Ana Paula Cappellano - Sapientia

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Ana Paula Cappellano
Processo de criação da música pop e expansão dos registros de processo:
o caso Let it Be - The Beatles
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica,
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Área de concentração: Signo e significação nas mídias
Linha de pesquisa: Processos de criação nas mídias
Orientação: Profa. Dra. Cecília Almeida Salles
SÃO PAULO
2010
BANCA EXAMINADORA
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Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta
dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos, desde que citada a fonte.
À minha família.
“Because the world is round it turns me on
Because the world is round
Because the wind is high it blows my mind
Because the wind is high
Love is old, love is new
Love is all, love is you”
(Lennon/ McCartney)
Agradecimentos
À minha família, aos meus amigos, pelo apoio e incentivo.
À Cecília, pelos preceitos da crítica de processos, pela orientação, pelo suporte, atenção,
calma e confiança.
Aos colegas de GPPC – Grupo de Pesquisa em Processos de Criação da PUC – SP, pela
troca.
À Capes, pela bolsa concedida.
Resumo
A seguinte dissertação pretende investigar o processo de criação da música pop a
partir do estudo do formato audiovisual como registro de processo de criação musical, em
particular, o gênero cinematográfico documentário e o formato audiovisual making of. São
estabelecidas relações e interações entre a música criada na dinâmica da indústria fonográfica
e a cultura da imagem, bem como com a expansão dos registros e documentos de processo da
música desde a gravação eletrônica até o vídeo. Denomina-se música pop aquela da Indústria
Cultural, de inserção nas mídias, especialmente as de massa, como o rádio, o cinema e a
televisão e sua produção é vista como uma grande rede criativa.
O documentário Let it Be, do grupo britânico The Beatles, filmado em 1969 e lançado
em 1970, foi escolhido como estudo de caso e, a partir da abordagem da crítica de processos e
da teoria das redes de criação da obra de arte, de Cecília Almeida Salles, é entendido como
registro e índice do processo de criação coletivo da banda. O filme é considerado, nesta
perspectiva, um precursor do formato audiovisual hoje denominado making of e, a partir da
sua análise crítica, são reconhecidos diferentes momentos e pontos de tensão durante a criação
e gravação de um álbum, nós das redes de criação da música pop. Procura-se entender como
as interações entre seus integrantes, os sujeitos criativos, bem como com fatores externos
àquele processo específico, caracterizavam o processo de criação coletivo da banda naquele
ponto da carreira.
Palavras-chave: processo de criação, redes de criação, música pop, comunicação, indústria
cultural, indústria fonográfica, making of.
Abstract
The following dissertation intends to investigate the creative process of pop music
from the study of the audiovisual format as a musical creative process register, the
documentary film and the making of in particular. Relations and interactions between the
music created in the music industry dynamics and the culture of the image, as well as with the
expansion of the registers and documents of process of music, from the eletronic record to the
video, are established. Pop music refers to that of the Culture Industry, of media insertion,
especially mass media, such as the radio, the cinema and the television, and their production
is seen as a wide creative network.
The documentary Let it Be, by the British group The Beatles, filmed in 1969 and
released in 1970, was chosen as case study and, from the processes critique approach and
based on the theories of the work of art creative networks, by Cecília Almeida Salles, it is
understood as register and index of the collective process of creation of the band. The movie
is considered, from this perspective, a precursor of the audiovisual format known today as the
making of and, based on their critical analysis, different moments and points of tension are
recognised during the creation and recording of an album, nods of the pop music network. We
seek to understand how the interactions among their members, the creative subjects, as well as
with external factors to that specific process, characterized the collective process of creation
of the group at that stage of their career.
Keywords: creative process, creative network, pop music, communications, culture industry,
music industry, making of.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
Considerações sobre os documentos de processo.....................................................................11
Percurso de pesquisa.................................................................................................................12
O estudo de caso e a experiência da crítica de processo...........................................................15
Cap. 1 –MÚSICA POP ..........................................................................................................17
1.1 – A música pop entendida como música da indústria cultural............................................17
1.1.1 – A Indústria Cultural...........................................................................................18
1.1.2 - Estilo e música pop........................................................................................... 21
1.1.3 – Fórmula……………………………………………………………………….22
1.1.3.1 – A fórmula como processo de criação da música pop.........................23
1.1.4 – A cultura jovem e a música pop........................................................................26
1.2 - Música Pop e Imagem Musical.........................................................................................27
1.2.1 - O cinema e a música pop...................................................................................29
1.2.2 - A era do videoclipe............................................................................................34
1.2.2.1 – Origens do videoclipe.........................................................................34
1.2.2.2 - Televisão para a música......................................................................35
1.3 - O DVD: A tecnologia digital e a “imagem de processo”.................................................38
1.3.1 - O formato digital como espaço de armazenamento de informação sobre
processo...........................................................................................................38
1.3.2 - Making-ofs: os “extras” como registro de processo..........................................40
Cap. 2 - A MÚSICA POP E A EXPANSÃO DOS REGISTROS DE PROCESSO
CRIATIVO...........................................................................................................42
2.1 - Registro de processo e expansão da memória..................................................................42
2.2 - Música e os registros de processos de criação..................................................................43
2.3 – Expansões.........................................................................................................................46
2.4 - A imagem como registro de processo de criação da música............................................47
2.5 – Documentário de processo e making of...........................................................................50
2.5.1 - Making of: o formato visto como documentário de processo............................51
Cap. 3 - O CASO LET IT BE: O DOCUMENTÁRIO COMO REGISTRO DE
PROCESSO DE CRIAÇÃO MUSICAL............................................................54
3.1 - Let it Be e a efervescência cultural...................................................................................55
3.2 - O projeto segundo os Beatles...........................................................................................57
3.3 - Interações..........................................................................................................................60
3.3.1 - Interações criativas.............................................................................................60
3.3.2– Interferências......................................................................................................69
3.4 - Interlocução......................................................................................................................73
3.4.1 – Colaboração.......................................................................................................73
3.4.2 - Relação de linguagens........................................................................................74
3.5 – Memória...........................................................................................................................78
3.6 - Escolhas e critérios...........................................................................................................84
3.7- Experimentação.................................................................................................................88
3.8 - A consciência de processo................................................................................................90
3.9 - O processo coletivo dos Beatles em Let it Be...................................................................93
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................99
Processo de criação artístico na Indústria Cultura....................................................................99
Imagem Musical e expansão dos registros de processo..........................................................100
Processo de criação da música pop: o caso Let it Be..............................................................102
Documentários de processo, making ofs, música e crítica de processo..................................104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................106
ANEXOS................................................................................................................................109
Introdução
A reflexão sobre as práticas artísticas e culturais contemporâneas, íntimas às
linguagens midiáticas e às tecnologias sempre mais avançadas de produção, reprodução
e comunicação nos leva a buscar caminhos sempre novos para falar da arte e da crítica
hoje. O estudo de processos de criação coloca-se como uma das possíveis formas de
abordar a produção artística atual, principalmente aquela inserida no contexto da
indústria cultural, do entretenimento e das novas mídias.
O presente trabalho parte da abordagem da crítica de processos para estudar a
música pop através de seu processo criativo e de sua relação com a expansão dos
estudos de processo. Entendendo o processo de criação da música pop como uma rede
complexa, procurou-se fazer um percurso de pesquisa que desse conta, pelo menos em
parte, de abarcar alguns dos principais aspectos envolvidos na discussão do objeto de
análise escolhido e que apontasse caminhos para futuras pesquisas na linha de processos
de criação, a partir de possíveis generalizações.
O filme documentário Let it Be, da banda de rock britânica The Beatles foi
tomado como estudo de caso por parecer funcionar como um registro de processo
criativo do grupo. A escolha direcionou todo o desenvolvimento da pesquisa e levantou
questões que pareceram fundamentais para a análise do processo de criação dos Beatles,
como exposto pelo documentário, e do processo de criação da música pop, de maneira
geral.
A dissertação está organizada em três capítulos: o primeiro, “Música Pop”,
procura situar a música da indústria fonográfica nos estudos de processo, relacionando-a
com a teoria da indústria cultural, com a cultura de massas e, finalmente, com a cultura
da imagem e midiática; o segundo capítulo, “A música pop e a expansão dos registros
de processo criativo”, trata do uso do formato audiovisual como registro de processos
de criação pelos artistas da música, produzindo, promovendo e vendendo documentários
de processo, geralmente lançados no cinema, e making ofs, grande parte como material
extra de obras lançadas em DVDs.
O último capítulo dedica-se ao estudo de caso, o documentário dos Beatles, Let
it Be. “O caso Let it Be: o documentário como registro de processo de criação
musical” analisa o filme da banda sob a perspectiva da crítica de processos e procura
identificar os nós da rede de criação do grupo nas cenas dos ensaios e gravação em
estúdio, mostradas pelo documentário lançado em 1970.
Os anexos incluem partes da entrevista de John Lennon dada à revista Rolling
Stone em 1971; uma reportagem de capa, publicada pela mesma revista, em 2009, sobre
a separação dos Beatles, que destaca Let it Be como um dos “momentos do fim”; a
matéria de 2008 do jornal O Estado de São Paulo sobre a “fórmula do sucesso” das
bandas de rock brasileiras de hoje e as legendas traduzidas do documentário Let it Be,
transcritas durante a pesquisa.
Considerações sobre os documentos de processo
Alguns aspectos da pesquisa devem ser pontuados para uma melhor
compreensão da proposta deste trabalho. A discussão do conceito de música pop é feita
já no primeiro capítulo, a fim de definir a posição da pesquisa em relação ao tema e
deixar clara a decisão de se estudar o processo de criação de uma obra totalmente
inserida na dinâmica da indústria cultural, com todos os problemas e limites por ela
impostos.
Desde o início, o acesso a informações históricas sobre o objeto de análise e o
acesso ao próprio objeto foram um fator de complicação. Dado o caráter da obra em
questão, o dossiê de processo foi composto por material obtido, em grande parte, nos
arquivos de banco de dados de imprensa, ou seja, coletados entre aquilo que foi
produzido na grande mídia, publicados em jornais, revistas e internet. A legitimidade
desses documentos foi relativizada e se considerou a credibilidade dos veículos nos
quais foram publicados. São eles: biografias dos Beatles, matérias e entrevistas em
revistas e cadernos de jornais especializados, encartes de álbuns dos Beatles, página
oficial dos Beatles na internet e o site Wikipedia. O último serviu de fonte de
informações de caráter mais geral e prático, como dados cronológicos, alguns nomes e
pormenores da carreira do grupo britânico.
O fato de se tratar de material por um lado produzido pela imprensa e por outro
pelo público levantou mais uma questão para a crítica de processos, a da necessidade de
lidar com objetos de estudo, obras de arte, que não se legitimam apenas pela literatura
acadêmica, mas pela inserção na mídia. As informações produzidas por mídia e público,
lembrando que a internet tornou-se espaço de compartilhamento mundial de
informações, acabam sendo as maiores fontes de documentação sobre as obras
produzidas na indústria cultural, em total concordância com a natureza das mesmas. A
falta de outras fontes de pesquisa e a dificuldade de acesso a informações “oficiais”
acabam por autorizar tais fontes alternativas.
Quanto ao acesso ao documentário, não foram encontradas cópias originais em
DVD do filme e foram utilizadas três cópias alternativas, duas em DVD, obtidas em
sebos e coleções particulares, e uma versão digitalizada a partir de uma fita VHS
original, disponível na biblioteca da PUC – São Paulo. As cópias alternativas, por
oferecerem qualidade de som e imagem em muito superiores à da cópia original
digitalizada, foram as mais utilizadas para o estudo do filme.
Mesmo assim, pela edição original do diretor Michael Lindsay-Hogg e pelas
técnicas de captação na época das filmagens de Let it Be, alguns diálogos são difíceis de
precisar e alguns agentes do processo difíceis de identificar. Estes limites poderiam,
num primeiro momento, de alguma forma, influenciar a análise do processo, induzindo
a falsas interpretações, causadas por alguma falha de leitura das imagens ou das falas
dos “atores” do processo filmado. O percurso de pesquisa mostrou, entretanto, que esses
limites são parte do estudo de registros de processos de criação e não diminuem o valor
e a relevância do documentário como um documento de processo de criação dos
Beatles.
Percurso de pesquisa
Os estudos culturais de Edgar Morin (1990) foram as principais referências para
a análise do processo de criação artístico na indústria cultural. Outras vozes foram
igualmente fundamentais para esse estudo. O primeiro capítulo discute a música pop
como sendo aquela produzida no contexto da Indústria Cultural e a obra de Adorno (s/d)
e Horkheimer (s/d) foi usada como fio condutor da reflexão. A Indústria Cultural, pela
conceituação de Adorno e Horkheimer, foi a forma como se organizou a cultura da
sociedade na passagem para o capitalismo, quando a técnica substitui a arte e esta passa
a ser produzida como bem de consumo. O termo refere-se a todo um sistema de
produção e reprodução de bens culturais que os submetia a um regime industrial, ou
seja, eram produzidos em série, segundo a mesma lógica de produção de qualquer outro
bem de consumo, para ser vendidos como produtos, consumidos e gerar lucro.
Para adaptar a lógica da produção industrial à produção artística, a indústria
cultural recorre aos clichês, cria e segue fórmulas. No campo da indústria fonográfica,
especialização ou “braço” da indústria cultural, para criar demanda de público e
mercado, promove-se a criação de estilos musicais, como rótulos de identificação para
facilitar a venda de álbuns e produtos relacionados aos artistas. A fórmula de sucesso
aparece como um dos principais procedimentos no processo de criação da música pop e
o desenvolvimento das mídias digitais e da internet leva à configuração de uma nova
fórmula, fundamentada na intensa utilização das ferramentas tecnológicas e da rede
como forma de divulgação do trabalho de artistas da música da indústria cultural.
A música pop está relacionada também à cultura jovem, à “promoção da
juvenilidade” (MORIN, 1990) característica da cultura de massa, com seus ídolos
jovens e “rebeldes”, e à cultura da imagem e da mídia. Ainda no primeiro capítulo, falase da imagem musical, termo escolhido para designar a cultura musicoimagética que se
consagrou na indústria fonográfica e que se traduz no uso do formato audiovisual como
parte do trabalho desenvolvido pelos artistas da música pop. Começando pela
participação de artistas da música em filmes de Hollywood, com os mais diversos
objetivos, desde a divulgação do filme, até a do próprio artista e muitas vezes como
propaganda política, o primeiro capítulo busca as raízes da relação entre música pop e
cultura da imagem na história do cinema e da fotografia e remonta às primeiras
experiências dos artistas da indústria fonográfica com as mídias audiovisuais.
O videoclipe chega como a maior plataforma de divulgação da música pop com
a fundação, no início da década de 1980, da MTV – Music Television, nos Estados
Unidos, e é incorporado às práticas dos artistas da música, num primeiro momento
como experimentação e, depois, como parte integrante da dinâmica de produção da
indústria musical. As tevês passam a dedicar parte da sua programação aos videoclipes e
as gravadoras investem na sua produção e comercialização através das fitas de vídeo,
inicialmente, e, depois, com o desenvolvimento da tecnologia digital, com a venda de
DVDs. Os últimos, graças à superioridade na qualidade de reprodução audiovisual e à
enorme capacidade de armazenamento de informação, passam a ser explorados tanto
pela indústria cinematográfica, com o lançamento de filmes, como pela indústria
fonográfica, com a venda de DVDs de shows e videoclipes.
Dentre as possibilidades dadas pela tecnologia do DVD, destacam-se a
interatividade e a capacidade de armazenamento. As produtoras investem, então, na
divulgação e produção de material extra sobre a obra apresentada no DVD. Este
material extra, assistido pelo espectador, acaba promovendo uma experiência
diferenciada com a obra, por oferecer informação para além da forma como a obra foi
entregue ao público. Neste sentido, os making ofs, que oferecem informação de
bastidores da produção de obras - um filme, um show de música, um videoclipe ou um
álbum - influenciam a experiência do espectador com a obra e podem ser assistidos
como documentos de processos de criação.
Da televisão e do aparecimento do videoclipe, aos DVDs e ao Youtube, a
primeira parte da pesquisa procura traçar um percurso lógico da relação da música pop
com a cultura da imagem midiática, até chegar à produção de obras musicais em
diferentes plataformas audiovisuais como uma extensão da obra musical e, assim, à
expansão dos processos criativos e dos registros de processo, também feitos na forma de
audiovisual, particularmente os making ofs e os documentários de processo.
Os estudos nesse sentido ainda são incipientes e se tentou estabelecer o diálogo
com as pesquisas atualmente desenvolvidas sobre o videoclipe, os DVDs e os making
ofs. As pesquisas de Cecília Almeida Salles (2006) foram base para a leitura do
processo de criação da obra de arte como rede e seus estudos recentes sobre os making
ofs de filmes fundamentaram a ideia de expansão dos registros de processo
desenvolvida no segundo capítulo, que partiu da discussão de memória do processo
criativo para chegar à imagem como registro de processo de criação musical.
O artista pode fazer uso de anotações, rascunhos e esboços como uma forma de
extensão da sua memória, para guardar momentos de experimentação ou considerados
bons para a realização de determinado projeto poético. Historicamente, a criação
musical, da composição à interpretação, valia-se apenas da partitura e da notação
musical como registro de processo criativo. A música, arte do tempo, contava, assim,
com um registro de natureza distinta da sua e traçar o seu percurso dependia da
existência e leitura de partituras originais, com as anotações do artista feitas no ato da
composição.
O desenvolvimento da técnica de gravação sonora transforma essa realidade e
está nas origens da indústria fonográfica e, consequentemente, da música pop: o artista
não depende mais apenas da partitura e pode anotar, registrar, sonoramente sua música,
sua interpretação e seu processo criativo. As famosas fitas demos são exemplos dessas
“anotações sonoras” e, ao longo da história da indústria fonográfica, as fitas caseiras,
fitas com gravações de material inédito de artistas consagrados, entre outros, tornaramse documentos de práticas comuns ao processo de produção musical. A tecnologia
digital representa mais um avanço em termos de ferramentas de processo, tornando a
gravação, além de tecnicamente melhor, acessível e é incorporada pelos artistas da
música pop.
A cultura musicoimagética estende-se ao território dos processos de criação e o
filme e o vídeo são usados para registrar os bastidores de produção e gravação de
músicas, álbuns, videoclipes e shows. O documentário é experimentado, principalmente
por artistas interessados em agregar outras formas de arte e as linguagens midiáticas ao
seu projeto poético, como forma ao mesmo tempo de registro de processo e como
divulgação do artista e de sua obra.
Os making ofs, comuns como material extra de DVDs, mesmo quando
produzidos com objetivos de mercado, quando relacionados à obra e a outros
documentos, trazem informação de processo para a crítica e para o público comum. A
utilização da gravação sonora e da imagem, enfim, dos formatos audiovisuais representa
a expansão dos registros de processos de criação da música pop.
O estudo de caso e a experiência da crítica de processo
Toda a pesquisa partiu da escolha do estudo de caso. A história dos Beatles
confunde-se com a história da indústria fonográfica na segunda metade do século XX e
o grupo é representante de uma geração de artistas que souberam se apropriar das
ferramentas midiáticas para desenvolver um projeto poético fundado no intenso diálogo
com as revoluções culturais, políticas e sociais da sua época. O sucesso imensurável da
música dos Beatles alçou o grupo à categoria de ícones da cultura pop e sua obra
sustenta-se até hoje como influência e referência de praticamente tudo o que aconteceu
de relevante no cenário musical da indústria fonográfica desde então. Uma obra em
expansão contínua, que gera outras obras e produtos culturais ainda hoje, em todas as
mídias disponíveis, de álbuns remasterizados a jogos de videogame. A comoção
provocada pelos Beatles mitificou “os garotos de Liverpool” - “the fab four”- e sua
música, que sobrevive aos novos movimentos da música da indústria e aos sem-número
de ídolos criados todos os anos.
A obra dos Beatles, por sua forte relação com a cultura pop, pelo seu alcance
internacional e pela sua importância na história da música da indústria fonográfica
mundial, é referência também para os estudos culturais e para as pesquisas sobre a
música pop. Pesquisar o processo de criação dos Beatles representa a possibilidade de
se pensar o processo de criação da música pop, desenvolvido na continuidade e
interseção de linguagens, formas artísticas e objetivos variados.
Quando “o sonho acabou”, a “banda que fez muito, muito sucesso”, como
declarou John Lennon em entrevista de 1971à revista Rolling Stone, deixou um projeto
pelo caminho, um álbum inacabado, e muita especulação sobre as causas do
rompimento do grupo. O documentário Let it Be sustentou o mito do fim dos Beatles
por muito tempo e o lançamento, só em 2003, do álbum Let it Be... Naked reacendeu o
interesse do público e da mídia pelo álbum Let it Be e pela história por trás das obras. O
filme lançado em 1970 mostra a banda em meio ao processo de criação de músicas para
um álbum que seria gravado “ao vivo” e é analisado no presente trabalho como registro
de processo de criação coletivo dos Beatles.
A leitura crítica do processo documentado em Let it Be é feita considerando o
processo de criação da obra de arte como rede, com base nas pesquisas de Cecília
Salles, e tendo como referências teóricas o trabalho de Vincent Colapietro (2003), que
discute o sujeito criativo historicamente, culturalmente e socialmente localizado, e a
teoria da complexidade de Edgar Morin (1998), para contextualizar o documentário Let
it Be e os Beatles num ambiente de efervescência cultural. São identificados os
principais aspectos que caracterizaram aquele momento do processo criativo flagrado no
documentário: interações, interferências, interlocução - colaboração e relação de
linguagens, memória, escolhas e critérios, experimentação, consciência de processo,
processo coletivo.
A análise de Let it Be faz proposições para uma abordagem de processo da obra
dos Beatles e se coloca como uma experiência crítica. A tentativa enfrentou desafios
teóricos e práticos, como, de um lado, os limites da montagem fílmica como um registro
cem por cento fiel à realidade, e, de outro, os limites técnicos impostos pela qualidade
do material disponível para a análise. Estes são conflitos encontrados ao longo do tempo
de pesquisa, conflitos com os quais a crítica de processo deve estar disposta a lidar,
sempre aberta às possibilidades trazidas pela absorção de novas formas de se pensar e
fazer arte. Reconhecendo que obra de arte, canônica ou da indústria cultural, e processo
de criação artístico realizam-se na busca incessante de respostas nunca definitivas para o
projeto poético que move o artista e instiga o pesquisador.
1 – Música pop
1.1 – A música pop entendida como música da indústria cultural
O conceito de música pop pode ser discutido sob, ao menos, duas perspectivas: a
primeira, específica, refere-se ao estilo musical, definido a partir das sonoridades, do
tempo, dos instrumentos, da maneira de se tocar, ou seja, uma definição técnica, do
universo dos músicos e musicistas. Nessa perspectiva, em linhas gerais, o pop teria
surgido “como uma diluição do rock, uma versão mais suave, associado a um estilo
mais rítmico e a uma harmonia vocal mais agradável. (...) Musicalmente, o pop
caracteriza-se pelos refrões fáceis de memorizar e pelo amor romântico como tema.”
(SHUKER, 1999, p.193)
A segunda, mais abrangente, vem de encontro aos estudos da área de
Comunicação, ultrapassa a ideia de gênero musical e se define a partir das relações que
o artista e sua obra estabelecem com a cultura de uma sociedade, com o público, as
mídias e a crítica. É deste segundo lugar que a pesquisa proposta vai falar. Assim,
quando se usa “música pop” neste trabalho, o termo refere-se à música presente na
mídia, divulgada e popularizada por ela, reconhecida ou reconhecível pelo público, que
pode ser gravada em álbuns e reproduzida e se transformar em produto vendável,
independente de gênero ou estilo.
A música pop consagrou-se como aquela da cultura de massa, produzida para ser
tocada nas rádios, vender álbuns, ver nascer ídolos e lotar estádios em grandes festivais.
Aqui, “pop”, mais do que “popular”, ou mais do que um gênero musical, é entendido
como relativo à comunicação de massa e dialoga com a “Pop Art”, que primeiro usou o
termo na década de 50 referindo-se aos trabalhos de artistas que incorporavam
elementos oriundos dos meios de comunicação de massa. Lawrence Alloway esclarece:
“I used the term, and also „Pop Culture‟, to refer to the products of the mass media, not
to works of art that draw upon popular culture.” 1(ALLOWAY, 1994, p.27)
Alloway fez parte do Independent Group (IG), do Institute of Contemporary Art,
em Londres, que se reunia para pensar as artes da cultura de massa: “The area of contact
was mass-produced urban culture: movies, advertising, science fiction, Pop music.”
1
2
Eu usei o termo, e também „Cultura Pop‟, para referir aos produtos de mídia de massa, não aos trabalhos
de arte que se direcionam à cultura popular.
2
A área de contato era cultura urbana produzida em massa: filmes, propaganda, ficção científica, música
(ALLOWAY, 1994, p.31)
A indústria fonográfica nasceu dessa cultura de massas e, com suas gravadoras,
selos e empresários, fez no mundo da música o mesmo que Hollywood fez no cinema:
organizou-se em escala de produção, como uma verdadeira fábrica de sons, criando
sempre um novo gênero musical, pronta a satisfazer os mais diferentes ouvidos e a
vender um novo artista a cada semana.
Hoje, muito se fala da crise dessa indústria, que começou perdendo a corrida
contra a música na internet e seus programas de compartilhamento de arquivos. As
novas tecnologias de informática, com os mais diversos formatos de arquivo sonoro, e a
rede parecem ter poupado novos artistas do crivo e da burocracia das gravadoras.
No entanto, historicamente, aqueles mais bem sucedidos no mundo da música
pop são os que conseguiram encontrar um equilíbrio na relação entre seus projetos
criativos e os interesses da indústria fonográfica, ou melhor, da indústria cultural. Como
o processo de criação desses artistas que assimilaram a cultura de massa e midiática
acontece e como se articula um projeto artístico comprometido com o mercado são as
questões que vão guiar esta pesquisa.
1.1.1 – A Indústria Cultural
Para tentarmos nos aproximar de uma definição do que é música pop, que não é
o mesmo que, mas também é, música popular, é preciso refletir sobre os conceitos, préconceitos e preconceitos que a englobam, e que ela incorpora, tanto quando levada à
Academia, como objeto de pesquisa, quanto no meio artístico, onde é frequentemente
entendida como um estilo musical “menor”, quando na verdade deveria ser entendida ao
longo da história recente, levando-se em consideração as revoluções culturais pelas
quais a sociedade passou e passa desde que o capitalismo institui-se, enfim, como o
modus vivendis do mundo.
Nesta pesquisa, “música pop” ultrapassa a ideia de estilo musical e, mesmo
quando tomada apenas como um tipo de música, sua ligação com a indústria cultural é
inevitável. Uma questão importante para o conceito de música pop aqui utilizado é
descrevê-la a partir de conceitos da indústria cultural e, dessa forma, considerar que o
próprio entendimento de “estilo” muda de perspectiva. Numa perspectiva comum de
Pop.
estilo, a música pop, em linhas gerais, seria aquela de apelo popular, melodia e estrutura
simples, letra fácil, com temáticas descomplicadas - uma música fácil de ouvir, fácil de
agradar, fácil de aprender, para divertir, superficial.
Noutra mais apurada, ela seria toda música difundida pela indústria cultural, em
que a arte dá lugar à técnica, à fórmula, e...
...la participación en tal industria de millones de personas impondría métodos
de reproducción que a su vez conducen inevitablemente a que, en
innumerables lugares, necesidades iguales sean satisfechas por productos
standard. (ADORNO; HORKHEIMER, s/d, p. 28)3
A música pop é fruto do desenvolvimento da indústria cultural e do ramo da
indústria fonográfica. A indústria fonográfica, por sua vez, assim como a
cinematográfica, desenvolveu-se para produzir bens culturais, ou seja, para alimentar o
mercado cultural. A música pop nasce, portanto, para o consumo fácil e rápido das
massas, incorporando os preceitos da Indústria Cultural como conceituada por Adorno e
Horkheimer, seus críticos mais veementes. Via de regra, as gravadoras objetivam
manter o status quo mercadológico e enriquecer às custas, quase sempre, da capacidade
crítica e do poder de escolha das pessoas.
La industria está interesada en los hombres sólo como sus propios clientes y
empleados y, en efecto, ha reducido a la humanidad en conjunto, así como a
cada uno de sus elementos, a esta fórmula agotadora. (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 44)4
Essa realidade ainda figura no campo da música das mídias, como alguns
pesquisadores chamam a música pop, mesmo com a mudança dos hábitos de consumo
cultural da mídia para a hipermídia, as gravadoras, selos e artistas adaptando-se, agora,
fácil e habilmente à era dos arquivos digitais.
Voltemos, então, a Adorno e Horkheimer quando descrevem o sistema ao qual
toda a sociedade foi submetida na passagem para o capitalismo, a fim de tentarmos
entender o cenário no qual a música pop tem suas raízes:
3
… a participação de milhões de pessoas em tal indústria pressupõe métodos de reprodução que por sua
vez conduzem inevitavelmente a que, em inúmeros lugares, necesidades iguais sejam satisfeitas por
produtos standard.
4
A industria está interessada nos homens apenas como clientes e empregados e, como efeito, reduziu a
humanidade, como um todo, assim como cada um de seus elementos, a esta fórmula esmagadora.
La civilización actual concede a todo un aire de semejanza. Film, radio y
semanarios constituyen un sistema. Cada sector está armonizado en sí y todos
entre ellos. Las manifestaciones estéticas, incluso de los opositores políticos,
celebran del mismo modo el elogio del ritmo de acero. (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 28)5
A lógica industrial adentrava e absorvia, assim, todas as esferas da vida. O
indivíduo passava a ser o operário, o trabalhador, que se confundiam, da mesma forma
que a própria vida se confundia com o trabalho e reproduzia, fora das fábricas, nas horas
de lazer, a dinâmica alienadora e opressora das linhas de produção, enfim, do
capitalismo.
Los productos de la industria cultural pueden ser consumidos rápidamente
incluso en estado de distracción. Pero cada uno de ellos es un modelo del
gigantesco mecanismo económico que mantiene a todos bajo presión desde el
comienzo, en el trabajo y en el descanso que se le asemeja. (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 32)6
Durante as horas livres, em que não estavam nas fábricas, os operários
procuravam a diversão, o “amusement”, princípio “burguês e iluminado” (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 42) que a indústria cultural ajudou a disseminar como uma
necessidade, transformando o lazer em negócio.
Pero la afinidad originaria de negocios y amusement aparece en el
significado mismo de este último: la apología de la sociedad. Divertirse
significa estar de acuerdo. El amusement sólo es posible en cuanto se aisla y
se separa de la totalidad del proceso social, en cuanto renuncia absurdamente
desde el principio a la pretensión ineluctable de toda obra, hasta de la más
insignificante: la de reflejar en su limitación el todo. Divertirse significa
siempre que no hay que pensar, que hay que olvidar el dolor incluso allí
donde es mostrado. En la base de la diversión está la impotencia. (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 42)7
5
A civilização atual concede a tudo um ar de semelhança. Cinema, rádio e semanários constituem um
sistema. Cada setor está harmonizado em si mesmo e todos entre si. As manifestações estéticas,
inclusive às da oposição política, celebram da mesma forma “el elogio del ritmo de acero.
6
Os produtos da indústria cultural podem ser consumidos rápidamente, inclusive em estado de distração.
Mas cada um deles é um modelo do gingantesco mecanismo económico que mantém a todos sob pressão
desde o início, no trabalho e no descanso que se assemelha a ele (ao trabalho).
7
Mas a afinidade originária de negócios e amusement aparece no significado mesmo do último: a
apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. O amusement só é possível enquanto se
divide e se separa da totalidade do processo social, enquanto renuncia absurdamente desde o princípio à
pretensão imbatível de toda obra, até da mais insignificante: a de refletir em sua limitação o todo.
Divertir-se significa sempre não ter que pensar, ter que esquecer a dor mesmo onde ela é mostrada. Na
base da diversão está a impotência.
Esse sistema era sustentado por forças ora dominadas e organizadas de tal
maneira que todos, consciente ou inconscientemente, entravam no esquema que se
estabeleceu, enfim, como a cultura da sociedade capitalista, a da Indústria Cultural.
Sem querer e sem precisar aqui entrar na discussão sobre o conceito de arte, fato
é que, na sociedade capitalista, a indústria cultural passou a ser a grande difusora, talvez
não da arte, mas, por que não, de produtos artísticos. Apropriando-se do seu “idioma”,
com o suporte de experts – eles mesmos figuras típicas do meio industrial, a indústria
cultural especializou-se a tal ponto que foi deglutida e absorvida por todos, artistas e
público – consumidores.
