IMAGENS DO COTIDIANO: ESCRITA LITERÁRIA E FONTE

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IMAGENS DO COTIDIANO: ESCRITA LITERÁRIA E FONTE HISTÓRICA
Maria do Socorro de Sousa Araújo *
RESUMO
Nas produções literárias, histórias do cotidiano é um tema recorrente que convida leitores a pensar
cenários imaginários re-arranjando enredos que se tornam conhecidos pelo contato com a leitura.
Na história, o cotidiano é uma temática que tem motivado pesquisadores porque interessa conhecer
não somente as tramas diárias, mas as formas como as pessoas comuns pensam e organizam suas
vidas. Nesse sentido, aproximando e/ou distanciando história e literatura, este texto tem o propósito
de apresentar uma leitura comparada entre as vivências humanas que compõem a obra “O Cortiço”,
de Aluísio de Azevedo, e as concepções formuladas por viajantes europeus sobre as populações
tradicionais da Amazônia brasileira, no final do século XIX. Como foram concebidos os moradores
de “O Cortiço” e como foram percebidos os amazônidas tradicionais? Como as narrativas literárias
e históricas sobre esses dois mundos se aproximam e se distanciam? A contribuição sobre “culturas
híbridas” de Nestor Canclini (2003), o conceito de representação para entender práticas culturais
trabalhado por Roger Chartier (2010), e as artes de inventar o cotidiano discutido por Michel de
Certeau (2002), são suportes teóricos para pensar essas questões. Da mesma forma, as abordagens
sobre identidade social apontadas por Michel Pollak (1992) e o habitus de Pierre Bourdier (1998),
ajudam a entender a “fabricação” do cotidiano. Por fim, as “artes de inventar o passado” de Durval
Muniz (2007), possibilitam estabelecer um diálogo mais consistente e promissor entre a literatura e
a história.
PALAVRAS-CHAVE: Diálogos. Cotidiano. História. Literatura. Amazonas.
Historicamente, o começo do século XVI é assinalado como o tempo das Grandes
Navegações, conquistando mares nunca d’antes navegados. As conquistas ibéricas tornaram real
uma nova configuração do mundo ocidental quando fincaram marcos europeus – bandeira, espada e
cruz – em terras para além dos mares até então desconhecidas. Atravessando o Atlântico os
conquistadores inventaram o Novo Mundo e o denominaram de América. A partir disso, muitos
foram os fidalgos e não-fidalgos viajantes, cronistas, cientistas e artistas que em viagens oficiais ou
não, passaram pelas Américas criando um formato para esse “mundo novo” e assim, iam instituindo
cenários enxertados pelas concepções de civilidade, onde predominavam as tradições da velha
Europa. Não foram poucas as imagens e os escritos produzidos e publicados que, documentando
múltiplas percepções, fundaram um conhecimento-verdade sobre os achados ibéricos.
Nos idos de 1535, o espanhol Francisco de Orellana fez parte de uma expedição para explorar
as posses hispânicas nos Andes, juntamente com Francisco Pizarro (de quem era parente) quando da
___________________
Doutorado em História Cultural pela UNICAMP e docente do Curso de História da Universidade do Estado de
Mato Grosso (UNEMAT) – Endereço eletrônico: [email protected]
conquista do Peru. Entre 1540 e 1542, navegando as águas do rio Orenoco e afluentes em busca de
ouro, o viajante Orellana alcançou o Rio Negro e em seguida, o Amazonas. Nos registros do
dominicano frei Gaspar de Carvajal – relator da viagem – a expedição encontrou “uma cidade de
pedra habitada por mulheres guerreiras de cabelos longos que andavam nuas, portavam arcos e
flechas, usavam templos dedicados ao sol, adornados de ouro e prata” (CASTRO, In: Papavero,
2002, p. 85).
Supostamente, esse lugar localizava-se na foz do Rio Jamundá, nas imediações do Rio Negro.
Ainda que essas mulheres nunca tenham sido encontradas, o imaginário sobre elas produziu relatos
que fundamentaram deliberações da realeza ibérica. Numa alusão aos traços da cultura précolombiana, essa descrição (re)criou o mito das amazonas européias e levou o rei de Espanha
Carlos V a batizar o rio até então nominado de Rio Grande, Mar Dulce ou Rio da Canela, de Rio
Amazonas.
