REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA DE LÚCIA MIGUEL-PEREIRA Nadson Vinícius dos Santos (FURG) O ITINERÁRIO DA PROSA DE FICÇÃO DE LÚCIA MIGUEL PEREIRA Lúcia Miguel Pereira em sua história da literatura brasileira dá a conhecer, ainda na capa de sua produção, as noções de Literatura e História que recortam sua obra. A primeira é a de gênero (prosa de ficção) e a segunda é de tempo (1870-1920). Assim, a autora não afirma que fará uma história de toda a produção literária do Brasil, mas apenas da prosa ficcional produzida entre a segunda metade do século XIX e o início do XX, construindo, a partir desses recortes, o enredo de sua história literária, ratificando o pensamento de David Perkins ([s/d]) sobre as “omissões e ênfases que existem na construção de uma história da literatura”. O Brasil na história da literatura em análise é entendido como um EstadoNação homogêneo, independente de suas peculiaridades geográficas. A História do país e, por conseguinte, sua História literária deve obedecer esta constante e estar acima de questões regionais. A crítica que Pereira lança a seus antecessores é a de supervalorizar uma natureza tropical, e daí retirar as bases para uma crítica literária em que os romancistas ficavam restritos aos cânones românticos e limitados a escrever em decorrência das características regionais. A historiadora recolhe textos de diversas partes do país e os expõe a uma análise estritamente literária, dissociada de questões históricas, sociais, geográficas e puramente biográfico-psicológicas para afirmar estar o valor de uma obra literária na manipulação do imaginário e não no reflexo de uma sociedade ou contexto geográfico. O modo de narração linear de história temporal é observado em MiguelPereira na apresentação do marco inicial de sua narrativa, 1870, quando a historiadora faz referência a Visconde de Taunay e critica sua produção melhor sucedida1, a saber, Inocência, e se estende a Lima Barreto, com referência a Bruzundangas, obra publicada em 1922. Nesse intervalo, a historiadora aborda os escritores do século XIX rejeitando o binômio naturalismo/realismo e enfatiza a obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis em 1881. A rejeição ao mencionado binômio se deve ao fato de Miguel-Pereira considerar Machado de Assis o maior escritor da época compreendida e julgá-lo inapto a classificações redutoras, concedendo-lhe um espaço 1 Qualquer emissão de juízo de valor sobre as obras literárias são tomadas conforme a opinião da autora da história literária em estudo. particular em capítulo denominado pesquisas psicológicas (p.53-118) juntamente com Raul Pompéia, autor que se lhe aproxima na tendência. O regionalismo do século XIX é abordado após os naturalistas; em seguida, os simbolistas são mencionados, passando à literatura social já no início do século XX, culminando com Lima Barreto no último espaço temporal, o enredo de sua história da literatura. David Perkins ao tratar desse assunto reduz a três os possíveis enredos das histórias literárias: “ascensão, declínio e ascensão e declínio” (PERKINS [s/d]: 13). É possível, a partir dessa assertiva, compreender o enredo em questão como ascensão, já que a autora parte de uma literatura ainda incipiente, produzida em 1870, que atinge seu auge em 1881 e, embora não produza nada significativo por um intervalo de mais de vinte anos, tem no início da segunda década do século XX, o surgimento de um grande vulto à moda de 1881. Ainda segundo Perkins (op. cit p. 17-18), esse enredo é construído levando em consideração uma listagem de obras e outros eventos que se incluem no espaço temporal eleito pelo historiador da literatura e, em seguida, esse historiador escolhe um herói para sua narrativa e define as obras que formarão seu cânone. Assim, na presente história da literatura brasileira, o herói da narrativa é a prosa ficcional produzida entre 1870 e 1920, o enredo se dá a partir da análise e crítica de contos e romances produzidos nesse período e o cânone se define pelo romancista Machado de Assis. Ao lado dessa divisão cronológica aparece a divisão por períodos, entendida por Perkins como “fixões necessárias” (op. cit. p. 32) orientadas por fatores, dentre outros, como tradição, interesses ideológicos e exigências estéticas. Observar numa história da literatura quais fatores a guiaram é uma questão muito difícil, pois interesses ideológicos mantêm ou quebram a organização tradicional das obras e, por que não dizer, às vezes, determinam esteticamente as produções elencadas. A exemplo disto, segundo Regina Zilberman (2000: 25), assim que o Brasil rompeu os laços políticos e econômicos que o ligava a Portugal, necessitou-se elaborar uma “narrativa para