A música pop é uma das realizações máster dessa indústria e concentra todas as
características típicas dos produtos da indústria cultural segundo Adorno e Horkheimer,
inclusive na sua essência contraditória. Estão lá, no ceio da indústria fonográfica, todos
os preceitos capitalistas que regeram, e ainda regem, até certo ponto, a vida desde o
século XIX, e a música, feita produto, é, pois, criada para atender a esses preceitos e
garantir a manutenção dos mesmos. E no avanço da indústria cultural, essa música,
capaz de atender a tais interesses, foi a música pop. A música pop pode, assim, ser
entendida como sendo a música da Indústria Cultural.
1.1.2 - Estilo e música pop
Ao longo da história do século XX e XXI mais fortemente, e desde o início, a
indústria fonográfica esmerou-se em nomear um sem-número de estilos musicais, numa
tentativa frenética de controlar a produção artístico-musical e torná-la administrável,
rentável, enfim, mercadológica. A necessidade de encaixar música e artista em
categorias vem da obrigação de se criar públicos-alvos, grupos de consumidores e
hábitos de consumo para quem tais músicas e tais artistas deverão ser interessantes. O
que se faz, portanto, é criar demandas de mercado.
Las distinciones enfáticas, como aquellas entre films de tipo a y b o entre las
historias de semanarios de distinto precio, no están fundadas en la realidad,
sino que sirven más bien para clasificar y organizar a los consumidores, para
adueñarse de ellos sin desperdicio. Para todos hay algo previsto, a fin de que
nadie pueda escapar; las diferencias son acuñadas y difundidas
artificialmente. El hecho de ofrecer al público una jerarquía de cualidades en
serie sirve sólo para la cuantificación más completa. (ADORNO;
HORKHEIMER, s/d, p. 29)8
Pensar a música pop apenas como um estilo musical, diferente do jazz, do rock,
do folk, do funk, do punk, do samba, do pagode, do forró, e ainda, do punk-rock, do
rock-pop, do samba-rock etc, etc, etc é, então, cair na malha da indústria cultural com
certa desatenção, deixando escapar o fato de que toda essa categorização foi criada,
mais precisamente, disseminada, artificialmente para facilitar a produção e promoção de
música, em escala industrial. Adorno e Horkheimer são radicais ao pensar tal
esquematismo da indústria cultural:
Incluso si la planificación del mecanismo por parte de aquellos que preparan
los datos, la industria cultural, es impuesta a ésta por el peso de una sociedad
irracional -no obstante toda racionalización, esta tendencia fatal se
transforma, al pasar a través de las agencias de la industria, en la
intencionalidad astuta que caracteriza a esta última. Para el consumidor no
hay nada por clasificar que no haya sido ya anticipado en el esquematismo de
la producción. (ADORNO; HORKHEIMER, s/d, p. 30)9
1.1.3 – Fórmula
Alguns pesquisadores falam de “música eletrônica” ou “música de mídia”,
tentando evitar as polêmicas em torno do termo “pop”, e, nessa tentativa, ambas as
denominações ajudam a esclarecer que “música pop” passou a denominar a música da
indústria cultural, criada, produzida e reproduzida eletronicamente, difundida,
promovida e consagrada pela mídia. E essa música, independentemente de “estilo” ou
“gênero”, segue os mecanismos da indústria cultural: novidade e repetição,
diferenciação e semelhança, fórmulas e clichês,
... clichés, para emplear a gusto aquí y allá, enteramente definidos cada vez
8
As distinções enfáticas, como as entre filmes de tipo a e b, ou entre as histórias de semanários de preços
diferentes, não estão fundadas na realidade, mas sim servem melhor para classificar e organizar os
consumidores, para se servir deles sem desperdício. Há algo previsto para todos, para que ninguém
escape; as diferenças são alcunhadas e difundidas artificialmente. A prática/ O feito de oferecer ao
público uma hierarquia de qualidades em série serve apenas para a quantificação mais completa.
9
Mesmo se a planificação do mecanismo por parte daqueles que preparam as informações, a industria
cultural, é imposta a esta pelo peso de uma sociedade irracional – não obstante toda racionalização, esta
tendencia fatal se transforma ao passar pelas agências da industria, na intencionalidade astuta que
caracteriza esta última. Para o consumidor, não há nada por classificar que não tenha sido já antecipado
no esquematismo da produção.
por el papel que desempeñan en el esquema. Confirmar el esquema, mientras
lo componen, constituye toda la realidad de los detalles. En un film se puede
siempre saber en seguida cómo terminará, quién será recompensado,
castigado u olvidado; para no hablar de la música ligera, en la que el oído
preparado puede adivinar la continuación desde los primeros compases y
sentirse feliz cuando llega.
(...)
A ello pone fin con su totalidad la industria cultural. Al no reconocer más que
a los detalles, acaba con la insubordinación de éstos y los somete a la fórmula
que ha tomado el lugar de la obra. La industria cultural trata de la misma
forma al todo y a las partes. (ADORNO; HORKHEIMER, s/d, p. 31)10
Um artista original que alcance o gosto do público e que se torne referência ou
influência para outros artistas, na indústria fonográfica serve como um novo padrão,
uma nova fórmula de sucesso a ser seguida e logo se busca lançar outros artistas –
produtos – semelhantes para que um mesmo público compre não só o álbum do
primeiro, como também de todos os seus “genéricos”.
1.1.3.1 – A fórmula como processo de criação da música pop
Edgar Morin fala da “fórmula” como parte do processo de criação artístico na
indústria cultural e afirma que a
concentração técnico-burocrática pesa universalmente sobre a produção
cultural de massas. Donde a tendência à despersonalização da criação, à
predominância da organização racional de produção (técnica, comercial,
política) sobre a invenção, à desintegração do poder cultural. (MORIN, 1990,
p. 25)
Para ele, a indústria cultural, operando a partir de “dois pares antitéticos:
burocracia-invenção, padrão-individualidade”, promove uma organização burocráticoindustrial da cultura possível graças à própria estrutura do imaginário, segundo
arquétipos. “Regras, convenções, gêneros artísticos impõem estruturas exteriores às
obras.” (MORIN, 1990, p. 26)
10
… clichês, para empregar a gosto aqui e ali, inteiramente definidos cada vez pelo papel que
desempenham no esquema. Confirmar o esquema, enquanto o compõem, constitui toda a realidade dos
detalhes. Num filme, sempre se pode saber rapidamente como terminará, quem será recompensado,
castigado ou esquecido; para não falar da música ligeira, em que o ouvido preparado pode adivinhar a
continuação desde os primeiros compassos e se sentir feliz quando chega.
(...)
A ele põe fim com sua totalidade a industria cultural. Ao não reconhecer mais que os detalhes, acaba com
a insubordinação dos mesmos e os submete à fórmula que tomou o lugar da obra. A industria cultural
trata da mesma forma o todo e as partes.
Seguindo na reflexão de Morin, existem, ainda, técnicas-padrão de
individualização comparáveis ao modo como se pode obter “os mais variados objetos a
partir de peças-padrão de meccano”. (IDEM) Mas haveria momentos em que a técnica
não seria suficiente e se faria necessária a invenção e nesse ponto o padrão deveria
ceder à originalidade. Assim, a produção não chegaria a abafar a criação e a criação
cultural não poderia “ser totalmente integrada num sistema de produção industrial.”
(IDEM)
Há certo otimismo na leitura da criação artística no seio da indústria cultural
feita por Morin, que credita à eterna contradição invenção-padronização a existência de
uma “zona de criação e de talento no seio do conformismo padronizado.” (IDEM)
Entretanto, quando pensa a criação industrializada, discorre sobre a racionalização do
processo de criação, a partir de uma divisão industrial do trabalho, à qual corresponde a
padronização. E “a padronização impõe ao produto cultural verdadeiros moldes espaçotemporais. (...) Nesse sentido, segundo as palavras de Wright Mills em White Collar, „a
fórmula substitui a forma'.” (MORIN, 1990, p. 31)
Na indústria cultural, segundo Edgar Morin, “existe uma zona marginal”, onde
“os autores podem expressar-se” e “uma zona central”, onde “o autor não pode mais se
identificar com sua obra.” (MORIN, 1990, p. 33)
Contudo, sob a própria pressão que ele sofre, o autor espreme um suco que
pode irrigar a obra. Além disso, a liberdade de jogo entre padronização e
individualização lhe permite às vezes, na medida de seus sucessos, ditar suas
condições. A relação padronização-invenção nunca é estável nem parada, ela
se modifica a cada obra nova, segundo relações de forças singulares e
detalhadas. (MORIN, 1990, p. 33)
Neste sentido, trazendo a discussão para o cenário cibercultural deste início de
século, as novas mídias digitais, inicialmente celebradas como ferramenta de autonomia
criativa para os artistas, aparecem hoje como ingredientes fundamentais da nova
fórmula da música pop, tendo sido totalmente incorporadas aos procedimentos da
indústria fonográfica, mesmo por quem não se vincule a nenhuma gravadora.
A internet e as novas tecnologias de informática democratizaram o processo de
produção e divulgação de música, mas também criaram um novo padrão e novas
fórmulas de sucesso. Ou seja, o velho esquema da indústria cultural não se esgota, ele se
renova e se difunde com a facilidade e a rapidez da rede. A música pop mudou de
veículo, de domínio, a princípio, e artista e público não precisam do intermédio da
gravadora, indicando o que deve ser produzido e o que deve ser apreciado. E, no
entanto, se o acesso do público à música é hoje infinitamente mais fácil, o contrário
também vale e não se pode afirmar até onde a liberdade de escolha ou criativa existe.
Pode-se falar em três momentos de uma transição da indústria fonográfica
tradicional para a que aqui vai ser chamada de indústria fonográfica de rede: 1) quando
o acesso às e o domínio das tecnologias digitais adentram os estúdios de gravação e o
controle dessas novas tecnologias passa a representar a possibilidade de autonomia dos
artistas da música pop frente às gravadoras; 2) outro quando o domínio das ferramentas
e da linguagem da rede passam a representar tanto a autonomia do artista quanto a do
público frente ao mercado fonográfico; 3) terceiro, quando as gravadoras incorporam a
dinâmica da internet e estão todos na rede - artista, mercado e público, e esta deixou de
ser o espaço alternativo para a música para ser o meio principal de promoção e
divulgação da música pop.
Passado o pânico da troca livre de arquivos mp3 na rede, a indústria fonográfica
ao invés de quebrar com a queda das vendas de discos, expandiu-se, ao menos
ideologicamente, na rede, fechando contratos de distribuição e venda de músicas em
arquivos digitais com grandes nomes da indústria da tecnologia – o Itunes, da Apple, é o
maior exemplo disso.
A “fórmula do sucesso” da música pop inclui tanto os moldes pré-estabelecidos
para cada estilo musical, quanto os modos como os trabalhos dos artistas devem chegar
ao público, buscando sempre alcançar e agradar o maior número de pessoas possíveis.
Hoje, a internet, mais do que o rádio e a tevê, é o componente fundamental dessa
fórmula, baseada na divulgação intensa dos artistas e sua música através de sites,
comunidades e redes de relacionamento. Na reportagem “Bandas de rock criam 'fórmula
do sucesso'”, publicada em 2008 pelo jornal O Estado de São Paulo, bandas bem
sucedidas no cenário pop atual explicam essa fórmula.
Com o rótulo de “emocore” - embora muitas não se assumam como tal – e
letras que cantam o sofrimento sob as batidas rápidas do hardcore, bandas
jovens de rock proliferam pela rede e estabelecem uma “fórmula de sucesso”
seguida à risca por aspirantes a NXZero e Fresno, que surgiram na web,
conquistaram milhares de fãs no Orkut, lotaram casas de show e festivais
independentes e, por fim, assinaram com gravadora, tocam em rádios e são
figurinhas fáceis, fáceis na MTV.
Para o presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes
(Abrafin), Fabrício Nobre, o „boom' do rock na internet ocorre justamente
pela falta de espaço no „mainstream'. “As gravadoras estão quase fechando e
não há mais rádios de rock. Hoje, a web e os festivais substituíram
gravadoras e rádios.” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 12 de maio de 2008)
Mas se a web e os festivais substituíram gravadoras e rádios, estes passaram à
posição de „mainstream', uma vez que se tornaram o principal meio de divulgação da
música hoje e a “receita gera bandas novas a cada dia na internet”, onde já se fala em
um “mainstream do underground.” (IDEM)
Segundo Wladimyr Cruz, do site www.zonapunk.com.br e organizador do
festival itinerante Zona Punk Tour, são centenas de bandas com som e
trajetória semelhantes na web. “Elas usam uma divulgação exaustiva na
internet para conseguir chegar à mídia, como fez o Fresno. (...) A rede
mundial quebra os limites de distribuição.” (IDEM)
O baterista Fil, da banda Gloria, conta na reportagem do Estadão que o grupo
fica na internet “24 horas por dia. Usamos fotolog, Orkut, MySpace, Trama Virtual...
Tudo.” O guitarrista Tyello, do Dance of Days, vai mais longe: “A internet é o sexto
membro da banda.”(IDEM) Enquanto a fórmula da internet parece funcionar bem para
as bandas de rock, no Brasil, para artistas de outros estilos ela só cria nichos. O produtor
Tejo Damasceno, do Turbo Trio, explica na mesma matéria que “a internet permite criar
nichos. Um público menor irá acompanhar o seu trabalho.” Damasceno aponta para a
relação da música pop com a cultura jovem quando explica o grande sucesso das bandas
de rock na internet: “É o tempo maior que o adolescente tem para ficar na frente do
computador pesquisando novas músicas.” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 12 de maio
de 2008)
1.1.4 – A cultura jovem e a música pop
A relação citada no trecho acima, do adolescente com o rock, vai além do tempo
que se dispõe para se dedicar à música e leva a refletir sobre os laços da cultura jovem e
do universo da música pop, a primeira alimentando-se da segunda e vice-versa. A
música pop pode ser considerada uma das vertentes da cultura de massa, em que se
opera “uma promoção da juvenilidade.” (MORIN, 1990, p. 149)
Na sociedade moderna, ao contrário do que acontece na sociedade histórica, não
é mais o “homem adulto” o tipo de homem que se impõe, mas sim o “homem
adolescente”, sem identificação com a autoridade paterna ou materna, sem projeção nos
valores da família. “Sobretudo, com o impulso da cultura de massa os pais vão apagarse até desaparecerem do horizonte imaginário.” (IDEM, p. 151)
Os modelos de identificação, as funções tutelares, desertam, por sua vez, da
família e do homem maduro para transferir-se para outro lugar: os deuses de
carne, os heróis imaginários da cultura de massa apoderam-se de funções
tradicionalmente privilegiadas pela família e os ancestrais. (MORIN, 1990, p.
152)
Quando a civilização passa a se transformar de forma acelerada, a sabedoria dos
velhos, a ideia de “experiência acumulada”, é sobreposta pela “adesão ao movimento”
(MORIN), pelos valores do presente, e o novo modelo de identificação é aquele do
“homem em busca de sua auto-realização”, “o homem e a mulher que não querem
envelhecer, que querem ficar sempre jovens para sempre se amarem e sempre
desfrutarem do presente.” (MORIN, 1990, p.152)
Ao mesmo tempo em que a cultura de massa se apropria de e difunde esses
novos modelos, ela passa a ocupar o espaço da passagem entre a infância e a vida
adulta, quando não há mais a ruptura entre essas duas fases da vida e os ritos de
passagem e iniciação não mais acontecem, ou seja, ela vai se legitimar com o
surgimento da adolescência. “A adolescência surge enquanto classe de idade na
civilização do século XX. (...) A adolescência enquanto tal não aparece senão no
momento em que o rito social da iniciação perde sua virtude operadora, perece ou
desaparece.” (MORIN, 1990, p. 153)
Sem a quebra dos ritos de passagens, a adolescência configura-se como um
período de busca pela identidade, de configuração da personalidade, visões de mundo e
sociabilização. Se antes esses valores eram fornecidos pelas sociedades arcaicas, o
iniciado tomando lugar na sociedade dos adultos nos ritos de iniciação, agora eles
cedem a um sentimento de “procura de si mesmo” e “procura da condição adulta”,
numa contradição “entre a busca da autenticidade e a busca de integração na sociedade.”
(MORIN, 1990, p. 154)
O jovem adolescente acaba se “reconfortando” na cultura de massa, a cultura
do agora, do passageiro, do desapego e dos heróis rebeldes que nunca envelhecem. As
estrelas de cinema e os ídolos da música, nunca morrem de tédio e estão sempre lindos,
e jovens – os Beatles serão para sempre “os quatro garotos de Liverpool”. A
adolescência primeiro identificou-se e depois se infiltrou, com todas as suas
contradições, na cultura de massa.
A adolescência atual está profundamente desmoralizada pelo tédio
burocrático que emana da sociedade adulta. (...) Encontra, contudo, na cultura
de massa, um estilo estético-lúdico que se adapta a seu niilismo, uma
afirmação de valores privados que corresponde a seu individualismo, e
aventura imaginária, que mantém, sem saciá-la, sua necessidade de aventura.
É isso que pode explicar o fato de a adolescência ter podido cavar uma
abertura na cultura de massa: James Dean foi o primeiro e o supremo herói da
adolescência. (...)Em seu rastro vieram Anthony Perkins, Belmondo. Depois
o rock and roll e o ye-ye-ye foram a causa de uma nova erupção adolescente
em escala mundial. (MORIN, 1990, p. 156)
A música pop consagra-se, finalmente, como a música dos ídolos jovens, a
música dos adolescentes, dos heróis e deuses do rock, motivo de adoração e fanatismo,
capazes de mobilizar gerações em torno de suas causas. Nessa e dessa consagração
nasce uma cultura musical midiática, pautada pelo sucesso de massa, pela projeção nos
meios de comunicação e pela “aparição” do artista seja nos jornais e revistas, seja no
cinema, na tevê ou, hoje, na grande rede digital, naquilo que se pode resumir no termo
“imagem musical”.
1.2 - Música Pop e Imagem Musical
A música pop sempre cultivou uma estreita relação com os meios de
comunicação de massa – não só com o rádio, mas também com a fotografia, o cinema, e
a televisão – e, consequentemente, com a cultura da imagem. Ao buscar as origens
dessa relação, perceptível em diferentes momentos do processo criativo da música pop,
as raízes remontam à história da fotografia e do cinema, uns dos, senão os maiores
“fundadores” da cultura de massa. Portanto, falar de imagem musical é falar de como a
música, em particular a música pop, associou, ao longo da história da cultura ocidental
contemporânea, as linguagens visuais e midiáticas a suas práticas. Esse percurso pode
começar a ser traçado a partir da consolidação do cinema como arte de entretenimento e
passa pela chegada e o avanço de novas mídias e tecnologias, como a tevê, o
videocassete, a internet e o DVD.
Falar de imagem musical neste trabalho torna-se relevante na medida em que a
pesquisa toma como objeto de estudo o documentário Let it Be, do grupo britânico The
Beatles, entendendo-o como um registro audiovisual do processo de criação da banda. A
relação dos Beatles com a cultura pop e midiática faz parte da história do grupo, que
sempre se preocupou em investir em outros campos artísticos, particularmente no
cinema, como forma de veicular sua música e trabalhar seu projeto poético.
Pode-se reconhecer também a preocupação da banda, que no final da década de
1990 lança a série The Beatles Anthology em vídeo e cd - com faixas de conversas entre
os integrantes da banda em estúdio, trechos de gravações e versões descartadas de
alguns de seus maiores sucessos, além de demos do início da carreira e faixas gravadas
em apresentações ao vivo - com registros de seus processos criativos. No segundo
semestre de 2009, a gravadora Apple relança os principais álbuns da banda, incluindo
Let it Be, em cds remasterizados e cada cd traz um minidocumentário sobre a produção
do álbum. Neste contexto, Let it Be ultrapassa os objetivos pelo qual foi lançado
originalmente e dialoga com o formato do making of, ao mostrar exclusivamente cenas
da banda em estúdio, ensaiando e gravando.
É, da mesma forma, praticamente impossível falar em "imagem musical" sem
tocar na relevância que os videoclipes têm para a música pop hoje. E os Beatles têm
papel inegável na construção da linguagem videoclíptica. Antes de chegarem à estética
do documentário, experimentaram essa e outras abordagens audiovisuais e quando
filmaram Let it Be já haviam passado por outros formatos, principalmente, pelo formato
do videoclipe, sempre muito bem aproveitado nos seus longas, para apresentar a música
da banda. Let it Be pode ser visto, então, como o extremo de um percurso
“musicoimagético” da banda e da sua música, que, tendo passado por inúmeras
experiências audiovisuais e chegado ao máximo em termos de exposição midiática,
estariam prontas para revelar o que estava por trás de tudo aquilo. Ou seja, prontas para
revelar o processo de criação do grupo em um documentário que pode ser comparado a
um making of, formato bastante explorado atualmente, especialmente pela indústria
fonográfica.
1.2.1 - O cinema e a música pop
A fotografia, pico da era da reprodutibilidade técnica de Benjamin, trouxe o
fascínio do homem pela sua imagem, mudando a forma de se ver e ver o mundo, como
que vencendo a morte pelo esquecimento. Da câmara escura e da lanterna mágica à
fotografia, passando pelo fonógrafo e o quinetoscópio de Thomas Edison no final do
século XIX, chegando ao cinematógrafo de Louis e Auguste Lumière, percorreu-se um
longo caminho até que o cinema fosse “assimilado às formas de expressão culturais e
artísticas” (DA-RIN, 2006, p. 23) e a linguagem cinematográfica encontrasse sua
vocação para o entretenimento das massas e chegasse ao status de indústria.
Os primeiros anos de vida do cinema foram marcados por um certo
cientificismo, quando o interesse pelo cinematógrafo advinha do desenvolvimento das
pesquisas ópticas e da projeção da imagem. Percorrendo feiras e congressos do fim do
século XIX aos primeiros anos do século XX, o cinema foi criando seus alicerces,
atraindo a atenção da sociedade e experimentando seus primeiros formatos narrativos e
modos de representação.
No final do século XIX, época marcada pela exaltação dos progressos
técnicos, sucessivos aparelhos de captação e reprodução de imagens em
movimento foram apresentados, ao lado de outras invenções elétricas e
mecânicas, nas exposições universais, feiras industriais e salões de novidade.
(DA-RIN, 2006, p. 29)
Entre as diversas peças cinematográficas produzidas na época, estavam desde a
narração de histórias conhecidas popularmente a cenas de dança, malabarismo,
halterofilismo e “pantomimas” (DA-RIN, 2006, p. 30) das cenas cômicas e dramáticas.
Mas a grande atração ficava por conta das chamadas “atualidades”, que reproduziam
cenas de eventos públicos ou acontecimentos de grande repercussão pública, chegando
muitas vezes a serem encenadas.
Silvio Da-Rin, ao comentar o sucesso dos filmes de “atualidades” nos primeiros
anos de vida do cinema, considera o “contexto do florescimento de uma sociedade de
massa” e lembra que
ao surgir, o cinema veio ao mesmo tempo revelar e possibilitar uma nova
percepção daquele mundo agitado,
articulando-se com as notícias, os
relatos e as fabulações que circulavam em outros meios de comunicação.
(Da-Rin, 2006, p.31)
As atualidades estão nas origens do cinema como forma de representação e de
construção da imagem de uma sociedade industrial nascente e, para alguns
pesquisadores, ligadas de certa forma ao desenvolvimento do gênero documentário,
mas, como Da-Rin destaca, foi o formato vislumbrado por Edison ao criar o seu
quinetoscópio que se consagrou: o do entretenimento.
Em nossa reflexão sobre a indústria fonográfica e sua estreita relação com a
cultura da imagem, em especial no campo da música que convencionamos chamar de
música pop, chamam atenção as propostas de Edison para a comercialização tanto do
fonógrafo, quanto do quinetoscópio, chegando mesmo a serem premonitórias do que
quase um século depois viria a ser a maior plataforma para os artistas do entretenimento
musical, o videoclipe.
Edison “vislumbrara uma representação audiovisual hiperrealista”, segundo DaRin, e declarou num artigo que acreditava estar próximo de um tempo quando
a grande ópera poderá ser apresentada no Metropolitan Opera House em
Nova York sem nenhuma mudança material do original e com artistas e
músicos há muito tempo já falecidos. (EDISON, 1894. Apud BOWEN, 1955.
Apud FIELDING, 1967, p. 90. Apud DA-RIN, 2006, p. 24)
O cinema foi sem dúvida o grande fundador da cultura da imagem, com suas
telas gigantes e seus deuses Hollywoodianos. Quando a música pop toma forma no
contexto da indústria cultural, essa cultura da imagem já estava assimilada e a ela foram
incorporados certos modos de procedimento originados na indústria do cinema, entre
eles, o star system. Se no cinema a imagem de determinados atores servia para vender
os filmes, para a indústria fonográfica, a imagem dos artistas ajudava a vender espaços
comerciais nas rádios e ajudava a vender discos.
O star system dialoga com o que Edgar Morin chama de “vedetização”. Morin
afirma que a indústria cultural opera numa dialética “padronização-individuação” na
criação e promoção de seus produtos. A “natureza própria do consumo cultural, que
sempre reclama um produto individualizado, e sempre novo” parece chocar-se com a
“tendência exigida pelo sistema industrial”, onde predomina a “despersonalização da
criação.” (MORIN, 1990, p. 25) Essa contradição foi em parte superada pelo
aparecimento das vedetes.
Nem a divisão do trabalho nem a padronização são, em si, obstáculos à
individualização da obra. (MORIN, 1990, p. 31) (...) O impulso no sentido da
individuação não se traduz somente pelo apelo ao elétrodo negativo (o
“criador”), ele se efetua pelo refúgio em superindividualidades, as vedetes. A
presença de uma vedete superindividualiza o filme. A imprensa consome e
cria sem cessar vedetes calcadas sobre o modelo de estrelas de cinema (...).
As vedetes são personalidades estruturadas (padronizadas) e individualizadas,
ao mesmo tempo, e, assim, seu hieratismo resolve, da melhor maneira, a
contradição fundamental. (MORIN, 1990, p. 32)
Assim como a indústria do cinema, a indústria fonográfica, com o objetivo de
promover o consumo de seus discos e criar um mercado lucrativo, desde seu início, trata
de transformar artistas da música em vedetes. Nomes consagrados nas rádios, com seus
rostos estampados nas capas dos álbuns de vinil, rapidamente passam a ser chamados a
integrar ou mesmo estrelar filmes: Elvis Presley e Carmem Miranda são exemplos dos
mais famosos e representavam no cinema mais do que talvez pretendessem com sua arte
“de massa”. Mas sendo feita “de massa”, poderiam servir até à propaganda política e
rendiam bem tanto para os estúdios quanto para as gravadoras.
Tanto Elvis Presley
quanto Carmem Miranda tiveram suas carreiras atreladas às suas imagens e se tornaram
ícones da cultura pop ocidental, suas imagens hoje sendo para muitos até mais
reconhecíveis, ou familiares, que suas músicas.
Podemos comparar as vedetes de Edgar Morin às celebridades de hoje, a ideia de
imagem musical surgindo acompanhada da ideia de “corpo midiático”, o “corpoespetáculo” a que se refere Jurandir Freire Costa. Costa fala da função dos objetos na
moral do espetáculo e descreve a mudança pelas quais ela passou graças ao crescimento
do papel da mídia na formação de mentalidades.
Durante séculos de história ocidental, oscilamos entre duas formas básicas de
definição do sujeito. (...) As duas formas, malgrado as diferenças, tinham em
comum a exclusão do corpo no processo de formação das identidades
individuais. (...) O crescimento do papel da mídia na formação das
mentalidades mudou essas regras. (COSTA, 2005, p. 165)
Assim, quando a mídia assume o papel de autoridade antes ocupado pela família,
a religião e a escola, o corpo adentra a esfera da formação de identidades e se torna o
principal objeto de consumo das massas. “Em sintonia com a moral do espetáculo, a
mídia visa, sobretudo, a tornar visões de mundo particulares plausíveis e convincentes.
É assim que a massa de indivíduos é levada a admirar e a querer imitar o estilo de vida
dos ricos, poderosos e famosos.” (COSTA, 2005, p. 165)
A imagem musical tem a ver com essa admiração pelos famosos, cantores e
músicos de sucesso atraindo grande atenção da mídia, e se vincula com a transformação
não apenas da música, mas também do artista em objeto de consumo. Se o disco
vendido transformava a música em objeto de consumo, o mesmo acontecia com a
imagem do artista vendida nas capas de álbuns, na tela do cinema, na televisão e nas
páginas de jornais e revistas. Desse modo, o artista da indústria fonográfica passa a ser
objeto de consumo tanto quanto a sua música e a construção da imagem na mídia passa
a ser integrada aos procedimentos de trabalho do artista da música pop. O sucesso de
um artista surge agora como uma soma dos sucessos de sua música e de sua imagem,
feita objeto de consumo.
Já na década de 1960, os ingleses The Beatles ajudaram a consolidar e até
mesmo expandir a ideia e o uso da imagem musical e alcançaram exposição em todos os
meios audiovisuais desde o início da carreira até hoje. Se a música dos Beatles é um
sucesso incontestável de vendas para a indústria fonográfica, o mesmo se pode dizer do
seu “corpo midiático”. Ou seja, os Beatles eram – e ainda são - objeto de consumo,
tanto quanto sua música, e a aparição do grupo em programas de tevê e filmes, bem
como a publicação de fotos, matérias e informações da banda em revistas e jornais,
movimentavam a indústria cultural e alimentavam uma nascente indústria do
entretenimento.
Quando fundaram a banda e excursionaram pela primeira vez, na Alemanha, em
1960, os Beatles conheceram a fotógrafa Astrid Kirchherr, que foi fundamental na
construção da imagem do grupo antes mesmo de assinarem com uma gravadora. Depois
de assistir a uma apresentação da banda em Hamburgo, Kirchherr perguntou se
importariam em fazer uma sessão de fotos para ela e já no dia seguinte as fotos foram
feitas, num “fairground” (espécie de parque de diversões) chamado “der Dom”.
(WIKIPEDIA,
2009,
disponível
http://en.wikipedia.org/wiki/Astrid_Kirchherr#The_Beatles,
acessado
em
em17/08/09,
às15h47)
As fotos dos então “cinco garotos de Liverpool” na Europa pós-guerra marcaram
o início da carreira da banda e são emblemáticas, precursoras do que viria a ser uma
trajetória musical construída lado a lado com as linguagens visuais. Astrid Kirchher
voltou a fotografar os Beatles para a revista alemã Stern, em 1964, quando fez fotos dos
bastidores da filmagem de “A Hard Day‟s Night” e em 1969 fez a capa do álbum
Wonderwall Music, de George Harrison.
Dos shows na Alemanha e dos palcos do Cavern Club, em muito pouco tempo
os Beatles chegariam às telas do cinema e levariam milhares de jovens, no mundo
inteiro, a assistirem “A Hard Day's Night” (Richard Lester, 1964), equiparando o agora
quarteto ao “fenômeno Elvis” na categoria de ídolos. O filme constrói a imagem
“clean”, ao mesmo tempo irreverente e bem humorada, da banda, reforçando uma
cultura jovem efervescente na época, além de transformar os músicos em personagens,
cada um com um papel definido no grupo, e a vender o álbum homônimo.
“Os reis do iê-iê-iê”, título sob o qual foi exibido no Brasil, foi o primeiro de
uma série de longas protagonizados pelos Beatles, que assinaram um contrato com os
estúdios da Universal para a produção de outros três filmes. Cada um deles é
representativo da fase pela qual a banda e sua música passavam em termos de
experimentação e absorção de linguagens e filiação a movimentos artísticos e culturais como o psicodelismo e a cultura hippie presentes em “Yellow Submarine” ou “The
Magical Mistery Tour”. Já as cenas de “Help” tornaram-se icônicas e entraram para o
repertório coletivo da cultura pop e midiática. O mesmo se pode afirmar das capas dos
álbuns de cada projeto novo da banda: “Sargent Pepper's Lonely Hearts Club Band”,
por Robert Frase, Peter Blake e Jann Haworth, e “Revolver”, por Klauss Voorman, são
até hoje referenciados.
É central a ideia de que em seus filmes, ao trabalharem a passagem das músicas
para a linguagem visual, combinando canção e representação imagética, os Beatles nada
mais faziam o que veio a ser anos mais tarde batizado de videoclipe, tanto do ponto de
vista artístico, quanto da perspectiva comercial da música da indústria fonográfica, a
música pop. Formato que culminou na “geração MTV”.