Quase sempre, era espantoso o olhar dos europeus sobre os costumes e tradições das
populações pré-colombinas, sobretudo, quando se deparavam com as histórias contadas por
terceiros e tomadas como verdades, que passavam a compor as narrativas dos viajantes. O diálogo
entre Orellana e um nativo, registrado por Frei Carvajal, no século XVI, ilustra essa condição
excêntrica:
En este asiento, el Capitán tomo al índio que se había tomado arriba, porque ya le entendia
por un vocabulário que se había fecho. [...] El Capitán le preguntó que mujeres eran
aquellas que habían venido ales ayudar y darnos guerra: el índio dijo que eran unas mujeres
que residian las tierras adentro y que él había estado muchas veces allí e había visto su trato
y vivienda, que como su vasalo iba a llebar el tributo cuando el señor lo enviaba. El Capitan
le preguntó si estas mujeres eran muchas: el índio dijo que si y que el sabía por nombre
setenta pueblos y contólos delante de los que alli estábamos, y que en algunos había estado.
[...] El Capitán le dijo que como no siendo casadas, ni residia hombre entre ellas, se
empreñaban: él dijo que estas índias participan com índios em tiempos y cuando les vienes
aquella gana juntan muchas copias de gente de guerra y van a dar guerra a muy gran señor
que reside e tem su tierra junto a la destas mujeres y por força los traen a sus tierras y tiene
consigo aquel tiempo que se lês antoja, y despues que se hacen preñadas lês tornan a enviar
su tierra sin lês hacer outro mal; y después cuando vien el tiempo que han de parir, que si
paren hijo le matan e le envían a sus padres, y si hija, la crian com mui gran solemnidad y
la inponen en las cosas de la guerra. (PAPAVERO, op. cit. p. 85).
A acolhida de informações dessa natureza povoava outros relatos (oficiais ou não) e,
substancialmente, representava um atrativo considerável na literatura dos viajantes. No século
XVII, o missionário e cronista espanhol Cristóbal de Acuña, relator da expedição de Pedro Teixeira
(1639), escreveu a obra Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazonas, publicada em 1641.
Nesta, o autor também fez referência às mulheres guerreiras denominadas de amazonas, dizendo
que
[...] en una de las principales cosas que se asseguran, era el estar poblado de uma província
de mujeres guerreras, que sustentándose solas sin varones, con quienes, no más a cierto
tiempos tenia cohabitación, vivian em sus pueblos, cultivando sus tierras, y alcanzando
com el trabajo de sus manos todo lo necessário para su sustento. (In: PAPAVERO, p. 197).
Esses relatos se inscrevem entre a lenda e o mito. Assumem caráter lendário quando
combinam fatos reais com irreais, veiculadas por narrativas fantasiosas e disseminadas pela tradição
oral através dos tempos. Também se situam nos territórios do mythos (mito) porque adquirem
caráter simbólico ao elaborarem personagens para explicar acontecimentos e singularidades
humanas se associando à ritualização de costumes. Ambas as formas são produtos da imaginação
humana que constroem redes de significações para explicar o real da vida, ainda que este real não
se constitua como portador da verdade em si mesmo. De forma geral, os relatos são habitados por
pessoas que interagem entre si, que tem propósitos distintos e assim, a idealização do real se dá pela
produção de sentidos originados nessas relações humanas, pois o imaginário, segundo Albuquerque
Júnior (2007, p. 45), “se estrutura a partir das imagens apreendidas na relação com o outro”.
Ao longo dos tempos, narrativas mitológicas sempre produziram e/ou exerceram certo
encantamento/curiosidade que seduz/encanta os mais variados públicos, sobretudo, se
considerarmos a tradição oral que veicula a disseminação de figuras míticas. Mesmo adquirindo
uma natureza literária e/ou ficcional, os mitos tendem a incorporar valores sócio-culturais para
representar experiências humanas. Uma recomposição do mito greco-latino das “mulheres
guerreiras” também reapareceu nos escritos de viagem – Relation abrégée – do acadêmico e
naturalista francês Charles-Marie de La Condamine, em meados do século XVIII:
Se é que já pôde haver amazonas no mundo, foi na América, onde a vida errante das
mulheres que seguem seus maridos para a guerra, e que não são mais felizes em sua vida
doméstica, deve ter feito nascer nelas a ideia e lhes fornecido ocasiões frequentes de se
livrar do jugo de seus tiranos, procurando estabelecer um ambiente onde pudessem viver
com independência e, ao menos, não serem reduzidas à condição de escravas ou burros de
carga. (La Condamine, 1745, p.110-111, apud Safier, 2009, p. 107).