o passado da literatura que começava a existir” e o conceito de Nacional imperou na escolha das obras que formariam o cânone da literatura brasileira. Apenas obras que trouxessem noções de brasilidade tais como descrições paisagísticas e reflexões sobre o modus vivendi e operandi brasileiro deveriam ser apreciadas. Porém, o cânone não é fixo, nem mesmo o oficial conforme Wendell (1998) e assim, passaram a existir outras exigências estéticas. No entanto, o cânone romântico continuava a imperar mesmo tendo já transcorrido bastante tempo da independência e da necessidade de se afirmar como nação culturalmente independente, o que levava obras de cunho mais universalistas serem desprezadas Essa situação mudou no início do século XX quando José Veríssimo publicou sua história da literatura brasileira com capítulo final dedicado a Machado de Assis como expoente de uma nova postura literária. Tal tendência chegou até Lúcia Miguel Pereira que, depois de uma análise da obra do escritor, baliza a canonicidade de sua história da literatura brasileira pelo romancista. De posse dessas noções, Lúcia Miguel Pereira dividiu sua historia da literatura em oito períodos, a saber, Ecos românticos, veleidades realistas (p. 33-52), Pesquisas psicológicas (p. 53-118), Naturalismo (p. 119- 174), Regionalismo (p. 175-220), Simbolismo (p. 221-232), Literatura social (p. 233-244), Sorriso da sociedade (p. 245-271) e Prenúncios modernistas (p. 272-304). Dentro desses recortes de tempo e período que compreendem 50 anos, a historiadora dá formas ao sistema literário brasileiro no que tange à prosa de ficção. Não há dúvida, para a historiadora, sobre em qual sistema literário se encontra a literatura brasileira, suas palavras denotam claramente que à literatura ocidental. No entanto, a escala de valor é diferente, pois dentro da literatura brasileira, só Machado de Assis tem força a um paralelo com os grandes do Ocidente, ou seja, com os europeus. Em outros termos, antes de Machado de Assis, o sistema literário brasileiro era incipiente e, mesmo depois dele, ainda resvalou nesse defeito, conforme outra fala da historiadora: A cultura intelectual, vinda da Europa, atuando em sentido diverso da cultura [...] retarda nos escritores o amadurecimento da mentalidade nacional. Daí as anomalias da nossa evolução literária, indo do universalismo clássico para o americanismo romântico, deste para o brasileirismo e, descobrindo tarde o regionalismo. (p. 117). As afirmações de Lúcia Miguel Pereira trazem conceitos que obrigam à uma observação mais rigorosa das noções de valor literário. Utilizando-se das palavras de Tynianov (1973), percebe-se que o valor de um fenômeno literário deve ser considerado enquanto “significação e qualidade evolutiva” (p.106); ainda, a “obra literária constitui-se num sistema e a literatura outro” (p.107); bem como, “o que é fato literário para uma época não o será para outra” (p.109) e por último, “é incorreto extrair dos sistemas elementos particulares e aproximá-los diretamente das séries similares pertencentes a outros sistemas” (p.108). Daí conclui-se que, segundo Tynianov, a ideia de “um valor” não deve ser tão radicalmente afirmada, pois cada época se serve de elementos que lhe convém, e esses, têm valor positivo. Em outros termos, os elementos que constituíam os romances românticos e regionalistas não eram visto como demérito na época em que foram usados, pois ratificavam um imaginário; e nem os europeus fugiram a essa característica. Porém essa reflexão está mais a cargo de problematizar noções radicais do que tentar abalar alguma formulação expressa por Lúcia Miguel Pereira, pois todo historiador da literatura parte de um conceito debitário de alguma formulação teórica, e o projeto de literatura que a historiadora em questão pretende afirmar (de obras literárias que ultrapassem contextos temporais e geográficos) não contempla a relatividade do formalista russo, o que não quer dizer que inexista traços formalistas na concepção de literatura expressa na história literária em análise. Desta forma, percebe-se que a historiadora se valeu do conceito de literatura enquanto arte da linguagem, que se forma através da manipulação do imaginário. Do mesmo modo, a análise das obras deve ser feita considerando aspectos estritamente literários. Assim, Lúcia Miguel Pereira rejeita os postulados teóricos calcados na biografia do autor, em sua personalidade e no meio em que viveu (tanto que os dados biográficos são todos expostos em nota de rodapé), abrindo espaço para uma interpretação da obra enquanto texto artístico, rechaçando também qualquer escrito intelectual que fuja a esse paradigma. Convém suspeitar, então, que essa tendência é debitária das concepções