O primeiro grande experimento da linguagem do videoclipe veio no ano de
1964, quando o diretor Richard Lester dirige 'A Hard Day's Night' (The
Beatles) (...). (ALMEIDA SÁ, 2003, p. 7)
O diretor ganhou fama pelo capricho de seus ângulos e pelos movimentos de
câmera para filmar os números musicais, o que deu à obra um padrão estético
clipado. (...) Os Beatles rodaram a cena enquanto tocavam pela Grã Bretanha.
Considerando-se que não eram atores, Lester editou o roteiro em cenas
rápidas – o que também influenciou decisivamente naquilo que hoje se
conhece como videoclipe. (ALMEIDA SÁ, 2003, p. 8)
As cenas da banda fugindo das fãs, a gritaria nos shows, o corre-corre e o
fanatismo tornaram-se uma fórmula para o comportamento do público de
massa ao redor do mundo inteiro. (ALMEIDA SÁ, 2003, p. 9)
Depois da fotografia e do cinema, a televisão chega, então, para levar a relação
música pop - imagem ao extremo. Bebendo das linguagens do rádio e do cinema, os
programas de auditório surgem como um palco capaz de levar uma única apresentação a
uma plateia de milhões ao mesmo tempo. A boa imagem de um artista passa a ser
fundamental para o seu sucesso, sucesso de massa. Ed Sullivan nos EUA e os Festivais
da Música da Record no Brasil foram duas grandes “vitrines” para novos artistas da
música pop nas décadas de 60 e 70, alavancaram a carreira de cantores e compositores e
transformaram em ídolos nomes como The Beatles e a Jovem Guarda.
No início da década de 1980, o surgimento do canal televisivo MTV – Music
Television, nos EUA, resume o percurso da música pop até a consolidação do que
chamamos de imagem musical. A elaboração imagética, a construção da imagem do
pop-star, tornou-se parte indispensável dos processos de criação da música pop.
1.2.2 - A era do videoclipe
Na década de 80, a chegada de uma nova mídia dá vazão a uma produção
experimental, a de peças audiovisuais curtas, voltada para a exposição em festivais de
arte “underground”, clubes e discotecas e, ainda, voltada à tevê. Os videoclipes
começam a ganhar terreno com uma geração de videomakers – diretores, cineastas,
artistas visuais – que se aliam às propostas poéticas de músicos e passam a criar videos
à partir da música destes artistas.
O videoclipe surge, então, com um repertório construído a partir das linguagens
do teatro musical, da ópera e do cinema. Arlindo Machado o define como uma “zona de
convergência de vários meios” (Machado, 2009: anotações de aulas) que se transformou
num gênero independente de audiovisual, ultrapassando os propósitos puramente
promocionais.
1.2.2.1 – Origens do videoclipe
Alguns pesquisadores relacionam o videoclipe com o surgimento nos anos 40 do
Panoram. O Panoram, como descrito em uma revista da época, segundo Carlos
Eduardo de Almeida Sá (2003:3/4), era “uma jukebox, para filmes. Você coloca uma
moeda e assiste a um filme de curta metragem, com três minutos de duração e som,
chamado 'soundie'”. Ainda de acordo com Almeida Sá, sua pesquisa aponta que os
soundies “representam o verdadeiro e mais completo audiovisual disponível da música
popular da década de 40.” (ALMEIDA SÁ, 2003, p. 5)
No cinema, como já descrito anteriormente, as primeiras experiências de uma
linguagem hoje dita videoclíptica, datam das décadas de 60 e 70: The Beatles (“A Hard
Day's Night”, “Yellow Submarine”), The Doors (“The Unknown Soldier”), The Who
(“Tommy”), Led Zeppelin (“The Song Remains the Same”), Pink Floyd (“The Wall”).
Almeida Sá inclui o filme “O Baile”, de Ettore Scola, de 1982, entre as experiências da
“poética do videoclipe” (2003, p. 14) no cinema.
Quando falamos de videoclipe, estamos falando também da estreita relação entre
indústria fonográfica e televisão. Produzir videoclipes não significava o mesmo que
produzir musicais para o cinema e, no seu período de adaptação, experimental por
princípio, sua lógica seguiu mais os preceitos encontrados nos filmes de artistas da
música pop, como citado anteriormente os filmes dos Beatles, do que aqueles que
conduziam os filmes de Fred Astaire, apesar de, na sua maturidade, performers como
Michael Jackson e Madonna incorporarem conscientemente a dinâmica dos musicais a
seus videoclipes.
Enquanto nos musicais a música é criada para um roteiro, para contar uma
história que já foi pensada em imagens, nos clipes acontece exatamente o contrário, a
música vindo a priori e o vídeo traduzindo-a, transpondo-a em linguagem visual.
Um momento fundamental nos primórdios do videoclipe foi o desenvolvimento
da tecnologia, produção e comercialização dos videocassetes. A entrada do aparelho nas
casas de todo o mundo, no final da década de 70 e mais fortemente na década de 80,
com o seu barateamento, agrega um novo hábito ao já consolidado de se assistir à tevê.
Almeida Sá associa o videocassete e a produção de videoclipes à proliferação dos fãclubes naquela década, quando a reunião de grupos de fãs de determinado artista
incentivou a produção dos vídeos por artistas da música pop.
De um lado havia os ícones do pop (...); e do outro
surgia o heavy
metal (...). O alternativo surgia com o rock inglês do
The Smiths e
com bandas como The Cure, Joy Division e
Depeche
Mode.
Independentemente do som que produziam, cada um desses ícones se fez
notar por meio do videoclipe. (ALMEIDA SÁ, 2003, p. 30)
Os fã-clubes eram grupos que se reuniam para trocar informação e discutir sobre
o trabalho e a vida dos artistas que admiravam e as fitas com videoclipes - ainda não tão
comuns no Brasil, que passaram a fazer parte do repertório de materiais desses grupos.
Logo, esses vídeos tornam-se populares no meio fonográfico, interessado numa nova
forma de divulgação de seus artistas, e começam a ser veiculados em redes de tevê
aberta, em programas de entretenimento como, no Brasil, o “Fantástico”, da Rede
Globo, que chegou até mesmo a produzir clipes para artistas como Raul Seixas e Ney
Matogrosso.
1.2.2.2 - Televisão para a música
Em 1° de agosto de 1981 entra no ar a MTV – Music Television nos Estados
Unidos, com uma proposta inovadora tanto no formato quanto no conteúdo. Preocupada
em criar uma identidade jovem e vanguardista, o canal declarou-se desde o início
autorreferente e chama artistas gráficos de diferentes escolas para criarem peças
audiovisuais com a logo da MTV.
O conteúdo da programação era composto por vídeos musicais, os videoclipes,
pequenos filmes feitos da combinação de canções com imagens. A MTV era
basicamente uma rádio televisiva, onde os telespectadores viam uma programação
musical, ao invés de ouvi-la numa rádio; podiam acompanhar uma sequência de
músicas, mas dessa vez, assistindo a um vídeo produzido para acompanhar cada canção.
Os videoclipes passaram, então, a ter um canal de exposição dedicado a eles e os
artistas ganharam, assim, mais um espaço para a divulgação de seus trabalhos. A
consequência foi uma fusão da linguagem musical com a visual, e mais, televisiva, e o
artista da música pop teve que aprender a lidar e a criar com a linguagem audiovisual.
Os primeiros anos da MTV testemunharam os primeiros anos do videoclipe, que tentava
adaptar a linguagem musical e a canção para uma linguagem visual.
Com o sucesso da MTV, que se expandiu mundialmente – no Brasil, ela chega
em 20 de outubro de 1990 - surgiram, outros canais de tevê voltados à música,
principalmente nas redes a cabo, como a VH1 (EUA), a MuchMusic (Canadá), MCM
(França), entre outros, e redes de tevê com foco no entretenimento abriram grande
espaço para a produção de videoclipes, hoje parte essencial da divulgação dos artistas,
singles (as “músicas de trabalho”) e álbuns de música pop.
A indústria fonográfica investe no formato e para os estudos de processos de
criação da música pop, os videoclipes representam mais um campo de procedimento do
artista, que passa a lidar cotidianamente com a linguagem audiovisual, seja por escolha
própria, tomando-o como espaço possível de criação e re-criação da sua obra ou como
forma de exposição de seu projeto poético, que ganha visibilidade, seja por demanda do
mercado.
Um aspecto importante na relação entre processo criativo na música pop e
videoclipe está na questão da performance musical, “um ato de comunicação que
pressupõe uma relação entre intérprete e ouvinte” (JANOTTI/ SOARES, 2008, p. 102).
A canção, assim como outros objetos da arte, é uma obra em movimento, o processo de
criação do compositor e/ ou intérprete não é fechado, acabado ao se finalizar uma
partitura ou numa gravação. Além da recriação feita por cada ouvinte no ato da audição,
podemos citar as regravações, as versões possíveis para uma só canção, dependendo da
leitura e da performance de diferentes intérpretes.
Da mesma forma que a música expande seus modos de registro com o
desenvolvimento da gravação sonora, a performance também o faz. Sendo a
interpretação e a performance parte do processo criativo da música, o videoclipe pode
ser tomado como mais um nó das redes de criação da música pop.
(...) sendo registrada em suporte midiático, a canção tem sua performance
inscrita. A metáfora de que, num período em que não havia a configuração
midiática, a performance do artista ao vivo era seu “objeto de criação” passa
a ser substituída por uma regra em que o “objeto de criação” passa a “criar
outros objetos” (JANOTTI/ SOARES, 2008, p. 103)
Como parte do processo de criação da música pop, o videoclipe traz importantes
indícios da relação que a primeira desenvolveu com a cultura da imagem e da mídia e
ainda é indicial da relação que cada artista opera com o mercado fonográfico e daquela
que ele e sua obra estabelecem com o público. “O 'refrão visual'”, por exemplo, segundo
Jeder Janotti e Thiago Soares, “em geral, está determinado por uma procura retórica da
imagem em pertencer ao espectador, em estar em consonância com as satisfações desse
espectador no âmbito da música pop” (2008, p. 98)
O videoclipe é parte de um sistema maior, que articula as tensões entre a música
como arte e a música como produto. Para Janotti e Soares, a ideia de
produção, armazenamento e circulação na dinâmica do videoclipe obedecem
a um itinerário que leva em consideração preceitos oriundos das lógicas dos
sistemas produtivos da música pop em suas condições tanto de produção
quanto de reconhecimento. (JANOTTI/ SOARES, 2008, p. 92)
Entender o videoclipe como parte do processo de criação da música pop é
entendê-lo não só como parte de um sistema produtivo, mas admiti-lo como uma
“extensão da canção” (JANOTTI/ SOARES, 2008, p. 91), tanto em seus objetivos de
circulação, quanto nos seus aspectos de manipulação criativa da linguagem audiovisual.
Segundo Janotti e Soares,
o videoclipe permite a 'visualização' de um cenário em que a dicção da
canção se desenvolve. (...) O clipe articula uma composição músicoimagética que se projeta em direção ao público, levando em consideração
valores articulados aos gêneros musicais sintetizados na obra audiovisual.
(2008, p. 100)
O videoclipe é indicial de questões relativas ao processo de criação da música
pop: clipes com uma estética associada às lógicas do mercado – através da identificação
do uso de recursos tecnológicos e de linguagem formular, são indícios de um processo
de criação inserido na dinâmica da indústria fonográfica. Clipes de produção com
orçamentos mais baixos, ou com uma estética mais experimental, sugerem um processo
de criação de artistas que se colocam, muitas vezes propositalmente, às vezes não, às
margens da indústria.
Hoje, a televisão divide as atenções como veiculador de videoclipes com a
internet.
Podendo
ser
acessado
também
por
telefone
celular,
o
YouTube
(www.youtube.com) é o maior canal de divulgação de vídeos no mundo e os musicais
estão entre os mais populares. Entre os destaques do canal em 31 de agosto de 2009, por
exemplo, estava o vídeo “Maria Rita com Quinteto em Branco e Preto – „Num Corpo
Só‟", que contabilizava 1.117.975 exibições, desde que foi postado, em maio do mesmo
ano. O videoclipe de “Dance tonight”, de Paul McCartney, dirigido por Michel Gondry,
chegava a 2.456.486 exibições.
1.3 - O DVD: A tecnologia digital e a “imagem de processo”
1.3.1 - O formato digital como espaço de armazenamento de informação sobre processo
O videocassete introduziu um novo hábito ao cotidiano: inaugurando uma nova
forma de se assistir a filmes, fora das salas escuras de cinema com suas grandes telas,
em casa, o formato VHS ou beta permitia um certo controle do espectador sob aquilo
que assistia, parando, voltando ou avançando a fita como lhe convinha, e permitia
também a gravação de programas de tevê. Os baixos custos de produção de vídeos
fizeram surgir uma geração de videomakers e o formato faz surgir um novo mercado, o
do homevideo. Os grandes estúdios de cinema logo passaram a lançar seus maiores
sucessos em vídeo e a dividir as prateleiras das videolocadoras com produções dos mais
diversos gêneros e orçamentos.
A indústria fonográfica também soube aproveitar a fatia do mercado de vídeos
lançando coletâneas de videoclipes e shows em fitas. Grandes sucessos da música pop
dos anos 80 e 90, nomes como Madonna, Michael Jackson, Paul McCartney, entre
muitos outros, além de produzirem para a veiculação na MTV, passaram a somar à
venda de álbuns, primeiro em vinil e em cassete e depois em cd, a venda de fitas de
vídeo. Mas foi só no fim da década de 90 que ela passou a investir pesadamente no
vídeo, com o desenvolvimento do DVD, o digital video disc. O espaço de
armazenamento de dados e as possibilidades de gravação e interatividade do DVD, além
da sua rápida popularização, fizeram deste um importante espaço de divulgação e
registro de obras de artistas da música pop.
Em “Memória do Efêmero: O DVD – Registro de Teatro”, a videomaker e
pesquisadora Tamara Ka, faz uma reflexão sobre o DVD como mídia de registro de
espetáculos teatrais e busca analisar a passagem de uma arte performática para outra,
eletrônica, e as relações dessa transposição com o a peça original, o videomaker e o
público. Suas observações são bastante relevantes para o DVD de música pop.
Ka coloca os DVD – RT no grupo dos DVDs produzidos fora do grande circuito
comercial, com baixo orçamento e com menos recursos tecnológicos para os quais o
espectador tem uma postura diferente daquela para com os programas de tevê ou os
filmes. “Já no DVD – Registro de Teatro, o espectador tem uma postura muito mais de
voyeur, colocando-se assim como o observador de algo que foi concebido originalmente
para outro público.” (KA, 2008, p. 21) O mesmo pode-se dizer, num primeiro momento,
do espectador do DVD de shows e concertos de música pop, quando se assiste a um
espetáculo concebido primeiro para a performance ao vivo. Para a pesquisadora, o DVD
– RT trabalha com a “tensão entre a apresentação e a criação de documentos históricos
do espetáculo.” (KA, 2008, p. 23)
Quando o DVD chega ao mercado, o hábito de ouvir música já vinha se
transformando há décadas, tendo assimilado a cultura da imagem e do videoclipe,
passando pela geração MTV e culminando na música na internet, com o surgimento de
formatos áudio digitais, mp3, wave, mp4, e no hábito do download. Uma mídia que
conseguisse unir a linguagem do vídeo e a interatividade e velocidade da rede, com a
qualidade sonora e visual superiores da tecnologia digital, lograria entre unidades
produtoras e consumidoras de música e entretenimento.
“O mercado da „mídia doméstica acoplada ao televisor‟, que pode ser tanto o
home vídeo, o disc laser ou o DVD, tem crescido, a ponto de as televisões já
contemplarem no orçamento de seus programas o lucro obtido com a venda de seus
DVDs.” (KA, 2008, p.24)
De todas as potencialidades da mídia digital, para os estudos de processo,
interessa a do armazenamento. As produtoras de DVD passam a tirar proveito da alta
capacidade de armazenamento da nova mídia para oferecer mais do que a obra central
de um projeto audiovisual e anexam material extra que pode ser acessado pelo
espectador. “(...) O DVD não está sendo usado apenas como suporte material e sim
como uma nova abordagem, mais complexa e diferenciada” (KA, 2008, p. 25), observa
Tamara Ka, que, sobre a transposição do espetáculo teatral para a mídia digital afirma
que “estamos mudando o espaço e a realidade do momento de fruição para o espectador.
Estamos inscrevendo, fazendo uma notação fixa, pois na apresentação cênica, cada
apresentação é diferente.” (KA, 2008, p. 84)
Nos DVDs de filmes, como material extra, cenas cortadas, comentários do
diretor, entrevistas com atores e produtores são sucesso e modificam e relação do
espectador com o filme, estabelecendo novos vínculos a partir de informações sobre o
universo exterior ao enredo, mas que fazem parte de sua construção como obra
cinematográfica. Nos DVDs musicais, além dos shows e videoclipes, os bastidores de
apresentações ao vivo e os making ofs são padrão.
1.3.2 - Making-ofs: os “extras” como registro de processo
O making of pode ser considerado hoje um gênero audiovisual e pretende
testemunhar e mostrar o processo de criação de determinada obra. Os making ofs
pertencentes ao universo da música revelam, em maior ou menor grau, seus agentes de
produção. Consagrados pela mídia DVD, são um formato cada vez mais comum de
material extra oferecido. Bastante explorados no cinema, podem trazer entrevistas e
comentários de atores, diretores e produtores, além de cenas de bastidores da filmagem,
erros, testes de elenco, entre outros, e revelar ao menos um pouco da complexa rede de
criação de uma obra fílmica, que envolve e mobiliza um grande número de profissionais
das mais diversas áreas integrantes da lógica de produção da indústria cinematográfica.
Para Cecília Almeida Salles, o volume de informação contido no material bônus
dos DVDs de filmes revela-se como fonte de pesquisa para os estudos de processo
quando o crítico estabelece relações “entre os diferentes documentos e entre as
informações oferecidas pelos documentos e o filme.” (SALLES, 2008, p. 90)
Salles interessa-se também pelos making ofs dos DVDs pois, ao contrário dos
documentários de processos de produção e filmagem no cinema, produzidos já com a
intenção de “documentar”, registrar e “revelar” a criação de uma obra, alcançam um
público leigo, não especializado e não necessariamente interessado em estudar
processos criativos, mas que por curiosidade ou puro entretenimento acabou se
habituando e familiarizando com processos de criação.
O que quero ressaltar é que os bastidores da criação, como os cortes e as
restrições de um processo criativo, não são só fonte de interesse, como
viraram assunto de conversa de leigos. Entenda-se leigos aqueles que não
fazem isso de modo sistematizado, por instigação científica, como nós.
(SALLES, 2008: 89)
Para o público da música pop, os consumidores e alvo da indústria fonográfica, o
formato é mais um objeto de interesse e alimenta o gosto ou a admiração do fã por
determinado artista, colocando-se como uma continuidade da música e do álbum que se
escuta ou do concerto ou clipe a que se assiste. Não por coincidência, mais uma vez, a
MTV há alguns anos produz uma série de programas sob o título “Making the Video”
(hoje
disponíveis
também
na
internet
na
página
http://www.mtv.com/shows/makingvideo/series.html), que pode mostrar tanto os
bastidores da produção de um videoclipe (formato adotado primeiramente pelo
programa) como os da produção de um álbum.
O programa da MTV traz, num curto espaço de tempo – os episódios têm
duração de 30 minutos a uma hora – cenas de bastidores em estúdios de gravação e
edição, depoimentos dos músicos, diretores e produtores feitos a posteriori ou durante a
gravação, explicações técnicas, muitas em tom de conversa com o espectador, e, ao
final, exibe o clipe pronto. A série “MTV Acústico”, antes da estreia de cada novo show
acústico no canal, exibe um making of seguindo o mesmo formato, incluindo cenas de
ensaios. Não tardou para o making of ser incorporado às práticas de produção e
divulgação de artistas da música pop, principalmente entre aqueles com inserção no
canal.
A maior parte desse tipo de registro privilegia a figura pública, a “persona” dos
artistas, explorando a busca do fã por toda e qualquer forma de informação e registro,
especialmente audiovisual, de seu artista preferido, de seu “ídolo”. Apesar de
aparentemente superficiais, os making ofs fornecem um grande número de informações
sobre a extensa rede de criações da música pop, especialmente se são percebidas as
relações entre processo de criação ou produção, artista, obra, meio e recepção.
Entrevistas e comentários, comuns em making ofs, podem constituir momentos
de reflexão sobre a obra e seu fazer, em comentários a partir dos quais o artista e outras
instâncias criadoras revisitam a obra, reavaliam um projeto, verbalizam, ou melhor,
organizam verbalmente a lógica de um processo criativo, à vezes pela primeira vez, e
atualizam o discurso sobre determinada obra. “Estamos diante da não-linearidade do
processo de criação e do tempo da reflexão: olhar para trás que parece auxiliar o artista
a compreender o que vem fazendo, que o ajuda muitas vezes a dar significado para o
que fez.” (SALLES, 2008, p. 90)
As imagens e cenas de bastidores de produção, livres de comentário e revelando
o sujeito criador em pleno processo de criação, reatualizam e ressignificam a obra para
o público e revelam, também, a “natureza intelectual e sensível” (SALLES, 2008) do
processo de criação artística e, como Salles descreve um dos materiais extra do DVD do
filme Amnésia (Memento), de Christopher Nolan, “„oficializa-se‟ a possibilidade de
mais de uma forma, dessacralizando, para o grande público, a perfeição e unicidade
daquela (obra) entregue ao público”. (SALLES, 2008, p. 91)
O making of musical, tal qual o DVD – Registro de Teatro, entendido como
“novo meio de representação, produz implicações estéticas”, influencia o “universo do
registro audiovisual” (KA, 2008, p. 29) e oferece um espaço de reflexão sobre obra e
processo criativo para artistas, público e crítica.
2 - A música pop e a expansão dos registros de processo criativo
2.1 - Registro de processo e expansão da memória
O processo de criação artística não se dá de forma linear e envolve questões
subjetivas e individuais como percepção, memória, consciente e inconsciente, que
podem constituir fluxos do pensamento criativo além do que o próprio artista pode
controlar. Entretanto, os registros de um processo de criação feitos pelo autor de uma
obra, necessários para o artista e que constituem índices do processo para o pesquisador,
são um modo de se conseguir certo controle sobre a impermanência do processo, que se
desenvolve na tensão entre continuidade e registro. Primeiro porque conferem
materialidade às ideias na forma de anotações, rascunhos, modelos experimentais,
permitindo, enfim, que o sujeito criador “visualize” o que sua obra está se tornando.
Segundo, porque a análise desses registros sugere uma lógica criativa, gera conexões,
diálogos do artista com sua própria obra e destes com o mundo exterior ao projeto
poético que se constrói, configurando uma rede complexa que pode revelar a obra e o
sujeito criador inseridos numa história e numa tradição. “Cada obra ou cada manuseio
de determinada matéria estabelece interlocuções com a história da arte, da ciência e da
cultura de uma maneira geral, assim como se remete ao futuro.” (SALLES, 2006, p. 42)
Registrando o processo de criação, o artista faz a mediação do seu pensamento
num processo sígnico contínuo de traduções intersemióticas que explicitam para ele, até
certo ponto, os rumos que seu projeto toma no “vir ao mundo”, ao se materializar. É
nessa mediação do pensamento criativo que o artista pode fazer escolhas, assumir
tendências e influências, rejeitar ideias e experimentar outras. “As anotações de um
artista oferecem, em uma visão panorâmica, as renitências de seu olhar.” (SALLES,
2006, p. 70)
É, também, através desses registros que se constrói, ao longo do tempo, o projeto
poético do artista e a história de cada obra, que pode ser vista como uma possível
concretização desse projeto mais amplo. Daí a importância dos registros de processo
tanto para o sujeito criador, quanto para o crítico: a produção de conhecimento sobre
uma obra específica, sobre o processo criativo como um todo e sobre a arte, a cultura e
as ações do ser subjetivo, cultural e criativo no mundo e as deste sobre o artista.
“Podemos, assim, perceber, mais uma vez, esse paralelismo entre os modos de ação da
cultura e aqueles do indivíduo (...) e aquela por nós observada do pensamento
responsável pela construção de obras.” (SALLES, 2006, p. 67)
Os registros de processo de criação têm especialmente a ver com memória. O
artista, através deles, pode recuperar percepções e mesmo sensações a respeito de sua
obra que se deram ao longo do processo criativo, mas que poderiam se perder na
imaterialidade e no fluxo do pensamento criador. Salles, ao falar da relação entre
percepção, sensações e memória diz que uma das funções das anotações do artista no
processo de criação é “fazer durar esse instante” em que se faz uma descoberta sensível
e “driblar o esquecimento”.
Eles são, portanto, estratégias do artista contra o esquecimento, um
prolongamento da memória. Internamente ao processo e também contra o esquecimento
da obra e daquele projeto artístico no mundo. Por isso, talvez, o interesse crescente por
parte dos artistas de registrar todos os passos de seus processos criativos e publicá-los.
Em “Redes da Criação – Construção da Obra de Arte”, Cecília Almeida Salles
recupera os pensamentos de Iuri Lotman (1998) e Jerusa Pires Ferreira (2003) sobre a
relação entre cultura e memória. Salles escreve que para Lotman, a cultura é uma
inteligência coletiva, isto é, um mecanismo supra-individual de conservação e
transmissão de certos comunicados (textos) e da elaboração de outros novos.
(LOTMAN, Apud SALLES, 2006, p. 66)
Assim, através dos registros de processo de criação, o artista deixa para si
próprio os passos, a história de uma obra e para a cultura a possibilidade de gerar novas
obras, novos textos e estabelecer tradições e diálogos com obras e artistas do passado,
do presente e do futuro.
Para o sujeito criador, os registros são parte “das estratégias de memória” e, para
o crítico, revelam a dinâmica do pensamento criativo em ação e do processo de criação
artístico, que se dão na continuidade entre tendências assumidas pelo artista e seu olhar
retroativo sobre a obra em movimento. Dinâmica em que “a regressão e a progressão
são infinitas.” (SALLES, 2006, p. 26)
2.2 - Música e os registros de processos de criação
Na pesquisa do processo de criação da música pop, a questão dos registros
assume importância fundamental, pois implica na própria natureza daquela e da sua
relação com a Indústria Cultural. O desenvolvimento da música pop, inteiramente
relacionado ao da indústria fonográfica, está diretamente ligado ao fato de que seu
processo de criação caminhou lado a lado com as técnicas e tecnologias da gravação,
desde o seu surgimento.
Ao traçarmos um paralelo com a história da música, vemos que, antes da técnica
de gravação, a música dependia exclusivamente de uma linguagem diferente da sua para
ser registrada. As partituras eram ao mesmo tempo forma de registro de processo de
criação e a obra, para que pudesse ser executada musicalmente pelo artista ou intérprete.
Segundo Lucila Tragtenberg,
a necessidade de uma notação se impôs ao longo da história da música,
devido ao próprio caráter de existência temporal desta e ainda para que não
se dependesse apenas da memória, que poderia também ser falha.
(TRAGTENBERG, 1997: 11)
Almuth Grésillon, em suas reflexões sobre a “genética musical”, afirma que em
relação à composição, na música clássica, os documentos de processo existem na forma
de manuscritos, alguns podendo ser encontrados no Département de la Musique de la
Bibliothèque Nationale de France, na França, e na Fondation Sacher, na Suíça. A
pesquisadora reconhece, no entanto, que “en revanche, du côte de l‟interprétacion, j‟en
suis beaucoup moins sûre.” (GRÉSILLON, 2008: 45)
Comment retracer le travaile d‟un chef d‟orquéstre, d‟an instrumentist, d‟an
chanteur, d‟an accompangnateur si l‟on n‟a pas accès à des partitions
annotées par le exécutant, des journaux de bord tenus par l‟interprête? Les
documents qui témoigneraient de l‟acte de la performance musicale et qui
permettraient de reconstruire le chemin qui va de la composition à
l‟exécution sonte extrêmemente rares et difficiles d‟accès. (GRÉSILLON,
2008, p. 45)11
Passamos, aqui, pelo caráter efêmero da obra musical, que só existe, na sua
natureza primeira, na sua “essência temporal (...), intrínseca à sua existência enquanto
manifestação sonora” (TRAGTENBERG, 1997, p. 9), no momento da sua execução, já
que a partitura não passa de uma linguagem de sinais representativos dos sons que só
podem ser lidos e traduzidos em música pelos iniciados. “(...) Interpõe-se a música
grafada em uma partitura, que necessita de um intérprete para que possa vir a ser
ouvida, vivida, em uma realidade temporal.” (TRAGTENBERG, 1997, p. 7)
Assim acontecia antes da técnica da gravação, a música, a obra musical,
dependendo da execução do instrumentista, cantor ou intérprete para vir ao mundo, ser
apreciada ou vir a público. Seu registro e de seu processo de criação ficavam no papel,
sua materialidade estava na materialidade do papel e da escrita e na efemeridade do
som.
Ao artista criador cabia anotar em partituras quaisquer ideias, experimentos,
alterações na sua obra e contava principalmente com isso durante o processo de criação.
Pode-se, então, pensar que, antes da técnica da gravação, o processo de criação da
música era inacessível para um público “leigo” ou “não especializado”.
(...) l‟écriture musicale se sert d‟un système de notation qui est
historiquement et culturellement déterminé et maîtrisé seulement par lês
spécialistes. (...) l´écriture musicale ne “résonne” pas pour tout le monde.
(GRÉSILLON, 2008, p. 46)12
11
Como refazer/reconstruir o trabalho do maestro, do instrumentista, do cantor, do acompanhante, se não
temos acesso às partituras anotadas pelo executante, diários mantidos pelo interprete? Os documentos que
testemunham o ato da performance musical e que permitem reconstruir o caminho que vai da composição
à execução são extremamente raros e de difícil acesso.
12
(...) a escritura musical se serve de um sistema de notação que é historicamente e culturalmente
determinado e dominado somente pelos especialistas. (...) a escritura musical não “ressoa” para todo
mundo.
O processo de criação da música ficava registrado numa “obra” de natureza
diversa da sonora, que é essencialmente a da música. Se na pintura, os registros de
processo são, não só, mas também, visuais, gráficos, pictóricos como a obra em si assim como na fotografia ou na escultura, entre outros, na música, eles eram apenas os
de uma materialidade distinta daquela da obra.
Devido à natureza temporal diferenciada entre partitura/ realização sonora da
mesma, fica evidente que a primeira não poderá jamais, por mais precisa que
seja, existir tal como em sua realização sonora no fluxo da realidade temporal
vivida. (TRAGTENBERG, 1997, p. 11)
(...) A partitura não é fiel nem infiel à música, pois não se constitui em uma
cópia da música e sim, em outro tipo de realidade (temporal).
(TRAGTENBERG, 1997, p. 12)
Com o surgimento da técnica de gravação, isso se modifica e podemos falar de
uma verdadeira revolução no processo criativo da música que levou ao aparecimento e
desenvolvimento da indústria fonográfica e, consequentemente, ao da música pop. Para
Tragtenberg, com o desenvolvimento da música eletrônica e da gravação, “ao fixar a
música na fita magnética, o compositor fixa o tempo na mesma” e registro e obra
passam a se confundir. “(...) A música será ouvida sempre daquela forma, pois, como
vimos, a obra é a fita.” (1997: 16)
Já Almuth Grésillon afirma que,
tout change avec la musique contemporaine, où non seulement les repères
anciens ont disparu, mais où la production életronique s‟est ajoutée a la
production “naturelle” des sons. (GRÉSILLON, 2008, p. 47)13
Ao mesmo tempo, o aparecimento de novas tecnologias, aprimorando e
facilitando a gravação, e, ao mesmo tempo, a sua reprodução, cópia e distribuição,
gerando o fenômeno dos produtos “piratas”, é muitas vezes creditado como o grande
responsável pela crise da indústria fonográfica.
A música pop, produto da indústria fonográfica, tem, assim, a sua história
traçada a partir do surgimento do registro eletrônico da música, que permitiu a sua
reprodução técnica e a sua comercialização.
Grésillon não acredita que se possa realizar uma “crítica genética musical”
apropriada para a música contemporânea: “Je nes peux pas exposer ici comment
13
(...) tudo muda com a música contemporânea, onde não somente os marcos antigos desapareceram,
mas onde a produção eletrônica se incorporou à produção “natural” dos sons.
pourrait se consevoir dans ces nouvelle condition de production une génétique musicale
appropriée.” (GRÉSILLON, 2008, p. 47) 14
Contudo, sobre o questionamento da pesquisadora francesa, em relação ao
processo criativo da música, a gravação sonora não só expandiu os tipos de registro
como se tornou a principal forma deles, já que proporciona um registro da mesma
materialidade da obra musical. Os estudos genéticos sobre a música se expandem da
mesma forma.