Ao percorrer as Américas, incluindo o Brasil, La Condamine produziu narrativas que
registraram impressões e percepções do que viu na e do que soube sobre a Amazônia. A viagem de
La Condamine, assim como outros letrados europeus, tinha a finalidade de refinar os debates sobre
a configuração exata da Terra, a partir de conhecimentos empíricos. Explorando os escritos da
viagem e o comportamento do francês, o historiador canadense Neil Safier (2009) apresenta a
dimensão exótica nas percepções de mundo para além dos mares, como também analisa trechos de
relatos pelos quais os europeus ilustrados traduziram, dessa forma, lugares e populações
amazônicas.
Fazendo uma análise do comportamento do viajante tramando formas para produzir suas
verdades sobre a Amazônia, Safier (2009, p. 94) afirma que durante a expedição, ele [La
Condamine] “coletou cuidadosamente mapas, manuscritos, correspondência epistolar e histórias
missionárias dos indivíduos que encontrou ao longo de seu caminho”. Safier segue afirmando que
ao mesmo tempo em que La Condamine teve acesso às narrativas e documentos privilegiados
também “apoiou-se no conhecimento local e na assistência material de crioulos, jesuítas, ameríndios
e escravos de origem africana”.
Dessa forma, o letrado europeu tomou essas informações como verdades empíricas
constituídas e, ao reproduzir e fazer circular esse imaginário coletivo, o transformou em históriasaber de grupos tradicionais dos sertões amazônicos. Com base nessa leitura, podemos pensar que
as amazonas do viajante francês foi o resultado de uma operação mental que ele processou cruzando
seu entendimento prévio sobre o mito grego e as condições de vida que grupos de mulheres – índias
e negras – enfrentavam na América colonial, quando estas se organizavam e elaboravam maneiras
de fugirem da escravização colonial.
Nesse ponto, é oportuno ressaltar que a condição de mulheres sozinhas – índias e negras,
solteiras e/ou viúvas – resistindo à escravidão e/ou guerreando pela própria natureza de
pertencimento às sociedades tribais, equivocadamente, tenha levado o francês a certificá-las como
as amazonas americanas. Mostrando-se um pouco mais cauteloso, o naturalista alemão Alexander
Von Humboldt, que explorou o Rio Amazonas no começo do século XIX, atribuiu credibilidade ao
relato de um missionário para dizer o seguinte sobre o assunto:
Não que haja amazonas nos rios de Cuchivero, mas que, em diferentes partes da América,
mulheres, cansadas do estado de escravidão em que são mantidas pelos homens, se
reuniam, como os negros fugidos, num quilombo; que o desejo de conservar sua
independência as transformou em guerreiras; [e] que elas receberam, de qualquer grupo
vizinho e amigo, visitas, talvez um pouco menos metodicamente do que afirma a tradição.
Teria bastado que essa sociedade de mulheres tivesse adquirido alguma força em uma das
partes da Guiana para que eventos muito simples, que podem ter se repetido em diferentes
lugares, tenham sido descritos de maneira uniforme e exagerada. Isso é típico das tradições.
(Humboldt, 1970, p. 487-488, apud Safier, op. cit, p. 108).
Tal como os relatos da expedição de Orellana, os dois fragmentos citados anteriormente
revelam um ponto comum na forma de concepção sobre essas mulheres: de fato, ambos os viajantes
não testemunharam tampouco situaram as amazonas nas Américas, mas presumiram a existência
delas a partir de narrativas de outras pessoas. Uma singularidade presente nesses comportamentos é
que os dois viajantes eram homens ilustrados, que deveriam se dirigir pela observação empírica
para conferir veracidade aos conhecimentos que produziam.
Outro aspecto a ser considerado é a representação política imperial que abarcava e
personificava o espírito do viajante-colonizador, pois enquanto eram súditos de suas realezas na
Europa, as representavam com a devida autoridade, nas Américas. Ao estudar os relatos do
conquistador Cristóvão Colombo, Todorov (2010), aponta a idealização que ele fazia do “novo
mundo” e a força que a crença em si mesmo conferia veracidade aos relatos de viagem, já que se via
como um personagem que se fazia um testemunho da história.
