. Por exemplo, na Região de Oio, cerca de 65% da população vive a mais de 5km dos serviços de saúde mais próximos. Existem áreas sanitárias com localidades populacionais a mais de 30 km. O Serviço Nacional de Saúde inclui o setor governamental (público), não governamental (privado) e a medicina tradicional, cujo desempenho conjunto se espera que venha a constituir um importante determinante nos serviços prestados à população. No PNDSII4 são apontadas diversas deficiências em termos de cuidados de saúde: - Falta da supervisão periódica da distribuição e da utilização dos recursos; - Falta de recursos humanos (em quantidade e qualidade) e a sua má distribuição; - Fuga de profissionais especializados, decorrente do conflito de Junho de 1998; - Falta de infra-estruturas e de equipamentos essenciais com condições básicas para assegurarem cuidados de qualidade; - Deficientes vias de comunicação; - Precariedade e insuficiência da rede de transportes; - Constantes atos de vandalismo e de roubo de equipamentos, nomeadamente painéis solares, nos estabelecimentos de saúde por parte dos populares. A medicina tradicional, segundo este organismo, continua a ocupar um lugar de destaque nas opções de cuidados de saúde no seio da população guineense e afirma mesmo que com a precariedade dos serviços do serviço nacional de saúde cada vez mais acentuadas em termos de assistência médico-medicamentosa, se verifica uma procura ainda maior de cuidados no setor tradicional. Por estas razões, as autoridades sanitárias do país têm manifestado a vontade de desenvolver programas e actividades capazes de conduzir ao maior relacionamento com este sector. Existe uma estrutura de gestão e de coordenação deste sector, o Departamento de Saúde Comunitária, inserido na Direcção dos Cuidados Primários de Saúde. ... Tendo presente que os diferentes contextos socioculturais moldam a forma 4 PNDS II – Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário, 2008-2017. 147 de sentir a doença, assim como validam comportamentos individuais, pode-se então dizer, que os sistemas terapêuticos tradicionais são a forma organizada de estratégias encontradas por uma cultura, para tratar quem está doente com base nos conhecimentos das doenças locais. Estes conhecimentos integram as crenças e práticas de cada cultura, com o objectivo de manter e restaurar a saúde, sendo os curandeiros os detentores destes conhecimentos, para além de terem o reconhecimento social, que os permite desempenhar a prática curativa. Os sistemas de terapia tradicionais já existem antes do desenvolvimento e contacto com a biomedicina, sendo as suas crenças e atitudes cheias de fortes poderes místicos na construção e explicação do universo. Aspetos Metodológicos Fazer investigação em África, não é fácil! O investigador de uma cultura ocidental tem de se munir de um cuidado enorme para não cair no exotismo nem no etnocentrismo. É necessário estar atento e aberto à cultura que tem pela frente, e este é um processo difícil. As diferenças culturais são enormes, tudo funciona devagar, é preciso estar munido de uma paciência enorme e saber esperar. A falta de infraestruturas, de luz elétrica de forma permanente, a necessidade de geradores, o calor e a húmidade são outros obstáculos aos quais é preciso resistir. Apesar do português ser a língua oficial, grande parte da população fala crioulo, que é a língua da unidade nacional, ou francês e a língua da sua etnia5. Está a ser fundamental a ajuda de um intérprete, apesar dos inconvenientes da sua utilização. Também o “setting terapêutico” não é respeitado, pois não se consegue ter privacidade. Este trabalho assenta na interpretação de múltiplos factos e dados: observação, entrevistas e registo de dados clínicos. O método antropológico é o mais indicado neste caso, onde o tratamento qualitativo descreve os procedimentos de forma detalhada, expondo as diferentes características de cada situação em análise . As entrevistas são semi estruturadas, tendo de se ir adaptando ao momento e ao sujeito. Há questões que não são faladas, certos tratamentos que não podem ser revelados. É importante começar por esclarecer os curandeiros que não queremos roubar doentes, nem aprender as suas artes, mas sim perceber como eles tratam, para que eles próprios sejam reconhecidos. ... 5 De ethnos: povo. Grupo de indivíduos pertencentes à mesma cultura e que se reconhecem como tal, com uma língua, uma cultura, um território e uma religião identicos. 148 Segundo Crowley e Ribeiro, 1987, existem diferentes tipos de especialistas: os djambacosses, os curandeiros e os mistos, a estes acrescento os marabouts. Todos eles utilizam as plantas medicinais e outras técnicas terapêuticas nos seus tratamentos, sendo que os curandeiros são especialistas não religiosos, que podem ser denominados por herbalistas. Tanto os djambacosses como os marabouts são religiosos no entanto em campos totalmente diferentes. Os djambacosses são intermediários dos irãs, solicitando a sua colaboração durante todo o processo, estando a cura dependente da sua vontade. Os especialistas mistos combinam as funções de curandeiros e djambacosses. Os marabouts ou mouros, seguem a religião muçulmana e apesar da sua tentativa em se afastar dos djambacosses, a sua prática é em tudo muito idêntica variando a fonte de inspiração que neste caso vem de Alá. O objetivo geral da investigação é o de compreender diferentes leituras da depressão e formas de lidar com ela, pelos curandeiros e pelos tratadores da biomedicina, assegurando que apesar de outras possíveis