2.3 - Expansões
Se a técnica da gravação proporcionou a expansão dos registros de processo para
a música, ela expandiu também a própria memória do processo criativo musical e a
possibilidade de recuperar percepções do artista ao longo do processo e mesmo no
futuro, depois da obra entregue ao público. Tornaram-se comuns na indústria
fonográfica obras musicais onde gravações antigas são recuperadas e mixadas com
gravações atuais. Artistas que já morreram “gravam com” artistas ainda vivos.
Em 1995, quando os Beatles lançaram a coletânea The Beatles Anthology, foram
incluídas duas músicas inéditas – “Free as a bird” e “Real Love”, produzidas a partir de
gravações antigas engavetadas. Utilizou-se o registro vocal de John Lennon e foram
acrescentadas as vozes e os instrumentos dos outros integrantes da banda, Ringo Starr,
George Harrison e Paul McCartney, gravados na mesma época do lançamento do
“novo” trabalho do grupo.
No campo da música pop, é através do registro eletrônico que se dá o principal
momento do processo de criação – considerando o papel da indústria fonográfica e seus
fins: o da gravação. As chamadas gravações demo, assim como as caseiras, tornaram-se
meios primordiais no trabalho do músico, que as utiliza como um recurso criativo. As
demos funcionam como um esboço, um rascunho da música e é usada como base para a
versão final (referindo-nos àquela que será distribuída, comercializada). Servem
também para o artista “congelar” um bom momento do seu processo criativo,
permitindo que ele as recupere e as aproveite numa nova produção, como ocorre no
processo de criação de obras de outra natureza. “Os registros funcionam como uma
memória sensível de possíveis bons encontros para a criação, cuja emoção é reativada
14
Não posso expor aqui como se poderia conceber nessa nova condição de produção uma genética
musical apropriada.
nos atos de leitura e releitura.” (SALLES, 2006, p.68)
Isso tudo nos faz refletir sobre o papel da técnica e da tecnologia no processo de
criação da música pop: papel libertador no sentido de expandir os registros e os recursos
do artista, que não tem que ser necessariamente um “alfabetizado musical”, que não
precisa do domínio da escrita e da leitura “clássica” ou “erudita” da música para compor
suas obras. Papel aprisionador em outra perspectiva, submetendo o processo de criação
da música ao domínio da produção.
Tal domínio é revelado pelo controle das gravadoras exercido sobre a maior
parte da produção musical contemporânea: salvo artistas da geração cibercultural, um
artista da música pop que quisesse dar prosseguimento ao seu projeto criativo e levá-lo
ao conhecimento do público, devia, necessariamente, gravar um disco, e um contrato
com uma gravadora era o caminho mais garantido para o sucesso. Esse controle das
gravadoras estendeu-se até o fim da década de 90, quando os computadores, a
informática e a tecnologia digital se estabeleceram como principal técnica de gravação,
reprodução e distribuição de música.
2.4 - A imagem como registro de processo de criação da música
Na história da música pop lidamos com registros de processo de naturezas
variadas graças, sobretudo, ao universo multifacetado do qual faz parte. A música pop
não se faz apenas de música, ela nasce da mistura de todas as premissas da Indústria
Cultural e se alimenta de tudo o que se consagrou como a “cultura pop”, hoje, melhor
colocando, “cultura midiática”. Dentro dessa lógica, podemos entender o processo de
criação da música pop, assim como o de todas as formas de arte, como um processo
híbrido.
O artista da música pop, inserido na dinâmica da Indústria Cultural e parte da
sua engrenagem, faz uso de recursos não-musicais ao longo do processo criativo (que
vai além da gravação de um álbum ou single) e se preocupa com diferentes formas de
registro de seu trabalho. Estamos falando de registros que ultrapassam a preocupação
com o processo criativo em si, mas que conversam diretamente com ele: registros
fotográficos, em vídeo e, mais recentemente, em dvd e outras mídias digitais.
Os dois últimos dizem respeito ao registro do processo criativo feito por
gravação de filmadora, vídeo VHS ou digital e têm a ver com a importância que as
imagens adquiriram para o universo da música pop. Quando a mídia assume o papel de
difusora de informação, cultura e arte (as da Indústria), ver o artista, reconhecê-lo,
admirá-lo e à sua imagem, além da sua obra, passam a fazer parte do processo de
recepção da arte. A música pop se destaca, nesse contexto, pelo desenvolvimento de
uma verdadeira cultura da “imagem musical”.
Hoje, o extremo dessa cultura é flagrado na produção em série dos videoclipes,
no sem-números de canais televisivos voltados à divulgação dos mesmos (citemos aqui
o pioneirismo da MTV – Music Television) e, nas últimas décadas, na produção dos
making of, que mostram os bastidores da gravação de álbuns, apresentações ao vivo,
entre outros. Nos estudos em processo de criação, os making of, para além dos
interesses comerciais com os quais a maioria deles é produzida, funcionam como mais
um registro de processo. Eles podem revelar o artista em ação, flagrá-lo no momento da
criação e testemunhar os vários processos dentro do processo: colaborações,
composições de letras, arranjos, ensaio, produção, gravações, divulgação etc.
No caso da música pop, ele pode revelar, também, a dinâmica da Indústria
Cultural e como o artista lida com os limites por ela impostos – limites que podem
representar barreiras criativas ou servir de estímulo, quando se tenta buscar novas
soluções para driblar as mazelas da indústria.
Num documentário intitulado “Strong Enough to Break”, lançado no formato de
podcast e disponível para download na internet no site YouTube, a banda pop norteamericana Hanson é flagrada durante o processo de produção do seu terceiro álbum
com uma gravadora. O “filme”, além de registrar o processo criativo dos músicos,
mostra como o grupo decidiu romper com a gravadora e assumir o controle da produção
de seus álbuns.
É claro que não se perde de vista que o documentário é uma construção sígnica e
que o processo criativo ao qual testemunhamos nunca será a realidade deste processo, a
sua totalidade. Testemunhamos, sim, um ponto de vista, um olhar, do próprio artista ou
do diretor do filme (making of, documentário etc.) sobre ele. Mostra-se aquilo que se
quer ou se deixa mostrar, e não aquilo que é, e faz parte da construção simbólica do que
se pretende que uma obra ou um projeto artístico seja para o público, principalmente.
A música pop está repleta dessas construções simbólicas e, com maior ou menor
consciência (ou domínio) e complexidade dessa manipulação sígnica da obra e de sua
imagem pública (e midiática), os artistas pop vão se utilizar de recursos em prol de seu
projeto criativo, seja para vendê-lo, seja para perpetuá-lo. O “Vocabulário de Música
Pop”, de Roy Shuker, inclui o termo “documentários de rock” e explica que esses
documentários “mostram festivais, concertos, turnês e cenas. Esses filmes consolidaram
o status mítico de eventos como Woodstock, cujo filme de 1970 foi um grande sucesso
de bilheteria.” Shuker cita algumas produções das décadas de 70, 80 e 90, que
“capturam momentos particulares da „história do rock‟, atestando certos artistas e estilos
musicais”, documentários que “foram importantes para expor cenas e sons específicos
para um público mais amplo”, como a cena punk/ hardcore e a cena grunge de Seattle
(EUA), e que “confirmam estilos musicais específicos e momentos da história da
música popular como algo digno de atenção.” (SHUKER, 1999, p. 64)
Uma das maiores referências da música pop, os Beatles são exemplo de controle
criativo e consciência de processo, na medida em que identificamos ao longo da carreira
do grupo toda uma construção simbólica que envolveu os artistas e seu trabalho. A
cultura da imagem, a qual a música pop estará sempre atrelada e da qual o grupo inglês
soube se alimentar, à sua obra e ao seu processo criativo, perpetuou-os como artistas e
ícones da cultura pop.
Em 1970, pouco antes de se separarem, lançaram o documentário Let it Be, que
registra o processo de criação do álbum homônimo e preserva a “aura” em torno dos
Beatles, mostrando Ringo Starr, John Lennon, Paul McCartney e George Harrison
trabalhando nas faixas para o penúltimo álbum da banda. Testemunhamos
principalmente a interação dos quatro e deles com produtores e outros artistas
convidados, destacando o processo colaborativo na criação da música pop, mas a edição
do diretor do documentário (Michael Lindsay-Hogg) deixa de fora, sem dúvida, muitos
outros aspectos do processo que escapam à montagem fílmica.
Ainda assim, revelar um pouco que seja do processo criativo de um de seus
álbuns na forma de um filme documentário é sintomático da consciência de processo
que os Beatles tinham e toma relevância na medida em que preconiza o uso do
audiovisual como forma de registro de processo de criação da música pop.
A recente morte do cantor norteamericano Michael Jackson, em 2009, leva a
questão ao extremo. O artista faleceu em meio ao processo de criação do que seria sua
última turnê mundial, uma série de apresentações ao vivo, superproduzidas, envolvendo
centenas de profissionais, que marcaria ao mesmo tempo sua volta e sua despedida dos
palcos, e pretendia ser uma “virada” na carreira conturbada de Jackson, acompanhada
desde o início pela mídia. O cantor faleceu às vésperas da estreia e sua morte causou
comoção internacional. Poucos meses depois, chega às telas do cinema o filme “This is
it” (ORTEGA, 2009), documentário sobre o processo de produção do show de Michael
Jackson que nunca virá a acontecer. São mostradas cenas de bastidores dos ensaios e o
foco é o trabalho coletivo do artista e de seus músicos, dançarinos e produtores. Assim
foi dada uma conclusão para a última obra de Michael Jackson, o registro do processo
de criação em forma de filme documentário tornando-se a própria obra.
E a obra, independentemente da forma de registro, sobrevive ao artista, mas o
registro do processo de criação em imagens de vídeo, seja em película, em VHS ou
mídia digital, imortaliza o artista, o sujeito criador e seu tempo, sem os quais a obra não
existiria.
2.5 – Documentário de processo e making of
Antes dos making ofs se tornarem mais uma plataforma de divulgação do
trabalho dos artistas da música pop, a abordagem “de bastidores” já era explorada no
cinema pelo gênero documentário, formato experimentado por alguns artistas nas
décadas de 1960, como os Rolling Stones e os Beatles (em Let it Be, objeto de análise
desta pesquisa), estabelecendo uma relação de “filiação” do making of com o
documentário. Busquemos, então, uma definição – com todos os seus problemas – de
documentário para reforçarmos sua relação com o making of.
Segundo Silvio Da-Rin, o escocês John Grierson “foi o idealizador e principal
organizador do movimento do filme documentário, que se desenvolveu na Inglaterra a
partir de 1927.” (DA-RIN, 2008, p. 55) Suas ideias foram fundamentais no
estabelecimento de uma “estética do documentário clássico”, mas o próprio Grierson
manifesta o incômodo com o termo que ele mesmo usou numa crítica sua da obra
“Nanook of the North”, do norteamericano Robert Flaherty, considerado a obra
inaugural do movimento do cinema documentário.
Para Grierson, o documentário deveria “fotografar a cena viva e a história viva”
eo
ator original (ou nativo), e a cena original (ou natural) são os melhores guias
para uma interpretação cinematográfica do mundo moderno. (...) Eles lhe
proporcionam uma capacidade de interpretação sobre eventos no mundo real
mais complexos e surpreendentes do que a imaginação do estúdio pode
evocar ou o perito do estúdio recriar. (GRIERSON Apud DA-RIN, 2008, p.
73)
O mundo natural, a vida natural, espontânea, o “real”, seriam, então, a matéria
do documentário. Desde o princípio, entretanto, a ideia de “real” vem carregada de um
sentido filosófico. Grierson já falava de interpretação e montagem no documentário.
“Você fotografa a vida natural, mas também, pela justaposição do detalhe, a interpreta.”
(GRIERSON Apud. DA-RIN, 2008, p.73) Ele considerava a “observação participante”
uma “premissa básica” do método do documentário e
um cinema que tivesse por matéria prima as imagens naturais registradas pela
lente da câmera disporia de condições privilegiadas para, através da
montagem, desenvolver processos de generalização e simbolização capazes
de interpretar as forças dominantes da realidade. (DA-RIN, 2008, p.74)
Ao filmarem o artista no momento da criação – composição, gravação, produção
ou ensaio de determinada obra – uma canção, um álbum, entre outros - os
documentários de processos de criação musical captam a espontaneidade do artista em
ação e constituem registros e documentos de processos no formato audiovisual,
possibilitando a interpretação, graças “à generalização e teorização” da realidade destes
processos, ali, parcialmente revelados.
Cecília Almeida Salles sublinha a diferença entre documentário sobre e de
processo: o primeiro pode ser a contextualização de determinado aspecto do processo de
criação de uma obra, enquanto o segundo é resultado do acompanhamento do processo.
(SALLES, 2009) Independentemente dessa diferenciação, ambos são fonte de
informação sobre processos, tanto para o público não especializado, como para a crítica.
2.5.1 - Making of: o formato visto como documentário de processo
Na discussão sobre a imagem como registro de processo de criação musical, os
making ofs destacam-se hoje pela popularidade e pelo grande número de produções, na
maior parte das vezes para lançamento como material extra de DVDs de artistas da
música pop e para a tevê. Os making ofs mostram cenas de bastidores da produção de
um álbum, ou de um show, trechos de ensaios e gravação em estúdio e,
tradicionalmente, podem trazer comentários do artista, de produtores e colaboradores
envolvidos no processo.
O making of é um registro audiovisual do “fazer de” uma obra artística, da
produção de uma obra determinada, e se aproxima da ideia clássica, consagrada,
principalmente entre o público, de documentário – ideia bastante discutida entre os
estudiosos do gênero - e pretende, na filmagem ou gravação, captar e revelar os eventos
na sua naturalidade e realidade, ou seja, sem recorrer à encenação e à ficção para contar
uma história. No caso do making of, a história de uma obra.
Cecília Almeida Salles relaciona o making of com o documentário quando traz a
discussão dos materiais bônus de DVDs de filmes para a reflexão sobre registros de
processos de criação.
Para discutir os making ofs é importante dialogar com a bibliografia sobre
documentários. Embora não apareça de modo explícito, nos livros que tratam
de documentários, vejo como uma porta de entrada para a discussão deste
bônus tão comum, em sua condição, a meu ver, de documentário do processo
de criação do filme. (SALLES, 2009)
As semelhanças dos making ofs com o gênero documentário passam por aqueles
princípios básicos de John Grierson. A atitude da câmera na captação das imagens de
bastidores de um processo de produção de um filme, uma peça de teatro, de um show ou
de um álbum de música, é aquela estabelecida pela escola do documentário de Grierson,
no cinema. E a atitude do público diante do making of pode ser comparada àquela diante
do documentário, ou seja, o making of é assistido como um documentário, aceitando-o
como um registro do “real”, mas passível de interpretação. Os making ofs, mesmo
quando feitos apenas como material de promoção e divulgação, podem ser entendidos,
portanto, como documentários de processos de criação.
Mas o “problema” do documentário como registro de processo de criação
artístico não se resolve e volta a aparecer na já clássica dificuldade em definir o gênero.
Em “Espelho Partido”, Silvio Da-Rin parte desta discussão para construir uma trajetória
crítica do documentário e diz que “o documentário se enquadra perfeitamente em um
„dos grandes regimes cinematográficos‟ a que se referiu Christian Metz. Regimes que
correspondem às principais fórmulas do cinema, cujas fronteiras são fluidas e incertas”.
Da-Rin concorda também com uma análise fora de uma perspectiva totalizante e cita
Bill Nichols, que procura “reconhecer em que medida nosso objeto de estudo é
construído e reconstruído por uma diversidade de agentes discursivos e comunidades
interpretativas”.
Da-rin faz um percurso crítico pela tradição e pelas principais escolas do
documentário, através do qual, como escreve João Moreira Salles, no prefácio de
Espelho Partido, o autor “sublinha: „não existe método ou técnica que possa garantir um
acesso privilegiado ao real‟” e, ao mesmo tempo, afirma, com “veemência que nenhuma
imagem está fadada a falar apenas de si.” (MOREIRA SALLES apud. DA-RIN, 2008,
p. 11)
É com essa postura que partiremos para o estudo de caso, o documentário Let it
Be, da banda de rock britânica The Beatles. O filme é analisado nesta pesquisa como um
documento do processo de criação coletiva dos Beatles, reconhecendo tanto os limites e
a parcialidade impostos pela edição e montagem do filme, determinadas, entre outros,
pelo olhar do diretor do documentário, quanto sua capacidade detonadora da rede
criativa do grupo.
3 – O caso Let it Be: o documentário como registro de processo de
criação musical
Em 1969, a já consagrada banda de rock britânica The Beatles reuniu-se para a
realização do último projeto do grupo antes da separação, o décimo segundo álbum, Let
it Be. São muitas as particularidades do projeto, que se estendeu pelo mês de janeiro de
1969 e só se concluiu um ano depois, com o lançamento do álbum e do documentário
Let it Be, no Reino Unido, em 8 de maio de 1970. Durante um mês, os Beatles se
reuniram no Twickenham Film Studios e no estúdio no sótão da sede da Apple, selo da
banda, em Londres, para tocar e ensaiar novas músicas para uma série de apresentações
ao vivo, depois de cerca de dois anos afastados dos palcos. A ideia dos shows foi
abandonada, mas a banda continuou as sessões de ensaios, agora com a intenção de
gravar um álbum “ao vivo”, inicialmente batizado de Get Back, sem os efeitos de
produção em estúdio que caracterizaram os trabalhos anteriores do grupo.
As gravações de janeiro de 1969 permaneceram sem lançamento até o ano
seguinte. No verão do mesmo ano, os Beatles voltaram para os estúdios da EMI, “seu
lar criativo” (encarte do álbum Let it Be, relançado em setembro de 2009), para a
gravação de Abbey Road, lançado no mês de setembro de 1969, e a banda “foi ouvida
numa produção primorosa – resultado da costumeira gravação meticulosa em faixas
múltiplas (multi-track) com o produtor George Martin.”. (Let it Be, 2009) O projeto
anterior, inacabado, trazia uma abordagem oposta, bem diferente, as músicas tendo sido
gravadas sem efeitos de estúdio ou overdubbing de vozes e instrumentos. (Let it Be,
2009)
With each successive album, the music of The Beatles had progressed in
tandem with advances in recording technology – developments that were
often made as a result of the constant quest for new sounds and more
complex arrangements by the group and their producer George Martin. But in
January, 1969, The Beatles decided to return to basics both in their musical
approach and how they worked in the studio. Their intention was to make a
record as simply as when they first began at Abbey Road – performing live
and captured directly on tape with little change to the sound coming from the
studio.15 (Let it Be, 2009)
15
A cada álbum, a música dos Beatles havia progredido simultaneamente aos avanços na tecnologia de
gravação – desenvolvimentos feitos sempre como resultado direto da busca constante por novas
sonoridades e arranjos mais complexos pelo grupo e seu produtor George Martin. Mas em janeiro de
1969, os Beatles decidiram voltar às origens na sua abordagem musical e em como trabalhavam em
estúdio. A intenção era fazer um álbum tão simples como quando começaram em Abbey Road – tocando
ao vivo e captando diretamente em fita (on tape) com pouca mudança no som vindo do estúdio.
O projeto que começou em janeiro de 1969 e só teve um fechamento um ano
depois inclui a produção do documentário Let it Be. Durante os ensaios e sessões
daquele mês, a banda foi acompanhada por uma equipe de filmagem que registrou todo
o processo do que veio a ser a última produção para os cinemas com o quarteto. O
documentário, a princípio filmado para exibição na tevê, foi lançado em maio de 1970,
depois da separação da banda, junto com o álbum Let it Be.
Quarenta anos depois, a presente pesquisa sobre o processo de criação da música
pop, o termo se referindo à música criada no ceio da indústria cultural, toma o
documentário como um registro de processo criativo dos Beatles e procura analisar os
principais aspectos que caracterizaram o projeto na perspectiva da crítica de processos.
Antes de partir para a identificação dos nós que costuram essa rede complexa
característica da produção artística na dinâmica da Indústria Cultural, é preciso buscar o
contexto no qual o projeto Let it Be está inserido. A análise do documentário não deve
considerar o filme como um objeto autônomo, isolado da história do grupo e do
momento que seus integrantes viviam como artistas, individualmente e, em especial,
coletivamente. Ao tomá-lo como índice do processo de criação do álbum homônimo,
passamos a entendê-lo como um registro do trabalho coletivo que caracteriza o processo
de criação musical dos Beatles e podemos identificar modos de ação e procedimentos
comuns no campo da música pop, que integram um grande número de pessoas - artistas,
produtores, colaboradores, críticos e público – e atravessa momentos distintos, mas que
se confundem.
Let it Be ganha ainda mais sentido como registro de processo criativo ao analisálo como parte da rede que compõe a imagem musical da banda. Em linhas gerais, da
imagem de ídolos adolescentes em “A Hard Day's Night”, por exemplo, passando por
ícones da cultura pop, como em “Yellow Submarine”, e da contracultura, com suas
entrevistas e declarações polêmicas na mídia e seu envolvimento com as drogas, com a
filosofia budista e meditativa e os movimentos antiguerra, ao chegar à desconstrução de
tudo isso com um documentário que os perpetuasse como artistas, simplesmente.
3.1 - Let it Be e a efervescência cultural
Escolher o documentário como forma de registro de seu processo criativo
relaciona-se com a cultura da imagem e com a absorção da linguagem audiovisual pelo
trabalho dos Beatles, que, desde o princípio, acompanharam o desenvolvimento do
projeto poético do grupo. Entende-se por projeto poético aquilo que guia o trabalho do
artista como um todo, que direciona a busca do artista através da realização de suas
obras.
Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma
obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo.
(...) São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal,
singular e único. (SALLES, 2004, p. 37)
O grande projeto vai se mostrando, desse modo, como princípios éticos e
estéticos, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais
que norteiam o momento singular que cada obra representa. Trata-se da teoria
que se manifesta no 'conteúdo' das ações do artista: em suas escolhas,
seleções e combinações. Cada obra representa uma possível concretização de
seu grande projeto. (SALLES, 2004, p. 39)
Na busca pela concretização de seu projeto poético, os Beatles, mesmo tendo
sempre como cerne a música, incorporaram outras linguagens no decorrer dos seus
processos de criação. Essa incorporação de diversas linguagens é característica de todo
processo de criação artística e tem muito a ver com a ideia de “efervescência cultural”,
de Edgar Morin.
O período em que o grupo The Beatles se formou, a década de 1960, instituiu-se
como um período de intensas mudanças na sociedade, mudanças políticas e também
econômicas e sociais. O capitalismo consolidara-se no ocidente, o homem chegava à
lua, havia enorme tensão política, os Estados Unidos surgiam como potência mundial e
a comunicação de massa chegava ao auge com a televisão e a transmissão via satélite. A
Europa surgia como centro de movimentos sociais, artísticos e culturais - pop art,
cinema, movimento estudantil - e influenciava toda uma geração jovem e
revolucionária. Neste contexto, os meios de comunicação exerceram papel fundamental
favorecendo o comércio de informação e, consequentemente, a troca de ideias.
Havia, naquele período, as três condições, segundo Edgar Morin, favoráveis à
quebra do que chama de “imprinting” e normalização: “a existência de vida cultural e
intelectual dialógica”, quando há comércio cultural, intercâmbio cultural e a sociedade é
complexa/ policultural; “o 'calor' cultural”, que provoca agitação, abrandamento da
rigidez e favorece encontros e multiplicidade de trocas; e a “possibilidade de expressão
de desvios”. (MORIN, 1998, p. 39)
Morin afirma que “essas condições aparecem nas sociedades que permitem o
encontro, a comunicação e o debate de ideias” (MORIN, 1998, p. 38). Ainda de acordo
com a ideia de efervescências culturais de Edgar Morin, a possibilidade de expressão de
desvios pode levar a “rupturas, brechas e transformações no determinismo cultural”.
Assim, as “efervescências culturais” são favoráveis “ao mesmo tempo: a) à autonomia
relativa dos espíritos, b) à emergência de conhecimentos e ideias novas, c) ao
desenvolvimento das críticas recíprocas.” (MORIN, 1998, p. 45)
Os Beatles são fruto da sociedade pós Segunda Guerra, que vislumbrava um
desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes e que apostava na liberdade
total do indivíduo. O policulturalismo, a complexidade, crescentes, favoreciam o
“encontro de ideias antagônicas” que “pode estimular, entre indivíduos ou grupos,
interrogações, insatisfações, dúvidas, reticências, busca” (MORIN, 1998, p. 40). A
efervescência cultural da época favorecia ainda uma “desconexão relativa quanto ao
imprinting”. “A desconexão relativa quanto ao imprinting abre a possibilidade de
invenção, de criação, de onde surgem novas visões/ ideias da cultura, da sociedade, do
real, do mundo.” (MORIN, 1998, p. 49)
Pode-se entender, então, como a efervescência cultural dos anos 60 fomentou o
aparecimento de artistas engajados no experimentalismo e preocupados em investir e
incorporar diferentes formas de expressão à sua arte. A mídia aparece nesse cenário
como uma poderosa aliada, oferecendo inúmeras possibilidades tanto de modos de
criação, como meio de divulgação. Let it Be se coloca, neste contexto, entre o
experimental e o comercial, entre o intelectual e o popular, entre a contracultura e a
cultura de massa.
A concepção de Vincent Colapietro sobre criatividade aproxima-se desta
discussão sobre a efervescência cultural feita por Morin e reforça a importância de se
entender o contexto do qual fazem parte os Beatles e o documentário Let it Be.
Colapietro coloca o sujeito criativo como um sujeito histórico, localizado e não isolado.
The subject is a constituted and situated being. The subject is constituted by
its engagements, entanglements, and conflicts; s/he is situated spatially,
temporally, historically, and possibly in other respects. The consciousness,
ingenuity, creativity, and other traits we attribute to creative agents are
always functions of their cultural constitution and historical situatedness. In
brief, subjectivity must be historicized. 16 (COLAPIETRO, 2003)
16
O sujeito é um ser constituído e situado. O sujeito é constituído por seus envolvimentos, complicações/
comprometimentos e conflitos; ela/ele é situado espacialmente, temporalmente, historicamente e
possivelmente em outros aspectos. A consciência, engenhosidade, criatividade e outras qualidades que
atribuímos a agentes criativos são sempre resultados de sua constituição cultural e situalização histórica.
Em poucas palavras, subjetividade deve ser historicizada.
3.2 - O projeto segundo os Beatles
A história de Let it Be começa como um projeto idealizado por Paul McCartney
e intitulado “Get back”. A ideia original seria de a banda fazer uma performance pública
a ser transmitida ao vivo ou gravada pela tevê, mas como houve divergência, o grupo
começou a ensaiar novas músicas sem ter certeza do projeto. O diretor Michael
Lindsay-Hogg, que havia trabalhado com os Beatles no vídeo de “Paperback writer”, foi
chamado para dirigir as filmagens dos ensaios que começaram no Twickenham Film
Studios e terminaram no telhado dos estúdios da gravadora Apple e, depois do processo
conturbado, o documentário Let it Be, que pretende ser o registro em filme do processo
de criação dos Beatles, foi lançado nos cinemas em 1970, coincidindo com o
lançamento do álbum homônimo.
O objetivo inicial de McCartney era reunir e reavivar o quarteto formado, além
dele, por George Harrison, John Lennon e Ringo Starr, mas a iniciativa de documentar a
banda ensaiando e gravando acabou expondo como se dava o processo de criação
coletiva nos últimos momentos de existência dos Beatles.
Let it Be é comumente tomado como um documentário do final da banda e a
relação entre os quatro integrantes do grupo ganha destaque num universo de
especulação típica da imprensa da boataria. As histórias sobre os desentendimentos
entre Harrison, McCartney, Lennon e Starr na época da produção do documentário
sobrepuseram o processo criativo ali exposto, de certa forma porque o filme foi uma
produção voltada ao público dos Beatles, que muito se interessa, dada a natureza da
indústria cultural, por esse tipo de informação. A leitura e crítica do documentário
sempre foram envoltas pelo “mal-estar” causado pelo fim da banda, muito em função do
tom sensacionalista e da boataria típicos da cobertura da imprensa, que exerceu papel
preponderante na construção da imagem dos Beatles e se alimentou das histórias do
quarteto.
Importante destacar que Let it Be não é um documentário sobre o processo, e
sim um documentário do processo. É um registro em filme que resultou do
acompanhamento de parte do processo de criação de um álbum dos Beatles. Portanto,
não há depoimentos e comentários da banda durante o documentário, nem legendas
indicativas com nomes de pessoas e lugares, e qualquer conclusão a respeito daquele
trabalho passa a ser construída a partir da observação das imagens ali gravadas, que
acionam uma rede de significações tanto sobre aquele processo, quanto sobre a obra, no
caso, o álbum Let it Be, de 1970, e Let it Be... Naked, de 2003, além de algumas músicas
que acabaram sendo lançadas no álbum Abbey Road, de 1969. Esta rede é tecida por
uma série de informações que são dadas pelo documentário e confrontadas com o
repertório de informações externas ao filme – notícias na imprensa e o repertório
individual de quem lhe assiste.
É também relevante comentar que o álbum Let it Be, uma das obras resultantes
daquele processo, é frequentemente lembrado como um dos trabalhos mais fracos do
grupo. O álbum foi revisitado inúmeras vezes pela crítica especializada (na mídia) e os
próprios Beatles, em entrevistas posteriores, se manifestaram insatisfeitos com o
resultado. Recentemente, Paul McCartney e Ringo Starr, os integrantes ainda vivos do
grupo, lançaram Let it Be... Naked. Sob a supervisão de outros produtores, os Beatles
lançaram o que eles acreditam ser o que queriam ter feito na época.
Na análise aqui proposta, o documentário será tomado a partir do que os artistas
disseram buscar com o projeto e, assim, procurar restabelecê-lo, ou relê-lo pela
perspectiva da crítica de processos. Ou seja, como um registro de processo criativo.
George Harrison diz acreditar que a ideia original foi de Paul. “Acho que a ideia
original foi a do Paul de ensaiar algumas músicas novas e então escolheríamos uma
locação/ um lugar e gravaríamos o álbum das músicas num conceito suposto, algo
como, 'atualmente eles fazem acústico', exceto, você sabe, não era tão acústico, era fazer
um álbum ao vivo.” (HARRISON, 2009, em Let it Be) Segundo Paul McCartney, “todo
o projeto 'Let it Be' era realmente o de ver work in progress, ver os Beatles
trabalhando.” (MCCARTNEY, 2009, em Let it Be)
A diferença de perspectiva, mesmo que sutil, entre a concepção do projeto, pode
ser reveladora de um primeiro aspecto que caracterizou aquele processo de criação: a
fala de Harrison revela a preocupação com o resultado, com uma sonoridade específica
das músicas e do álbum, ou seja, havia uma possibilidade de obra determinada –
músicas que soassem „acústicas‟ e fazer um álbum “ao vivo”. Já McCartney, revela a
preocupação específica com o processo, o “work in progress”, e, mais importante, a
intencionalidade de mostrar isso ao público. Juntas, as falas dos dois integrantes do
grupo revelam consciência sobre o projeto poético – sobre o álbum, sobre o processo e
sobre o registro do processo. Tais reflexões foram publicadas anos depois do
lançamento do documentário nos cinemas e, se por um lado podem ter sido
retrabalhadas pelos olhares retrospectivos dos sujeitos criativos, distanciados do
processo pelo tempo, ainda são reveladoras da intenção do grupo naquele momento.
Em 1969, início das filmagens e da gravação de Let it Be, a contracultura estava
no auge e a Indústria Cultural estava no centro da crítica intelectual, ao mesmo tempo
sendo o “mal” a ser combatido e a arma a ser apropriada pelo movimento. Assim, várias
tendências artísticas, carregadas de engajamento, absorvem as linguagens da mídia de
massa para promover seus projetos nas mais diversas áreas. Na música, artistas
consagrados no mercado fonográfico flertam com o cinema, em especial, o “cinemaverdade”, o documentário. Anterior a Let it Be, dos Beatles, “Sympathy for the devil”,
de 1968, do diretor francês Jean-Luc Goddard, mostra o a banda, também inglesa, The
Rolling Stones, em estúdio, trabalhando e gravando um dos maiores sucessos do grupo,
“Sympathy for the devil”, que acabou batizando o filme. Em 1969, os Rolling Stones
lançam seu oitavo álbum, intitulado, Let it Bleed, gerando especulações até hoje sobre a
relação com o álbum dos Beatles. As questões sobre o formato do documentário, seu
caráter parcial de montagem e indicial, são tratadas no tópico no capítulo 2.