Entre vários episódios, um detalhe elucidativo investigado por Todorov (2010, p. 30) foi a
insistência de Colombo acreditar/registrar que “a ilha de Cuba era uma parte do continente (da
Ásia), e decide eliminar qualquer informação que tenda a provar o contrário”. Essa obstinação foi
mais incisiva quando “os índios encontrados por Colombo diziam que essa terra (Cuba) era uma
ilha; já que a informação não lhe convinha, ele recusava a qualidade de seus informantes”
(Todorov, idem). Essa atitude, portanto, revela a ambição de conferir veracidade a algo de caráter
imaginário para glorificação de si, do reino espanhol e da história.
No percurso de sua investigação, Safier reafirma situações peculiares com as quais o viajante
francês La Condamine produziu e assentou suas verdades. Se assemelhando a um compilador de
opiniões, ele tinha certo grau de conhecimento prévio sobre a cultura dos povos nativos e, assim,
também se apropriou das informações contidas nos manuscritos do jesuíta suíço Jean Magnin, que
desembarcou na região de Quito (Equador), em 1725, e conviveu com os ameríndios por quase
trinta anos. Das várias observações registradas por aquele religioso, apropriadas e depois adaptadas
por La Condamine, o historiador Safier ressalta a forma como o europeu concebia a conduta dos
nativos, analisando-as da seguinte forma:
[Para Magnin] ...o caráter dos índios era similar ao de crianças, e que eles eram ‘tímidos,
medrosos e bêbados, preguiçosos e infiéis, sem reconhecimento e sem memória’[...] Após
quase vinte anos entre os nativos, Magnin estava convencido da preguiça dos ameríndios,
de sua falta de inteligência e de sua imoralidade; para ele, eram ‘selvagens contentes’ que
viviam inteiramente sem cuidados ou medos.
Os trechos dos relatos parecem ter produzido constantes inquietações, incômodos e
transtornos que careciam de investimentos civilizatórios, por parte dos colonizadores. A partir dos
escritos de Magnin, para acentuar o caráter de incivilidade com que La Condamine julgava as
populações amazônicas, o pesquisador canadense destaca a seguinte afirmação do acadêmico
europeu:
[os nativos] são sóbrios, quando a necessidade os obriga a tanto, a ponto de a tudo
renunciar, sem parecer nada desejar; pusilânimes e poltrões em excesso, a não ser quando
embriagados; inimigos do trabalho, indiferentes a toda forma de glória, de honra ou de
reconhecimento; unicamente ocupados do objeto que têm à sua frente e sempre
determinados por ele; sem inquietação a respeito do futuro; incapazes de previsão e de
reflexão; quando nada os incomoda, entregam-se a uma alegria pueril, que manifestam com
saltos e gargalhadas imoderadas, sem razão e sem objetivo; passam suas vidas sem pensar e
envelhecem sem sair da infância, de que conservam todos os defeitos. (La Condamine,
1745, p.51-53, in Safier).
As duas figuras ressaltadas pelo autor – o acadêmico francês e o missionário suíço – têm uma
percepção assinalada por um lugar em destaque e um tempo muito singular: a Europa e o
Iluminismo. Nessa perspectiva, para os europeus do século XVIII, as Américas não se constituíam
apenas como posses territoriais ibéricas produtoras de riquezas materiais, mas também como um
imenso universo, reconhecidamente estranho, que abrigava povos bárbaros, amorais, inconfiáveis,
incrédulos, insensíveis, portadores de costumes rudes, incivilizados.
No tempo das Luzes (séculos XVII e XVIII), os enciclopedistas valorizavam o
questionamento e a experiência racional como método de produção do conhecimento da natureza,
da política, da economia e das sociedades. A partir de então, o mundo moderno foi cartografado
pelo ideário de progresso e passou a ser cientificizado, ou seja, mapeado pelas ciências, para que
dele fossem extraídas as riquezas materiais. Nessa ótica, as viagens de exploração e colonização
ficaram mais intensas e mais documentadas. Essa também é a razão pela qual a Amazônia com sua
natureza exorbitante foi tomada como objeto de estudo das ciências ocidentais modernas em todos
os campos de conhecimento.
No século XVIII, um dos assuntos que mereceu ser investigado cientificamente foi a relação
da natureza com o cotidiano das populações, explorando as sociabilidades de povos ameríndios,
cujas observações e discursos, entre outros aspectos, ajuizaram até a conduta moral dos nativos.
Para alguns estudiosos, a crença na relação exótica entre condições climáticas e “evolução humana”
era tão visceral que poderia até mesmo ser transmitida aos indivíduos que partilhassem o mesmo
ambiente.