do Esteticismo, Formalismo russo e do New criticism; que sugeriam a análise da obra literária dissociado de aspectos sociais, históricos e psico-biográficos, já em voga nas academias europeias e americanas no ano de publicação da história da literatura em estudo, isto é, 1950. A análise detalhada mostra também que Lúcia Miguel Pereira travou contato com essas postulações: Benedeto Croce adverte os estudiosos da literatura contra o duplo perigo do historicismo e do esteticismo, considerando ambos degenerências da crítica. E do mesmo passo que tem por inconcebível uma crítica sem o conceito de arte fornecido pela estética, parece-lhe indestrutível a identidade entre a crítica e a história literária (p. 17). A concepção croceana trazida pela historiadora postula que o crítico e o historiador literário não deve preterir às formulações estéticas. O conceito de arte literária debitário do esteticismo é condição sine qua non para uma crítica e história da literatura (embora não o seja para a formação do gosto do leitor), principalmente para definir o que deve figurar nas historiografias da literatura de um país. Outra concepção importante no trabalho da historiadora em estudo, diz respeito à necessidade dos escritores terem um senso histórico da presença do passado e não de sua evanescência; para definir tal postulado, a intelectual busca respaldo em T. S. Eliot e afirma ter faltado esse senso aos escritores brasileiros, especialmente antes de Machado de Assis. Assim, ao se referir a Inocência, de Taunay, romance muito apreciado no século XIX, afirma a estudiosa: As figuras humanas ainda pertencem ao convencionalismo romântico, isto é, encarnam cada uma um tipo ideal, com todas as suas características. Nelas já se antevê a fraqueza psicológica que faria seu criador falhar nos romances citadinos e que decorria tanto do seu feitio pessoal, mais levado à visão em superfície quanto da timidez que enleava os escritores impedindo-os de encarar frente a frente os problemas dos indivíduos e da sociedade (p. 44-45). Não obstante à crítica, Inocência é o romance de Taunay mais aceito dentro do conceito de literatura defendido no presente relato historiográfico, muito embora ainda configure tipos sociais e regionais fixos, nele, Lúcia Miguel Pereira enxerga certa tentativa (embora fraca) de aproximação a uma análise psicológica e rompimento com o paradigma de descrições paisagísticas, haja vista que as outras obras do mencionado escritor receberam da autora a seguinte opinião: “medíocre romancista citadino, não acrescentando em nada o que já haviam feito Macedo e o Alencar” (p. 43). Ainda no século XIX, outro escritor que deixou a desejar segundo o crivo de Lúcia Miguel Pereira, assim como Taunay, foi Franklin Távora; entendido como autor que cuidou mais em “observar do que imaginar” (p. 47). O referido escritor tem obra divida em duas fases, a primeira é encarada como “inquestionavelmente romântica e de mau romantismo, quer pelo enredo quer pela execução” (p. 45-46). A segunda é mais significativa, embora não goze de prestígio. Nesta segunda fase tentou Franklin Távora lançar as bases de uma literatura nortista, entendendo haver divergências consideráveis entre o Norte e o Sul do Brasil. Assim, Távora recolhe elementos para suas produções na história e cultura da região Norte-Nordeste do país; fato irrelevante conforme o julgamento de Miguel-Pereira, pois como romancista ele prosseguia em graves erros: Reconhecendo os obstáculos, então quase intransponíveis da análise psicológica [...] escolheu a história – quis ser historiador – que representa uma limitação para o romancista – e historiador moralista - limitação mais grave ainda (p. 48). Analisando os autores naturalistas, ainda dentro recorte temporal do século XIX, Lúcia Miguel Pereira aborda em especial Aloísio Azevedo, Inglês de Souza e Adolfo Caminha, neles encontrando limitações imaginativas e traços românticos na maioria das obras. Em relação ao primeiro, a autora considera suas demais produções ilegíveis, bastando O cortiço para assegurar-lhe lugar na literatura brasileira. Esta afirmação, no entanto, não vem isenta de crítica pouco desfavorável. Tal romance apresenta falhas nas análises psicológicas e resvala em certa pieguice em algumas cenas. Sobre as demais obras de Azevedo, dentre as quais se encontra O mulato, que lhe rendeu prestígio social e renome, Lúcia Miguel Pereira observa “a construção de um romance realista em torno de uma figura escandalosamente romântica” (p. 144145), considerando - o um livro de boa qualidade tão somente pelo tom direto da narrativa. Inglês de Souza é tratado como verdadeiro precursor do naturalismo no Brasil, tendo lugar usurpado por Aloísio Azevedo devido