O documentário Let it Be faz parte de um repertório construído ao longo dos 10
anos de trabalho dos Beatles, que começou a tomar forma já em 1957, com o encontro
de John Lennon e Paul McCartney. O encontro dos dois jovens artistas, cada um com
seu repertório individual, deu início a um projeto desenvolvido com base na parceria e
colaboração. Outros dois artistas – Pete Best e Stuart Sutcliffe - tiveram passagem pelo
grupo, mas foi com a entrada de George Harrison e Ringo Starr que o projeto dos
Beatles começou a tomar forma.
Na perspectiva da crítica de processo, o documentário faz parte de toda a
história das obras que aquele processo de criação específico gerou, entre elas, o último
álbum da banda, Abbey Road, Let it Be e Let it Be... Naked, e traz a possibilidade de
reflexão sobre processos criativos na Indústria Cultural e sobre processos de criação
coletivos. Quando nos colocamos diante dos primeiros, deparamo-nos com a influência
da mídia, da opinião pública e do mercado fonográfico, e quando falamos do segundo,
entram na discussão questões como autoria, agentes criativos e produção.
O
documentário dos Beatles deixa algumas pistas sobre o processo de criação coletivo de
bandas no âmbito da música pop e talvez sejam possíveis algumas generalizações a
partir da observação da interação dos integrantes do grupo, da atuação individual e
coletiva dos músicos, da interlocução, da memória, dos critérios musicais e da relação
com outras linguagens.
3.3 - Interações
3.3.1 - Interações criativas
Let it Be pontua alguns momentos do processo de criação coletivo dos Beatles:
interações, confronto de ideias, confronto de individualidades, parcerias, colaborações,
agentes do processo, memória e tempos de criação – primeiras versões versus versão
gravada, primeiros leitores, apresentação ao público.
Começaremos o estudo do documentário pelo conceito de interação. Edgar
Morin define interações como
ações recíprocas que modificam o comportamento ou a natureza de
elementos, corpos, objetos, fenômenos em presença ou em influência. As
interações 1. supõem elementos, seres ou objetos materiais que podem se
encontrar; 2. supõem condições de encontro, quer dizer, agitação,
turbulência, fluxo contrário, etc.; 3. obedecem a determinações/ imposições
ligadas à natureza dos elementos, objetos ou seres que se encontram; 4.
tornam-se, em certas condições, interrelações (associações, ligações,
combinações, comunicações, etc.), ou seja, dão origem a fenômenos de
organização. (MORIN, 1997, p.73)
Ainda segundo Morin, para que as interações aconteçam “é preciso encontros,
para que haja encontro é preciso desordem (agitação, turbulência). (MORIN, 1997, p.
73)
Temos, portanto, em Let it Be, todas as condições favoráveis às interações,
começando pelo contexto histórico, de “efervescência cultural” (MORIN, 1997) do qual
faz parte. Os integrantes dos Beatles representam, aqui, os elementos que se encontram,
as interações surgem da proposta da produção do documentário, que, a partir do desafio
de gravar um álbum ao vivo, gera agitação desses elementos e provoca condições de
encontro. As características e o perfil artístico individuais, além da personalidade de
cada integrante da banda vão determinar como essas interações acontecem. E graças às
condições criadas para e pelo processo de criação em Let it Be, essas interações geram
determinada organização. No caso, uma organização complexa, em rede, não linear, que
abrange “a simultaneidade de ações e a ausência de hierarquia, e intenso
estabelecimento de nexos.” (SALLES, 2006, p. 27)
Os tipos de interações no processo de criação registrado em Let it Be, como em
todo processo criativo, são diversos, mas alguns se destacam: em primeiro lugar, a
interação mais óbvia e clara se dá entre os integrantes da banda, Ringo Starr, George
Harrison, Paul McCartney e John Lennon; a segunda é a interação do grupo com os
produtores e técnicos presentes nos sets de filmagem e estúdios de gravação. Há
interação com sujeitos externos ao processo, como amigos e parentes presentes nos
estúdios, do grupo com o diretor do documentário, do grupo com projetos paralelos em
andamento, do projeto Let it Be com esses outros processos e dele com o contexto
cultural da época.
Para Vincent Colapietro, “the imagination of the individual artist is not the sole
locus of creativity”. Colapietro discute a subjetividade como o “lugar da criatividade”,
mas uma subjetividade que deve ser pluralizada e localizada historicamente, resultado
de uma soma de agentes.
The palpable presence of somatic agents as well as the traces of this presence
are central to my understanding of subjectivity. Hence, whatever the
decentering of human subjectivity means, it does not mean for me the erasure
of somatic agency. (..) The sites where diverse forces might intersect and
transform each other along with the site of their intersection. Concretely
imagined, intersubjectivity turns out to be intercorporeality. The palpable
presence of somatic agents engaged in complex exchanges with one
another and all else is nothing less than the cornerstone of our existence. It
no longer makes sense to locate the source of creativity in the subject.17
(COLAPIETRO, 2003)
A interação mais relevante para o processo criativo flagrado pelo documentário e
também a mais aparente na edição final do filme é a interação dos quatro integrantes
dos Beatles. Partindo do princípio de que a música, em especial a música pop, é quase
sempre um processo coletivo, se não na criação, ao menos na execução e na gravação,
os Beatles, como banda, nunca existiriam sem interação. A começar pelo encontro, no
início da carreira dos músicos, de quatro sujeitos criativos que se reúnem para a
realização de um projeto: formar uma banda de rock, gravar álbuns e se apresentar ao
vivo. É nesse momento de encontro entre quatro indivíduos com histórias, repertórios e
percepções diferentes que a rede criativa dos Beatles começa a se estender e se
entrelaçar. A parceria de John Lennon e Paul McCartney data desta época de primeiros
17
A presença palpável de agentes somáticos, bem como os rastros de sua presença são centrais para o
meu entendimento de subjetividade. Assim, o que quer que signifique a descentralização da subjetividade
humana, isso não significa para mim o apagamento da ação somática. Os locais onde forças diversas
podem se cruzar e transformar umas as outras juntamente com o lugar de sua interseção. A presença
palpável de agentes somáticos envolvidos em trocas complexas um com o outro não é nada menos que o
cerne de nossa existência. Não faz mais sentido localizar a fonte da criatividade no sujeito.
encontros.
Em uma cena de Let it Be, McCartney, conversando com o diretor do filme
Michael Lindsay-Hogg e com outros agentes que não conseguimos identificar,
provavelmente produtores da banda, ou técnicos de gravação, comenta, achando graça,
dos primeiros anos de parceria. “Nós constumávamos matar aula, íamos para minha
casa e nós dois sentávamos e escrevíamos... 'Love me do', 'Too bad about sorrows'...
Tem muita coisa dessa época... Uma centena, apesar de nunca termos gravado porque
não eram músicas sofisticadas. (...) Sabe, nós pensávamos, 'é trabalho demais'...” (Let it
Be, 1969)
Na recente biografia “The Beatles”, há um curto depoimento de McCartney
dizendo que “em vez de procurar uma canção dentro de minha cabeça, eu podia ver
John tocando – era como se ele segurasse um espelho diante do que eu estava tocando”
(SPITZ, 2007, p.133). No mesmo trecho da biografia, afirma-se que os dois artistas, na
casa de McCartney, sentavam “arqueados frente a frente no sofá – „tocando um na cara
do outro‟, como John descreveu várias vezes. „Mantínhamos o gravador ligado a maior
parte do tempo, tocando os últimos sucessos americanos‟. (...) Eles começavam
rabiscando o título: composição original de Lennon-McCartney.” (IDEM)
Lennon, anos mais tarde, depois do fim da banda, falaria assim dessa parceria:
That ended... I don‟t know, around 1962, or something, I don‟t know. If you
give me the albums I can tell you exactly who wrote what, and which line.
We sometimes wrote together. All our best work – apart from the early days,
like „I want to hold your hand‟, we wrote together and things like that – we
wrote apart always. We always wrote separately, but we wrote together
because we enjoyed it a lot sometimes, and also because they would say,
well, you‟re going to make an album, get together and knock off a few songs,
just like a job. (WENNER, 2007, p. 41) 18
Let it Be não mostra Lennon e McCartney compondo juntos, mas a cena em que
McCartney comenta o processo de criação do grupo no início de carreira e a parceria
com Lennon, relacionada à declaração de Lennon, posterior ao filme, traz para a análise
a dificuldade de se definir parceria, colaboração e coletividade em processos de criação
artísticos. Se McCartney entende “One after 909” como uma criação em parceria, para
Lennon ela é fruto de criação individual no que se refere à letra: “The „One after 909‟,
18
Aquilo acabou... Não sei, por volta de 1962, ou qualquer coisa, não sei. Se você me der os álbuns eu
consigo te dizer exatamente quem escreveu o quê, e cada linha/ verso. Nós às vezes escrevíamos juntos.
Nossos melhores trabalhos – tirando no início, como 'I want to hold your hand', que nós escrevemos
juntos, e coisas do tipo – sempre escrevíamos separadamente. Nós sempre escrevíamos separados, mas
escrevíamos juntos porque curtíamos muitas vezes, e também porque diriam, 'bem, vocês vão fazer um
álbum, juntem-se e 'knock off' algumas músicas', exatamente como um trabalho/ emprego.
on the Let it Be LP, I wrote when I was seventeen or eighteen.”
19
(WENNER, 2007, p.
41)
Essa é uma discussão inerente e recorrente aos processos coletivos e leva a uma
reflexão sobre autoria. Cecília Salles observa que
as discussões sobre processos coletivos, como os do cinema, teatro, música,
arquitetura etc., sempre caem nessa questão da autoria de modo diferente,
envolvendo uma espécie de relação conflituosa de desejos e subjetividades.
São processos que só acontecem nessa interação de sujeitos.
(...)
No momento em que há um cruzamento de indivíduos com um projeto em
comum – a produção de uma obra – há um maior grau de complexidade. Se
tomarmos autoria sob o prisma aqui adotado, talvez possamos falar, nesses
casos, em uma maior densidade de interações, na medida em que os próprios
processos, aparentemente individuais, também se dão nas relações com os
outros. (SALLES, 2006, p. 153)
Há outro momento em que o tema parceria comparece no documentário, desta
vez, de forma clara, já que o filme flagra Harrison e Starr em pleno processo de
composição da letra e da melodia da canção “Octopus‟s Garden”. A cena começa com
um close de Ringo Starr e Harrison murmurando frases e tentando concluir uma delas.
Tudo parece uma conversa, uma especulação, até que, em pé mesmo, Starr começa um
acompanhamento ao piano e Harrison ao violão. Harrison sugere uma mudança no
acompanhamento ao piano e toca, explicando o que queria dizer a Starr. Os dois
continuam, riem da letra, enquanto dois produtores se aproximam. John Lennon chega
ao estúdio, assume a bateria e os três tocam juntos até Paul McCartney chegar e
perguntar sobre um novo instrumento.
O momento descontraído da parceria de Harrison e Starr remete ao lúdico,
comumente associado ao campo da música e também ao coletivo. Quando Lennon
afirma que compunham juntos porque gostavam, também está presente a ideia do
“lúdico”. Assim, poderíamos entender que os processos de criação coletivos acontecem,
em determinados momentos, e em particular no processo de criação dos Beatles, como
fruto de uma interação lúdica.
Lúdico é “relativo a jogos, brinquedos e divertimentos”, segundo definição do
dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1993, p.341), refere-se ao que se
pratica por divertimento e o conceito de “ludismo” foi largamente incorporado às
práticas artísticas do pós-modernismo e à educação. As atividades lúdicas estão ligadas
19
A 'One after 909', no LP do Let it be, eu escrevi quando eu tinha dezessete ou dezoito anos de idade.
também aos momentos de descanso, despertam o prazer e são contagiantes.
O “jogo” do processo de criação pode vir da interação do artista com a matéria
que manipula, dos limites que encontra nessa manipulação e que lhe impõem desafios,
ou mesmo das interações psicológicas, internas, do pensamento criativo. Quando se
estuda o processo de criação de um artista, são comuns os rascunhos, rabiscos, escritos,
enfim, os registros feitos nos momentos de busca intensa em que se pode identificar
dificuldade, resistência, preocupação na tentativa de se aproximar do seu projeto poético
e reencontrar bons momentos no percurso da criação. Muitas vezes, o processo criativo
se confunde com a tentativa de “reencontrar a felicidade” no trabalho artístico, numa
busca por satisfação daquele impulso, aquele desafio criativo “original” que leva o artista
a criar, em primeiro lugar. Essas buscas, face aos limites impostos por diversos fatores,
podem levar a momentos angustiantes, mas o artista sente-se desafiado, é impelido a
vencer os desafios como num jogo de regras impostas, seja pelas resistências da matéria
trabalhada, seja pelo mistério de onde se pode chegar.
Como mostra Cecília Salles em diversos exemplos em “Gesto Inacabado”, são
muitos os depoimentos de artistas que descrevem o fazer artístico como algo prazeroso,
excitante, que traz felicidade para o sujeito criador.
A criação pertence também ao universo lúdico: um mundo que se mostra um
jogo sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o espectador
não as conhece. Jogar é sempre estar na aventura com palavras, formas,
cores, movimentos. O artista vê-se diante das possibilidades lúdicas de sua
matéria. (SALLES, 2004, P. 85)
A música sempre esteve presente nas práticas recreativas e ligada à ideia de
diversão, prazer e, no caso específico da música pop, ao entretenimento. Não raro, o
fazer musical é comparável à atividade lúdica, especialmente quando coletivo: as rodas
de samba, as jam sessions, o jogo do repente e o do rap. Por sua vez, a atividade lúdica
pressupõe interação, seja com objetos, com a imaginação, ou com o outro. Johan
Huizinga leva essa ideia ao extremo. O estudioso fala da ligação entre o jogo e a música
como sendo de “mais alto grau” do que as outras formas de expressão poética e lembra
que “em diversas línguas se chama 'jogo' à manipulação dos instrumentos musicais”.
Huizinga diz que “enquanto na poesia as próprias palavras elevam o poema, pelo
menos em parte, do jogo puro e simples para a esfera da ideia e do juízo, a música
nunca chega a sair da esfera lúdica” (HUIZINGA, 1967, p. 178) e recorre à mitologia
grega para buscar as origens da presença do elemento lúdico na música. Fala, então, das
relações entre o ritual, a dança, a música e o jogo, referindo-se às Leis de Platão e cita o
filósofo quando fala do trabalho do artista:
Para Platão, mimesis é um termo que descreve a atitude espiritual do artista.
O imitador, mimetes, ou seja, tanto o artista criador como o executante, não
sabe se a coisa que ele imita é boa ou má. Para ele a mimesis é um simples
jogo, não trabalho sério. (...) Temos que deixar de lado um problema pouco
claro, o de saber que significa realmente esta definição um tanto depreciadora
do trabalho criativo. Para nós importa apenas que Platão entendia a
criatividade como jogo. (HUIZINGA, 1967, p. 181-182)
O entendimento do conceito de música no estudo de Huizinga pode ser
considerado conservador, tradicionalista, ou mesmo impróprio para os padrões da
música contemporânea, entretanto, devemos reconhecer a persistência do elemento
lúdico nas suas manifestações populares – vide a música pop, que cultiva fortes laços
com a ideia de divertimento, entretenimento e lazer – e no fazer artístico, quando o
trabalho criativo acontece como um jogo de embate de ideias, de busca, de desafio,
individual e, em especial, coletivo, ou quando o processo de criação musical resulta em
gozo. Ao explicar a atitude de Aristóteles diante da música, Johan Huizinga fala da
diagoguê, que teria o “significado daquelas preocupações intelectuais e estéticas
próprias do homem livre. (...) seria um fim último, uma perfeição” e conclui que “o
gozo da música aproxima-se desse fim último da ação, devido ao fato de não ser
procurado em função de um bem futuro, mas em função de si mesmo.” (HUIZINGA,
1967, p. 181)
Em Let it Be o elemento lúdico é identificado na interação lúdica entre os
sujeitos criadores durante o processo criativo. Contagiados por um momento inusitado
do processo, pelo jogo da experimentação, por uma brincadeira ou uma piada, ou
mesmo pelo cansaço, o quarteto é flagrado em momentos de gozo, prazer e
descontração em meio ao processo de criação. Numa cena dos primeiros ensaios de
“Two of us”, Lennon e McCartney dividem os vocais e usam o mesmo pedestal
enquanto tocam a música de forma despreocupada, relaxada, e riem um com a
brincadeira do outro, cantando em tons exagerados e estereotipados e sem seguir a letra
(que talvez ainda não estivesse completa). No início do que parece ser o segundo dia de
filmagens e de ensaios, Paul McCartney e Ringo Starr tocam piano, improvisadamente,
a quatro mãos. É um curto momento de brincadeira, antes do início dos ensaios.
Há uma passagem no documentário em que os músicos apenas tocam juntos a
música “Besame mucho” e, na sequência, outras canções, deles e de outros artistas, são
tocadas de improviso, sem acuidade, cada um apenas acompanhando o outro com seu
instrumento e nos vocais. As músicas são tocadas pela metade, as letras são
fragmentadas e não há muito controle na execução. O músico Billy Preston, amigo da
banda, participa da “jam session” e aparece pela primeira vez no documentário. A cena
marca a mudança das gravações do Twickhenham Film Studios para o estúdio nos
sótãos da Apple, onde foi filmada.
A artista plástica Elvira de Almeida afirma que “mesmo ao nível animal, o jogo
lúdico é mais do que um fenômeno fisiológico. É uma função significante”
(ALMEIDA, 2010, em http://www.elviradealmeida.com). Assim, as interações lúdicas
entre Harrison, Starr, Lennon e McCartney, tanto pontuavam quebras na continuidade
do processo de criação de Let it Be, como tinham o potencial de gerar ideias novas, e
vice-versa.
As parcerias de McCartney e Lennon e de Ringo Starr e Harrison expostas no
documentário podem ser definidas como interações criativas, frutos, também, da
interação intelectual e verbal e do embate entre repertórios e percepções individuais. É
nessas interações, e somente nelas, que as possibilidades de obras surgem e é dessas
mesmas interações que as músicas, enfim, compostas e gravadas pelo grupo consistem.
Let it Be é um registro dessas interações criativas já num momento de mais
maturidade artística dos Beatles, que têm um controle supostamente maior de seus
projetos do que aquele do início da carreira. Se a questão do controle pode ser
questionada, visto a inserção do grupo, ainda que num contexto de contracultura e
efervescência cultural, na dinâmica da indústria cultural, a da consciência de processo
não pode ser negada. Quando o grupo se propõe a gravar um disco “ao vivo” e a
registrar parte deste processo, fica implícita a disposição dos artistas de mudar a
natureza de algo que vinha sendo feito de forma “mecânica”. Lembrando que na década
de 60, o modo de produção musical incorporado pela indústria fonográfica, através de
técnicas de gravação que avançavam até a tecnologia digital que temos hoje, promovia
uma certa mecanização do processo de criação de um álbum, gravando a performance
de cada músico separadamente para depois mixar as faixas de cada instrumento numa
única faixa musical. Nesse processo de produção em estúdio, cada integrante da banda
atua separadamente, não interagindo necessariamente com os outros integrantes.
O “gravar ao vivo” do projeto dos Beatles pressupõe o contrário: o encontro de
todos os integrantes da banda. Voltando às origens dos processos de criação musical, o
encontro é necessário para que a música aconteça como fruto das interações de
execução dos instrumentos musicais de cada um dos sujeitos ali presentes. São as
“condições de encontro”, a “agitação, turbulência, fluxo contrário” aos quais se refere
Morin, necessários à mudança de um sistema que se encontrava já acomodado em suas
interações pré-estabelecidas pelos anos de processo de criação juntos e ao
restabelecimento de uma outra organização.
É destes encontros que se faz Let it Be, onde os momentos de interações mais
explícitos e intensos acontecem durante os ensaios de novas músicas. O “tocar junto” já
produz, por si só, interações sonoras, essas de natureza física, mas, para o observador do
processo, essas interações sonoras nascem da interação de cada um dos músicos no
momento da execução. Aí, cada movimento individual de execução do instrumento
interfere na execução do outro e no todo da música. Cada movimento gera uma nova
interação, é preciso que todos toquem seus instrumentos individualmente, mas juntos, e
essa interação depende da intenção de obra, tanto quanto a obra depende dessa
interação. Interação física, sonora, perceptiva, cognitiva e também criativa, intelectual,
psicológica e social. Física e sonora dada a natureza da música, uma arte “do tempo”;
perceptiva e cognitiva, pois envolve audição e fruição; criativa e intelectual porque é
fruto do trabalho do artista; psicológica e social, pois estabelece e envolve a interrelação
de diferentes subjetividades e sujeitos criativos e individuais.
A primeira vez em que os quatro Beatles aparecem juntos no documentário, logo
no início do filme, o grupo toca uma parte da música “Don‟t let me down” e são
estabelecidos os papéis de cada um na execução daquela faixa: Lennon na guitarra base
e no vocal, McCartney no baixo e na segunda voz, Harrison na guitarra solo, e Starr –
sem aparecer neste momento – na bateria. Cada um atua individualmente e o ensaio se
dá na soma dessas atuações individuais.
A interação – criativa e intelectual - no processo criativo registrado pelo
documentário também se dá nos comentários e observações feitos durante os ensaios,
assim como nas conversas sobre questões relativas à obra em criação e a outras questões
referentes a decisões mais gerais que dizem respeito à carreira da banda naquele
momento. Nestes momentos de conversa a interação se dá de forma verbal e é quando
são expressas opiniões, insatisfações, conclusões, ideias novas ou críticas sobre o
processo e as músicas naquele estágio da criação.
Daí as interações podem revelar pontos de tensão na relação entre os quatro
sujeitos criativos daquele processo. Um exemplo é uma das cenas mais famosas do
documentário, quando Paul McCartney e George Harrison discutem sobre a guitarra em
uma música. O que começa como uma discussão de caráter criativo acaba revelando a
tensão entre os músicos.
McCartney: Perto do microfone!
Lennon: OK!
McCartney: Sabe, porque eu não consigo te escutar...
Lennon: Não precisa ser 'cricri'...
McCartney: Os riffs... Não há riffs...
Não, mas em “You and I”...em...
Harrison (cantando): “you and I”
Harrison/ McCartney (cantando):“are memories”...
McCartney: É, mas não está junto (sincronizado)! Não está nem soando junto!
Harrison: Então podíamos continuar tocando até nós...
McCartney: Ou podíamos parar e dizer que não está sincronizado!
Harrison: Se tivéssemos isso gravado aqui agora, você jogaria isso fora na hora.
McCartney: Sim, certo, mas está complicado agora, então se pudéssemos simplificá-la e depois, então,
complicá-la, onde precisar de complicação...
Harrison: Mas não está complicada... Tocarei só os acordes se você quiser.
McCartney: Não, você sempre fica irritado. Estou tentando ajudar você, mas sempre acabo irritando
você... Harrison: Você não está me irritando, de forma alguma...
McCartney: Você sabe o que eu quero dizer.
Harrison: Porque pode demorar mais se você, sabe...
McCartney: Olhe, não estou tentando dizer isso, você está tentando parecer que quero dizer isso. Lembra
o que falamos no outro dia? Eu não estou tentando provocar você. Eu realmente estou tentando é dizer
'Olha, gente, a banda!'. Então, devemos tentar assim, sabe?
Harrison: É estranho que...
McCartney: Eu sei, é que nessa música você estava tocando a guitarra como tocou em 'Hey, Jude' e eu
não acho que.../ é que nessa música é assim, 'devíamos tocar a guitarra como em 'Hey Jude'?, e eu não
acho que devíamos. Harrison: Tudo bem! Não me importo, eu tocarei o que você quiser ou não tocarei
nada, se você não quiser que eu toque. O que for que te agrade, eu o farei.
Lennon termina a discussão sugerindo ouvir as gravações para ver o que tinham
e questiona o grupo sobre o possível resultado: “Será que é só porque não estamos a fim
ou a guitarra soa bem/ legal realmente?”, e parte para outra música, retomando o ensaio.
Considerando a parcialidade do documentário como registro de processo criativo, podese questionar se esse foi o único momento de tensão negativa entre os quatro e quanto
pode ter sido tirado da versão final do filme, com intuito de preservar a imagem dos
músicos e dos Beatles. É notável que os momentos de interação lúdica talvez tenham
sido privilegiados na montagem do filme, já que aparecem em maior frequência.
Além da conversa, a interação verbal também acontece quando um deles assume
a condução de determinado ensaio ou explica como determinada sonoridade deve ser
reproduzida. Um bom exemplo dessa condução é a cena do ensaio de “Maxwel's Silver
Hammer”, quando Paul McCartney “canta” os acordes na melodia da letra para que os
outros três acompanhem instrumentalmente: “Dois, três... B,G,B,B, Em...A7...D...E,A
(AA)...B...Am...A7...#E#D,#E#-E...”
3.3.2 - Interferências
Let it Be apresenta outros agentes no processo criativo dos Beatles. Apesar de os
quatro integrantes do grupo serem as figuras centrais do documentário, outros
personagens aparecem no filme interagindo, em maior ou menor grau, com a banda. São
técnicos que montam o set de filmagem e estúdio de gravação e os produtores da banda,
agentes silenciosos e anônimos do processo, que aparecem nos créditos do filme e do
álbum, mas que não são identificáveis para o público, com exceção do produtor George
Martin, produtor da banda desde o seu início. A interação com esses agentes é menos
óbvia nas cenas do documentário, mas a simples presença deles ali, em todo o processo,
deixa a interação subentendida. Os produtores aparecem como observadores do
processo, pouco interferindo nos ensaios.
Um dos empresários da banda, Mal Evans (Malcom Frederick Evans), que foi
guarda-costas e “road manager” antes de se tornar um dos executivos da Apple, aparece
participando do ensaio de “Maxwell's Silver Hammer”, produzindo o som do martelo,
mecanicamente, batendo a ferramenta numa barra de ferro, na música.
A presença obscura dos produtores da banda em Let it Be é representativa do
papel que esses técnicos exercem no sistema de produção da indústria fonográfica. “Ao
lado dos compositores, os produtores são frequentemente considerados as principais
forças criativas por trás dos artistas do pop (por exemplo, Stock, Aitken, Waterman,
Chinn e Chapman, Phil Spector).” (Shuker, 1999: 193)
No processo criativo da música pop eles atuam principalmente no momento da
gravação e são os responsáveis pela “identidade sonora” de determinado trabalho. Sua
relação com os artistas é comparável à relação entre o diretor e o montador de um filme.
No cinema, o montador deve estar ciente do projeto criativo do diretor, assim como o
produtor musical procura garantir a sonoridade buscada pelo artista em determinado
projeto ao gravar um álbum. A produção de uma música pode incluir ou excluir
instrumentos, vozes, efeitos, juntar as melhores partes de uma gravação e excluir as
piores, corrigir erros de execução ou afinação. Hoje, com a tecnologia digital, as
possibilidades são infinitas. Entretanto, dependendo do projeto poético de cada artista e
do contexto em que um álbum é produzido, a relação artista-produtor pressupõe um tipo
de interação.
No caso dos Beatles, apesar do reconhecimento público do trabalho de produção
de George Martin, ao produtor sempre foi guardada uma presença de bastidores. Let it
Be sustenta essa afirmação e pouco se vê da interação do grupo com Martin, que
aparece em algumas cenas. Na mais longa, Martin aparece como um primeiro leitor,
quando Harrison e Starr compõem “Octopus's Garden”. Em outra cena, Harrison
apresenta uma composição de sua autoria a Martin, com outro produtor (ou
empresário?). Martin não aparece falando ou dando qualquer tipo de opinião, mas a
interação acontece, na medida em que atua como um primeiro leitor. Importante
destacar que, se vemos Martin participando do processo de criação de Let it Be, não é
ele quem assina a produção do álbum.
Como Let it Be foca mais o registro dos ensaios, pouco espaço é dado para a
atuação dos produtores, que nesse momento anterior às gravações, apesar de algumas
terem acontecido ali, interage com o núcleo criativo como um observador e leitor da
obra em processo. No entanto, o engenheiro de som Glyn Johns, que havia trabalhado
recentemente com os Rolling Stones, é apresentado durante as sessões nos estúdios da
Apple. O trabalho de Johns nas gravações de Let it Be, segundo McCartney, estava de
acordo com o projeto “ao vivo” do álbum, mas o produtor Phil Spector foi responsável
pela re-produção de Let it Be, já depois do fim das filmagens.
Phil Spector não participou do projeto desde o início do processo e atua num
momento posterior ao registrado no documentário, por isso sua ausência no filme.
Certamente, o envolvimento do produtor com o núcleo criativo não foi o mesmo
daqueles que estiveram com a banda durante as sessões de Let it Be. Isso pode explicar
a insatisfação da banda com o álbum lançado pela gravadora.
(...) The „no overdubs‟ rule was completely disregarded when Phil Spector
„reproduced‟ the tracks featured in Let it Be. (…) Phil Spector – starting from
scrtch – completely remixed, edited and compiled Let it Be in just a week.
Known for his distinctive „Wall of Sound‟ production style, he decided to
give three of the songs orchestral overdubs. (Let it Be, 2009) 20
A entrada de Phil Spector no processo, posterior às gravações vistas no
documentário, é um exemplo da interferência que as questões de mercado exercem na
realização das obras artísticas da Indústria Cultural. O caráter de produto quase nunca é
superado. Em 1970, o novo empresário dos Beatles, o norteamericano Allan Klein,
queria algo “com mais apelo comercial” (ROLLING STONE BRASIL, setembro 2009,
p. 89) e John Lennon “entregou as fitas de janeiro de 1969 – que descreveu como 'o pior
monte de merda já gravado' – para o lendário produtor Phil Spector, que havia
trabalhado com Lennon no single 'Instant Karma'.” (IDEM)
O envolvimento de Lennon na escolha de Spector para a reprodução do álbum e
seus comentários sobre o material gravado nas sessões de Let it Be sugerem que a
fragmentação do grupo e do processo de criação coletivo dos Beatles acabou mudando o
resultado da obra e questões comerciais pesaram mais do que aquelas ligadas ao projeto
poético do núcleo criativo. Se Let it Be foi uma tentativa de reavivar o processo coletivo
da banda, quando, pouco tempo depois, o grupo se desfez, antes mesmo do lançamento
do álbum, o peso do coletivo, a força dos Beatles, o poder de decisão coletivo, não mais
existia para sustentar um projeto poético resistente às exigências do mercado
fonográfico.
No papel de observador do processo, aparece, além de George Martin, o diretor
do filme. Michael Lindsay-Hogg era amigo da banda e foi convidado por Paul
McCartney para dirigir o documentário. O momento de maior interação da banda com o
diretor é quando Lindsay-Hogg aparece perguntando a McCartney sobre uma música
tocada nos ensaios do dia anterior. A música era “One after 909”, do início da carreira
dos Beatles, e a pergunta gera uma conversa sobre o processo de criação do grupo na
época. A conversa acontece entre McCartney, Hogg e outros produtores, de difícil
identificação na imagem.
Hogg: Qual era a que estavam fazendo na outra noite?
McCartney: Teve “One after 909”.
(?): Oh, sim! Aquilo foi fantástico!
(?): Ótimo!
20
(...) A regra do 'sem overdubs' foi completamente desconsiderada quando Phil Spector 'reproduziu' as
faixas apresentadas em Let it be. (...) Phil Spector, começando do zero – remixou totalmente, editou e
copiou Let it be em apenas uma semana. Conhecido por seu distintivo estilo de produção 'Muro de Som',
ele decidiu dar a três faixas overdubs de orquestra.
McCartney: Porque eu, na verdade, nunca havia pensado nessa, primeiro, porque foi uma das primeiras
músicas que fizemos.
McCartney continua, lembrando das primeiras músicas e dos tempos em que
matavam aula para compor. A conversa se desenvolve como citada no tópico
“Interações”, deste capítulo. A interação do diretor do documentário com os sujeitos
criativos durante o processo provoca uma reflexão que talvez não viesse a acontecer
dessa maneira, numa conversa, ou mesmo nem viesse a acontecer. Essa pode ser
considerada, portanto, uma interação artificial, ou melhor, proposital, intencionada e
resultante do processo de criação do diretor do documentário em cruzamento com o
processo criativo dos Beatles.
É fundamental identificar a interação do grupo com o diretor do documentário,
pois a partir dessa identificação voltamos a uma das questões mais relevantes para o
crítico de processo: até que ponto e como um observador, que pode ser crítico ou não,
interfere num processo de criação? Em Let it Be, a interação do grupo com o diretor
acontece principalmente pela presença da câmera, como um observador, no estúdio.