designações na medicina tradicional, estamos a falar da mesma patologia. A sintomatologia mais frequente segundo os parametros ocidentais são: • Anedonia • Desapego social • Dificuldades de concentração • Distúrbio do sono Em termos bioquímicos sabe-se que existe uma desregulação do sistema neurotransmissor de Monoaminas (5-HT, dopamina e noradrenalina), no entanto esta é uma visão muito redutora de quais os motivos que levam a esta desregulação, não sendo ainda possível dizer o que leva à alteração do humor (Hallstrom e Mcclure, 2000: 36). No entanto, sabe-se que o stress prolongado está associado a uma desregulação do eixo hipotálamo, assim como uma baixa ativação do sistema nervoso sinático e do sistema imunitário. Durante a minha investigação serão estudados diferentes tipos de tratamentos, disponíveis à população em Bissau. ... Tratamento pode ser definido como qualquer procedimento psicológico (mágico) ou psico-farmacológico com vista a aliviar o indivíduo do seu sofrimento e a melhorar o seu funcionamento diário. 149 Qualquer tratamento deve considerar, que apesar dos problemas psiquiátricos estarem nas mentes e almas dos pacientes, são essencialmente, causados por questões sociais como o desemprego e a falta de oportunidades, abusos, rejeição, violência e relações de poder desequilibradas, logo os problemas mentais são na maioria causados ou despoletados por uma causa social, daí a importância em serem considerados. Existem diversas psicoterapias, ditas alternativas, que no tratamento da depressão têm uma eficácia semelhante à farmacológica, quer no tratamento de distúrbios depressivos quer na prevenção de recaídas. São usados os seguintes instrumentos: questionário clínico, que se destina a identificar o doente e a fazer uma recolha de informações sobre a sintomatologia apresentada, o Self Report Questionary (SRQ-20), instrumento desenvolvido por Harding et al. (1980), adaptado pela WHO (OMS), como instrumento de rastreio para sintomatologia não psicótica (depressão, ansiedade e somatização), para países em vias de desenvolvimento. As 20 questões que o compõem devem ser respondidas com sim/não, sendo cada resposta sim cotada com 1 e devendo a sintomatologia estar presente pelo menos há 30 dias. Foi usado em Bissau por Joop em 19866, que utilizou a versão portuguesa preparada pelos investigadores no Brasil, cujo cut-off ponto foi para >7 de respostas positivas, com base num teste piloto. Estes instrumentos têm como objectivo enquadrar um conjunto de sintomas, que pela sua semelhança são classificados pela biomedicina e pelo DSMIV-TR como depressão. No entanto, não é a validação de diagnóstico o nossso objectivo, nem se pretende impor classificações e psicodiagnósticos ocidentais, mas sim e como já foi referido, entender as diferentes leituras do mesmo conjunto de sintomas, assim como os símbolos culturais e cosmologias locais que dão significado às suas experiências. Conclusão Pode-se dizer que a situação na Guiné-Bissau é em geral: - De pobreza generalizada; - Os cuidados de saúde mental prestados pela biomedicina são muito pobres; - A saúde mental formal está fora do acesso da maioria da população; - Os pacientes estão sujeitos a exorcismos e a tratamentos com medicação, por vezes extremamente violentos e desporpocionais às reais necessidades; - As mulheres são as mais afetadas pela depressão devido à sua vulnerabilidade. ... 6 “A validity study of psychiatric screening questionnaire (SRQ-20) in primary care in the city of Sao Paulo, Mari JJ, Williams P. The British Journal of Psychiatry 148: 23-26 (1986). http://bjp.rcpsych.org/cgi/content/ abstract/148/1/23, acedido a 30/5/2011 150 Num país como a Guiné-Bissau, onde só existem dois psicólogos, sem psiquiatras, (somente enfermeiros psiquiátricos) e sabendo que os doentes recorrem paralelamente tanto à medicina formal como à tradicional, o papel dos curandeiros é extremamente importante pois são eles que podem fazer a mediação entre as crenças e valores dos pacientes com a necessidade de alguma medicação e/ou terapia, guiando-os em caso de necessidade, para os postos locais de saúde. Daqui decorre a necessidade em se saber mais sobre a medicina tradicional e particularmente, já referido por Crowley e Ribeiro (1987), sobre: 1. Os tratamentos da medicina tradicional; 2. O reconhecinhento por parte do Estado pela medicina tradicional, de forma a que quem tivesse de ficar internado num centro de medicina tradicional tivesse os mesmos direitos de quem está internado no hospital; 3. Ensinar os especialistas tradicionais quais as doenças mentais que necessitam do acompanhamento médico criando um intercâmbio dos dois saberes. O aproveitamento das potencialidades dos sistemas tradicionais retirandolhes as componentes charlatonas, pode ser uma ferramenta valiosa para a melhoria e desenvolvimento da área da saúde. Também o conhecimento das interpretações dadas às doenças e processos de cura, pode ter grande utilidade aos profissionais de saúde. O reconhecimento da identidade cultural só por si pode facilitar a aderencia do doente ao tratamento, melhorando o seu relacionamento com os profissionais de saúde criando laços de confiança. ... 151 Referências Augé, M. (1986). L’anthropologie de la maladie. L’Homme. Bastos, C. ; Levy, T. (1987). “Aspirinas, Palavras e cruzes: Práticas médicas vistas pela Antropologia”. Revista crítica de Ciências Sociais, 23, Set., pp. 221-232. Comelles, J. M. & Martinez Hernáez, A. (1993). Enfermedad, cultura y sociedad. Madrid, Eudema. 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