Nessa concepção, se pensava a sociabilidade humana numa relação de causa e efeito em que o
meio ambiente é que determinaria as condições de vida, pensamento que pode ser entendido como
“determinismo geográfico”. Essas ideias justificavam teoricamente a superioridade dos europeus
por se considerarem uma civilização evoluída e desenvolvida e por isso, poderiam dominar “povos
inferiores” impondo sobre estes sua cultura e seu modo de vida. Nesse contexto, para as populações
amazônicas as condições do meio ambiente como, por exemplo, o clima tropical e os vários
aspectos da floresta, é que determinariam a fisiologia e a psicologia humanas, cujas marcas seriam
visíveis nos comportamentos sociais.
O estudo de Safier (idem, p. 104) mostra o que o imigrante judeu Isaac de Pinto, que vivia na
Holanda, pensava sobre os ameríndios ao trocar correspondências com La Condamine:
Se esse temperamento [indolência, preguiça, indiferença, etc.] é tão universal, sua causa
deve ser certamente física, e inerente à natureza do clima; supondo ser esse o caso, tal vício
inerente deve ser transmitido aos filhos de europeus nascidos nesse país, cujo
temperamento deve, consequentemente, se aproximar cada vez mais daqueles do Novo
Mundo. (grifo nosso)
A citação em destaque mostra como as leituras dos relatos de viajantes induziam outros
letrados europeus a conjeturar o mundo exótico que havia do outro lado do Atlântico, a partir do
conjunto de concepções e/ou informações que esses escritos suscitavam. O fragmento da fala do
imigrante enuncia os comportamentos descritos por La Condamine como defeitos morais
irreparáveis que poderiam atingir descendentes de europeus pelo convívio com as populações
ameríndias. O vício inerente, por conseguinte, se traduz como uma doença sócio-cultural de
natureza congênita e contagiosa que, pelas condições climáticas e/ou ambientais, se tornaria
impossível o tratamento, a cura e a erradicação.
Outro detalhe que merece destaque é a classificação de universal atribuída ao temperamento
das populações. Essas práticas discursivas as igualavam tanto físico quanto moralmente. A pensar
pelo caráter de transmissividade generalizada que sugere o relato acima citado, o fenômeno da
contaminação não se restringia somente às populações amazônidas e menos ainda aos escritos
europeus. Essas concepções também aparecem em outras escritas como, por exemplo, na literatura e
na geografia.
Longe de se equivaler a uma compreensão mais elaborada sobre o modus vivendi de
populações ameríndias, o conhecimento letrado (séculos XVII, XVIII e XIX) ia produzindo
imagens deturpadas sobre as vivências socioculturais dos povos das Américas, tomando como
referência os valores tradicionais europeus. Esses saberes intelectualizados (ou não) construíam
julgamentos que hierarquizavam os europeus como povos superiores e os outros como inferiores, o
que se tornava possível pelas operações de linguagem. Nesse contexto, Certeau (1994, pp. 63-64),
discute os embates estabelecidos entre a linguagem ordinária (comum) e o discurso de
cientificidade, dizendo que este último se institui com um todo racional polarizado com o cotidiano
que é reconhecido como cultura.
A escrita moderna instituiu o mundo ocidental como textos e serem consumidos. No campo
das significações, a referência de progresso se associava àquilo que estava escrito e racionalmente
normatizado. Em oposição ao mundo ágrafo, essa concepção não reconhecia as tradições orais
como experiências humanas, pois o “oral é aquilo que não contribui para o progresso; e,
reciprocamente, ‘escriturístico’ é aquilo que se aparta do mundo mágico das vozes e da tradição”,
como diz Certeau (op. cit, p. 224). Os discursos acadêmicos (e outros escritos) organizaram e
chancelaram o ideário de modernidade num convívio conflituoso com a linguagem ordinária das
sociabilidades cotidianas.
A força dessa linguagem escrita explorada pelo pesquisador Safier, recompõe as impressões
registradas sobre as populações tradicionais da Amazônia, ao certificar que, para La Condamine, os
índios eram “preguiçosos, de pouca inteligência, glutões e inaptos para o pensamento racional, [...]
todos ou a maioria dos índios americanos são mentirosos”, o que significaria considerá-los uma
gente degenerada. Essa imagem se revigorava quando ele afirmava que “a ‘insensibilidade’ era a
base do caráter do índio, deixando ao leitor a opção de escolher se essa insensibilidade deveria ser
"honrada com o nome de apatia, ou vilipendiada com o de estupidez".