Partindo do princípio de que os sujeitos criativos tinham consciência de que estavam
sendo filmados, e de que aquele material viria a público, até que ponto o processo de
criação ali testemunhado foi fruto de uma “atuação” calculada, cuidada, por parte dos
artistas? Difícil avaliar, mas se deve reconhecer que a câmera, “o olhar do diretor do
documentário”, interage com o núcleo criativo ao mesmo tempo como um agente
externo ao processo de criação musical dos Beatles, gerando interferência, e interno, ao
fazer parte do projeto de Let it Be, tendo sido “convidada” a participar do projeto como
uma ferramenta de registro.
Entre os agentes externos apresentados em Let it Be, identificamos também
pessoas das famílias de Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr.
Entre os quais, uma das filhas de McCartney, que aparece em uma cena, quando a
produção sai dos estúdios Twichenham para retomar os trabalhos na Apple. Heather
McCartney brinca no estúdio, interage com o pai e com o baterista da banda e mostra
para a câmera um desenho – provavelmente seu – colado na parede. Já a onipresença da
esposa de John Lennon, a artista plástica Yoko Ono, no documentário é um exemplo de
interação mais subjetiva e indireta. Se houve algum tipo de interação criativa da artista
plástica com o grupo, isso não foi registrado pelo documentário, ou ficou fora da edição
final do filme.
O único a interagir diretamente com Yoko Ono durante o processo é Lennon.
Ono aparece quase sempre com os quatro, assistindo aos ensaios, ao lado de Lennon.
Eventualmente, um cochicho entre os dois é flagrado. Às vezes, pode-se notar uma
reação de Yoko Ono a algo que está sendo tocado pelo grupo. Na cena em que Harrison
apresenta uma música de sua autoria, Lennon e Yoko Ono dançam valsa em tom de
brincadeira.
A participação de Ono no filme é pontual na medida em que a artista é
personagem famosa na história dos Beatles, muito se especulando sobre sua
interferência na dinâmica e até no fim da banda. Não por coincidência, o documentário,
na sua natureza híbrida de registro de processo criativo e produto de mídia, explora e
alimenta esse mito, evidenciando ou sugerindo a presença de Yoko Ono como um
“ruído silencioso”, gerando flutuações na dinâmica e na interação dos agentes criativos.
3.4 - Interlocução
Quando o processo criativo interage com outros processos, ou mesmo com
outras obras e outros artistas, estamos falando de uma interlocução criativa. Em Let it
Be, identificamos essa interlocução quando o processo de criação coletivo dos Beatles
“conversa” com outros artistas externos ao núcleo criativo, seja pela influência na
construção do repertório da banda, seja através da colaboração de artistas convidados,
ou ainda, pela relação com outras linguagens poéticas ou midiáticas.
3.4.1 – Colaboração
Um tipo de interação que aparece no registro de Let it Be é a interação do grupo
com outros artistas através da colaboração. No caso específico deste processo, a
colaboração se dá pela presença e participação do músico Billy Preston, que participa de
ensaios e toca órgão nas gravações das faixas “Let it Be” e “The long and winding
road”. Preston também toca na “jam session” citada anteriormente neste capítulo, nos
estúdios da Apple e participa da apresentação pública no telhado da gravadora. Sua
presença no processo de criação registrado pelo documentário sugere a relação da obra
dos Beatles com as obras de outros artistas contemporâneos à banda e a preocupação em
trazer para o processo agentes externos que possam gerar novas possibilidades de obra.
Essas novas possibilidades são geradas a partir da atuação de um outro sujeito
criativo e do embate deste com o núcleo criativo do processo. O artista convidado
acrescenta ao processo criativo a sua forma de pensar a obra, a sua técnica, o seu
repertório e a sua maneira individual de ler e interpretar o processo criativo do outro e o
seu projeto poético. Assim, a colaboração nasce da interação de um núcleo criativo com
outro externo a um determinado processo, mas que passa a fazer parte dele na medida
em que, através da sua participação criativa, gera novas possibilidades de obra.
A participação de Billy Preston, que aparece rindo e brincando com os
integrantes da banda, ainda que discretamente, pode ser entendida também como a
necessidade que os Beatles sentiram, naquele momento da carreira e do processo em
questão, de alterar a dinâmica criativa e a interação do quarteto, adicionando um quinto
elemento.
3.4.2 - Relação de linguagens
A relação do projeto poético dos Beatles com outras linguagens aparece em sua
obra desde muito cedo, no início da carreira com as fotografias de Astrid Kitcherr e com
a estreia no cinema em “A hard day's night”. Ao amadurecer artisticamente, o grupo
incorporou à sua música as tendências culturais de sua época e ajudou a divulgá-las e
popularizá-las. Let it Be, por si só, já explicita a relação dos Beatles com uma outra
linguagem que não a musical: a do cinema. O registro de processo no documentário
revela como a linguagem audiovisual fazia parte da carreira do grupo, tanto como meio
de divulgação, quanto como de experimentação.
Em uma passagem de Let it Be, Paul McCartney comenta com os outros três
suas impressões sobre um filme dos Beatles com o guru indiano Maharishi. Em 1968,
os Beatles juntaram-se a outras celebridades da época, como a atriz americana Mia
Farrow e o grupo americano The Beach Boys, em Rishikeshi, na Índia, para estudar e
aprender a “meditação transcendental”. As imagens da banda na escola de Maharishi
viajaram o mundo e ficaram famosas, mostrando os Beatles com o guru, vestindo
roupas indianas, andando na companhia de Maharishi, cantando mantras, enfim,
incorporando a filosofia da escola. Maharishi ficou famoso internacionalmente como “o
guru dos Beatles”, mas envolveu-se numa série de acusações de assédio sexual e
enriquecimento às custas da “meditação transcendental”. A associação do guru com os
Beatles ajudou a divulgar o trabalho de Maharishi e o período com o guru teve
influência na música da banda. O diálogo sobre as imagens do grupo com Maharishi em
Rishikeshi revela a surpresa de McCartney ao reconhecer-se e aos outros como
“personagens”.
McCartney: Ah! Assisti a um filme ontem à noite.
Lennon: O quê?
McCartney: Eu estava na casa do Mararishi. Eu tenho o filme todo. Tem uma abertura fantástica.
Lennon: A parte que tem o helicóptero?
McCartney: É. Eu notei você entrando nele... É incrível. Vocês têm que ver. “Sela” (“it seals”), fecha/
bate com (comprova?) tudo o que estamos (ou estávamos?) fazendo. Inacreditável.
Hogg: O que estão/estavam fazendo?
McCartney: Eu não sei exatamente, mas é como se, de alguma forma, nós deixássemos nossas
personalidades de lado. Não fomos/ éramos muito verdadeiros ali. Sabe, nós podíamos como que se
esconder atrás de alguém, como na escola, não é? Mas você pode ver no filme que é bem parecido com a
escola/ que é uma escola bem difícil e devíamos ter dito, como, “o que precisávamos”.
Lennon: Você devia chamar o filme “O que fizemos em nossas férias”.
McCartney: Bem, você sabe...
Lennon: Mas aposto que não vai chamá-lo assim.
McCartney: Tem uma tomada longa com você andando com o Maharishi bem distante e simplesmente
não é você, sabe? É algo... sim, do tipo, “conte-me velho mestre”. Como naquela outra noite quando você
subiu no helicóptero com ele e pensou que talvez ele te dissesse “a resposta”.
A conversa tem um tom descontraído e os músicos riem com o último
comentário. McCartney diz que o filme com Maharishi comprova, sela o que eles
estavam fazendo. Pode-se entender que a fala refere-se ao documentário Let it Be e
também ao envolvimento que o grupo teve com a escola da “Meditação Transcedental”
e a filosofia indiana e como ela refletiu no trabalho dos artistas, no caso, na escolha
específica do processo de criação flagrado no documentário, buscando uma
originalidade, autenticidade e espontaneidade perdidas. Segundo McCartney, no filme,
estavam “escondendo suas personalidades”. A conversa toda remete, além de à relação
dos Beatles com a mídia, à relação dos artistas com outras filosofias, culturas e
religiões, que influenciaram suas escolhas mais subjetivas e acabaram refletindo em
suas escolhas profissionais. Vale lembrar a forte influência das sonoridades da música
indiana e mantras que foram incorporadas à música dos Beatles. Em Let it Be, vemos o
ensaio de “Across the Universe”, na época das filmagens ainda com o título provisório
de “Nothing's gonna change”. O refrão “Jai Guru Deva”, em sânscrito, é um exemplo
dessa influência.
De volta ao uso da linguagem cinematográfica, esta parece ser para os Beatles
mais uma ferramenta de experimentação do que de estratégia de divulgação. Elas são
incorporadas ao projeto poético do grupo como parte da obra e não como publicidade,
apenas – álbuns como Yellow Submarine, The Magical Mystery Tour e o próprio Let it
Be foram criados e lançados como trilhas sonoras dos filmes respectivos. Assim, há o
cruzamento das linguagens musicais e fílmicas na realização desses trabalhos, os
processos de criação musical e cinematográfico convergindo numa obra única e híbrida.
O álbum Let it Be, entretanto, foi lançado a partir do documentário, com músicas que
aparecem no processo registrado pelo filme, ensaiadas e gravadas no processo flagrado
por aquele registro, mas não foi criado como trilha.
A experiência com linguagens diferentes da musical nos processos de criação
dos Beatles surge, talvez, como uma alternativa de apresentação de um projeto poético,
numa espécie do que se chama hoje de “transmídia”. Sem entrar na conceituação e, por
isso mesmo, sem nos aprofundar no embate entre fins criativos e fins comerciais da
prática, simplificadamente, a transmídia seria uma proposta de apresentação de um
mesmo produto artístico-cultural em diferentes plataformas midiáticas que se
interrelacionam e dão continuidade a uma obra lançada num formato específico. Uma
obra determinada dá origem a outros produtos e versões em diversos formatos, gerando
e oferecendo para o público grande volume de informação sobre ela: uma série de tevê
que gera uma história em quadrinhos, que vira filme, que dá origem a um videogame e
assim por diante.
Trazendo a ideia para a obra dos Beatles, o grupo nunca se limitou aos shows e
álbuns na apresentação de seus trabalhos para o público. Músicas eram transformadas
em video, álbuns davam origem a filmes e vice-versa, especiais de tevê etc. Hoje, o
acervo de produtos no mercado cultural com a “marca” Beatles não para de expandir.
Em 9 de setembro de 2009, foi lançado o aguardado The Beatles: Rock Band, jogo de
videogame em que “versões cartunizadas” dos integrantes dos Beatles tocam através da
ação de “até seis jogadores simultâneos” que “controlam os sons de guitarra, baixo,
bateria – com joysticks plásticos que simulam os instrumentos – e vocais – com
microfones – em 45 faixas pré-selecionadas do catálogo da banda.” (ROLLING STONE
BRASIL, setembro 2009, p. 92) É a ideia de interação com o público levada ao extremo
na era do digital, quando se faz possível, não só assistir aos Beatles, mas tocar com eles.
Se uma particularidade da carreira da banda foi desistir das apresentações ao
vivo, graças, acredita-se, à histeria do público, que prejudicava a performance dos
músicos e ainda causava tumulto e confusão, a expansão da obra dos Beatles para outras
plataformas midiáticas, a experiência com outras linguagens, em especial a do cinema,
aparece como alternativa de apresentação pública, ou interação com o público.
Uma cena de Let it Be toca nessa escolha, numa conversa entre McCartney e
Lennon, e a coloca como uma questão do processo criativo do grupo, revelando
divergência, reflexão e avaliação de alternativas pelos sujeitos criativos. Neste
momento, discute-se como conduzir o momento mais importante do processo de criação
da música pop: o da apresentação da obra ao público.
Na conversa, McCartney e Lennon estão sentados um de frente para o outro.
McCartney fala e Lennon escuta.
McCartney: Sempre que nós conversamos, nós temos certas discussões como a do George. Quando eu
pergunto “o que você quer”, ele diz... Mas é errado, é muito errado porque ele não sabe... Ele diz: “nada
parecido com 'Help' ou 'A hard day's night'” e eu concordo. Mas filmes, porque isto é um filme, e ele
agora não se importa em fazer este. Mas é aquele tipo de coisa “sem shows/ programas de tevê”, “nada de
plateia”... Quero dizer, quando voltamos de Hamburg, fizemos Leicester du Monford Hall, ou, não sei,
onde foi o “conventry”. Tocamos no “ballroom” e nós tivemos a pior primeira noite e estávamos todos
nervosos e foi terrível. E tocamos na noite seguinte, e na próxima, e foi um pouco melhor. E da próxima,
hmmm, e da próxima, foi demais (“além da conta”) e nós tocamos bem e nos acostumamos com a plateia
e podíamos lidar com a plateia e parecia que não havia mais ninguém ali. Mas havia uma coisa nova, algo
de outro tipo, e tinha um cara na frente vendo você tocar. Estávamos “driving into it” (levados/
envolvidos/ influenciados pelo momento). E aqueles shows, se pudéssemos ter gravado, seriam os
melhores.
Aqui, a fala de McCartney expõe divergências sobre a concepção dos projetos da
banda. “Sem shows, nada de plateia” pontua a decisão de não se apresentar mais ao vivo
para o público. Decisão que parece ter partido de George Harrison. Logo no início da
fala, pode-se entender também que Harrison não estava mais disposto a fazer filmes,
mas concordou em fazer um documentário. Em seguida, McCartney coloca o
nervosismo como uma das grandes questões envolvidas nas performances ao vivo do
grupo, mas parece ser a favor delas. Para ele a única forma de superar o nervosismo
seria encará-lo, mas se não estavam dispostos a isso, deveriam desistir de uma vez por
todas das apresentações ao vivo e encontrar outra forma de trabalhar se quisessem
continuar envolvidos com a indústria fonográfica.
McCartney: Porque é aquela coisa de equilíbrio. E nós somos bons nisso, uma vez superado o
nervosismo. Mas parece que há uma barreira de nervosismo que está aí agora. Não podemos superá-lo
agora a não ser que fôssemos ao Albert Hall e “get in right back”. No fim, a alternativa a isso é dizer que
nós nunca mais faremos com plateia novamente. Mas se nós pretendemos manter qualquer tipo de contato
com/ relação com esse/ nesse cenário... Eu entendo quando o George diz que não faz sentido porque é
como “Wose Traviski”21 e está na música, sabe, ele também não se levanta mais e toca (...) para eles.
A colocação de McCartney para Lennon revela a relação entre o uso das
linguagens audiovisuais pela banda com a dinâmica do mercado fonográfico e da
indústria cultural, da cultura de massa, além de conflitos na forma dos artistas de lidar
com essas questões. Pode-se supor, pelo diálogo entre os músicos, que a relação do
grupo com a linguagem audiovisual, o foco na produção audiovisual, além das questões
mercadológicas, desenvolveu-se muito em função de uma dificuldade do grupo em lidar
com as apresentações para o grande público ao vivo.
A última apresentação ao vivo e aparição em público dos Beatles acabou sendo
registrada pelo documentário Let it Be, que imortalizou a cena do show surpresa da
banda no telhado do prédio da gravadora Apple. Uma dificuldade do grupo na realização
do projeto levou a uma solução que funcionasse ao mesmo tempo para os quatro
agentes criativos centrais dos Beatles, para o público, para a mídia – gerando notícia,
para a gravadora – pela divulgação diferenciada e, portanto, eficiente, e para o
documentário – que teve uma culminância perfeita e, com o perdão da redundância,
cinematográfica: a ousadia e originalidade da banda em usar o telhado de um prédio no
centro de Londres, na hora do almoço de um dia de trabalho, como palco,
surpreendendo a população local; os depoimentos dos transeuntes, os trabalhadores
parando sua rotina para ver os Beatles; a polícia chegando ao local e a produção
negociando a continuidade da apresentação. Tudo simultaneamente à apresentação do
grupo, que toca “alheio” à confusão.
A cena final de Let it Be revela a manipulação da linguagem audiovisual – a
ideia de montagem do cinema cabe bem aqui - como parte integrante do processo de
criação dos Beatles, já que, pode-se deduzir, a apresentação foi calculada a partir de um
problema inerente ao processo de criação da obra da banda – uma vez que a
apresentação pública é parte do processo – e para responder aos objetivos de núcleos
21
*legenda traduzida na versão alternativa/ baixada da internet de Let it be; há dúvidas quanto ao nome
referido e não se encontrou referências para pesquisa sobre o possível personagem citado no
documentário, no entanto, sem prejuízo para a análise desenvolvida sobre o diálogo.
diversos deste mesmo processo. A apresentação não deixa de ser, ao mesmo tempo, um
teste da obra. Depois de apresentadas a vários leitores intermediários durante as sessões
de ensaios, a obra já estava num estágio de apresentação pública, de leitura da recepção.
John Lennon, ao final da apresentação, brinca com essa ideia: “Em nome do grupo, eu
gostaria de agradecer e espero que tenhamos passado na audição.” A frase fecha o
documentário.
3.5 - Memória
Quando se discute processos de criação, a memória entra como uma questão
central para a análise e o estudo dos dossiês de processo, compostos pelos registros de
processos de criação – rascunhos, esboços, testes de obras em andamento feitos pelo
artista ou sujeito criativo/ criador. Esses registros são feitos pelo artista na tentativa de
capturar um momento interessante na busca pela realização de um projeto, para guardar
uma ideia que pode se perder no fluxo do pensamento criativo ou para ajudar o sujeito
criativo a organizar esse mesmo fluxo, facilitando a “visualização” e, assim, a avaliação
de alguma ideia. Em outras palavras, o registro de processo atua tanto como uma
extensão da memória do artista – como a memória externa de um computador, pronta a
ser acionada, pelo sujeito criador ou pelo crítico de processo em qualquer momento do
processo de criação, quanto como configura a memória da obra em andamento. Ou seja,
ele é ao mesmo tempo memória do artista, do processo e da obra.
O crítico de processo lida, portanto, com registro de percepções, já sob forma
de lembranças. (...) Os documentos de processo, como lembranças
materializadas, são muitas vezes mencionados como instrumentos ativadores
da memória. (SALLES, 2006, p. 68-69)
Salles busca em Fausto Colombo a ideia de “lembranças materializadas”:
Ele diz que confiar à própria memória as lembranças exteriorizadas significa
constituir sistemas pessoais de arquivos, álbuns de fotografias, coleções de
videocassetes, de agendas ou diários, dos quais a coletividade é
definitivamente excluída e nas quais se celebra a própria identidade.
Transportando esse olhar para o nosso contexto, ao celebrar a própria
identidade, celebra-se a identidade da obra em construção, já que não são
desvinculadas. (SALLES, 2006, p. 68)
O capítulo 2 tratou da expansão desses registros de processo no campo da
música, da partitura aos arquivos digitais, passando pela gravação eletrônica e pelo
vídeo, e da necessidade e importância do surgimento de novas formas de registro para a
música pop e seu processo criativo e produtivo. No contexto dessa discussão, Let it Be,
como registro do processo criativo dos Beatles, aparece como memória das obras às
quais deu origem – algumas faixas dos álbuns Abbey Road, o álbum Let it Be e Let it
Be...Naked – e como memória cultural – pois se trata de um filme documentário,
produzido no fim da década de 1960, inserido num determinado contexto, parte da
dinâmica cultural da época.
Cecília Salles trata da memória, entre outros, relacionada à percepção do artista.
A estreita relação nos leva a examinar seus modos de ação nos processos
criativos, sem separá-las, mantendo exatamente o que as conecta: interagem
por meio de emoções ou de sensações, como vimos. A percepção do mundo
exterior se dá por intermédio de nossos receptáculos sensoriais e sensitivos,
que geram sensações intensas, mas fugidias. Para que um aspecto desta
percepção fique na memória é necessário que o estímulo tenha uma certa
intensidade. (SALLES, 2006, p. 68)
Em Let it Be, vemos como uma conversa com o diretor do filme age como esse
estímulo para a memória na cena em que McCartney se lembra da música “One After
909”.
A análise do filme, visto como registro de processo de criação dos Beatles,
coloca a memória também na perspectiva interna deste processo. As cenas de alguns
ensaios e conversas sobre o projeto então em andamento sugerem que, no processo de
criação musical, a memória entra em pelo menos outros dois momentos distintos: ela
está relacionada a registros de processo, mas também ao repertório do artista, que pode
revisitar projetos anteriores, seus ou de outros artistas, na busca de referências para um
determinado trabalho.
O exemplo dessa relação memória–repertório aparece em duas cenas. Na
primeira, a música “One after 909” é revisitada e acaba sendo finalmente gravada em
Let it Be. A música havia sido gravada anteriormente, sem, contudo ter sido lançada, no
início da década de 1960, e a coletânea The Beatles Anthology, de 1995, incluiu uma
gravação interrompida da faixa, em que podemos ouvir os músicos (Lennon e
McCartney) reclamando insatisfeitos do que estavam fazendo, e uma gravação
completa, diferente da que saiu em Let it Be.
Pre-dating the version on the Let it Be album by six years, this recording
sequence of „One After 909‟ was taped toward the end of the session in
which the Beatles cut „From Me To You‟ and „Thank You Girl‟, the A- and
B-sides of their third single. Despite putting down five takes, however, the
Beatles failed to achieve an entirely satisfactory recording of „One After 909‟
in this session, leaving the job unfinished and unissued. 22 (THE BEATLES
ANTHOLOGY, 1995, p. 21)
Na conversa citada anteriormente neste capítulo com o diretor do documentário
e outros produtores, Paul McCartney é perguntado sobre “One after 909”. A memória
do músico é acionada a partir da pergunta e ele, então, fala de músicas do início da
carreira, quando ainda frequentava a escola e matava aulas para compor. McCartney
lembra de músicas compostas na época e de como “detestavam” a letra de “One after
909”. Ele começa a declamar a letra, rindo, para ilustrar o comentário. A cena é cortada
para outra, em que o grupo ensaia a canção, que, descartada anos atrás, volta ao
repertório da banda e é incluída no álbum Let it Be.
Na cena, a memória entra ao mesmo tempo relacionada às lembranças do artista
e à percepção. Às lembranças quando remonta os primeiros anos da carreira na
juventude, e à percepção quando fala de “One after 909”. Uma canção “odiável” na
época da composição é recuperada e agora vista com certo bom humor. O tempo
transformou a percepção dos sujeitos criativos quanto àquele trabalho e maturou a
música. A volta da canção ao repertório dos Beatles tem, assim, relação com a
continuidade dos processos de criação artísticos, com os tempos de criação, que incluem
os “tempos de espera”. “One after 909” enfrentou o que Cecília Salles chama de “tempo
de gaveta”, como se ela tivesse ficado guardada, esperando a avaliação do artista para
ser mostrada ao público. “A obra espera pelo tempo do artista.” (SALLES, 2006, p. 61)
O tema memória comparece em outra perspectiva, antes do diálogo sobre “One
after 909”, a da referência ao repertório pessoal do artista, que usa elementos de outros
“estilos” musicais para chegar numa sonoridade determinada. McCartney está tocando
ao piano uma espécie de esboço de uma outra música, “Oh, darling”, ainda em fase
inicial naquele momento e alguém (não fica claro, na sincronia do áudio do filme, se é
McCartney ou algum produtor que comenta): “Adorável, isso é ótimo. É uma
verdadeira viagem no tempo”. Neste caso, o comentário sugere que a música sendo
composta está acionando o repertório de memória musical do artista (ou produtor),
formado por tudo o que já escutou, e McCartney e os agentes do processo presentes
22
Antecedendo em seis anos a versão no álbum Let it Be, essa sequência de gravação de „One After 909‟
foi gravada ao final da sessão em que os Beatles „cut‟ (finalizaram) „From Me To You‟ e „Thank You
Girl‟, os lados A- e B- de seu terceiro single. Apesar de gravarem cinco tomadas, os Beatles não
conseguiram chegar a uma gravação completamente satisfatória de „One After 909‟ nessa sessão,
deixando o trabalho não finalizado e sem lançamento.
naquele momento específico parecem “ser levados” a um outro tempo, ao passado,
pelos elementos presentes naquela composição, comuns a um estilo já escutado no
passado.
Se nos ativermos a essa ideia de repertório pessoal e memória musical do artista,
constituídos tanto de um passado mais remoto, fruto das experiências da infância ou
adolescência, quanto de um passado recente, fruto do diálogo do artista com outros,
contemporâneos seus, podemos perceber que elas são identificáveis através das
chamadas “influências” na construção do projeto poético. Cecília Salles, em Redes da
Criação – Construção da obra de arte refere-se às influências como “outras vozes” que
são trazidas para dentro do processo. Salles vê a influência não com “o peso negativo da
falta de originalidade, mas da diversidade de referências, que constitui a trama de que é
feita a história de cada artista” (SALLES, 2006, p. 44). A pesquisadora cita o escultor
Isamu Noguchi, que se sentia lisonjeado quando suas influências eram reconhecidas: “O
reconhecimento da linhagem viabiliza julgamento e apreciação do que é revolucionário
ou o que é adicionado por aquele artista. Não me sinto subordinado aos outros, nem
aprisionado a meu passado.” (NOGUCHI apud. SALLES, 2006, p. 44- 45)
A influência estabelece a relação de um artista e sua obra com outros artistas e
seus trabalhos. No documentário Let it Be, essa influência fica pouco clara, não há
citação ou comentário pontuais por parte dos músicos sobre os artistas que
influenciaram ou influenciavam o trabalho dos Beatles na época das filmagens do
documentário.
A jam de “You really got a hold on me”, “Shake Rattle and Roll”, “Kansas City”
/“Miss Ann”/“Lawdy Miss Clawdy”, entretanto, sugere a influência dos artistas
americanos do início da década de 1950 que fundaram e
popularizaram o estilo
rock'n'roll, maior influência dos Beatles, especialmente no início da carreira do grupo.
“You really got a hold on me”, gravada pelos Beatles em 1963, no álbum “With The
Beatles”, é de autoria do americano Smokey Robinson, gravada primeiro por sua banda
de soul “The Miracles”, um ano antes. “Shake Rattle and Roll” é uma canção de 1954,
composta como um blues “up-tempo” pelo americano Jesse Stone e gravada, entre
outros, por Elvis Presley, influência dos Beatles. “Kansas City” é uma canção rythm
and blues, de autoria de Jerry Leiber e Mike Stoller, e a versão mais popular, gravada
em 1959 por Wilbert Harrison, chegou ao topo da lista Bilboard, nos Estados Unidos.
“Miss Ann”, também da década de 50, é do americano Little Richard, e “Lawdy Miss
Clawdy”, de Lloyd Price, foi gravada primeiro em 1952, pelo próprio autor, e foi
regravada inúmeras vezes, ainda na década de 1950, inclusive por Elvis Presley em
1956.
Pode-se, portanto, através dessa cena do documentário, estabelecer a relação dos
Beatles com artistas do passado que influenciaram seu repertório e, num olhar mais
ampliado, que fizeram parte da história do grupo. A memória entra, aqui, relacionada ao
repertório e à história dos Beatles.
Ainda na reflexão sobre o papel da memória e seus modos de ação no processo
criativo dos Beatles, Let it Be, como memória da obra da banda, traz a questão dos
tempos de criação. O documentário apresenta várias músicas de sucesso da banda antes
das versões gravadas e consagradas. Elas são apresentadas em tempos diferentes de
criação durante todo o filme. Percebemos esse movimento do processo mais claramente
em “Two of us”, “Maxwel's silver hammer”, “I me mine” e “Octopus's Garden”.
“Maxwel's silver hammer” aparece sendo ensaiada apenas no instrumental para
aparecer depois, em outro momento, já com a letra e melodia completas. A versão
gravada no álbum Abbey Road não corresponde a nenhuma dessas versões. “Octopus's
Garden” é apresentada desde sua genesis, na composição da letra e melodia por Starkey
e Harrison, até o ensaio. Podemos ver “I me mine” também em dois momentos:
primeiro, Harrison apresenta a música para Starkey, o produtor George Martin e outras
três pessoas não identificadas; depois, a música já está sendo ensaiada, com os outros
três integrantes da banda. Cada versão tocada em Let it Be representa um tempo
diferente do processo de criação de cada uma dessas músicas e uma possibilidade de
obra.
“Two of us” é vista em Let it Be em estágios iniciais até a versão gravada. Logo
no início do documentário, a banda aparece tocando a música em outro tempo, mais
acelerado, com os vocais pouco sincronizados e a letra ainda incompleta. Quase no fim
do documentário, a banda toca a música do início ao fim, na versão gravada para o
álbum Let it Be. Agora, “Two of us” está num tempo mais lento, as vozes estão
arranjadas, a letra completa, os instrumentos sincronizados e não há interrupções.
Interessante perceber que a faixa é apresentada na sua versão “final”, aquela entregue ao
público, numa espécie de videoclipe, mostrando o grupo num outro espaço, num estúdio
organizado, numa performance para o filme, durante a qual a faixa foi gravada para o
álbum. Essa última versão é uma das versões possíveis para a música. Quando a
escutamos pela primeira vez no documentário, a versão mais acelerada, durante o
ensaio, representava uma outra possibilidade, pois ela poderia ter sido gravada naquele
tempo, mais acelerado, duas vozes – McCartney e Lennon, dois violões. Apesar de não
ter sido gravada naquela versão, ela passa a existir para quem assiste ao documentário
como uma possibilidade de obra e como uma versão descartada pelo grupo. Passa a
existir, inclusive, a partir do seu registro no filme, memória, história e parte da
identidade do álbum Let it Be.
Outras duas faixas foram gravadas para o álbum durante a sequência: “The long
and winding road” e “Let it Be”. A primeira aparece antes no filme na jam session e a
segunda só surge nessa passagem. As gravações de “Two of Us”, “Let it Be” e “The
long and winding road” representam um dos momentos culminantes do processo de
criação e produção de um álbum: a gravação. A sequência apresenta os quatro
integrantes dos Beatles num momento diferente dos apresentados até então. Os músicos
parecem bastante concentrados, não há conversa, não há comentários ou interrupções. O
músico Billy Preston participa das gravações e toca órgão em “Let it Be” e “The long
and winding road”. (A última foi “radicalmente” (Let it Be, 2009) modificada pelo
produtor Phil Spector, que acrescentou um novo arranjo com uma orquestra e um coro.
Ou seja, a versão gravada durante o documentário é diferente da que se ouve no álbum
Let it Be.)
Ao final da terceira performance, a câmera filmando a sessão de gravação abre,
do rosto de Paul McCartney, para revelar, além dos músicos e Yoko Ono, a presença
dos vários outros agentes do processo no estúdio. É difícil identificar todos, mas são
rostos já apresentados em outros momentos, como técnicos, o produtor George Martin e
o diretor do documentário Michael Lindsay-Hogg.
3.6 - Escolhas e critérios
Quando falamos de percepção e memória e quando falamos dos tempos de
criação e de possibilidades de obra, somos levados a pensar no que faz uma versão de
obra, trazida à tona na análise dos documentos de processo, ser descartada pelo artista.
Nem todas as músicas compostas, apresentadas e ensaiadas no processo criativo
registrado no documentário Let it Be foram incluídas no álbum Let it Be, algumas tendo
entrado no álbum lançado anteriormente, Abbey Road, oficialmente o último do grupo.
Lembrando que tanto o documentário, como o álbum Let it Be foram lançados depois da
separação da banda.
Tocando agora na questão dos critérios e escolhas, se são esses os responsáveis
pelo descarte de possibilidades de obra, são eles também que fazem a obra caminhar,
tomar forma e chegar ao público. Sem critérios, o artista não pode fazer escolhas e sem
escolhas o artista pode se perder em meio ao processo criativo e a tantas possibilidades
de obra. Os critérios existem para que o artista se aproxime daquilo que vislumbra como
obra e as escolhas são tomadas para que a obra venha ao mundo de acordo com o
projeto poético do artista.
No processo de criação de Let it Be, os critérios e escolhas do núcleo criativo, os
Beatles, se misturam com os de produtores e, ainda, empresários e executivos de
gravadora. Enquanto os critérios do núcleo criativo têm a ver com a ideia de projeto
poético, arte e experimentação e com a obra que busca realizar, os de empresários e
executivos de gravadora dizem respeito à indústria fonográfica, ou seja, à vendagem de
álbuns, sucesso de público, sucesso comercial. Os critérios dos produtores estariam
entre os dos artistas e gravadoras, os produtores atuando como uma ponte entre os
objetivos do artista e os objetivos comerciais da gravadora.
Let it Be é um caso daquilo que Edgar Morin chama de equilíbrio “burocraciainvenção” e “padrão-individualidade” no ceio da indústria cultural. Morin explica que a
indústria cultural segue ao mesmo tempo a tendência do sistema industrial à
“despersonalização da criação” e à “predominância da organização racional de produção
(técnica, comercial, política) sobre a invenção” (MORIN, 1990, p. 25) e a necessidade
de “unidades individualizadas”.
A indústria cultural deve, pois, superar constantemente uma contradição
fundamental entre suas estruturas burocratizadas-padronizadas e a
originalidade (individualidade e novidade) do produto que ela deve fornecer.