às circunstâncias sociais de circulação dos livros e pelo gosto do leitor ainda assentar-se em características românticas. No entanto, para Lúcia Miguel Pereira, cabe ao escritor paraense o mérito de verdadeiro modificador da ficção no Brasil, pelo fato de suas obras conterem melhor o espírito naturalista que as do romancista maranhense. No entanto, defeitos como a imprecisão prolixa da narrativa, a inverossimilhança de alguns personagens, o preconceito de escola literária e a fixação de caracteres regionais fizeram da prosa de Inglês de Souza, ainda em 1950, já figurar apenas “como um documento social” (p. 158). Adolfo Caminha é tratado em poucas páginas e recebe uma crítica positiva em sua obra A normalista, novela tida como não prolixa nem pedante e de narrativa fluente e fácil, capaz de fazer grande sucesso caso não aparecesse no final do século XIX, em momento que a escola a qual se filiava dava os últimos suspiros. Contudo, as demais produções de Adolfo Caminha não logrou a crítica desejada, tanto que sua coletânea de contos é vista por Lúcia Miguel Pereira como sem “maior significação” (p.168) e suas outras obras de “cunho fraquíssimo e inverossímil” (p. 174). Ao tratar do regionalismo (p. 175 – p. 220) Lúcia Miguel Pereira traz os nomes de Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Lindolfo Rocha, Alcides Maya e Simões Lopes Neto. Encontrando dentre suas produções algum valor literário, ousou analisar certas obras e reconhecer raras em que o domínio da técnica artística aparecia, mas no geral a historiadora afirma que este movimento “não deixou na ficção uma só obra de grande valor, ficou de todo circunscrito à província onde nascera” (p. 179). A respeito do simbolismo, afirma a historiadora ser uma renovação do romantismo, diferenciando-se deste apenas na fixação do caráter estético, não se estendendo ao ético como fez a escola de Alencar. No mais “não suscitou nenhum romancista de mérito equivalente, na verdade, foi na prosa uma tentativa frustra” (p. 222-223). Circunscreveu-se ao Rio de janeiro e ao Paraná, não podendo seus principais nomes Afrânio Peixoto, Tristão da Cunha e Alphonsus de Guimarães impressionar a grande massa devido às abstrações que exigia dos leitores e das inovações exageradas que promovia, assim, sua rápida passagem abriu portas à literatura social que começava surgir no início do século XX. Desta estética, porém, o único romance que merece o título de obra-prima é Canaã, de Graça Aranha, todos os outros foram por ele influenciados. No entanto, a historiadora ainda faz a ressalva de apreciá-lo considerando o momento histórico. Na seção intitulada Sorriso da sociedade (p. 245 – p. 276) Lúcia MiguelPereira reúne escritores que não comungam de características que os filie a um tipo de estética, assim, empreende suas análises verificando o cunho social de suas produções. Encontrando nesses autores qualidades literárias, não deixa, no entanto, a historiadora de lhes dirigir certas críticas, a primeira diz respeito ao conceito de literatura no qual se assentavam, a saber, reflexo da sociedade; concepção contrária às defendidas pela historiadora em discussão. Assim, Coelho Neto peca em sua falta de verossimilhança, Júlia Lopes, uma das poucas mulheres que figura a história em estudo, não apresenta nada de original; Artur Azevedo, não logrou ser um criador literário, não passando de um produtor de obras efêmeras; Afrânio Peixoto pereceu pelo seu errôneo conceito de literatura como reflexo da felicidade social, Xavier Marques errou em não esconder os artifícios de sua construção literária e João do Rio, manteve em sua prosa os defeitos da linguagem jornalística. Dos literatos elencados por Lúcia Miguel-Pereira de 1870 a 1920, os únicos que apresentaram uma técnica coerente e mantiveram-se atrelados ao conceito de literatura enquanto arte da linguagem, cuja matéria-prima encontra-se no imaginário foram Raul Pompeia, Lima Barreto e, o maior de todos, Machado de Assis. Sobre a obra mais conhecida do primeiro, a saber, O ateneu, diz a historiadora: Saía, entretanto, uma quase obra-prima, o livro de um escritor de raça e de um homem de sensibilidade [...] não sofrendo dos defeitos tão comuns das obras intencionais, o livro como que se desprendeu das circunstâncias de que se originou (p. 108). N’O ateneu, soube o autor empreender a tarefa de uma análise psicológica das personagens, além de não se limitar as circunstâncias que forneceram elementos para a criação da obra. As figuras que aparecem na produção não se prendem às pessoas da vida real como se tratasse de uma observação objetiva. Apesar do enredo se passar em um colégio interno, a narrativa não se lança a uma crítica ao internato. O colégio configurado