Os usos da linguagem escrita que documentavam os acontecimentos, produziam efeitos de
convencimento, uma vez que os viajantes se instituindo como autoridades do saber e/ou
“testemunhas da história” pelo método da empiria, pretensiosamente, estabeleciam a realidade que
apreenderam e a faziam crível para si e para outros públicos. Foi dessa forma que a “verdade
científica” dos relatos dos viajantes subjugou e/ou ignorou as maneiras como outros povos se viam
e/ou se identificavam por meio de seus convívios com o mundo.
Nesse sentido, a circulação e consumo dos documentos escritos, tanto quanto as “notícias”
sobre as práticas socioculturais dos povos ameríndios que se espalharam pela Europa, se alojaram
nos discursos de civilidade eurocêntrica. A influência de concepções sobre o caráter deformado (de
cunho hereditário) ou “desvio de conduta”, se estendeu a outros escritos e a outros tempos. Na
literatura brasileira há algo que se aproxima desse tipo de registro histórico. O “vício inerente”,
conferido aos amazônidas pelo judeu Isaac de Pinto, por herança, parece ter contaminado os
moradores que habitam O Cortiço, do escritor maranhense Aluísio de Azevedo, mais de um século
depois de La Condamine.
Como romance urbano de cunho ficcional, essa obra literária que se filiava ao movimento
Realista-Naturalista, foi publicada em 1890 e trata das vivências cotidianas de uma comunidade
pobre e mestiça da cidade do Rio de Janeiro. Lá sediava a então capital do Segundo Império
brasileiro, cuja aristocracia tinha como referência cultural a Europa ocidental. A narrativa apresenta
um viés sociológico quando explora várias artimanhas de sociabilidades e antropológico, quando
coloca os personagens às avessas para que o leitor compreenda especificidades do comportamento
humano, seja individualmente ou nas relações que se estabelecem no coletivo social.
O cortiço, que justifica o título da obra, é um lugar constituído por casebres amontoados e
desorganizados, com espaços sujos, irregulares e indefinidos onde mora uma gente que porta várias
misturas étnica, social, racial, cultural e econômica. Entre os personagens que reúnem brancos
europeus, negros e mestiços, alguns deles chamam a atenção pelos atributos amorais com os quais
se apresentam no enredo. A condição de “amoral” está assinalada na perspectiva de se relacionar
bons costumes e regramento social com a concepção de civilidade ocidental.
Por exemplo, a figura do trabalhador braçal João Romão (imigrante português), que chegara
ao Brasil sem recursos financeiros e vai sobreviver da penosa labuta da pedreira de Jerônimo (outro
imigrante lusitano). Graças às artimanhas de explorar o trabalho alheio, trapacear nas pesagens da
vendinha e furtar materiais de construção na calada da noite conseguiu sair da pobreza e adquirir
certo refinamento social. Em suas atitudes desonestas, se inclui também a exploração da amante
Bertoleza, uma escrava que acredita ser liberta, a partir de uma falsa carta de alforria, que a
possibilitou então ser devolvida ao seu antigo “dono”.
O romance traz as disputas pessoais por bens patrimoniais e prestígio social entre os
comerciantes portugueses João Romão (o taberneiro que acumulou fortuna ilicitamente), e Miranda
o comerciante de tecidos, que tem aceitação nos meios sociais mais requintados, mas que se ampara
nas finanças da esposa. As rivalidades se minimizam com o casamento entre João Romão e
Zulmira, a filha de Miranda, pois o que estavam em jogo eram a herança material e o pertencimento
social.
A trama de Azevedo reserva atributos especiais para boa parte dos moradores do cortiço, em
especial para as mulheres: a libertinagem. A mulata e sedutora Rita Baiana é uma personagem sem
peia moral, cujas características de fêmea enfeitiçaram Jerônimo, o que o faz abandonar a família,
se separa da mulher Piedade (também portuguesa), se joga na boemia, contrai muitas dívidas e
perde a referência moral, sobretudo, a de trabalhador disciplinado de boa índole, que se dedicava
aos serviços e por isso merecia reconhecimento e recompensa. Entre os amantes ainda há o Firmo,
um mulato capoeirista que disputava Rita Baiana e termina assassinado por Jerônimo.