(...) O equilíbrio - e o desequilíbrio – entre as forças contrárias burocráticas e
antiburocráticas depende igualmente do próprio produto. (...) Em cada caso,
portanto, se estabelece uma relação específica entre a lógica industrialburocrática-monopolística-centralizadora-padronizadora e a contralógica
individualista-inventiva-concorrencial-autonomista-inovadora.
(...) É uma relação de forças submetidas ao conjunto das forças sociais as
quais mediatizam a relação entre o autor e seu público; dessa conexão de
forças depende, finalmente, a riqueza artística e humana da obra produzida.
(MORIN, 1990, p. 26/ 28)
Segundo o pensamento de Morin, os critérios do artista se enquadrariam nos
pólos invenção/ individualidade e os critérios da gravadora, dos executivos e
empresários, nos pólos burocracia/ padrão e a organização burocrática “filtra a ideia
criadora” (1990, p. 25). “O autor não pode mais se identificar com sua obra. (...).
Contudo, sob a própria pressão que ele sofre, o autor espreme um suco que pode irrigar
a obra.” (MORIN, 1990, p. 33)
Em Let it Be, visto como registro do processo criativo dos Beatles, podemos
identificar critérios dos artistas quando, durante os ensaios ou no processo de
composição de uma música ou letra, vemos os músicos buscando uma sonoridade
específica, mudando a forma de tocar um instrumento ou de cantar uma letra, ou quando
reconhecemos mudanças nas diferentes versões das músicas tocadas durante o processo.
Neste caso, os critérios não são claros, mas se pode deduzir que houve escolha e,
portanto, critérios.
No contexto da macroestrutura de Let it Be, os critérios do núcleo criativo
podem ser considerados já a partir da escolha por uma sonoridade menos “produzida”,
menos mecânica, e mais acústica, quando o grupo decide-se por um processo criativo
“como nos velhos tempos” e durante o documentário há momentos mais pontuais de
critérios musicais.
Esses critérios musicais dizem respeito não só às vontades do artista, mas têm a
ver também com a técnica musical, que deve ser manipulada pelo artista a fim de se
chegar a uma determinada sonoridade ou melodia. Esses critérios técnicos são aqueles,
por exemplo, relacionados ao domínio técnico de um instrumento musical. Em uma
tomada do ensaio de “I've got a feeling”, Lennon e McCartney tentam prolongar uma
passagem da guitarra tocada por Lennon:
McCartney: Está descendo rápido demais a nota. Deveria ser... sem saltos. (mostra “a descida” da nota
com a mão e “canta” a guitarra para Lennon) Não deveria dar saltos notáveis. Siga, caindo, caindo. Não
deveria fazer assim. (mostra mais enfaticamente, com o braço). Vou tentar cantar isso para você. Ok, a
parte do meio, então. Um, dois, três, quatro...
Quando Ringo Starr e George Harrison estão compondo “Octopus's Garden”,
tentam encaixar letra e melodia. Starkey experimenta um acompanhamento no piano e
Harrison, no violão, sugere outro: Faça assim e volte aqui. “A” e daí vai para “Dm”. E
depois volta para “C”.
Na cena da discussão entre Harrison e McCartney, o estopim do
desentendimento é, a princípio, de caráter técnico, musical. Para McCartney, a guitarra
de Harrison não está soando como deveria naquela música e o guitarrista está tocando
como em outra música. Harrison discorda e a discussão se segue.
McCartney: Está complicada, agora. Então se pudéssemos simplificá-la agora e depois complicá-la onde
precisar de complicação...
Harrison: Não está complicada.
“Simplificar” e “complicar” a música aparecem como critérios para a execução
da música. Se em algumas partes ela precisaria dessa complicação, segundo a percepção
de McCartney, em outras ela não precisaria.
Mais uma vez citando a conversa de McCartney com o diretor de Let it Be sobre
o processo de criação dos Beatles no início da carreira, quando diz que muitas músicas
compostas na época não foram gravadas porque as letras “não eram sofisticadas” e
porque consideravam que teriam “muito trabalho”, está se falando em critérios.
Critérios musicais além de técnicos, de caráter estético.
Para Abraham Moles, quando orientamos nossa atenção para a mensagem
sonora fonética e musical, “temos de fato um caso em que as estruturas em grande
escala, notas, compassos, frases, partituras, são particularmente nítidas e determinantes
da obra. Daí o estudo da percepção, que deve transformar-se um pouco num estudo da
percepção estética”. (MOLES, 1978, p. 155). Em sua “Teoria da Informação”, Moles
conclui que “a mensagem musical é o próprio tipo da mensagem artística real.”
(MOLES, 1978, p. 282) Moles distingui dois tipos de mensagens parciais na mensagem
musical: uma semântica, que “prepara atos e obedece a uma metalógica interna”, e outra
estética, “cujos símbolos nos são desconhecidos e as regras muitas vezes pouco
conhecidas; é intraduzível e particular”.
Assim, os critérios de McCartney, Harrison, Lennon e Starkey em Let it Be,
podem ser descritos no campo dessa dupla mensagem musical – semântica e estética. A
semântica teria relação com a estruturação das músicas segundo regras e normas da
notação musical e do sinal sonoro, do objeto sonoro (segundo Moles, aquele que surgiu
a partir da gravação, “aplicação do tempo sobre o espaço”) e a estética passa a ser
definível, ou melhor, compreensível no contexto daquele processo específico e do que
buscavam como obra naquele momento.
A mudança de estúdio, de Twickenham para os da Apple, pode ser entendida
como uma questão de critério. No início das filmagens de Let it Be, a banda ensaia num
estúdio improvisado, montado para atender as exigências da produção do filme. Os
estúdios Twickenham eram da Universal e na primeira metade do documentário, o
grupo aparece ensaiando em um ambiente escuro, bastante amplo. Na segunda parte do
filme, o grupo chega aos estúdios da Apple, num ambiente completamente diferente, um
estúdio de gravação musical, propriamente.
A mudança é mostrada com cada integrante chegando ao estúdio. São feitos
comentários sobre uma nova bateria, mas ninguém diz nada a respeito da mudança de
estúdios.
McCartney: Você já tocou a bateria?
Starkey: Sim, terrível, terrível. É bateria rudimentar.
McCartney: Sim, é bem rudimentar, mas “Get back” foi ótimo.
Starkey: Só “Get back” ficou boa. Mas nada de especial.
A mudança de um estúdio cinematográfico para um estúdio de uma gravadora,
em meio às filmagens do documentário, foi uma escolha da banda, com base em
critérios técnicos e criativos. No mini documentário lançado com a reedição do álbum
Let it Be em 2009, há um comentário de Harrison sobre o tema. “O estúdio Twickenham
era muito frio e a atmosfera não era muito boa, então decidimos abandonar aquilo e ir
para um estúdio de gravação.” (Let it Be, minidoc, 2009) Para McCartney, “houve
sessões bem boas uma vez que entramos na Apple. Lembro-me de sentar curtindo a
música, música interessante de se tocar... E nós acabamos no telhado.” (IDEM)
Quando Lennon e McCartney conversam sobre a decisão de não se apresentarem
mais ao vivo para grandes públicos, também há implícito um critério prático, não
artístico a princípio, mas de relação com os modos de apresentação da obra entregue ao
público e de relação com a recepção.
Let it Be acabou não satisfazendo o núcleo criativo na época de seu lançamento,
após a separação da banda. O processo foi acompanhado pelo engenheiro de som John
Glyns, que havia trabalhado com os Rolling Stones e sabia dos objetivos criativos do
grupo com aquele projeto. McCartney conta que um executivo da Apple não gostou do
material que entregaram porque ainda não estaria bom o suficiente para ser entregue ao
público. Um produtor externo ao processo foi acionado e as músicas foram “reproduzidas”. Um critério de mercado, então, mudou a obra entregue ao público.
Nós fizemos Let it Be. Então mixamos uma vez com Glyn Johns, que havia
feito uma mixagem bem direta, bem crua, mas nós amamos. Allan Klein
estava por lá neste momento (do processo) e disse: „Eu não acho que está
bom o suficiente‟. Ele „pulled in’, segurou (o lançamento) para tentar alguma
ajuda. Phil Spector o reproduziu, como é dito no disco. (MCCARTNEY em
Let it Be, 2009:)
O embate entre critérios artísticos e de mercado perpassa todo o processo de
criação registrado pelo documentário Let it Be, apesar de não se poder “vê-lo”. É um
embate implícito, identificável na relação da obra dos Beatles, no caso o álbum Let it
Be, com o processo de criação do grupo, com a indústria fonográfica da qual faziam
parte e com informações de bastidores que não são dadas na edição final do
documentário, muitas publicadas na imprensa, principalmente a posteriori, como os
comentários de Harrison, Lennon, Starkey e McCartney no mini documentário lançado
em 2009 e na entrevista de John Lennon para a revista Rolling Stone, de 1971, usados
como fonte na presente pesquisa.
3.7 - Experimentação
O artista, na busca pela realização da sua obra, procura caminhos que o
aproxime daquilo que vislumbra como obra e, como discutido anteriormente, entra em
cena a utilização de critérios técnicos e estéticos, os primeiros mais facilmente
identificáveis e os segundos relacionando-se a aspectos mais subjetivos como a
percepção e o projeto artístico do sujeito criador. Entretanto, sozinhos, os critérios não
são suficientes para resolver questões que surgem no decorrer de um processo de
criação. Nos momentos em que os recursos que tem parecem ineficientes para a
realização de um projeto, o sujeito criador lança mão de outros e traz para o seu
processo diferentes elementos que possam servir de auxílio e ser incorporados à obra.
Estes elementos podem ou não ser familiares ao artista, podem ou não funcionar e, de
alguma forma, dialogam com o seu projeto poético. É o momento da experimentação.
A experimentação pode aparecer, muitas vezes, como o jogo de tentativa e
“erro” que o artista faz enquanto cria, ou durante o embate entre o que o artista quer
realizar e aquilo que produz. Ela pode vir na tentativa de se solucionar um problema
durante o processo criativo de uma obra: para alcançar certo resultado, o sujeito criador
tenta trabalhar de alguma forma com os recursos que tem ou busca outros que julga
trazer possibilidades de realização daquela obra em particular.
As versões de obra descartadas, os rascunhos e esboços, traduzem essa dinâmica
da tentativa de obra e busca de soluções em documentos de processo e expõem para o
crítico instantes de experimentação do artista. No campo da música pop, gravações
demos, caseiras ou mesmo de estúdio funcionam como esses esboços e rascunhos de
obra, enquanto os ensaios testam a obra em processo e podem ser considerados como
pura experimentação, uma vez que ali o artista tem a chance de modificar o que não
gostou ou que parece não funcionar bem e tentar “fazer de outra forma” antes de
entregar a obra ao público - ou seja, antes de gravar, ou antes de uma performance
pública.
A experimentação leva o sujeito criador a explorar outros campos com a sua
obra e pode apontar novos caminhos e tendências em momentos de bloqueio criativo. A
experimentação é, fundamentalmente, daquilo que se consiste todo processo de criação
artístico e, em geral, a arte. Basta entender que inovações, quebras de padrões e “obrasprimas” são o resultado de experimentação.
Trazendo o tema para a análise do documentário Let it Be, o filme registra os
Beatles em plena experimentação. O grupo se consagrou com a manipulação de efeitos
de gravação e a experimentação em estúdio. Sob a produção de George Martin,
exploraram ao máximo as tecnologias e técnicas de gravação disponíveis na década de
1960 na busca de novas sonoridades: overdubbing, multitracks, inversões etc. No
entanto, ao fim da carreira, a grande experimentação do grupo foi a tentativa de reverter
o modo de produção que os consagrou. A experimentação se dá na escolha do processo
criativo, na forma como trabalharam e gravaram, deixando de lado as técnicas de
produção em estúdio, e ainda na decisão de fazerem disso um filme documentário.
Em Let it Be, os Beatles saem da “zona de conforto” para criar um álbum
“gravado ao vivo”, sem a utilização dos recursos dos quais poderiam lançar mão. O
desafio de gravar nessas condições os leva a experimentar um processo de criação no
qual o principal recurso da banda está no núcleo criativo, na interação dos quatro
sujeitos criativos. O que tinham era a si próprios, como grupo, seus instrumentos
musicais, suas habilidades técnicas e, claro, sua criatividade. A experimentação é levar a
ideia do processo de criação coletivo dos Beatles de volta às origens num momento em
que o núcleo criativo começa a se desintegrar, cada um dos integrantes da banda já às
voltas com projetos pessoais e artísticos individuais.
3.8 - A consciência de processo
Desde as primeiras cenas de Let it Be um aspecto que fica claro sobre aquele
processo em particular é o de que o grupo tem o que se pode chamar de consciência de
processo. Referimo-nos, aqui, ao mesmo tempo ao fato do núcleo criativo “saber o que
está fazendo”, saber que a obra a qual se propuseram a realizar depende de um processo
criativo determinado, e ao fato de discutirem questões de processo. Assim, para criar um
álbum de canções gravadas “ao vivo” o processo criativo não poderia acontecer como
os processos de álbuns produzidos com efeitos de estúdio, não poderiam trabalhar como
vinham até então. Nesse mesmo raciocínio, incluímos a decisão da banda de filmar o
processo e o lançar como um documentário. Todos estão, dessa maneira, cientes da
presença da câmera no processo, como uma testemunha do trabalho do grupo, e de que
aquele registro está sendo feito, em primeiro lugar, para ser levado a público.
São vários os momentos em que essa consciência de processo se manifesta nos
integrantes dos Beatles em Let it Be. Logo no início da fita, há uma cena em que George
Harrison, Ringo Starr e Paul McCartney “posam” para as câmeras de Michael LindsayHogg. Em outra cena, McCartney olha para a câmera e diz: “Fotos!”, e dá um sorriso
para a câmera. A consciência da presença da câmera coloca a espontaneidade dos
integrantes do núcleo criativo à prova, mas não é possível dizer que os Beatles
“atuaram” diante das lentes do diretor do documentário. Michael Lindsay-Hogg foi
escolhido pela própria banda para dirigir o documentário e era amigo do grupo. A
escolha não foi, então, aleatória, e demonstra o cuidado do grupo de confiar o registro
de seu processo criativo a alguém que não fosse totalmente estranho a esse processo e
que não provocasse flutuações ou ruídos muito radicais, fortes o suficiente para gerar
bloqueios ou interferências no processo criativo coletivo dos Beatles.
Buscando mais uma vez a conversa do grupo sobre o filme com o guru
Maharishi, Paul McCartney comenta: “Ele comprova tudo o que estamos fazendo”. A
frase pode parecer solta. “Tudo” o quê? A conversa inteira, que toca na questão de
“esconderem suas personalidades”, ganha sentido no contexto do documentário Let it
Be e revela o entendimento do que acreditariam estar fazendo com as filmagens de seu
processo criativo.
No diálogo de Lennon e McCartney sobre as apresentações ao vivo para o
público, o segundo, mais uma vez volta ao documentário: “Quando eu pergunto (a
Harrison) 'O que você quer ?' (...) Ele diz: 'nada parecido com Help! ou A Hard Day's
Night' e eu concordo. Mas filmes... porque isto é um filme e ele agora não se importa
em fazer este”. É fundamental lembrar que em Let it Be flagramos um processo criativo
em cruzamento com outro: o processo de criação musical coletivo dos Beatles e o
processo de criação do próprio documentário, que aconteceram simultaneamente.
Let it Be revela a consciência de processo de criação musical dos Beatles em
diversos comentários feitos entre os sujeitos criativos durante os ensaios. Pontualmente,
são feitos comentários que remetem à continuidade, simultaneidade, retroatividade e
registros.
O fluxo de processos criativos não segue uma ordem cronológica perfeita e é
feito de idas e vindas e quebras de continuidade. Há momentos em que o processo é
bastante produtivo e parece caminhar numa direção clara e satisfatória. Em outros, esse
fluxo pode ser interrompido ou alterado por flutuações - “variação das condições
internas ou externas do sistema” (REWALD, 2005, p. 110) – e ruídos - “flutuações
aleatórias sem um padrão definido” (2005, p. 110) ou por uma quebra no ritmo de
produtividade. O sujeito criador pode ater-se a uma questão ou problema, a um ajuste,
talvez, e não conseguir seguir em frente sem uma solução. Pode-se, então, em nome da
continuidade do processo, partir para uma outra questão e voltar àquele problema no
futuro, quando a solução parecer mais clara. Ou pode-se parar o processo para retomá-lo
só quando as condições forem favoráveis a uma resolução, quando houver condições de
seguir em frente.
Num dos primeiros ensaios em Let it Be, o grupo interrompe uma música e
McCartney sugere:
McCartney: Vamos só cantar as músicas melosas...
Harrison: Sim, as melosas...
McCartney: Só para terminar esta parte e depois podemos... Porque nós fazemos melhor... Mas não, se
não houver continuidade e ficarmos voltando...
Harrison: Pode demorar o dia inteiro, às vezes.
McCartney: Eu sei, então vamos em frente, agora.
O grupo parte então para o ensaio de outra música. Vemos na conversa que a
continuidade do processo é importante para o grupo, que, apesar de não satisfeito com a
execução de uma música e de saber que podem “fazer melhor”, prefere voltar a ela mais
tarde a talvez “gastar um dia inteiro”. Voltar à música mais tarde remete à retroatividade
do processo de criação artístico, que não segue uma ordem determinada, mas é feito de
idas e vindas. “Essa retroatividade gera um tempo de idas e vindas, fluxos e pausas, que
envolve julgamento retrospectivo.” (SALLES, 2006, p. 62)
A retroatividade do processo de criação em Let it Be surge junto com a
simultaneidade. No campo da música pop, a obra é, simplificando bastante, o álbum. O
álbum é constituído de várias músicas, que podem ser entendidas como obras dentro da
obra. No processo de criação de um álbum temos, assim, vários processos de criação
musical simultâneos. Por isso, as canções, muitas vezes, acabam ficando “em espera”,
enquanto outras são trabalhadas. “O processo de construção de obras implica
maturação, que exige o tempo de espera (...). Isto leva muitos artistas a trabalharem
diversas obras simultaneamente. Enquanto uma está sendo manipulada, outras
aguardam sua atenção futura.” (SALLES, 2006, p. 62) São “tempos de gaveta” mais
curtos que constituem o tempo de criação de uma obra feita de outras obras, como
acontece na criação de um álbum de músicas.
O último momento registrado pelo documentário Let it Be mostra os Beatles em
uma apresentação pública no telhado do edifício da Apple, em Londres, mas aquele não
foi o fim do processo criativo do álbum Let it Be, caracterizado pelas quebras, rupturas e
descontinuidades. O dia 29 de janeiro de 1969 foi o último dia de filmagens, entretanto,
o processo de criação continuou. Os Beatles interromperam o processo e voltaram aos
estúdios para finalizar o álbum apenas um ano depois, para gravar a faixa “I me mine”,
que aparece no filme, mas não havia sido gravada em estúdio (Lennon não participou
dessa gravação), e foram acrescentados overdubs na faixa título, “Let it Be”.
O material gravado em janeiro de 1969 não foi aprovado pela gravadora –
Lennon, de acordo com entrevista publicada em 1971, se disse insatisfeito com o que
tinham - e foi “reproduzido” um ano depois por Phil Spector, que não fez parte do
momento do processo registrado pelo documentário. Spector não respeitou a ideia
inicial do projeto Let it Be e o álbum lançado em 1970 não satisfez o grupo. Let it
Be...Naked foi então lançado em 2003. Em 2009, a obra é relançada, remasterizada. A
trajetória do álbum deixa clara a característica de inacabamento da obra e a
descontinuidade de que são feitos os processos de criação artísticos.
A preocupação com a continuidade do processo manifesta-se mais uma vez na
cena da discussão entre McCartney e Harrison. McCartney diz: “Sabe, nós não só
ficamos dando voltas durante uma hora, não fizemos nada”. O comentário é feito em
tom de incômodo. O grupo discute a respeito dos problemas com o ensaio, que parece
ter se estendido demais sem levar a lugar algum, e, novamente, parte para o ensaio de
outra música, dando continuidade ao processo.
Quando se discute o som e a execução da guitarra, Harrison, na tentativa de
convencer McCartney de que o que haviam feito não estava bom, argumenta: “Se
tivéssemos isso gravado você descartaria na hora”. A gravação eletrônica é entendida
como um recurso de processo, um registro que possibilitaria melhor avaliação da
música que estavam ensaiando. Fechando a discussão, Lennon retoma o tema. “Acho
que podemos começar a ouvir as fitas/ gravações agora e ouvir como ficou/ está/ o que
é. Será que é porque não estamos 'a fim' ou a guitarra soa bem/ legal?”. A gravação
eletrônica é objetivamente tratada como um recurso de processo de criação, podendo
funcionar como um rascunho, um teste para o artista, e é trazida para a discussão do
grupo como um “tira-teima”.
Quando McCartney fala da questão das apresentações da banda e da relação do
grupo com os filmes, o músico cita os primeiros shows ao vivo e levanta o problema do
nervosismo.
McCartney: E aqueles shows, se pudéssemos ter gravado, seriam os melhores. Porque é aquela coisa de
equilíbrio. E nós somos bons nisso, uma vez superado o nervosismo. Mas parece que há uma barreira de
nervosismo que está aí agora. Não podemos superá-lo agora a não ser que fôssemos ao Albert Hall e “get
in right back”. No fim, a alternativa a isso é dizer que nós nunca mais faremos com plateia novamente.
Mas se nós pretendemos manter qualquer tipo de contato com/ relação com esse/ nesse cenário... Eu
entendo quando o George diz que não faz sentido porque é como “Wose Traviski” e está na música, sabe,
ele também não se levanta mais e toca (...) para eles.
O tema da gravação comparece novamente na fala de McCartney que, além de
revelar a consciência dos músicos em relação a uma barreira, a um bloqueio que
enfrentavam naquele estágio da carreira, o nervosismo, revela que tinham consciência
do meio ao qual pertenciam, ao da indústria cultural e fonográfica, da cultura de massa,
da música pop, e lidar com essas questões fazia parte das reflexões e embates do grupo.
A consciência de processo dos Beatles é entendida na medida em que o núcleo
criativo sabe do que é feito aquele processo criativo, voltado para a realização de uma
obra determinada, apesar de aberta, num meio determinado, e é identificável
principalmente em diálogos e discussões do grupo sobre questões de processo como os
tempos de criação e o registro de processo, tanto o das músicas, como o do
documentário. A relação dos músicos com a câmera do documentário revela,
igualmente, em alguns momentos, a consciência de processo dos Beatles.
3.9 - O processo coletivo dos Beatles em Let it Be
Analisar o processo de criação de uma banda, um grupo musical, é
necessariamente analisar um processo coletivo, já que em “grupo” subentende-se mais
de um indivíduo. O registro de processo feito pelo documentário Let it Be permite o
estudo do trabalho coletivo dos Beatles em duas esferas: na dinâmica dos músicos
integrantes da banda e na dinâmica de produção da indústria fonográfica. A última fica
clara na presença de inúmeros agentes do processo, além do núcleo criativo. São eles:
produtores musicais, técnicos de som, artistas colaboradores, empresários da banda,
executivos da gravadora, parentes e familiares, além da equipe de filmagem do
documentário, que inclui o diretor e seus assistentes. Esses agentes participam do
processo, seja interferindo criativamente, seja provocando flutuações e ruídos. As
interações com esses agentes já foram discutidas no tópico “3.3 - Interações” deste
capítulo.
Interessa agora, sobretudo, entender como se desenvolve o processo de criação
dos Beatles do ponto de vista do núcleo criativo, o grupo, formado por quatro partes
separadas e distintas, mas entendido como uma unidade criativa. Nessa perspectiva, a
partir da análise do processo registrado em Let it Be, pode-se concluir que o processo de
criação coletivo dos Beatles acontece no equilíbrio entre a atuação coletiva e a atuação
individual de quatro sujeitos criativos.
A atuação individual está contida na coletiva, pois essa é resultado da soma de
cada uma das atuações individuais, que não podem ser concebidas isoladamente,
originadas de um sujeito constituído “by its engagements, entanglements, and
conflicts.”23 (COLAPIETRO, 2003) Em Let it Be, as sessões de ensaios são o principal
registro do processo de criação dos Beatles e, por isso, pode-se dizer que os momentos
de atuação coletiva são mais facilmente identificados. Entretanto, a música tocada em
coletividade é resultante da performance de cada integrante manipulando seu
instrumento musical. Assim, na execução de uma música, ou mesmo do momento em
23
“por seus envolvimentos, complicações/ comprometimentos e conflitos.”
que uma música composta ao piano, ou ao violão, ganha o acompanhamento de outros
instrumentos, cada integrante do grupo está criando individualmente com seu
instrumento, em cima daquilo que um outro integrante trouxe como possibilidade de
obra. Há nessa dinâmica conduções individuais dentro do processo de criação coletivo.
Quando ensaiam uma composição de Paul McCartney, é ele quem conduz mais,
dizendo para os outros aonde cada um deve ou pode ir segundo a concepção que teve
daquela composição. É assim em “Maxwell's Silver Hammer”, ao ditar os acordes
durante o ensaio, e em “I‟ve got a feeling”, ao insistir numa descida de nota da guitarra
de John Lennon. Nas músicas de Lennon, a condução é dele, como se pode ver em
“Nothing's gonna change” e “Dig a pony”.
Lennon: Vamos tentar com menos (riffs/ guitarra) em “Nothing's gonna change”. Vamos cantar um por
vez e depois dois no final. (...) Diminua.
(Lennon muda, interrompe e emenda em “Dig a pony”) Alguém tem uma rápida?
Da primeira vez que George Harrison mostra “I me mine” o grupo não está
ensaiando. A apresentação é feita para Starr, sentado num banco, de frente para
Harrison, que antes de tocá-la, define-a como uma “valsa pesada”. Ninguém toca com
ele, nessa primeira apresentação. Ao defini-la, Harrison coloca sua concepção
individual daquela obra antes de ser levada à coletividade do processo de criação do
grupo. Essa concepção individual pode, ao ser apresentada ao grupo, conduzir a forma
de interpretar e tocar determinada música, e modificar, pouco ou totalmente com a
contribuição de cada integrante, podendo, ainda, ser rejeitada.
Harrison: Chama-se “I me mine”. Quer que eu cante para você? Eu não me importo se eles não quiserem
colocar isso no show (“tv show”, lembrando que o documentário foi inicialmente produzido para passar
na televisão). Podem colocar no musical... É uma valsa pesada. (Ringo Starr faz uma batida de valsa,
batendo palmas; além de Starkey, há outras quatro pessoas em pé, entre elas George Martin e Michael
Lindsay-Hogg.)
A música de Harrison entrou no álbum Let it Be e a banda aparece ensaiando a
faixa no filme, conduzida pelo guitarrista. Pressupõe-se, portanto, que passou pelo filtro
do grupo, do coletivo.
Se o processo de criação coletivo em Let it Be fica explícito pelos ensaios e pelas
interações dos integrantes dos Beatles, os processos individuais são bem menos claros,
por serem subjetivos. As individualidades, por sua vez, são definidas a partir de suas
relações com os outros e, dentro dessa perspectiva, as individualidades criativas dos
integrantes dos Beatles são feitas e emergem da e na coletividade, sendo, além de
difícil, talvez “inadequado”, improdutivo, tirar conclusões acerca do que é a
contribuição individual de cada uma das partes do núcleo criativo. Sobre o sujeito como
“lugar da criatividade” Vincent Colapietro afirma que
just as processes of creating can involve the distancing of the self from itself,
so processes of exploring creativity can reduce the distance between one self
and another, sometimes to the point of identification.
(...)Whatever conscious and ingenious agency we can attribute to individual
subjects such as creative artists (e.g., however much we are still committed to
applying the Romantic category of genius to the artist), we can do so only
with a critical awareness of the ways and extent such attributions have little
or nothing to do with the original capacities of isolated individuals. 24
O documentário Let it Be destaca a individualidade pouco no aspecto criativo e
mais no culto à personalidade – ou mesmo na “vedetização” (MORIN, 1990), dedicando
sessões a cada um dos integrantes da banda, em que um tem destaque em relação aos
outros, a câmera filmando mais um do que os outros, dependendo da cena e da música
tocada. As discussões entre os quatro durante os ensaios, a respeito das músicas e do
próprio processo, são mais esclarecedoras, apesar de insuficientes, sobre a posição de
cada sujeito criativo naquele processo coletivo. Se McCartney diz “Eu acho que está
complicada agora” e Harrison diz “Não está complicada”, são as individualidades e as
concepções criativas individuais manifestando-se em meio ao processo coletivo.
A coletividade do processo de criação em Let it Be é definida também a partir do
objetivo de obra. Ao definirem o “álbum gravado ao vivo” como projeto poético, os
quatro sujeitos criativos formadores da banda The Beatles passam a criar com uma meta
em comum. Assim, toda criação individual vai ter um mesmo critério norteador.
Tomando sempre o álbum, uma das obras resultantes do processo criativo de Let it Be,
como referência para a análise, a coletividade passa a ser entendida a partir dele. Um
álbum dos Beatles só pode existir na coletividade, melhor dizendo, um álbum dos
Beatles não é um álbum solo de Paul McCartney, de George Harrison, ou de Lennon ou
24
assim como processos de criação podem envolver o distanciamento do ser de si mesmo, processos que
exploram a criatividade podem reduzir a distância entre um ser e o outro, às vezes até o ponto da
identificação. (...) Qual quer que seja a ação consciente e engenhosa que podemos atribuir a sujeitos
individuais tais como artistas criativos (por exemplo, não importa quanto, ainda estamos comprometidos a
aplicar a categoria Romântica de gênio ao artista), nós só o podemos fazer com ciência crítica dos modos
que e em que medida tais atribuições pouco ou nada têm a ver com as capacidades originais de indivíduos
isolados.
Starkey. A ideia de obra coletiva ajuda a compreender que o núcleo criativo já é
coletivo e, portanto, quando o grupo se reúne para criar, sabe-se que estão trabalhando
na criação de um álbum dos Beatles. O processo é coletivo, pois, por princípio,
composto de processos de criação individuais, de cada integrante do grupo, mas sempre
submetidos à coletividade.
Essa submissão à coletividade muitas vezes representa um problema para o
sujeito criativo e a individualidade criativa, “escondidos” por trás da ideia de grupo. No
caso dos Beatles, especialmente pela relação com o público e a mídia, a questão, levada
ao núcleo criativo, ganha proporção ainda maior. John Lennon parecia incomodar-se
bastante com o apagamento do sujeito criativo aos olhos do público e credita o fim do
grupo ao “problema”. Há um trecho bastante revelador disso na entrevista do músico
para a revista Rolling Stone:
Rolling Stone: Os Beatles sempre foram ditos – e os Beatles se diziam – como sendo quatro partes da
mesma pessoa. O que aconteceu com essas quatro partes?
Lennon: Elas lembraram que eram quatro indivíduos. Veja, nós também acreditamos no mito dos
Beatles. Eu não sei se os outros ainda acreditam. Éramos quatro caras... Eu conheci Paul e disse, “quer
entrar para minha banda?”. E então George se juntou a nós e depois Ringo. Fomos apenas uma banda que
fez muito, muito sucesso, só isso. Nossos melhores trabalhos nunca foram gravados.
Há limites para as individualidades no processo de criação dos Beatles. Esses
limites são impostos no embate de ideias sobre a obra e o próprio processo e são
identificados em diálogos no filme. De volta à clássica discussão entre McCartney e
Harrison, no auge de sua argumentação McCartney diz: “O que eu estou tentando dizer
é 'olhe, gente, o grupo! O grupo!”. No momento em que as individualidades começam a
interferir na coletividade do processo, o músico chama a atenção de volta ao coletivo.
O documentário Let it Be mostra um processo criativo que acontece na busca de
uma obra coletiva. O processo coletivo resulta da interação de sujeitos criativos
individuais e seus processos criativos que atuam em coletividade. Existe um núcleo
criativo formado por quatro integrantes, cada um com uma função diferente no que se
refere à instrumentação, definindo as atuações individuais – o guitarrista solo, o
baixista/ o pianista, o guitarrista base, o baterista, os vocais, tudo isso se alternando, de
acordo com a música, com um objetivo de obra em comum – o álbum, em busca de uma
unidade criativa. A mais recente edição do álbum Let it Be, lançada em setembro de
2009, traz um comentário, entre outros, de Ringo Starr, em um mini documentário sobre
a obra: “Não importa o que estivéssemos vivendo como indivíduos, sabe, 'bullshit level'
(algo como, “no frigir dos ovos”), quando se trata de música, sabe, quando você pode
ver que é realmente bom, dávamos todos mil por cento.” (Let it Be, mini-doc: 2009)
No processo de criação musical coletivo dos Beatles, as interações representam
os elos e nós da rede criativa do grupo, pois é delas e nelas que surgem questões
fundamentais para o entendimento de como o projeto poético da banda se desenvolvia e
se concretizava. A dinâmica do processo criativo, como registrado no documentário Let
it Be, traz, assim, a comunicação entre os integrantes do núcleo criativo como o alicerce,
a base das pontes que sustentam o trabalho coletivo da banda. Essa comunicação vai
muito além da oralidade. Ela não se faz apenas dos diálogos, conversas e discussões
durante o processo de criação, mas de um conjunto de recursos de linguagens e códigos
comunicativos. Diálogos, conversas, discussões e, intensamente, olhares, gestos e, claro,
sons, tudo comunica no processo de criação coletivo dos Beatles.