na obra nãos surge como cópia do colégio Abílio, do Rio de janeiro, tampouco o Diretor Aristarco se prende à figura do barão de Macaúbas; em outros termos, em Raul Pompeia, a criação artística “se não prescinde da experiência, aproveita-a apenas como material de construção” (p.108). A produção de Lima Barreto recebe crítica muito favorável na história literária em questão, pois é vista como um conjunto de obras que mais se aproxima de Machado de Assis por falar em “termos de ficção” “explorar em profundidade” e “interrogar a existência por meio de suas criaturas” (p. 275). Encontrando elementos na vida urbana carioca e travando contato com as correntes teóricas, filosóficas e literárias que davam sua graça no início do século XX, Lima Barreto não se limitou a uma crônica da vida do Rio de Janeiro nem construiu obras calcadas em pontos teórico-filosóficos, mas aproveitou essas nuances e as transpôs para a ficção. Aproveitando-se também da intertextualidade com obras já consagradas na literatura brasileira como Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida; Lima Barreto é considerado por Lúcia Miguel Pereira como o primeiro dos modernos no Brasil tanto “pelos temas abordados como pela técnica” promovendo uma “antecipação do espírito novo, que logo depois dele se introduziria em nossa literatura” (p. 303). O autor, porém, que figura como o principal da literatura brasileira, conforme o conceito defendido por Lúcia Miguel Pereira é Machado de Assis; Suas primeiras produções já traziam as concepções que o faria grande na literatura brasileira, embora seus temas gravitassem em torno de questões comuns como o amor e os problemas sociais. Suas primeiras obras recebe uma rápida crítica da historiadora: Machado de Assis não se revelava nos livros em prosa que começou a publicar, a partir de 1870, mais livre do que seus antecessores. Nada havia de chocante em que A pata da Gazela fosse do mesmo ano que os Contos fluminenses, ou a Escrava Isaura fosse do mesmo ano que Histórias da MeiaNoite (p. 35). Excetuando esta rara observação, porém, a crítica a Machado de Assis é extremamente positiva. Dedicando-lhe capítulo à parte em sua história da literatura, Lúcia Miguel Pereira recusa-se a filiá-lo a uma escola literária por entendê-lo como uma exceção no Brasil do século XIX e XX pela capacidade de “se elevar do particular ao universal, daquele dom sutil de conferir profundo alcance a pormenores aparentemente banais, de extrair deles a sua essência, sem nunca recorrer à ênfase” (p. 61). Machado pôs os elementos locais em segundo plano, embora não os tenha rejeitado, tanto que é possível perceber aspectos da cultura e geografia brasileira em suas obras, no entanto, esses aspectos não possuem um peso superior como nas obras de seus antecessores. O escritor fluminense conseguiu retirar o aspecto limitador do adjetivo brasileiro, e sem deixar de sê-lo, alcançou, mesmo abordando na maior parte personagens cariocas, tocar na essência humana, revestindo a literatura brasileira de uma significação que ainda não possuía. As personagens machadianas não apresentavam a fixidez das românticas e oscilavam entre a benevolência e a crueldade, a hipocrisia e a sinceridade, a caridade e o egoísmo tão comum aos seres humanos em qualquer parte do planeta. A obra de Machado de Assis também parece buscar uma verdade, não a absoluta, coisa que inexiste, mais uma verdade para o modo como se processam as relações sociais em sua grande parte. Assim, suas obras analisam o problema da ambição, sem situá-lo a um tipo ou grupo social específico, o que torna a questão ainda mais humana. Se poderia dizer, então, que Machado se filia ou desenvolve uma postura filosófica ou teórica, no entanto, as correntes epistemológicas se rarefazem na obra do escritor, pois todas são tratadas com um ceticismo tão irônico e tão sem raízes que servem apenas para fundamentar a contraditória condição humana. Por essas razões, alça Lúcia Miguel-Pereira, Machado de Assis ao patamar de maior escritor brasileiro. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. PEREIRA, Lúcia Miguel. História da Literatura Brasileira: prosa de ficção. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1998. PERKINS, David. História da literatura e narração.Trad. Maria Ângela Aguiar. Série Traduções. Cadernos do Centro de pesquisas Literárias da PUCRS. Porto Alegre: PUCRS, [s/d]. TYNIANOV, J. Da evolução literária. In.: EIKENBAUM, B. et alii. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973. WENDELL, Harris V. El Canon literário. Madrid: Arco libros, 1998. ZILBERMAN, Regina. Críticos e historiadores da literatura: pesquisando a identidade nacional, Via Atlântica, São Paulo, n. 04, p. 18-50, 2000.