Além de Rita Baiana, o autor deu vida às figuras da prostituta Leónie, de origem francesa com
experiência nas práticas sexuais, à menina de boa família, Pombinha, que quando casada se separa
do marido e vai viver uma relação homossexual com Leónie, à Senhorinha, a filha de Jerônimo que
apesar de estudada foi influenciada pela vivência do ambiente inóspito e pela herança familiar. Com
menor ímpeto, o romance ainda traz, entre outras, D. Estela e Piedade como mulheres que não
escaparam do ambiente pervertido em que viviam. Na contramarcha das vivências (a)morais, dona
Izabel, mãe de Pombinha, sonha com a possibilidade de ver a filha casada, em conformidade com a
tradição cristã, ainda que desgostosa e envergonhada aceite ser sustentada com uma parte do
rendimento dos clientes da filha.
O rendez-vous do cortiço parece infindável e como se prescrevendo um futuro próximo,
Azevedo (1997, p. 115), afirma: “a cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço
estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao
lado de uma infeliz mãe ébria.”. As vivências dos pobres de O Cortiço são atravessadas por
desordens, assassinatos, adultérios, roubos, enganações, traições, infidelidades, embriaguês, cobiça,
vinganças, brigas, falta de higiene e indisciplina, o que autoriza o leitor a identificá-los como uma
gente promíscua, sem virtude, se comparado à disciplina e ao regramento social da moral cristã.
Esse é o fio com o qual o autor conduz toda a narrativa da obra.
Na segunda metade do séc. XIX, o mundo ocidental tinha como referência a Europa. Em
especial, França e Inglaterra eram as referências sócio-econômicas e políticas para o restante do
ocidente. As artes, os efeitos estéticos da moda, da urbanização e da cultura, de comportamentos
coletivos e da literatura compunham cenários de civilidade e se impunham como o refinamento
sociocultural da época. As concepções de progresso e bem-estar social reuniam o sucesso da
empresa privada produtiva, o deslumbre com a tecnologia acelerada e a crença na ciência e na
razão.
O declínio da aristocracia, quase sempre pelo empobrecimento material, se contrapunha com
a acentuada verticalização de uma burguesia que ia se tornando importante pelo acúmulo de riqueza
e pela prosperidade que representava. Do ponto de vista político, os Estados Nacionais, favorecidos
por códigos de leis, aparatos militares sofisticados e os sistemas burocráticos, prometiam liberdades
e direitos civis, pelos quais tornariam iguais todos os cidadãos. A governabilidade, subscrita no
princípio da autoridade estatal, se manifestava no discurso da ordem, desde que fosse mantido cada
segmento social no seu devido lugar político.
Em O Cortiço, a linearidade do tempo sugere pensar um ajustamento das condutas humanas
que vai da rudeza à civilização, pautada, sobretudo, pelas influências que os indivíduos recebiam
dos ambientes onde viviam. As questões do cotidiano e, sobretudo, da sexualidade tratadas no
romance têm um tom quase animalesco e patológico, especialmente pelas relações estabelecidas nos
espaços de convivência, que ganha racionalidade ao receber assentimento dos moradores, o que os
torna todos iguais.
Um texto literário não deve ser encarado como uma ficção desencarnada da realidade, mesmo
porque os escritores são sujeitos do seu tempo e, de uma forma ou de outra, partilham dos códigos
de sociabilidades no seu entorno e age no mundo a partir de suas experiências de vida. O Cortiço,
portanto, representa o universo urbano que a pobreza vivia quando a “higienização das cidades”
(séc. XIX), ainda não teria predominado em todos os espaços do Rio de Janeiro.
A leitura do romance de Aluízio de Azevedo, apresentando o cotidiano alvoroçado e
indisciplinado dos pobres na capital brasileira (final do Império e começo da República), não cabia
nos modelos de civilidade europeia. É preciso pensar esse contexto incluindo a vinculação do autor
aos “princípios científicos” dos determinismos biológicos e geográficos, pelos quais o meio em que
se vivia era o determinante supremo dos destinos humanos. Em outras palavras, “o homem era
produto do meio”. Assim, as marcas dos determinismos dos séculos XVIII e XIX que constam nos
registros de viajantes e cronistas, passavam pelas páginas da literatura brasileira nos prenúncios do
século XX.
Uma obra tem muito de seu autor. De família portuguesa, o brasileiro Aluísio de Azevedo
estudou na Imperial Academia de Belas Artes e na carreira política ocupou postos diplomáticos.
Escreveu outras obras além de O Cortiço, mas esta foi a que o consagrou como literato e a razão
maior para isso tem a ver com sua filiação ao naturalismo do século XIX, que desfrutava de
prestígio e bom consumo nos meios intelectuais europeus.