Num ensaio de “I've got a feeling”, um olhar de McCartney e um sinal sutil
com a cabeça para Ringo Starr são a deixa para a entrada da bateria numa passagem
fundamental da música. Mais cedo, naquele mesmo ensaio, quando tentava explicar a
descida da nota da guitarra para Lennon, toda a fala de McCartney é acompanhada do
movimento de corpo. O músico, com a mão, depois o braço e depois o tronco mostra a
Lennon o ritmo da descida.
Voltando a Ringo Starr, é notável como o baterista é o integrante dos Beatles
que menos fala em Let it Be. Isso não significa uma participação menor do artista no
processo e, pensando o processo de criação coletiva como um ato comunicativo no mais
alto grau, realizando-se nos mais diversos níveis, sua posição nos Beatles é exemplar
disso.
(...) In spite of all the things, The Beatles could really play music together
when they weren‟t uptight, and if I get a thing going, Ringo knows where to
go, just like that, and he does well. We‟ve played together so long that it fits.
That‟s the only thing I sometimes miss – just being able to sort of blink or
make a certain noise and I know they‟ll all know where we are going on an
ad lib thing. 25(LENNON apud. WERNER, 2007, p. 37)
25
(...) Apesar de tudo, os Beatles podiam realmente tocar música juntos quando não estavam
pressionados e, se algo me vem, Ringo sabe aonde ir, simplesmente assim, e ele faz bem. Tocamos por
tanto tempo juntos que encaixa. Isso é a única coisa de que sinto falta às vezes – de conseguir/ de ser
capaz de piscar ou fazer um barulho qualquer e saber que eles todos saberão aonde estamos indo 'on an
ad lib thing'.
Considerações finais
A proposta de se discutir o processo de criação artístico de artistas inseridos na
indústria cultural é sem dúvida desafiadora. A indústria fonográfica e a música pop
fazem parte dessa discussão e foram objeto de análise deste trabalho, apontando
caminhos para a reflexão sobre o tema sob a perspectiva da crítica de processos.
Para refletir o processo de criação da música produzida e difundida na indústria
cultural, a música pop, o documentário Let it Be, do grupo britânico The Beatles, foi
escolhido como estudo de caso por se tratar de um registro audiovisual do processo de
criação de músicas que deram origem aos dois últimos álbuns da banda. A escolha do
objeto levou a um percurso de pesquisa que discutisse os aspectos mais relevantes para
a compreensão do processo de criação da música pop como uma rede complexa de
procedimentos e interações e como um processo coletivo.
Processo de criação artístico na Indústria Cultural
O primeiro capítulo tratou da discussão do conceito de música pop como aquela
definida a partir do estabelecimento da indústria cultural e da cultura de massa e a partir
da relação estabelecida entre artista, obra, indústria, público e mídia. Nesta relação,
alguns procedimentos passam a ser incorporados ao processo de criação da música
produzida sob a lógica industrial e de mercado. A música, em especial com o
desenvolvimento da tecnologia de gravação, passa a ser produzida, processo de criação
passa a significar também processo de produção (MORIN), e vendida, e é necessário
criar um mercado consumidor dessa música. Os estilos e gêneros aparecem como um
artifício da indústria para criar essas demandas de mercado e fórmulas de sucesso são
difundidas como uma prática comum nos processo de criação da música pop.
As fórmulas dizem respeito tanto ao formato padronizado das músicas de
acordo com o gênero, estilo ou artista, como se referem aos procedimentos de
publicidade e divulgação da música pop. As mídias digitais fazem parte hoje dessa
dinâmica e, num primeiro momento, podem liberar os artistas da fórmula da indústria
fonográfica, mas também geram uma nova fórmula de sucesso, baseada no intenso uso
da internet e das comunidades virtuais para a divulgação de bandas de rock e artistas da
MPB. Os primeiros alcançando sucesso, assinando com as tradicionais gravadoras,
excursionando e lotando casas de shows e festivais.
O rádio e os discos impulsionam a indústria fonográfica e são, no início, as
maiores plataformas de divulgação e comercialização da música pop, mas a imagem
pública e midiática aparece como fator decisivo na fórmula de sucesso dessa música e
artistas investem nos formatos audiovisuais, passam a estrelar filmes, programas de
televisão e, finalmente, produzem videoclipes.
Imagem musical e expansão dos registros de processo
Surge uma cultura da imagem musical, quando os artistas da música pop passam
a criar música usando todas as plataformas audiovisuais disponíveis, seja como
ferramenta criativa ou como meio de divulgação comercial. Os Beatles ajudam a fundar
essa cultura e são considerados os precursores do uso da linguagem videoclíptica
quando estrelam o filme “A Hard Day‟s Night”. A criação da MTV, a Music Television,
populariza de vez o videoclipe e os artistas da música pop ganham enorme espaço na
indústria do entretenimento.
O videoclipe pode ser entendido como mais um campo de procedimento de
criação para o artista e é entendido como uma “extensão da música” (SOARES/
JANOTTI). Se o videocassete impulsiona a produção de videoclipes, a chegada ao
mercado do DVD, com espaço de armazenamento e qualidade muito superiores aos do
vídeo, populariza os “extras”, material audiovisual informativo sobre a obra e/ou artista,
que incluem desde entrevistas e comentários de artistas e produtores, até trailers de
filmes e cenas de bastidores de produção. O material extra torna-se comum nos DVDs
de filmes e os making ofs despertam especial interesse no público, sendo produzidos
com bastante frequência e incluídos como “bônus”. Sob o olhar da crítica de processo,
eles são entendidos como registros de processo de criação e, relacionados à obra e aos
outros documentos de processo, oferecem grande volume de informação de processos
criativos para crítica e público, mesmo quando produzidos para fins comerciais.
No campo da música pop o formato do making of é entendido como uma
extensão dos registros de processo criativo. Para os processos de criação da música,
“arte do tempo”, a partitura representou por muito tempo o único recurso de registro de
processo, mas um registro de natureza material diversa da sonora. O artista dependia
dela, da notação musical, para fazer durar um momento do processo e para, enfim,
trazer ao mundo sua obra, que só “existia” no ato da interpretação. Traçar o percurso
histórico-criativo de uma obra musical dependia da leitura dessas partituras, que
poderiam guardar as anotações, mudanças e rasuras do artista, leitura que, por sua vez,
dependia de uma “alfabetização” na linguagem musical e este tipo de manuscrito é,
ainda hoje, mais raro, de difícil acesso, alguns poucos podendo ser encontrados em
museus.
A notação musical foi durante muito tempo a única forma de registro de
processo de criação musical, até o desenvolvimento da técnica de gravação do som
mudar o rumo da história, chegando finalmente ao surgimento da indústria fonográfica.
A possibilidade de se gravar música, e de reproduzi-la, expande as formas de registro da
obra e do processo de criação musical, o artista podendo fazer também “musicalmente”,
ou seja, sonoramente, suas anotações, tentativas, experiências e guardá-las sob o mesmo
formato.
A indústria fonográfica, cada vez mais especializada, introduz a lógica de
produção industrial ao fazer musical e o desenvolvimento de sofisticadas técnicas de
gravação em estúdio conduz a uma expansão dos registros de processo de criação da
música pop atrelada ao avanço das mídias e novas tecnologias. Das fitas magnéticas aos
arquivos digitais, se a expansão dos registros de processo de criação musical significa a
expansão da memória do artista, da música e de seu processo criativo, ela vai significar
também a expansão da memória da obra, da sua história, inclusive para público e crítica.
Como os artistas plásticos, escritores, cineastas, enfim, como todo artista, o
artista da música traz diferentes recursos para seu processo de criação e a utilização das
mídias aparece ao mesmo tempo como ferramenta de trabalho e como indício da relação
íntima que a música pop desenvolveu com a cultura de massa. A imagem surge como
forma de divulgação da obra e, levando a ideia de expansão de registro de processo ao
extremo, com o crescente interesse do público pelos “bastidores” do trabalho artístico, o
registro em vídeo de processos de criação de álbuns, shows, turnês e videoclipes
desembocam na produção em série dos making ofs de grupos, bandas e cantores da
música pop.
Antes deles, entretanto, os filmes documentários já eram experimentados como
forma de registro de processo de criação de bandas de rock e outros artistas desde a
década de 1960, seja como meio de divulgação e publicidade, seja como meio de
experimentação de obras que se realizaram no cruzamento de linguagens e no diálogo
constante com os meios de comunicação e outras formas de arte. Os documentários de
processo e os making ofs de músicas são exemplos da estreita relação da música pop
com a cultura da imagem e da mídia e podem ser entendidos no contexto da “imagem
musical”. Tanto um, quanto outro pode ser entendido como documento de processo e,
ao revelar em imagens “vivas”, mesmo que parcialmente, o fazer artístico por trás da
obra, ao registrar em formato audiovisual o artista em ação, obra e artista sobrevivem
cultural e historicamente.
Processo de criação da música pop: o caso Let it Be
O documentário Let it Be, dos Beatles, vem de encontro às reflexões abordadas
na pesquisa sobre o processo de criação da música pop e é um registro no formato
audiovisual do processo de criação coletivo da banda britânica. As cenas do filme
dirigido por Michael Lindsay-Hogg, ainda que nos limites e na parcialidade da
montagem cinematográfica, permitem fazer uma leitura de processo dos álbuns Let it Be
e Let it Be... Naked, além de músicas do penúltimo – ou último lançado antes do grupo
se separar - disco dos Beatles, Abbey Road. 26
O processo coletivo flagrado pelo documentário acontece na interação de quatro
sujeitos criadores individuais, subjetivos e distintos, mas que, atuando para a realização
de um projeto poético em comum determinado, formam um núcleo criativo. O núcleo
criativo, por sua vez, opera em constantes interações com agentes internos - produtores,
técnicos e artistas colaboradores – e externos - familiares, amigos, empresários e
executivos da gravadora – ao processo e em tensão contínua gerada pelos embates da
individualidade criativa e artística de cada integrante da banda e do núcleo criativo e seu
projeto poético com as exigências mercadológicas da dinâmica da indústria fonográfica
e os interesses da gravadora.
Como todo projeto artístico, Let it Be começa com uma tendência e vai se
organizando ao longo do processo de criação. Os objetivos pouco claros no início das
filmagens do documentário foram sendo moldados ao longo do percurso criativo, sendo
26
Faixas dos álbuns: Let it Be: 1 - “Two of us”, 2 - “Dig a pony”, 3 - “Across the universe”, 4 - “I me
mine”, 5 - “Dig it”, 6 - “Let it be”, 7 – “Maggie Mae”, 8 – “I‟ve got a feeling”, 9 – “One after 909”, 10 –
“The long and winding road”, 11 – “For you blue”, 12 – “Get back”; Abbey Road: 1 – “Come together”, 2
– “Something”, 3 – “Maxwell‟s silver hammer”, 4 – “Oh! Darling”, 5 – “Octopus‟s garden”, 6 – “I want
you (She‟s so heavy)”, 7 – “Here comes the sun”, 8 – “Because” , 9 – “You never give me your money”,
10 – “Sun king”, 11 – “Mean Mr. Mustard”, 12 – “Polythene Pam”, 13 – “She came in through the
bathroom window”, 14 – “Golden slumbers”, 15 – “Carry that weight”, 16 – “The end”, 17 – “Her
majesty”; Let it Be… Naked: 1 – “Get back”, 2 – “Dig a pony”, 3 – “For you blue”, 4- “The long and
winding road”, 5 – “Two of us”, 6 – “I've got a feeling”, 7 – “One after 909”, 8 – “Don't let me down”, 9
– “I me mine”, 10 – “Across the universe”, 11- “Let it Be”.
ajustados de acordo com decisões de caráter artístico e outras de caráter prático, ligadas
aos mais diversos interesses da banda, de seus integrantes e ainda dos empresários e da
gravadora. O processo, feito de idas e vindas, começa oficialmente em 1969 e só chega
a uma de suas possíveis versões finais, aquela entregue ao público, no ano seguinte,
com o lançamento simultâneo do documentário Let it Be nos cinemas e do álbum
homônimo, reproduzido pelo produtor Phil Spector.
Ao escolherem a linguagem imagética para registrarem seu processo de criação
através de uma mídia de massa, o cinema, os Beatles tornam seu processo criativo, e,
assim, a reflexão sobre os mesmos, públicos. Ao contrário dos artistas geralmente
estudados pela crítica de processo, que guardam suas reflexões sobre obras em processo
para a esfera do privado, numa conversa consigo próprios, os Beatles o fazem
publicamente, quando o filme é lançado no cinema, concomitantemente ao lançamento
do álbum. Pode-se dizer que a reflexão sobre o processo e o (re) acionamento das redes
do processo de criação de Let it Be foram feitos primeiro no âmbito privado da
produção das músicas em estúdio, e, depois, no âmbito público, pela recepção – fãs,
espectadores nos cinemas e imprensa (crítica especializada, jornalistas, mídia).
O lançamento do filme e do álbum gera grande repercussão pública e midiática e
os Beatles e sua obra voltam a ser assunto entre fãs e na imprensa. Há, portanto, uma
reflexão sobre processo feita no universo público, considerando-se que o documentário
lançado nos cinemas provoca uma discussão feita pela recepção pública da obra, ainda
que levada como um testemunho do fim da banda e com uma postura próxima à do
voyeur, o espectador de Let it Be tendo acesso ao universo privado da banda. O
documentário acaba levantando, ou apresentando, entre o público “leigo” ao mesmo
tempo o interesse pelo processo criativo dos Beatles e algumas questões sobre processos
de criação coletivos, musical, especificamente, e artísticos, em geral, comprometidos ou
envolvidos com a indústria cultural.
A opinião pública, ao entrar em contato com obra – o álbum – e processo – no
filme Let it Be – simultaneamente, ao mesmo tempo em que desencadeia a reflexão
sobre aquele processo na produção de comentários e críticas na imprensa, ao olhar da
crítica de processos, o faz como parte integrante da rede de criação dos produtos da
indústria cultural. O processo de criação vira assunto, mas as relações público – artista –
obra - mídia ora estabelecidas na cultura de massa e características da produção artística
da indústria cultural mediam essa reflexão.
Se vemos que a banda tem consciência de processo e se questiona em termos de
critérios e procedimentos durante o processo registrado em Let it Be, podemos, pelo
volume de informação que até hoje se produz sobre aquele processo, dizer que a
reflexão dos artistas também acontece a posteriori. O fato de essas informações serem
produzidas quase sempre pela mídia – matérias, reportagens e entrevistas em jornais,
revistas e internet – indicam que essa reflexão acontece não apenas, mas também no
âmbito público.
Os relançamentos da obra, em especial Let it Be... Naked, demonstram que os
Beatles, o núcleo criativo do projeto registrado pelo documentário, não haviam, afinal,
concluído Let it Be e consideravam a obra entregue ao público insatisfatória em relação
ao projeto poético do grupo e o que haviam estabelecido como princípio direcionador
daquele trabalho. Ao lançarem um “novo álbum” com o que resultou do processo
criativo de 1969, voltam à reflexão do processo iniciado naquele ano, reflexão que,
assim como a obra, se dá na continuidade do tempo e do processo. Desse modo, o olhar
do artista sobre o processo de criação se deu tanto durante o processo, como descrito no
capítulo 3, como depois, um olhar retroativo, acionado em entrevistas na imprensa,
muitas vezes, e nos relançamentos do álbum – Let it Be ... Naked, 2003, e Let it Be,
2009, incluindo textos no encarte e um mini documentário com falas de Ringo Starr,
George Harrison, Paul McCartney e John Lennon sobre o processo de criação do álbum.
O estudo do documentário Let it Be aponta características de caráter geral dos
processos de criação coletivos e da música pop – principalmente no aspecto interativo e
comunicacional e nas relações com a mídia. As reflexões e análises feitas sobre o
processo criativo dos Beatles no filme indicam como processos de criação coletivos
podem acontecer na busca de equilíbrio entre objetivos e projetos poéticos individuais e
projeto poético coletivo e como o processo criativo de artistas da música pop se
desenrola no conflito entre projeto poético e produto cultural.
Em Let it Be, podemos flagrar como cada integrante dos Beatles atua tanto como
agente criativo, quanto como observador do processo – um do outro. Sendo o grupo
composto por quatro artistas, há quatro processos criativos individuais que compõem
um processo coletivo, feito de colaborações e contribuições, mas também de
concessões, aprovações, reprovações e observações. Poderíamos dizer que essa seria
uma característica intrínseca a todos os processos de criação coletivos, cada um dos
agentes criativos atuando ora como criador, ora como observador, melhor, como um
leitor intermediário, mas que cria e interfere no processo individual do outro em nome
do núcleo criativo e do projeto poético coletivo.
Documentários de processo, making ofs, música e crítica de processo
A crítica de processos lida hoje com os mais diversos tipos de arte e atravessa
um período em que o interesse pelos processos de criação artística cresce entre a
comunidade artística, acadêmica e crítica, na imprensa e no público. São inúmeras as
exposições, os eventos e projetos culturais pautados pela abordagem de processo e o
crítico ou pesquisador se depara com um universo criativo em expansão, onde a ideia de
“manuscrito” vai além dos rascunhos, esboços ou anotações em papel que guardam
momentos do percurso criativo de uma obra de arte e revelam o pensamento criador em
ação.
Principalmente quando o olhar da crítica se volta às obras contemporâneas, em
diálogo constante com as linguagens midiáticas, e aos produtos da indústria cultural,
com suas conflituosas relações entre arte e mercado, o pensamento sobre processos de
criação artísticos se abre à incorporação de novas ferramentas, novos recursos e novas
possibilidades de se criar e de se debruçar sobre percursos criativos. Uma vez
absorvidas as linguagens e a cultura da mídia e as tecnologias de produção e
reprodução, como vemos nos processos de criação da música pop e do cinema, entre
outros, elas passam a fazer parte também dos estudos de processo. E ainda, quanto mais
se cruzam as linguagens midiáticas, recursos tecnológicos e processos de criação
artística, mais se expande o estudo desses processos, especialmente na medida em que a
documentação dos mesmos acontece sempre mais, das mais variadas formas.
Os documentários de processos e os making ofs podem, nessa perspectiva, serem
lidos como formas atuais, pós-modernas, dos manuscritos. São híbridos e polêmicos, no
sentido de gerar questionamentos sobre sua “legitimidade”, como as obras da cultura de
massa, os produtos da indústria cultural. Trazê-los para as pesquisas de processo
expande o campo de atuação da crítica hoje e gera uma reflexão atualizada, em
harmonia e reciprocidade com a produção artística e cultural de nosso tempo.
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Discografia:
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Records/Parlophone/ EMI Records, 1969.
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UK:
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1970.
4) ________________. / MARTIN, George. The Beatles Anthology 1. UK: Apple Corps
Ltd./ EMI Records Ltd., 1995.
Anexos
1) Legendas do documentário Let it Be, em português.
2) Matérias Rolling Stone Brasil, setembro 2009, p. 80 – 93.
3) Cópia parcial/ trechos da entrevista de John Lennon para a Rolling Stone, janeiro
1971, publicada em 2007 no livro The Rolling Stone Interviews, p. 36 – 41/ 44 – 45/
48 – 49/ 52 – 63.
1) Legendas Let it Be em português
1
Parte I: As sessões no Twickenham Film Studios
(sequência de cenas sem falas; a banda ensaia “Don't let me down”)
McCartney: Vamos só tocar as “melosas”. Podemos fazer melhor... Mas não, se não
houver continuidade e ficarmos voltando... Pode demorar o dia inteiro, às vezes... Eu
sei, então vamos em frente agora.
(“Maxwel's Silver Hammer”)
(?): “Bang, bang Maxwel.”
Harrison: Está me deixando afiado!
McCartney: “Dois, três... B,G,B,B, Em...A7...D...E,A (AA)...B...Am...A7...#E#D,#E#-E
...”
McCartney: Jim Lord! Posso chamar sua atenção? Tomou choque!
Harrison: Acabei de tomar um choque!
McCartney: Acabou de tomar um choque, tudo isso!
Técnico (Jim Lord?): Como foi George? Foi quando tocou nele?
Harrison: Eu segurei nos dois juntos. (...) Os dois! Segura os dois bem firme, nas
pontas.
Lord: Não fez nada!
McCartney: Agora cante essa música que tocamos.
(McCartney, Harrison e Lennon riem)
McCartney: Começou aqui.
Harrison: (...) E tenho sapatos de borracha, também!
Lennon: E você é feito de madeira!
Harrison: Segure esse ao mesmo tempo também e veja o que acontece. (...) Deixa ver
de novo, vamos tentar.
1
referência nas legendas da cópia alternativa
McCartney: A coisa óbvia é que tem a ver com a guitarra que está tocando, também.
Harrison: Sim, só que ela não está ligada. Aposto que não... Ai! (outro choque)
McCartney (para a câmera): Se esse garoto morre, vocês se ferram.
(“I've got a feeling”)
McCartney: Está descendo rápido demais... Deveria ser sem saltos. (...) Não deveria
dar saltos notáveis. Tente. Siga. Caindo, caindo... Não deveria fazer assim... Vou tentar
cantar isso para você... Okay. A parte do meio, então. Um, dois, três, quatro.
Lennon: A rainha diz “não” aos membros do FBI que fumam maconha.
McCartney/ Produtores/ Hogg (?): Adorável, isso é ótimo. Uma verdadeira viagem no
tempo.
Hogg: Qual era a que estavam fazendo na outra noite?
McCartney: Teve “One after 909”.
(?): Oh, sim! Aquilo foi fantástico!
(?): Ótimo
(?): Qual?
McCartney: Porque eu, na verdade, nunca tinha pensado nela, primeiro. Porque foi
uma das primeiras músicas que fizemos. (...) Nós costumávamos matar aula, íamos para
minha casa e nós dois sentávamos e escrevíamos... 'Love me do', 'Too bad about
sorrows'... Tem muita coisa dessa época... Uma centena, apesar de nunca termos
gravado porque não eram músicas sofisticadas. (...) Sabe, nós pensávamos, 'é trabalho
demais'...
(corte)
Starkey: Bom dia, Paul!
McCartney: Bom dia, Rich!
Starkey: Como você está esta manhã?
McCartney: Okay!
(Starkey e McCartney tocam piano a quatro mãos)
Starkey: Bem, eu já terminei.
(corte)
Lennon: Bem, eu já troquei.
McCartney: Okay, vamos fazer de novo, desde o início... Um, dois, três, quatro...
(...)
Perto do microfone!
Lennon: OK!
McCartney: Sabe, porque eu não consigo te escutar...
Lennon: Não precisa ser 'cricri'...
(...)
McCartney: Os riffs... Não há riffs...
(…)
Não, mas em “You and I”...em...
Harrison (cantando): “You and I”
Harrison/ McCartney (cantando):“Are memories”...
McCartney: É, mas não está junto (sincronizado)! Não está nem soando junto!
Harrison: Então podíamos continuar tocando até nós...
McCartney: Ou podíamos parar e dizer que não está sincronizado!
Harrison: Se tivéssemos isso gravado aqui agora, você jogaria isso fora na hora.
McCartney: Sim, certo, mas está complicado agora, então se pudéssemos simplificá-la
e depois, então, complicá-la, onde precisar de complicação...
Harrison: Mas não está complicada... Tocarei só os acordes se você quiser.
McCartney: Não, você sempre fica irritado. Estou tentando ajudar você, mas sempre
acabo irritando você...
Harrison: Você não está me irritando, de forma alguma...
McCartney: Você sabe o que eu quero dizer.
Harrison: Porque pode demorar mais se você, sabe...
McCartney: Olhe, não estou tentando dizer isso, você está tentando fazer parecer que
quero dizer isso. Lembra o que falamos no outro dia? Eu não estou tentando provocar
você. Eu realmente estou tentando dizer 'Olha, gente, a banda!'. Então, devemos tentar
assim, sabe?
Harrison: É estranho que...
McCartney: Eu sei, é que nessa música você estava tocando a guitarra como tocou em
'Hey, Jude' e eu não acho que.../ é que nessa música é assim, 'devíamos tocar a guitarra
como em 'Hey Jude'?’, e eu não acho que devíamos.
Harrison: Tudo bem! Não me importo, eu tocarei o que você quiser ou não tocarei
nada, se você não quiser que eu toque. O que for que te agrade, eu o farei.
Lennon: Acho que podíamos começar a ouvir as fitas agora e ouvir o que é. Será que é
só porque não estamos a fim ou a guitarra soa bem/ legal, de verdade?
(...)
Vamos tentar com menos em “Nothing's gonna change”. Vamos cantar um por
vez e dois no final.
(...)
Diminua...
(“Nothing's gonna change”/ “Dig a pony”)
Alguém tem uma rápida?
(corte)
Harrison: Chama-se “I me mine”. Quer que eu cante para você? Eu não me importo se
eles não quiserem colocar isso no show/ programa (“tv show”, lembrando que o
documentário foi inicialmente produzido para passar na televisão). Podem colocar no
musical... É uma valsa pesada.
Parte II: Nos estúdios da Apple
Harrison: “For you blue”.
Lennon: Eu curto “Pigmeu” de Charles Hortry and The Deafaids. Página 1, em que
Doris transa. Estou inventando isso...
McCartney: Sabe o capítulo dois, “I met her on a Monday and her head stood still, she
run, run, run...”
(...)
Ah, assisti a um filme ontem à noite!
Lennon: Qual?/ O quê?
McCartney: Eu estava na casa do Maharishi. Eu tenho o filme todo. Tem uma abertura
fantástica.
Lennon: A parte que tem o helicóptero?
McCartney: É. Eu notei você entrando nele... É incrível. Vocês têm que ver. Sela/ bate
com (comprova) tudo o que estamos (ou estávamos) fazendo. Inacreditável.
Hogg: O que estão/estavam fazendo?
McCartney: Eu não sei exatamente, mas é como se, de alguma forma, nós deixássemos
nossas personalidades de lado. Não fomos/ éramos muito verdadeiros ali. Sabe, nós
podíamos como que se esconder atrás de alguém, como na escola, não é? Mas você
pode ver no filme que é bem parecido com a escola/ que é uma escola bem difícil e
devíamos ter dito, como, “o que precisávamos”.
Lennon: Você devia chamar o filme “O que fizemos em nossas férias”.
McCartney: Bem, você sabe...
Lennon: Mas aposto que não vai chamá-lo assim.
McCartney: Tem uma tomada longa com você andando com o Maharishi bem distante
e simplesmente não é você, sabe? É algo... sim, do tipo, “conte-me velho mestre”.
Como naquela outra noite quando você subiu no helicóptero com ele e pensou que
talvez ele te dissesse “a resposta”!
(corte/ sequência jam “Besame Mucho”)
Starkey: Sempre que o vejo, ele diz “olá” e entra...
Harrison: Ele coloca seus braços...
Starkey: Cada vez que o vejo, ele sempre diz “olá”, daí... ele esquenta a água.
(Harrison ao violão e Starkey ao piano)
Harrison (vai ao piano): Faça assim e volte aqui. A... E daí vai para Dm. E depois volta
para C.
(Starkey toca piano)
Harrison: Então vou tocar no violão.
(Lennon chega e assume a bateria/ Billy Preston aparece de costas, de camisa laranja)
McCartney: Você já tocou a bateria?
Starkey: Sim, terrível, terrível. É bateria rudimentar.
McCartney: Sim, é bem rudimentar, mas “Get back” foi ótima.
Starkey: Só “Get back” ficou boa. Mas nada de especial.
Lennon: Isadora Duncan trabalhava no Telefunken…
Harrison (?): “You really got a hold on me”, de Smokey Robinson.
(“The long and winding road”)
McCartney: Tudo bem, garotos, chega. Vai o dia todo/ Isso pode durar o dia todo.
Lennon: Veja, Mal (Evans), você vai ter que ter todos esses instrumentos afinados
juntos. Os órgãos, o piano têm que ser/ estar afinados juntos.
(Jam; Preston ao órgão; George Martin toca chocalho; Linda McCartney tira fotos)
(corte)
McCarney: Sempre que nós conversamos, nós temos certas discussões como a do
George. Quando eu pergunto “o que você quer”, ele diz... Mas é errado, é muito errado
porque ele não sabe... Ele diz: “nada parecido com 'Help' ou 'A hard day's night'” e eu
concordo. Mas filmes, porque isto é um filme, e ele agora não se importa em fazer este.
Mas é aquele tipo de coisa “sem shows/ programas de tevê”, “nada de plateia”... Quero
dizer, quando voltamos de Hamburg, fizemos Leicester du Monford Hall, ou, não sei,
onde foi o conventry. Tocamos no ballroom e nós tivemos a pior primeira noite e
estávamos todos nervosos e foi terrível. E tocamos na noite seguinte, e na próxima, e foi
um pouco melhor. E da próxima, hmmm, e da próxima, foi demais (“além da conta”) e
nós tocamos bem e nos acostumamos com a plateia e podíamos lidar com a plateia e
parecia que não havia mais ninguém ali. Mas havia uma coisa nova, algo de outro tipo,
e tinha um cara na frente vendo você tocar. Estávamos “driving into it” (levados/
envolvidos/ influenciados pelo momento). E aqueles shows, se pudéssemos ter gravado,
seriam os melhores. Porque é aquela coisa de equilíbrio. E nós somos bons nisso, uma
vez superado o nervosismo. Mas parece que há uma barreira de nervosismo que está aí
agora. Não podemos superá-lo agora a não ser que fôssemos ao Albert Hall e
recuperássemos isso de uma vez / “get in right back”. No fim, a alternativa a isso é dizer
que nós nunca mais faremos com plateia novamente. Mas se nós pretendemos manter
qualquer tipo de contato com/ relação com esse/ nesse cenário... Eu entendo quando o
George diz que não faz sentido porque é como “Wose Traviski” e está na música, sabe,
ele também não se levanta mais e toca (...) para eles.
(sequência estúdio/ gravação de “Two of Us”, “Let it Be”, “The Long and Winding
Road”)
Parte III: A apresentação no telhado da Apple
Starkey: Onde é o melhor lugar para eu tocar? / Qual o melhor caminho? ... Pra não
atrapalhar?
Hogg (?): Por aqui, eu acho. (...) Bem seguro, o que acha daqui?
Starkey: Mal, você me “pregou” no lugar errado!
Hogg (?): Pegue o clapper, pegue o clapper, okay.
Lennon (?): Nós tivemos um pedido de Daisy, Morris e Tommy.
(“povo-fala”/ pessoas nas ruas comentam a apresentação surpresa no telhado da Apple)
Senhor 1: Eu acho que os Beatles são demais. Não tem ninguém melhor. Eles são
únicos, têm estrela própria. Acho que são uns caras legais (“lovely”), boa qualidade,
cantam bem, o que mais posso dizer? São todos boa gente.
Senhora 1: Eu simplesmente não vejo sentido!
Jovem/ Mulher 1: Sim, eu acho ótimo, quero dizer, deixa o trabalho no escritório mais
animado, de qualquer forma.
Homem 1: esse tipo de música é legal, no seu devido lugar, é agradável. Mas acho um
abuso nessa região de negócios/ centro comercial/ empresarial. Atrapalha os negócios
da região/ área.
(?): Mais uma!
Jovens/ Mulheres: Fabuloso, com certeza fantástico.
Homem 2: É bom ter alguma coisa de graça neste país, no momento, não é?
Homem 3: É o disco novo deles? Ótimo! Sou a favor!
(movimento da polícia)
Lennon: Oh, Dony, boy, a polícia está vindo.
(?): “Dig a pony”.
Lennon: Vou precisar da letra dessa.
Starkey: Espere!
McCartney: Você está tocando no telhado de novo e isso não presta! Você sabe que
sua mãe não gosta disso, ela fica brava. Ela vai mandar prender você. “Get back”.
(...)
Obrigado, Mo.
Lennon: Em nome do grupo, eu gostaria de agradecer e eu espero que passemos na
audição (teste).
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