Resenha de “Morfina”1 (Humberto de Campos) Ana Carolina Queiroz2 Como sugere seu título, “Morfina”, de Humberto de Campos, conta a história de um terrível caso de dependência química. A narrativa principal se dá na Casa de Saúde Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, quando o narrador – que permanece inominado ao longo de toda a história – conta que lá muito ia para visitar seu amigo Carvalho Souto, na época em que este esteve internado. Ao longo das visitas, começou a travar amizade com o médico de seu amigo, o Dr. Augusto de Miranda. Mesmo após Souto receber alta, ele continuou indo até a Casa de Saúde, apenas para conversar com o médico. Em uma dessas visitas, de modo casual, o médico lhe aponta uma paciente que, segundo ele, possui uma “história trágica”. O médico convida o narrador para caminharem, enquanto ele conta a história da vida daquela triste mulher. Inicia-se nesse momento a segunda narrativa. Miranda relata que, pela época em que a senhora era casada e tinha um filho, aconteceu-lhe de ter fortíssimas cólicas hepáticas. Seu marido, que era também médico, recorreu aos procedimentos padrão para o caso. Como o tratamento tradicional não surtiu efeito algum decidiu, movido pela compaixão, aplicar-lhe uma injeção de morfina. Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicoulhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até a noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! (CAMPOS, 1934, p. 47-8) Após um curto período de tempo, a mulher reclamava por novas doses de morfina e não mais por dor. O vício instalara-se em seu corpo. Passam-se semanas, nas 1 CAMPOS, Humberto de. Morfina. In:___. O monstro e outros contos. 3ª ed. Aumentada. São Paulo: José Olímpio, 1932. (p. 45-53). 2 Graduanda do Curso de Letras da UERJ, bolsista voluntária de Iniciação Científica e membro do Grupo de Pesquisa “O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ). quais o marido começa a perceber na esposa “uns ímpetos de temperamento” – que, embora não sejam explicitamente descritos, parecem sugerir transformações no comportamento sexual. Desenvolve-se nela, com a necessidade química, uma libertação da libido. Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. (IBID., p. 48) Na tentativa de curar a esposa, o marido recomenda que ela vá se consultar com um especialista. Ela vai ao consultório de Dr. Stewenson, médico europeu de renome, especializado no tratamento da toxicomania, mas a tentativa é frustrada: o médico também era viciado em morfina e se passava por especialista apenas para atrair parceiras: A moça foi [ao tratamento], sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios... (IBID., p. 49) Após algumas semanas, ela revela tudo ao marido, fazendo com que o desquite se tornasse inevitável. A separação, porém, não os distancia definitivamente. Fosse pelo amor que dedicava a ex-esposa, fosse pelo sentimento de culpa por tê-la introduzida no vício ou fosse pela atração sexual exercida agora pela ex-companheira, o marido tornou-se “um dos amantes de sua antiga mulher” (IBID., 50). Cabe aqui fazer uma pequena pausa e elucidar um pouco mais sobre o que é a morfina. Usada em tratamentos para aliviar dores crônicas, como no caso do parto, ela é um narcótico cujo uso é restrito. Entre os efeitos colaterais mais comuns se encontram euforia, alucinações, sedação e dependência. Nada de diferente do provável ocorreu, portanto, na história contada: com o passar do tempo a protagonista precisava de doses cada vez mais fortes, para que pudesse manter suas recém-adquiridas necessidades devidamente satisfeitas. Os efeitos da morfina tornam-se explícitos no momento em que a personagem reage a uma superdose e sofre uma terrível crise nervosa. Como mostra o trecho abaixo, ela é totalmente dominada pelas alucinações, perdendo o controle de si mesma. As imagens das chamas, juntamente com a raiva com que ela tira as próprias roupas, formam um quadro de loucura e perda de controle. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. (IBID., p. 51) O desfecho da história é tão horrível quanto inevitável: um dia, tamanho seu nível de alucinação e descontrole, ela mata o filho, enforcando-o com as próprias mãos. De repente as pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! (IBID., p. 52) O aspecto vil que a ciência adquire ao longo do conto é uma das características mais claras da história. Ela aparece sob seu lado mais obscuro: algo que o ser humano ainda não domina completamente, mas que possui força e potência para transformar as coisas de um modo inimaginável. Na história, sua manipulação é feita tanto por piedade (quando o marido da personagem enfraquece perante o sofrimento de sua esposa) quanto por prazer (no caso de Stewenson, que deliberadamente se aproveita de seus conhecimentos para satisfazer seus prazeres secretos). Aprendemos que a medicina pode se tornar uma arma se não for devidamente controlada. Há também duas transgressões fortes: a física – demonstrada pela necessidade de uma composição química estranha ao organismo – e a moral – o apetite sexual que é despertado na paciente, após o uso contínuo de morfina. O medo e o horror se dão desde o gradual aumento do vício até o clímax, quando ele é levado até as últimas consequências – o assassinato de um filho pela sua própria mãe. Já no final da história, é perceptível como a transgressão da personagem a transformou em um verdadeiro monstro: um ser dominado por seus instintos, capaz de qualquer irracionalidade, que ameaça não só a si mesmo como aos que estão à sua volta. O aflorar da sexualidade relacionado à transformação de caráter dos morfinômanos (o que ocorre tanto com a esposa quanto como Dr. Stewenson) caracteriza, ainda, uma aparente tendência nas histórias de medo ou de terror: toda a causa que atemoriza trás consigo um quê de prazer. É assim que o leitor pode se encontrar, ao mesmo tempo, horrorizado e em um estado de deleite. Isso ocorre mesmo com o marido da personagem, principal responsável pelo início do vício da esposa. De início, ele se mostra atemorizado, chocado com os efeitos que a droga produziu. Ao mesmo tempo, porém, ele se mostra atraído pelo novo “comportamento” da ex-esposa – ele não a abandona, mas se torna “um de seus amantes”. Ao mesmo tempo em que a repudia e tenta ajudá-la, ele se aproveita dos novos efeitos produzidos pela droga, que atiçam fortemente seus desejos masculinos. Percebe-se também um apelo contínuo às sensações, tanto do leitor quando do primeiro narrador, já que ambos são meros ouvintes da história principal. Afinal, o que se percebe é uma narrativa dentro de outra narrativa, recheada de curiosidade e expressões como “E a tragédia?” e “Que horror!”. Nesse ponto, pode haver uma forte identificação do leitor com o próprio personagem, pois ambos estão ouvindo uma história – que sequer foi vivida por quem a está a contando. Tudo é dito com um tom um tanto surpreso, chocado, como se estivéssemos ouvindo ao mais recente escândalo da sociedade. Ao final da história central, o primeiro narrador retorna para, brevemente, descrever o desfecho da conversa. “E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro” (IBID., p. 53). Ambos parecem retornar às suas atividades normais, mas com aquela sensação de horror causada por um pesadelo... ou por uma história contada ao redor da fogueira – algo que nos faça tremer perante os “prazerosos” riscos de ultrapassar os limites humanos.