Certamente, conhecer o dia-a-dia dos moradores de O Cortiço reforçava o “conhecimentoverdade” dos naturalistas e o imaginário que os europeus desenhavam sobre os povos das Américas,
neste caso, brasileiros urbanos e amazônidas. Idealizar pessoas e lugares que habitavam os
domínios coloniais ibéricos, além da produção de saberes, também era motivo de entretenimento,
como afirma o religioso Isaac de Pinto para La Condamine, quando disse: “sua carta, tão instrutiva
quanto divertida, foi assunto de um de nossos encontros” (Safier, op. cit. p. 103). (grifo nosso).
Imaginemos, então, o quanto era curiosa e eficaz (nas academias europeias) uma discussão
sobre costumes e tradições dos povos das Américas, em permanente processo de colonização,
quando forçosamente os domínios coloniais juntaram o ameríndio, o europeu e o africano! Os
parâmetros que entremeavam as notícias do além mar, a trama dos romances e das narrativas
históricas, produzindo hierarquias entre o civilizado e o incivilizado, faziam parte do arcabouço
científico de naturalistas como Humboldt, considerado o fundador da geografia humana.
Para a historiografia (no campo da história cultural), a realidade social não é algo concreto
coisificado, mas a escrita desta representa as formas com as quais o historiador apreende e
interpreta as ações humanas que compõem os acontecimentos socioculturais. Explorando os
indícios que ressaltam dos documentos, é preciso “identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler”, como nos diz Chartier
(1990, p. 17).
No seu conjunto, tanto o mundo amazônico quanto o cotidiano de populações pobres (urbanas
ou rurais) como a retratada na literatura de Aluísio de Azevedo, instigam inquietações pelas quais a
necessidade de elaboração do saber nos tempos modernos levou viajantes, cartógrafos, cientistas,
filósofos, naturalistas, literatos, artistas etc., a produzirem conhecimentos materializados a partir das
percepções e experiências vividas in loco ou apropriadas de “verdades concebidas” por outros
saberes e outros discursos.
A imagem das mulheres guerreiras da antiguidade clássica, que reapareceu habitando as
florestas tropicais no século XVI, serviu para nomear as águas de rio Amazonas. No século XVIII, a
prática escriturística dos viajantes favoreceu a demarcação da (in)civilidade dos ameríndios e,
posteriormente no século seguinte, legitimou uma complexidade de situações geopolíticas e sócioculturais da Amazônia. Essa última denominação está vinculada à imensa área de abrangência dos
seringais – a Hevea brasiliensis – cuja cultura extrativista os nativos produziam (e continuam
produzindo): a borracha natural, o látex.
Assim, contabilizando episódios dos relatos de viagem e/ou produzindo conhecimentos a
partir de métodos empíricos e até por alguns tipos de personagens da literatura brasileira, os
europeus foram atribuindo feições exóticas aos lugares e às populações das Américas. E na
construção estereotipada do outro, atravessando os séculos, cunharam a imagem de si para si e para
hierarquizar (inferiorizar) outros povos ocidentais.
Por fim, o texto escrito é sempre produção de um tempo presente. Seja na história, na
literatura no jornalismo ou em outro campo do conhecimento, a escrita traduz o tempo de sua
produção e dar a conhecer os propósitos dos discursos. As operações das linguagens que produzem
narrativas (interpretações, informações ou análises), revelam os sentidos que se entranham nos
conteúdos dos discursos. Diferentemente da história, em que a escrita se prende às interpretações de
documentos, um texto literário porta uma função estética, com uma criatividade que desperta
diferentes sensibilidades no leitor.
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Referências Bibliográficas:
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel,
2002.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de
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AZEVEDO, Aluízio de. O Cortiço. São Paulo: Ed. Martin Claret, 1997.
CASTRO, Leandro. Mitos e lendas da Amazônia. In: PAPAVERO, Nelson et. al. O Novo Éden...
Belém: Museu Paraense Emilio Goeldi, 2ª Edição, 2002.
CHIAVENATO, Júlio José. Cabanagem, o povo no poder. São Paulo: Brasiliense, 1984.
DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis/ RJ: Vozes, 1994.
SAFIER, Neil. Como era ardiloso o meu francês: Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia
das Luzes. In: Rev. Bras. Hist., vol. 29, nº. 57. Dossiê: O Brasil visto de fora. São Paulo: junho
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SANTOS, Joel Rufino dos. Os pobres. In: Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar
para os pobres. São Paulo: Global, 2004.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone
Moisés. 4ª Edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
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